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Aletheia
versão impressa ISSN 1413-0394
Aletheia no.42 Canoas dez. 2013
ARTIGOS TEÓRICOS
A identificação como efeito do processo tradutivo da sedução originária
The identification that effect of the translation process of original seduction
Marina Pinto de Paula; Gustavo Adolfo Ramos Mello NetoI
I Universidade Estadual de Maringá (UEM)
RESUMO
A proposta que se apresenta é uma leitura do conceito de identificação através da Teoria da Sedução Generalizada (TSG), de Jean Laplanche. Para tanto, faz-se um exame da obra de Freud no que tange a esse conceito. Com tal exame em mãos, a identificação, tal como Freud a propõe, é relida e proposta como um processo tradutivo das mensagens sexuais emitidas pelo adulto à criança. O objetivo do presente artigo é a relação da identificação freudiana com a Teoria da Sedução Generalizada de Laplanche, o que resulta em ver a identificação como o efeito, ou seja, um dos resultados, da tradução que a criança faz sobre as mensagens enigmáticas transmitidas pelo adulto.
Palavras-chave: Identificação, Tradução, Teoria da Sedução Generalizada.
ABSTRACT
The purpose that presents is to provide an understanding on identification based on the Generalized Seduction Theory by Jean Laplanche. With this aim, a detailed examination of Freud’s work is done regarding this concept. With this exam, identification, such as Freud proposes, is reread and suggested as a process which interprets sexual messages given out by the adult to the child. The purpose of this article is the relationship of Freudian identification with the Theory of Generalized Seduction of Laplanche, which resulted in seeing the identification as the effect, i.e., one of the results of the translation that the child makes about enigmatic messages transmitted by the adult.
Keywords: Identification, Traduction, Theory of Generalized Seduction.
Introdução
O propósito deste trabalho é o de teorizar a identificação no âmbito da Teoria da Sedução Generalizada. A tese que sustentamos, aqui, é a de que a identificação é efeito, ou seja, um dos resultados possíveis de um processo de tradução das mensagens enigmáticas do adulto dirigidas à criança.
Primeiramente faremos um panorama dos modos de identificação propostos por Freud em toda a obra e, em seguida, abordaremos as ideias produzidas no campo da Teoria da Sedução Generalizada, proposta originalmente por Laplanche. Esse caminho nos levará a análise da identificação como processo de tradução da sedução.
As identificações em Freud
Utilizaremos uma organização proposta por Laplanche (1993/1980), no livro A angústia, para apresentar os tipos de identificação explicitados por Freud.
Esse autor comenta principalmente, a noção de identificação primária nos textos Três Ensaios sobre a sexualidade (1905), Totem e Tabu (1913) e O Ego e o Id (1923). Para Freud (1923/1996) ela é definida como uma identificação bastante primitiva e anterior a qualquer catexia de objeto. Está ligada ao pai da pré-história do indivíduo e é considerada, por muitos autores, um mito e um ponto obscuro na teoria freudiana. Relaciona-se com a ideia de canibalismo, pois, ao mesmo tempo que se constitui na relação com o outro, é assimilação desse outro. Contudo, em Freud, a identificação primária, não é relacionada ao primeiro objeto sexual, o seio, mas é anterior a ela. A identificação primária influenciaria todos os processos de identificação secundária.
Podemos chamar de identificação secundária, de acordo com Laplanche, (1993/1980) o que Freud, em Psicologia de Grupo e Análise do Ego (1921/1996), situou como identificação relacionada ao sintoma. A identificação secundária divide-se em três modos: identificação com uma pessoa que apresenta um ponto comum com o sujeito; identificação com o objeto; e, identificação com o rival. (Laplanche, 1993/1980).
A identificação com uma pessoa que apresenta um ponto comum com o sujeito, também chamada de identificação histérica, centra-se na ideia do sintoma como manifestação da identificação estabelecida. A histeria seria o modelo desse tipo de identificação, por manifestar algo sexual presente nos sintomas e em sua proliferação.
Na identificação com o objeto, o ponto central desta identificação situa-se no complexo de Édipo. É a partir da relação com os objetos de amor, pai ou mãe, que a identificação, após um abandono deste investimento nos objetos, ocorre. Essa identificação irá formar um precipitado no ego, a que Freud deu o nome de superego.
