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Aletheia

versão impressa ISSN 1413-0394

Aletheia  no.42 Canoas dez. 2013

 

ARTIGOS EMPÍRICOS

 

Percepções de psicólogos sobre os familiares durante o tratamento de dependentes químicos

 

Psychologist's perceptions of family during chemical dependent's treatment

 

 

Alexandre HerzogI; Maria Isabel WendlingII,III

I Centro de Referência em Assistência Social de Rolante
II Curso de Psicologia das Faculdades Integradas de Taquara
III Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul

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RESUMO

As relações familiares têm uma grande influência na dependência química. Por isso, visando compreender como esse fenômeno afeta o contexto do tratamento da dependência química na região do Vale do Paranhana, realizaram-se entrevistas semiestruturadas com psicólogos de um hospital geral e de três comunidades terapêuticas. Esse procedimento foi gravado, transcrito e analisado segundo o método de análise de conteúdo de Bardin (2011). Os resultados evidenciaram que para os psicólogos entrevistados a participação dos familiares é indispensável à recuperação dos dependentes químicos. No entanto, eles percebem a família como enferma, apresentando dificuldades de adesão ao tratamento, não conseguindo sustentar regras e combinações. Apesar disso, na visão deles, quando bem orientados os familiares conseguem restabelecer o vínculo com o dependente e colaborar mais efetivamente com o tratamento. Assim, deve-se focar mais a família, para que esta se aproprie do tema e que possa buscar ajuda, tornando o tratamento mais eficaz.

Palavras-chave: Relações familiares, Dependência química, Tratamento.


ABSTRACT

Family relationships have a major influence on addiction. Therefore, to understand how this phenomenon affects the context of drug treatment in the Valley of Paranhana, semi structured interviews were conducted with psychologists in a general hospital and three therapeutic communities. This procedure was recorded, transcribed and analyzed using the method of content analysis of Bardin (2011). The results showed that to the psychologists interviewed the participation of family members is essential to the recovering of addicts. However, they perceive the family become sick as well, presenting difficulties in adherence to treatment, failing to uphold rules and combinations. Notwithstanding, in their view, when well oriented the family can reestablish the familiar tie with the dependent and collaborate more effectively with treatment. Thus, one should focus more on the family in order that they learn about this issue and they get help, turning the treatment more effective.

Keywords: Family relationships, Chemical dependency, Treatment.


 

 

Introdução

A dependência química é uma preocupação na sociedade brasileira e também no mundo, pois o acesso ao álcool e outras drogas tem se tornado cada vez mais fácil. Historicamente, de acordo com Rapport (1998) o consumo de drogas era associado a rituais religiosos, mas ao longo do tempo foi passando a assumir outra função dentro da sociedade moderna. As drogas podem estar se tornando uma alternativa para as adversidades da vida, pois segundo Mangueira (2005), elas propiciam um prazer de fácil aceitação capaz de suprir as carências afetivas do sujeito.

Nesse sentido, a mídia desempenha um papel importante na propagação desse fenômeno. Zago (2011) aponta que ela estimula a sociedade ao consumismo, inclusive de álcool e outras substâncias, fazendo com que as pessoas se sintam incluídas socialmente ao cumprir com essa expectativa. Dessa maneira, o uso de drogas lícitas como o álcool, por exemplo, torna-se um meio de inclusão social, sendo valorizado e estimulado dentro das famílias como forma de confraternizar e comemorar eventos, assim como nos círculos de amizade em geral.

Isso é o que Stanton e Todd (1990) consideram como primeira etapa do uso de drogas em se tratando de adolescentes. Geralmente eles têm as primeiras experiências com drogas lícitas no âmbito familiar e partem para drogas ilícitas nos grupos de pertença com uso eventual, gerando conflitos familiares conforme vão aumentando o nível de consumo. Conforme Moraes (2008), isso mostra que as consequências individuais e sociais do consumo de drogas fazem parte do nosso cotidiano.

Contudo, o consumo desenfreado dessas substâncias ajuda no desenvolvimento da dependência química devido ao fato de elas levarem o cérebro a uma adaptação neuroquímica conhecida como tolerância (Stahl, 2010). Essa situação implica a necessidade de cada vez mais, aumentar as dosagens para conseguir o mesmo efeito obtido de início. Isso demonstra, segundo Marlatt (1999), o caráter progressivo da doença, que culmina também em variações e perturbações de comportamento em função do uso abusivo de substâncias.

Assim, para enfrentar esse problema vem sendo desenvolvidas e implantadas nos últimos anos diversas medidas políticas. Essas iniciativas públicas se baseiam em três estratégias para lidar com essa situação: a redução de oferta, a redução da demanda e a redução de danos. Essas ações visam acabar com o tráfico e produção de substâncias ilícitas, reduzir a procura pela droga e também reduzir os comportamentos de risco associados à dependência química (Marlatt, 1999).

Entretanto, na questão do tratamento, centros especializados de atendimento como hospitais gerais e comunidades terapêuticas são opções relativamente recentes, uma vez que se estabeleceram a partir da lei 10.216 (2001). Desde então, vem surgindo alternativas de serviços especializados que têm ajudado a humanizar o cuidado com o dependente químico, que anteriormente, não contava com essa atenção das políticas públicas.

Nos hospitais, é disponibilizada uma estrutura para um período de internação que varia de quatro a quinze dias, cujo objetivo é a desintoxicação. Trata-se de uma internação breve, que possibilita o início do tratamento e deve oferecer, de acordo com Araújo, Oliveira, Piccolotto e Szupszyinski (2004), uma espécie de espaço onde se possa conter o desejo de consumir drogas, o qual não se consegue conter no ambiente ambulatorial.

Já as comunidades terapêuticas, intervêm num sentido de evitar a recaída e promover a volta da pessoa ao convívio social com um novo estilo de vida (Zampieri, 2004). Segundo Sabino e Cazenave (2005), elas são opções populares e acessíveis de tratamento, buscando adaptar-se a diversos níveis culturais e sociais e em geral, atuam de três maneiras: uma linha espiritual, uma linha científica ou uma linha mista.

A atuação das comunidades terapêuticas visa a proporcionar ao paciente a possibilidade de aprender novas formas de se relacionar e novos meios para lidar com as suas dificuldades de maneira mais madura e adequada. Apesar disso, ao retornar à sociedade alguns ainda acabam se expondo novamente aos mesmos riscos e recaindo, suscitando questionar a fragilidade do tratamento (Zampieri, 2004).

Nesses espaços, a lei 10216 (2001) prevê a presença de equipes multidisciplinares contando com profissionais como psicólogos, médicos e assistentes sociais, dentre outros, o que possibilita um olhar mais abrangente e uma melhor atenção ao indivíduo. Contudo, nesta pesquisa focou-se nos psicólogos, os quais, segundo Díaz Heredia e Marziale (2010), encarregam-se de uma escuta e um acompanhamento mais frequente com os pacientes e os familiares nesses ambientes, orientando-os e desenvolvendo estratégias de tratamento.

Conforme Shenker e Minayo (2004), a família é o principal grupo de relações do ser humano e segundo Ozório (2011) é por meio dela que ele se relaciona com os seus semelhantes, o ambiente e a sociedade. Para Caldeira (1999), é no âmbito da família que se criam e se estruturam relações importantes de afeto, segurança e autoconfiança nas pessoas, pois se começa a estabelecer o limite entre o "eu" e o "não eu", essencial ao ser humano.

Contudo, essas relações são tão marcantes que podem gerar conflitos que façam que um dos membros da família se torne dependente químico (Shenker e Minayo, 2004). Isso faz com que ele busque um refúgio na droga, visando estabelecer uma fronteira aparentemente mais segura (Guimarães, Costa, Pessina & Sudbrack, 2009), o que na verdade não passa de uma falsa sensação de independência.

As mudanças advindas dessa tentativa do indivíduo se diferenciar dos demais (Bowen, 1991) leva a família a uma readaptação em torno do dependente (Do Carmo, 2003; Guimarães et al, 2009; Orth, 2005) que se equilibra e se mantém a partir da dependência química desse sujeito. Isso leva os familiares a acumular funções no cuidado do dependente e os mantém constantemente tensos e preocupados gerando um quadro de estresse conhecido como codependência (Zampieri, 2004), o qual evidencia que a família também adoece.