O terceiro tipo de identificação secundária, identificação com o rival, proposto no início do texto Psicologia do grupo e análise do ego é negligenciado ao longo dele. Para Laplanche (1980/1993), o que agrupa os três casos da identificação secundária é a identificação com o objeto de amor. Na identificação com o objeto, notamos bem este aspecto, e a identificação baseada em um ponto comum é uma identificação com o objeto de amor regressivamente, pois remete ao retorno de uma relação amorosa abandonada. Apenas na identificação com o rival, que isto não se dá, e é justamente a respeito desta identificação que Freud irá se esquivar, abandonando-a de algum modo. Na identificação com o rival podemos observar sempre uma referência a um objeto terceiro. Apesar de não existir um vínculo direto entre os identificados, eles se identificam através do amor pelo objeto terceiro.
A Teoria da Sedução Generalizada de Jean Laplanche
A Teoria da Sedução Generalizada de Jean Laplanche foi formulada a partir da teoria da sedução de Freud, abandonada por ele em 1897. Mesmo com o abandono da teoria da sedução, não de todo completo para Laplanche, em 1897, há em Freud o que Laplanche (1987/1992) denomina de uma teoria da sedução precoce, em que o pai perverso cede lugar à mãe sedutora, mãe que seduz o filho através dos cuidados.
Essa teoria da sedução em Freud é vista por Laplanche (1997a) como um dos momentos que instaura uma descentração – entendida através da figura da revolução de Copérnico e trazida à tona para explicar a revolução na psicanálise. Freud já afirmava que com a inserção das ideias de Copérnico, principalmente a ideia que a terra não era o centro do universo, o homem sofreu uma grande ferida em seu narcisismo e onipotência.
A estrangeirice, uma ideia copernicana em Freud, diz respeito ao outro psíquico que me habita, o inconsciente, mas também ao fato desta estrangeirice ser colocada em mim por um outro estrangeiro. Esta alteridade é reabsorvida pelo sujeito na forma de sua própria fantasia acerca da alteridade deste outro, sua própria fantasia de sedução, o que infringe um risco sobre a alteridade do próprio inconsciente. A estrangeirice desse outro é sustentada pela mensagem que ele envia, uma mensagem verbal ou não verbal, que emite um sinal à criança (Laplanche, 1997a).
Nas cenas de sedução, fundadoras do inconsciente do sujeito, o adulto transmite à criança um sinal puramente sexual, pois esse sinal provém de seu próprio inconsciente. O próprio adulto não reconhece essas mensagens, pois elas comunicam um sentido que antes estava escondido dele mesmo. Laplanche (1997a) comenta: "O que descrevo como força propulsora de todas as cenas de sedução é um fato universal: a intervenção do outro adulto, com seu inconsciente sexual" (p. 146). Outra característica cara a Laplanche, logo também para a TSG, é que o inconsciente é constituído de cenas sexuais, conferindo-lhe seu caráter puramente sexual. Essa prioridade do sexual relaciona-se diretamente com a questão do outro, do outro adulto, em sua estranheza.
Em Laplanche (1997b), a prioridade concedida, entre todas as fantasias originárias descritas por Freud, às cenas de sedução, deve-se ao fato de o outro adulto emitir uma mensagem enigmática, a sedução propriamente dita, de forma unilateral, à criança, tornando assim a cena primária traumatizante e enigmática. Quando analisada, a cena adquire duas realidades diversas: a do adulto e da criança. A realidade adulta está fora do alcance do bebê e comporta uma espécie de exibição da cena primária1, pois para Laplanche (1987/1992), deixar ver é, sobretudo, "fazer ver". A criança, receptora e observadora dessa cena traumatizante, tenta interpretar e simbolizar. O adulto tem aqui, um papel ativo de emitir uma mensagem, fazer a criança ver ou ouvir.
Ainda, Laplanche (2007) afirma que o inconsciente adulto deve ser entendido como essencialmente feito dos resíduos infantis, um inconsciente perverso no sentido dos Três Ensaios, principalmente, pré-genital. As mensagens adultas enigmáticas não são, inteiramente, inconscientes, pois toda mensagem é uma mensagem que se produz sobre o plano consciente / pré-consciente, contudo, elas são parasitadas pelo inconsciente, ou seja, contêm a presença do inconsciente nessas mensagens (Laplanche, 2007).