Todavia, a família também pode representar uma força de apoio, capaz de retomar vínculos importantes para o tratamento do dependente químico e para a sua recuperação (Shenker e Minayo, 2004). Para Seadi e Oliveira (2009), quando ela consegue reaverse dos sentimentos de dor e fracasso, associados à internação, e dar-se conta de que o tratamento não se restringe somente ao período em que o paciente está recluso em um hospital ou em uma comunidade terapêutica é que se consegue avançar em direção à recuperação do dependente. Assim, para as autoras, quanto mais membros da família participarem no tratamento, mais pessoas estarão sendo informadas a respeito de seus papéis e de como podem ajudar em cada etapa, sendo que a sua colaboração repercute na reestruturação das relações familiares, de forma a livrar-se das drogas.

O presente estudo, portanto, buscou compreender a participação dos familiares no tratamento a partir da percepção dos psicólogos, aproveitando-se da proximidade de contato que eles têm com as famílias. O objetivo foi investigar, na visão desses profissionais, como os familiares auxiliam no tratamento ou o prejudicam; identificar os conflitos que permeiam as relações familiares durante o tratamento e como eles observam as mudanças que ocorrem nesse contexto.

 

Método

Foram entrevistados quatro psicólogos. Um oriundo da equipe de saúde mental de um hospital geral e os outros três, oriundos de comunidades terapêuticas, sendo todos esses serviços localizados no Vale do Paranhana. Esses profissionais foram indicados pela própria equipe de cada serviço.

Os instrumentos utilizados para coleta de dados foram uma entrevista semiestruturada embasada na revisão de literatura sobre o assunto e um breve questionário para identificação do perfil dos profissionais entrevistados, ambos elaborados pelo autor desse estudo com o auxílio da professora orientadora acadêmica. As questões que nortearam a formação da entrevista semiestruturada foram as seguintes: de que maneira a família pode influenciar auxiliando no tratamento da dependência química? De que maneira a família pode influenciar prejudicando o tratamento da dependência química? Quais são os principais conflitos que se observa nas relações familiares durante o tratamento? Ocorrem mudanças nesses padrões conflitivos durante o tratamento? Quais?

As questões que formaram o questionário do perfil dos profissionais foram as seguintes: Qual foi a sua formação? Há quanto tempo atua como psicólogo? Busca manter-se atualizado? Você trabalha também em outros serviços de atendimento à dependência química na região? Há quanto tempo trabalha com a demanda da dependência química?

Primeiramente, o projeto deste estudo passou por uma banca de qualificação e pela avaliação do comitê de ética e pesquisa das Faculdades Integradas de Taquara, que o liberou para aplicação. Em seguida, procedeu-se às outras etapas da pesquisa, quando foram feitos os contatos com o hospital e com as comunidades terapêuticas para agendar as entrevistas.

No caso do hospital, encaminhou-se um ofício à presidência da instituição, junto com uma cópia do projeto de pesquisa, explicitando as características e objetivos deste estudo. Já no caso das comunidades terapêuticas, foram agendados encontros com seus representantes nos quais o projeto foi apresentado.

Todas as instituições receberam um termo de concordância, que caracteriza a pesquisa e apresenta os seus objetivos solicitando a autorização para a sua realização, e também os entrevistados receberam o termo de consentimento livre e esclarecido. Foi realizado um único encontro para entrevista com cada profissional no seu próprio local de trabalho e esse procedimento teve a duração média de 25 minutos.

Realizaram-se as entrevistas e como complemento, foi aplicado o questionário para identificação do perfil dos profissionais, visando melhor compreensão a respeito do contexto dos sujeitos entrevistados. Essas duas etapas foram gravadas e transcritas, sendo que posteriormente foram analisadas de acordo com o método de análise de conteúdo de Bardin (2011).

 

Resultados

A análise das entrevistas permitiu conhecer os psicólogos entrevistados e o que eles percebem acerca da participação dos familiares no tratamento da dependência química, bem como identificar em que serviços trabalham e como se prepararam para atuar nessa área. A tabela 1 evidencia que um deles já trabalhava como voluntário em uma comunidade terapêutica antes da graduação e que todos atuam na área da dependência química ao menos há dois anos.

 

 

Outra característica importante é que, com exceção do psicólogo 4, todos trabalham em apenas um local de atendimento à dependência química da rede disponível no Vale do Paranhana. Perguntando ao profissional sobre uma possível diferença de participação dos familiares entre os seus dois locais de trabalho ele respondeu que percebe maior aderência na comunidade terapêutica, em função do tempo que os pacientes ficam em atendimento, que é maior do que em um hospital ou em um CAPS 1.