A criança de Laplanche (1987/1992), ainda com seus processos de adaptação débeis, está na iminência do desvio provocado por um adulto, ele mesmo desviante, desviante em relação a si mesmo e à sua sexualidade. A criança que permanece nesse adulto desviante fará com que ele cometa operações falhas (sintomas) na relação que possui com a criança que foi ele mesmo. "A criança diante dele faz apelo ao infantil nele" (Laplanche, 1987/1992, p. 111). Esta relação entre sedutor e seduzido constitui a relação originária.
No centro deste processo encontra-se o que Laplanche (1997b), no artigo Implantação e Intromissão, define como implantação. Para o autor, a implantação refere-se aos significantes, vindos do adulto e recebidos passivamente pela criança, que se encontram fixos na pele psicofisiológica de um sujeito que ainda não possui uma instância inconsciente diferenciada. As primeiras tentativas de tradução serão a respeito desses significantes.
Segundo Laplanche (1997b) a implantação é um processo normal e cotidiano, mas também pode ser neurótico. Entretanto, ao lado da implantação, existe a intromissão, face violenta da implantação. A intromissão seria o processo que coloca no interior do sujeito um elemento rebelde, imetabolizável. Os dois processos relacionam-se com processos corporais, contudo a implantação está mais ligada à superfície do corpo, enquanto que a intromissão relaciona-se mais estritamente com a oralidade e à analidade.
As mensagens enigmáticas do adulto geram uma tentativa de simbolização na criança, tarefa impossível, pois, como vimos, ela é incapaz de compreendê-las, fato que gera restos inconscientes, denominados por Laplanche (1987/1992) de objetos-fontes: "portanto, assimilamos o signo de percepção, essa primeira inscrição no aparelho psíquico, exatamente ao significante enigmático, tal como este se deposita antes de qualquer tentativa de tradução" (p. 139).
A Teoria da Sedução Generalizada pode ser também vista como uma teoria de tradução, esta última implicando um conceito essencial: o après-coup. A palavra original utilizada por Freud é nachträglich, na tradução francesa temos o après-coup e em português usamos a versão do latim a posteriori (Souza, 1999). Por toda sua significação2, utilizaremos a tradução francesa.
A concepção laplancheana do après-coup difere da concepção freudiana. Laplanche (1999) traz o exemplo do episódio contado por Freud, com a intenção de exemplificar a diferença entre sua concepção e aquela utilizada por Freud. O episódio é sobre um homem que conversando sobre a ama de leite que o havia amamentado faz o seguinte comentário: é uma pena eu não ter me aproveitado dessa ocasião.
Laplanche (1999) aponta, a partir desta narração freudiana, duas direções possíveis ao conceito de après-coup. A primeira direção é retrospectiva, ou seja, quando o homem adulto, vendo uma criança no seio, imagina retrospectivamente tudo o que ele poderia obter eroticamente desta situação se ele houvesse sabido. Há, portanto, uma reinterpretação da função de dar o seio em termos de sua situação presente, isto porque a sexualidade do adulto é despertada pela cena da criança ao seio, indicando uma retenção de traços de sua própria sexualidade infantil. Existe, então, duas interpretações para a narração: uma progressiva e outra retroativa, mas elas permanecem independentes e isoladas uma da outra.
O ponto de vista de Laplanche não é uma escolha entre esses dois pontos de vista, uma opção entre uma posição hermenêutica ou a posição determinista de Freud. Laplanche (1999) enfatiza aquilo que julga que Freud excluiu ou não quis ver, que é justamente a ama de leite e sua sexualidade. O seio é visto apenas como um objeto para a criança, sem levar em conta a função de zona erótica para a ama. Mas, mais ainda, o que é fundamental é que o bebê sente a sexualidade do adulto e recebe aquilo que lhe é passado pelo adulto: a mensagem sexual.
De acordo com o modelo de tradução – destradução – retradução laplancheano, a mensagem do outro é retraduzida, seguindo uma direção temporal alternadamente retrogressiva e progressiva, pois o sujeito tende a interpretar seu passado, que apela para uma tradução, em vista de sua situação presente.
No artigo Curto tratado do inconsciente, Laplanche (1999) aprofunda os conceitos relativos ao modelo de tradução. As tentativas da criança de tradução contêm falhas, pelo fato de que as mensagens são enigmáticas para o próprio emissor. Aquilo que escapa às primeiras tentativas da criança em traduzir, de forma mais ou menos coerente, das mensagens provenientes do adulto é o que Freud denominou de representações-coisa e Laplanche de objetos-fonte, e que formarão o inconsciente.
Ainda, a primeira inscrição não necessita de uma tradução, ela é pura e simples implantação. As mensagens adultas enigmáticas suportam uma espera, um remanejamento, um deslocamento, sendo que alguns de seus aspectos são traduzidos, enquanto que outros elementos são excluídos da tradução e tornam-se inconscientes (Laplanche, 1999).
O recalcamento, para Laplanche (1999), está inserido no tempo da temporalização, ou seja, no tempo da tradução dos enigmas provenientes do outro, mas, mais exatamente, em uma falha da temporalização, até porque o recalcamento negligencia a tradução. O movimento de tradução tem como motor o endereçamento enigmático do outro3, que conserva algo fora dele, algo que não pode ser traduzido, que se torna o inconsciente, o outro interno, o qual funciona como agente, como objeto-fonte, e que procura constantemente penetrar na existência consciente. Para Laplanche (1999), "o inconsciente é outra coisa em mim, isto quer dizer, resíduo recalcado de outra pessoa. Ele me afeta, assim como outra pessoa afetou-me uma vez" (p.103).
Na metapsicologia laplancheana, a tradução ou tentativa de tradução tem por função fundar, no aparelho psíquico, um nível pré-consciente. O pré-consciente – essencialmente o ego – corresponde à maneira que o sujeito se constitui. A tradução das mensagens, incoerentes, é sempre imperfeita, deixando de lado restos. São esses restos que constituem por oposição ao ego pré-consciente o inconsciente em seu sentido próprio, no sentido freudiano do termo. O inconsciente é marcado pelo sexual, mas o inconsciente da criança não é, de nenhuma maneira, a cópia do inconsciente adulto, em razão do duplo metabolismo que o sexual levou neste percurso: deformação da mensagem acordada4 no adulto, em seguida, na criança receptora, trabalho de tradução que remaneja completamente a mensagem implantada (Laplanche, 2007).
O processo de recalcamento e a constituição do aparelho são correlativos. O recalcamento é criador, segundo Laplanche (1987/1992), da separação entre forças sexuais de desligamento e forças sexuais de ligação. O recalcamento tende a quebrar as conexões entre os elementos das mensagens, destruindo a relação significante-significado. Os significantes-dessignificados persistem no inconsciente.
Para Laplanche (1997a), os dois tempos do recalcamento originário5 não podem ser apartados do nascimento do ego. No primeiro tempo não há um ego, há somente o indivíduo; é possível também dizer que o ego coincide com o indivíduo. Já no segundo tempo ocorre o nascimento do ego como instância, em que ele é uma parte do aparelho. Os vários tempos de nascimento do ego são equivalentes ao narcisismo primário. Isto é importante para situar a questão do significante enigmático, o qual, no primeiro tempo, encontra-se quase que externo, na periferia do ego-indivíduo, nas zonas erógenas. No segundo tempo, o resto recalcado do significante enigmático, o objeto-fonte, passa a ser interno.
Este enigmático vindo do outro comporta, para Laplanche (1987/1992), tanto elementos de ligação como de desligamento, ambos compreendidos nas mensagens enigmáticas através de elementos de amor e cuidado e de instabilidade e agressão, respectivamente. Esses elementos de ligação permitem à criança fazer sua autoteorização, ou seja, sua centração em si mesma. (Laplanche, 1987/1992).
Existirá, não somente na criança, mas em todo ser humano, um conjunto de mensagens intraduzíveis: algumas praticamente impossíveis de traduzir, outras em espera provisória de tradução. Tradução que pode ser realizada por uma reatualização, uma reativação. O inconsciente dito bloqueado pode ser um lugar de estagnação, mas também um lugar de espera (Laplanche, 2007).
O inconsciente, para Laplanche (1997b), é o "a traduzir", ou seja, aqueles resíduos intraduzíveis da mensagem enigmáticas implantadas no sujeito, e não um reservatório biológico de pulsões inatas, assim como Freud o concebeu. Aquilo que não passa pela tradução, ou seja, que é deixado cair, não é uma segunda mensagem que se acharia diretamente no inconsciente do receptor. Estes resíduos de tradução são restos isolados e deformados.