Já com relação à participação dos familiares no tratamento, os profissionais entrevistados creem que essa é fundamental. Tanto que o psicólogo 4 afirma: "a questão, assim, de eles começarem a entender a própria dependência química, né, entender os motivos que levam o familiar a usar drogas, né, pra depois eles conseguirem ser o suporte desse familiar pra evitar a recaída, né..."

Então, a partir disso, eles apontam momentos em que os familiares participam e influenciam nesse processo. Conforme a tabela 2, as principais influências positivas dizem respeito à firmação de uma parceria entre os familiares e o programa de recuperação e também a questão do esclarecimento e da busca de informações a respeito da dependência química por parte dos familiares.

 

 

É consenso entre os psicólogos entrevistados que o esclarecimento permite a apropriação do tratamento por parte dos familiares, o que, segundo o psicólogo 3, pode levá-los a também buscar ajuda terapêutica. Isso também revela que, em geral, os profissionais entrevistados percebem que a família do dependente químico chega doente e desajustada ao tratamento.

Já a tabela 3, aponta as influências negativas que a família exerce sobre o indivíduo em tratamento. Dentre elas, os profissionais apontaram o boicote ao tratamento, o desconhecimento e a superproteção. Considerando que os vínculos do dependente químico em tratamento e sua família estão fragilizados, é possível relacionar o desconhecimento acerca da dependência química e o comportamento de superproteção à doença familiar e à maneira como a família enxerga a situação.

 

 

Conforme os profissionais entrevistados, os familiares veem o dependente químico como o único problema da família e o ambiente familiar é repleto de conflitos. Por isso, a tabela 4 aponta a falta de credibilidade no paciente e no tratamento e também a disfuncionalidade nas relações familiares:

 

 

Nesse contexto, o psicólogo 2 menciona a questão dos vínculos fragilizados, o psicólogo 3 menciona a presença de comorbidades nos demais membros da família e a presença de codependência entre eles. Todos esses exemplos revelam um nível de tensão dentro do sistema familiar que advém da crise e de como a família está lidando com ela.

Entretanto, observa-se que talvez a dificuldade principal das famílias atendidas pelos psicólogos dessa pesquisa resida em responsabilizar o dependente químico pelo sucesso ou fracasso ao final do tratamento e em visualizar o tratamento como uma solução perfeita e praticamente instantânea para essa demanda, conforme pode ser visto na tabela 5:

 

 

Mesmo assim, mantendo o empenho e buscando orientar corretamente os familiares é possível conseguir bons resultados e com a cooperação da família as intervenções podem alcançar efeitos altamente positivos. Ilustrando isso, a tabela 6 demonstra mudanças que ocorrem no tratamento oferecido pelos psicólogos entrevistados:

 

 

Conforme a tabela, e como apresentado anteriormente, aparece novamente a questão da orientação dos familiares. Evidencia-se, a partir disso, que as informações sobre a dependência química e o seu tratamento representam uma variável importante no processo de recuperação do dependente químico. Paradoxalmente, ela atua fazendo com que a família boicote o tratamento, muitas vezes até, com desejo de ajudar; ou fazendo com que os familiares possam se tornar parceiros do programa de tratamento, complementando as ações da equipe de atendimento.

Dessa forma evidencia-se a influência da família nos conflitos que envolvem a dependência química, contribuindo tanto para gerar ou agravar o problema como para resolvê-lo. Por isso, estando os familiares engajados no tratamento, aprendendo sobre como agir com o dependente e contribuindo para que esse possa cumprir com as regras exigidas pelo programa, representam importantes parceiros para o processo de recuperação.

 

Discussão

Em seus depoimentos os psicólogos entrevistados descrevem que a família que chega para o atendimento está doente e com vínculos fragilizados. Essa condição pode ser fruto de aspectos importantes que acompanham a vida familiar, como as estratégias padrão de resolução de problemas (Guimarães et al., 2009), que geram constantes tentativas de adaptação que elegem o dependente químico como o problema central da família e produzem angústias que o motivam à busca de um espaço pessoal alternativo através da droga.

Sendo assim, as propostas de ação que envolvem a psicoeducação dos familiares contribuem para que eles possam compreender e desenvolver o interesse pelo tratamento, motivando o dependente químico em sua recuperação, conforme afirma o psicólogo 1 (tabela 2). Da mesma forma, o esclarecimento quanto às particularidades do tratamento está relacionado às influencias negativas, tanto que os psicólogos entrevistados afirmam que o desconhecimento desses detalhes seja talvez o principal complicador do tratamento.

Desse modo, muitas vezes, pensando em ajudar, os familiares acabam atrapalhando o tratamento. Justamente por não saberem ou não entenderem o efeito que determinadas ações que eles praticam têm sobre o dependente químico. Isso é aplicável também à questão de superproteção, apontada na tabela 3. Pois, de certa forma, a família impede que o dependente químico aproprie-se da realidade do tratamento que impõe regras e limites organizadores essenciais à sua recuperação, uma vez que ela assume a responsabilidade que deveria ser dele.

O resultado disso é uma infantilização, que isola o dependente dentro do sistema familiar e faz com que os demais membros tomem decisões por ele, desautorizando-o e gerando uma crença de que ele não é capaz de crescer e se cuidar, estando, portanto, dependente também dos familiares.

Segundo Hermeto, Sampaio e Carneiro (2010), o ambiente familiar oportuniza grande aprendizagem com relação a sentimentos, à autonomia e à compreensão de limites, à vivência da liberdade e da responsabilidade, que podem se tornar fatores de proteção quanto às ofertas químicas de prazer, liberdade e autossatisfação. Contudo, experiências como a superproteção e a infantilização, agem no sentido oposto a essas ideias e acabam se tornando fatores de risco à mudança prejudicando a continuidade e a eficácia do tratamento.

De acordo com os psicólogos entrevistados, os familiares veem o dependente químico como o único problema da família. Assim, é possível relacionar o desconhecimento acerca da dependência química e o comportamento de superproteção à doença familiar e à maneira como a família enxerga a situação.

Desse modo, esse conjunto de variáveis constitui um esquema de retroalimentação, que faz com que a família tente manter o dependente químico como o único problema. Advém daí as dificuldades apontadas como boicote na tabela 2, pois as internações terapêuticas visam promover mudanças nesse funcionamento doentio do sistema familiar e as atitudes tomadas pelos familiares visam manter o equilíbrio atual.

Chamar de volta antes do prazo, chantagear e quebrar regras são exemplos claros de condutas adotadas por essa pessoas e evidenciam dois pontos: um; que a família não está pronta para se adequar e participar do tratamento, pois encontra-se tão doente quanto o próprio dependente químico, e dois; que essas atitudes são uma espécie de resistência à mudança que é proposta pelo tratamento e que ela merece uma grande atenção por conta disso, para que se possa ajudá-la a vencer essas dificuldades.

Pode-se pensar nesse momento da família com membros dependentes químicos como um momento de crise no sistema familiar. Erikson (2011) vê a crise como um conflito que o ser humano vive ao longo da vida e que deve resolvê-lo de forma positiva ou negativa. Segundo o autor, as resoluções positivas resultam em equilíbrio mental, em desenvolvimento de virtudes e incrementam as habilidades de relacionamento social, enquanto que as resoluções negativas levam à sensação de estar socialmente desajustado e ao desenvolvimento de ansiedade e percepções de fracasso.

Em se tratando dessas famílias, a crise refere-se a um processo no qual a família se desorganiza com relação às tarefas do desenvolvimento familiar (Carter & Mcgoldrick, 2001) especialmente na adolescência, quando os filhos devem começar a adquirir autonomia e estão vivenciando a construção da diferenciação do self (Bowen, 1991).

Para Bowen, a diferenciação do self é um importante momento na construção da identidade pessoal. Segundo o autor, uma pessoa diferenciada é capaz de controlar seus impulsos perante a ansiedade e agir de maneira reflexiva, enquanto que as pessoas indiferenciadas frequentemente se perdem diante dos impulsos e emoções, apresentando dificuldade em manter autonomia frente a questões que despertem a ansiedade.