O fundo, o corpo inesgotável que cada ser humano, ao longo de sua existência, se esforça para traduzir em seus atos, nas suas palavras e na maneira de se representar a si mesmo, é esta intraduzibilidade que nós nomeamos inconsciente, intraduzível, mas sem cessar de retraduzir – mais ou menos bem segundo o caso – sobre aquela autoteorização de todo ser humano, mas que ela não pode reduzir de maneira precária e assintomática. (Laplanche, 1997b, p.331)
A necessidade de tradução, denominada por Laplanche (1997b) de pulsão de tradução, provém deste intraduzível, que faz sua exigência de tradução. Diz-nos o autor: "O movimento de temporalização: presente-passado-futuro é um movimento de destradução e retradução. Ele pressupõe um já traduzido anterior, mas também um "a traduzir" primordial, que nós chamamos de inconsciente" (Laplanche, 1997b, pp. 331-332).
Laplanche (1997b) situa este desequilíbrio entre o "a traduzir" e a tradução presente imperfeita, na situação universal e originária da sedução. Eis como o autor a define:
A sedução deve se definir como relação passividade-atividade – esta aqui sendo ela mesma levada no sentido cartesiano – o ativo é aquilo que comporta mais de saber, de experiência que o passivo. Demais, nesta dissimetria, a psicanálise introduz o complemento essencial, que aquele mais é mais de saber inconsciente no sedutor que no seduzido. (p. 332)
Laplanche (1997b) afirma, emprestando a definição de Espinoza, que a passividade se dá pelo fato de que alguma coisa ocorreu em nós, mas que a causa não está em nós, ao menos parcialmente. Já a atividade pressupõe que nós somos a causa de algo ocorrido em nós ou fora de nós, ou seja, que sabemos distinguir e conhecer esta causa. A passividade ainda pode ser entendida como inadequação a simbolizar em nós aquilo que vem do outro. Ela não se refere ao gestual, comportamental e à iniciativa, mas à dissimetria em relação a compreender e simbolizar o que lhe é feito ou colocado. A passividade da criança em relação ao adulto também é encarada como a intrusão do fantasma do adulto na criança.
O ser humano vai, a sua maneira, autoteorizar, a fim de tentar responder a estas mensagens enigmáticas através de uma visão de mundo. Estas novas traduções vão mascarar este arcaico "a traduzir". Dar-se-á, na evolução das etapas e estágios, um movimento de destradução-retradução, a partir das linguagens de oralidade, analidade, genitalidade, de um "a traduzir" originário (Laplanche, 1997b).
A temporalização, para Laplanche (1997b), "designa o modo segundo o qual o existente humano se organiza segundo o tempo, tentando criar de si mesmo, a cada novo movimento, uma nova perspectiva" (p.335).
Como situar a identificação na metapsicologia laplancheana?
Identificação como tentativa de elaborar a sedução
A estruturação do ego, segundo Freud (1923/1996), ocorre através do controle que ele obtém da energia do id, mas ao mesmo tempo ocorre aí uma cilada, pois o benefício não vem sem suas consequências. O ego forma-se a partir dos investimentos abandonados do id, mas para que o sujeito consiga abandonar o objeto de amor, geralmente ocorre uma introjeção deste objeto dentro de seu ego, modificando-o. Vejamos: "torna possível supor que o caráter do ego é um precipitado de catexias objetais abandonadas e que ele contém a história dessas escolhas de objeto" (Freud,1923/1996, p.42).
Esse processo de introjeção do objeto abandonado no ego é também um método utilizado por ele para obter controle sobre o id, pois assumindo a forma do objeto pode se oferecer ao amor desse último que tinha, por sua vez, dificuldades de se desprender de seu objeto. Então, este processo constitui-se como uma transformação da libido do objeto em libido narcísica, demandando uma dessexualização e, portanto, algo do gênero de uma sublimação (Freud, 1923/1996).
Vimos, nos textos freudianos, como a ideia de introjeção assemelhava-se a de identificação, mas sendo geralmente utilizada para expressar uma identificação cronológica, assim como a incorporação, e também para designar o mecanismo mesmo do processo, sendo a identificação, seu resultado.