Assim, essa configuração familiar emaranhada exige uma mudança que diverge do repertório comportamental original (Pittman, 1995), ou seja, desautoriza as estratégias de resolução de problemas preexistentes, nas quais a família acredita (Guimarães et al., 2009). Dessa forma, num contexto de recuperação isso pode ser visto como perigo e motivar reações como o boicote ao tratamento, ou pode ser visto como uma oportunidade de rever conceitos, reaproximar-se e retomar vínculos. Todavia, a segunda opção é menos frequente, visto que requer habilidade de elaboração por parte dos familiares.

Sobremaneira, com o passar do tempo parece inevitável uma postura desamparada e de desmotivação por parte dos familiares como descrita na tabela 4, aprendida diante da dificuldade que a família encontra para se reorganizar perante a crise, pois se acumulam esforços e se obtêm poucos resultados (Seligman, 2005). Desse modo, o conhecimento acerca do tratamento e da dependência química torna-se uma importante ferramenta para o sucesso na recuperação do dependente químico, uma vez que permite o dar-se conta de que a internação não é um período mágico que devolverá, por si só, o dependente "limpo" e capaz de conviver novamente em sociedade.

Segundo Nichols e Schwartz (2007), quando existem papéis inflexíveis e estruturas invariantes dentro de um sistema familiar, este perde a eficácia para o enfrentamento de circunstâncias novas. Dessa maneira, os familiares podem isolar o dependente químico das suas relações como forma de se proteger "daquilo que se apresenta como diferente e prejudicial" e conservar entre si as relações disfuncionais que auxiliaram no aparecimento dessa dependência química. Isso revela o caráter cuidadoso que deve ter a intervenção com a família, pois tais reações podem ser consideradas prejudiciais ao tratamento.

Muitas vezes também, de acordo com Do Carmo (2003), o sistema familiar "acolhe" o sintoma, adaptando-se a ele e minimizando as perturbações advindas dos seus efeitos. Isso permite que o sintoma seja "aparentemente" reconhecido como normal, afetando a motivação para a mudança e fazendo com que ele se agrave através do aparecimento de novos sintomas, cada vez mais graves.

Assim, segundo a autora, pode haver uma família em que o pai é menos funcional que a mãe em função do alcoolismo e quando essa família se deparar com o surgimento do abuso de drogas por parte do filho, pode não conseguir dar conta desse sintoma. É comum que outros membros da família acabem por assumir o papel de pai, mantendo esse em seu alcoolismo e caracterizando a adaptação da família ao sintoma. Esse arranjo de família dificulta a percepção da gravidade da situação, fazendo com que ela reconheça que precisa e procure ajuda somente em momentos de crise extrema.

Isso aponta necessidade de perseverança por parte do terapeuta em cumprir o seu papel e necessidade de habilidade para lidar com a frustração, pois esse é um dos momentos mais difíceis do tratamento. Cabe se ressaltar aqui também, as dificuldades implícitas associadas ao tratamento da dependência química, como a questão de recaída descrita na tabela 5, que na visão dos familiares, invalida todo o esforço feito até então e que demanda grande tolerância por parte do psicólogo, pois esse é cobrado pela falta de resultados.

A recaída é talvez um dos temas principais no tratamento da dependência química. Visto que a recuperação se trata de um processo, é normal e cientificamente provado que ocorram "deslizes" ao longo desse percurso, tanto que o DSM-IV TR (American Psychiatric Association, 2002) considera os primeiros 12 meses de abstinência como um período de alto risco para a reincidência no uso de substâncias.

Em pesquisa de Rigotto e Gomes (2002), ela se mostrou associada a situações de falta de apoio familiar, falta de acompanhamento apropriado, uso de bebidas alcoólicas, envolvimento com antigos amigos dependentes, frustração diante de circunstâncias adversas e necessidade de aprovação social.

Isso evidencia outro ponto que exige perseverança e tolerância do psicólogo, pois muitas vezes o tempo necessário para que a família se aproprie da necessidade de reformular as suas relações em prol da reabilitação e reinserção do dependente químico dentro do sistema familiar e da sociedade é maior do que o tempo que a instituição pelo qual ele trabalha dispõe para tratamento, muitas vezes ocorrendo de uma mesma família voltar várias vezes para ser atendida, em função de recaídas que ocorreram em função de que elas ainda não conseguem fornecer a ajuda necessária para o dependente conter os seus impulsos e aprender a lidar com a abstinência.