No artigo É necessário queimar Melaine Klein? Laplanche (1997b) diz que temos que considerar a introjeção como um processo fundamental de constituição, processo privilegiado nas primeiras obras de Freud e introduzido a partir da ideia de corpo estranho. Para o autor francês, a introjeção deve ser compreendida sob a luz dos processos descritos como traumatismo em dois tempos ou como sedução originária. Para ele, a introjeção originária é o primeiro tempo do recalcamento, mas não é o recalcamento propriamente dito. Ela é a introdução dos significantes enigmáticos, que, em um segundo tempo, o recalcamento irá isolar. Diferencia a introjeção de um mecanismo de defesa, pelo menos no primeiro tempo.
Falamos sobre a introjeção a propósito da análise de crianças para indicar seu caráter fundador na constituição do mundo interior, mas também da própria pulsão. Trata-se de algo muito diferente de um mecanismo de defesa, ainda que, secundariamente, possa aparecer como mecanismo de defesa, e entrar, então, numa certa simetria com a projeção. (Laplanche, 1983/1988, p.57)
A introjeção, portanto, forma antecedente da identificação, seria a implantação dos significantes enigmáticos do outro. Podemos pensar que a identificação, etapa definida por Freud como evolução da introjeção, seria um après-coup da introjeção.
Parece-nos que as primeiras introjeções coincidem com as primeiras inscrições dos significantes enigmáticos no aparelho psíquico, depósito que não gera, inicialmente, nenhuma tentativa de tradução.
Freud (1923/1996) nos diz que o investimento libidinal é substituído pela identificação, e, como consequência, o sujeito introjeta o objeto. Isso ocorre pelo fato de que, ao aceitar a impossibilidade de ter o objeto, há o recalque, e o sujeito o restabelece dentro de si. Há uma manutenção desse objeto, o que, segundo Freud, está na raiz da formação do superego.
Observamos, no texto de Freud, que as identificações são realizadas pelo ego, a partir dos investimentos do id, ou seja, do inconsciente. Há um retorno ou apropriação desta libido abandonada pelo ego. Em Bleichmar (1993/1994) essa ideia aparece quando ela sustenta que o ego tentará ligar a disrupção originada pela sexualidade materna, provinda também do inconsciente materno, através de uma tentativa própria de tradução daquilo que, antes exterior, agora pulsa no interior.
Com respeito ainda ao ego, Laplanche (2007) situa o pré-consciente como sendo essencialmente o ego, que é fundado por tentativas de tradução da criança a respeito das mensagens adultas enigmáticas. O ego, no seu trabalho de tradução das mensagens, deve passá-las a uma outra linguagem.
Em Freud, encontramos o nascimento do ego nas identificações por ele realizadas. Ora, se em Laplanche o ego é fundado pelas tentativas de tradução, podemos aqui pensar em uma possível aproximação entre identificação e tradução: a identificação sendo entendida como tentativa de tradução. Bleichmar (1993/1994), como já vimos, coloca que as vias de ligação feitas pelo ego são tentativas de significar, portanto, de traduzir mensagens.
Pelo mesmo caminho, Carvalho (comunicado em palestra, 26 de abril, 2010)6 afirma que toda tentativa de tradução é recalcante e defensiva. Ainda ressalta que a perda do objeto na criança cria um excesso, excesso de que ela terá que dar conta.
Bem, se toda tradução é recalcante, e se estamos supondo que a identificação é uma forma de tradução, podemos supor que a identificação encontra-se do lado do recalcante.
Outro ponto que vem sustentar nossa hipótese é justamente a questão da perda de objeto salientada por Carvalho (2010). Observamos que as identificações estruturantes, em Freud, ocorrem por um abandono dos investimentos do objeto, e, se esta perda produz um excesso, este terá que ser traduzido pela criança, o que nos leva a pensar a identificação como um modo de tradução.
Entendemos que a criança faz este trabalho de tradução das mensagens sexuais emitidas pelo adulto. Se pensarmos que o que a criança traduz é o sexual, essencialmente infantil, deste adulto, permeado por seu inconsciente, estamos nos referindo a uma tradução da sexualidade de um outro que invade a criança com seu excesso de excitação. Assim, é possível pensar que a identificação esteja ligada à sexualidade do adulto. Isto nos leva em uma direção bastante diferenciada daquela exposta por Freud.