Pensando nisso, se observou algumas limitações nesse estudo, pois o tempo que o dependente químico fica em tratamento nas instituições é curto. Poderiam ser feitos estudos longitudinais acompanhando o processo de reabilitação do dependente químico e sua família após a sua saída para averiguar como ficou esse processo em termos de recaída.

O fato de esses profissionais ficarem pouco tempo com os pacientes em centros de saúde e não terem depois um acompanhamento mais próximo com o dependente químico pode gerar uma sensação de trabalho sem resultado positivo pelas dificuldades de manter o paciente abstinente. Nesse ponto poderiam ser entrevistados também outros profissionais de saúde que trabalham com a dependência química nesses ambientes.

Isso permitiria averiguar as percepções de profissionais de outras áreas a respeito da participação da família no tratamento, pois hoje em dia as equipes de atendimentos são multidisciplinares e atendem com uma visão psicossocial o sujeito. Seria importante confrontar essas outras percepções para obter dados mais completos a respeito desse fenômeno.

 

Considerações finais

A partir dessa pesquisa foi possível conhecer um pouco sobre os psicólogos que atendem a demanda da dependência química na região do Vale do Paranhana e quais são as suas percepções acerca da família de dependentes químicos e de sua participação no tratamento.

Em geral, eles percebem as famílias como doentes e com fragilidades em suas relações, fazendo com que atrapalhem o processo de recuperação do dependente químico em várias ocasiões. Porém, viu-se também que os psicólogos entrevistados percebem que há momentos em que a família consegue ajudar e, tanto em uma situação quanto em outra, atravessa-se a questão do conhecimento acerca da dependência química e do tratamento, bem como a participação e o engajamento nesse. Isso é tão importante, segundo essas percepções, que faz com que se consigam mudanças positivas para os conflitos familiares no tratamento, ampliando as possibilidades de recuperação do dependente.

Mas ao mesmo tempo, evidencia-se a necessidade de a família, de alguma forma, também buscar ajuda, seja de orientação a respeito da dependência química ou de um espaço terapêutico para escuta e tratamento dos demais familiares. Assim, atuando nessas duas frentes, assistindo o dependente químico e os familiares, os resultados desse processo podem ser mais consistentes e habilitar a família a lidar com as frustrações e as dificuldades que envolvem a manutenção da abstinência, para as quais normalmente não está preparada.

No entanto, a pesquisa permitiu também observar que caminho que esses profissionais trilharam até chegar a esse ponto, pois as percepções que eles têm hoje acerca desse tema advêm prioritariamente da prática no atendimento diário à dependência química. Sendo essa uma demanda tão presente na nossa sociedade, é cabível pensar em um novo planejamento para as grades curriculares das graduações em psicologia de nosso país. Mesmo que grande parte dos psicólogos recém-graduados opte por outros caminhos, aqueles que se deparam com essa demanda dificilmente tiveram acesso a alguma informação sobre dependência química na época da graduação, ou seja, acabam tendo que buscar em formações complementares aquilo que já poderia ser um conhecimento cristalizado.

Dessa forma, essa pesquisa permitiu também refletir sobre o perfil e tipo de atendimento realizado pelos psicólogos da região do Vale do Paranhana no que diz respeito ao atendimento à dependência química. Os psicólogos entrevistados estão bem assessorados quanto à bagagem prática e teórica, mas e aqueles que estão em graduação? Que experiências vêm tendo nessa área? Elas estão relacionadas apenas aos estágios curriculares e extracurriculares ou também a disciplinas específicas e cursos de extensão?

Estes são questionamentos pertinentes de se pensar, a fim de direcionar os cursos de psicologia da região à reflexão sobre o quanto estão preparando ou não os futuros psicólogos apenas para o mercado ou se há em seus currículos um espaço para demandas como a da dependência química, tão em evidência em nossa sociedade.

 

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Endereço para contato
E-mail: alexandre.herzog@hotmail.com

Recebido em maio de 2013
Aceito em abril de 2014

 

 

Alexandre Herzog: Graduado em Psicologia pelas Faculdades Integradas de Taquara (FACCAT). Psicólogo no CRAS – Centro de Referência em Assistência Social de Rolante.
Maria Isabel Wendling: Psicóloga, Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica (PUCRS), Docente do Curso de Psicologia das Faculdades Integradas de Taquara (FACCAT) e da Faculdade de Psicologia da PUCRS.

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