A identificação, logo, poderia ser considerada uma tentativa de tradução das mensagens sexuais deste adulto, uma forma de ligação do ego desta sexualidade implantada, ligação facilitada pelas funções totalizantes, narcisisantes da função materna, como nos apontou Bleichmar.
Pode-se supor, também, que a identificação esteja remetida à tradução das mensagens enigmáticas sexuais e não relacionada diretamente aos significantes recalcados, já que Laplanche (1999) nos diz que um significante não se traduz, portanto a identificação seria um modo de tradução das mensagens e não dos significantes. Mas temos que lembrar que geralmente o processo tradutivo contém falhas, o que resulta em alguns significantes recalcados. Se pensarmos que a identificação é um modo de tradução destas mensagens, ela também gerará significantes recalcados, os quais representam as falhas do processo de tradução.
Parece-nos ser um exemplo ilustrativo a análise que Freud (1910/1996) faz de Leonardo Da Vinci. Vejamos algumas de suas observações:
Como sabemos, uma decisão no sentido da homossexualidade somente se concretiza nos anos da puberdade. Quando esta decisão ocorreu no caso de Leonardo, sua identificação com o pai perdeu toda a significação para sua vida sexual mas manteve-se presente em outras esferas de atividade não erótica.... Não há dúvida de que o artista criador se considera como o pai de sua obra. Para Leonardo, o reflexo de sua identificação com o pai foi prejudicial para sua pintura. Criava a obra de arte e depois dela se desinteressava, do mesmo modo que seu pai se desinteressara por ele. O cuidado que seu pai demonstrou, mais tarde, em nada conseguiu alterar esta compulsão; porque a compulsão derivada das impressões dos primeiros anos de infância, e o que foi reprimido e se tornou inconsciente, não pode ser corrigido pelas experiências futuras. (p. 127)
Podemos supor que Leonardo, marcado por essas mensagens enigmáticas do pai, age durante a vida adulta tentando traduzi-las, através da identificação, cujo resultado é manifestado na forma como lida com sua arte. Além disso, os significantes recalcados, inconscientes, como vemos, permanecem exigindo o trabalho de tradução, que ocorre por meio da identificação.
Conclusões
Ao longo deste trabalho procuramos propor um novo olhar sobre a identificação a partir da Teoria da Sedução Generalizada de Jean Laplanche. Essa nova perspectiva se dá pela tradução da criança frente às mensagens sexuais enigmáticas.
Visualizando como o trabalho do ego opera no processo identificatório em Freud e, ao mesmo tempo, como o ego realiza o processo de tradução, aproximamo-nos da ideia da identificação como um processo tradutivo das mensagens enigmáticas.
Assim, acreditamos que, do entendimento da identificação como processo tradutivo das mensagens enigmáticas do outro, surge, possivelmente, um novo modo de enxergar a importância e utilidade da identificação. Isso porque se abrem novas possibilidades de visualizar as causas inerentes a uma identificação feita pelo sujeito.
Referências
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Endereço para contato
E-mail: inappaula@gmail.com
Recebido em Setembro de 2012
Aceito em Julho de 2013
Marina Pinto de Paula: Graduada em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá (2003), especialização em Psicologia do Trabalho pela Universidade Federal do Paraná (2006) e é mestre em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá (2011).
Gustavo Adolfo Ramos Mello Neto: Doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), Pós-doutorado em psicanálise (Université de Paris 7), Professor da graduação e do mestrado em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá (UEM).
1 A cena originária ou primária é um exemplo de mensagem enigmática, mas é importante salientar que há muitos outros tipos de mensagens enigmáticas transmitidas do adulto à criança.
2 Para mais informações consultar o livro Problématiques VI: L’après-coup de Laplanche (2006), onde o autor faz uma explicação detalhada sobre a etimologia da palavra e do conceito, bem como os problemas concernentes à tradução.
3 Para Laplanche (1999) a pulsão de tradução origina-se deste intraduzível ou do imperfeitamente traduzido proveniente do outro.
4 Acordada, para Laplanche (2007), tem o sentido de retorno do recalcado.
5 Segundo Laplanche (1997b) o primeiro tempo do recalcamento é a introjeção originária e o segundo tempo é o recalcamento propriamente dito.
6 Palestra proferida pela Prof. Dra. Maria Teresa de Melo Carvalho (UFMG) para o II Seminário de Pesquisa do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá.