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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.17 no.2 Ribeirão Preto  2009

 

DOSSIÊ "PSICOLOGIA, VIOLÊNCIA E O DEBATE ENTRE SABERES"

 

Moralidade e violência: a questão da legitimação de atos violentos

 

Morality and violence: legitimating acts of violence in question

 

La moral y la violencia: la cuestión de la legitimidad de los actos violentos

 

 

Yves de La Taille

Universidade de São Paulo - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O presente artigo visa avaliar as contribuições da Psicologia Moral para o estudo da violência. Começamos por estabelecer as relações entre a moral, a ética e a violência. Em seguida, apresentamos o modelo teórico que nós adotamos, e que leva o nome de "construção da personalidade ética". Prosseguimos fazendo uma revisão das teorias psicológicas que visam explicar o fenômeno da violência. Finalmente, defendemos a hipótese segundo a qual a violência pode ser consequência da ausência de limites morais que a coibiriam ou decorrência da construção da identidade do sujeito, sendo, nesse caso, a violência valor social.

Palavras-chave: Moral, Ética, Violência, Psicologia moral.


ABSTRACT

This article aims at evaluating the contributions of moral psychology to the study of violence. We first establish the relationship between morality, ethics and violence. Next, we present the theoretical model adopted, which bears the name of 'construction of ethic personality'. We continue by carrying out a review of psychological theories devoted to explain the phenomenon of violence. Finally, we support the hypothesis that violence may result from lack of moral boundaries to inhibit it, or from the identity construction of the subject for which violence is a social value.

Keywords: Morality, Ethics, Violence, Moral psychology.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo evaluar las contribuciones de la psicología moral para el estudio de la violencia. En primer lugar, establecer la relación entre la mora, la ética y la violencia. A continuación, presentamos el modelo teórico que hemos adoptado, y que lleva el nombre de 'la construcción de la personalidad ética'. Seguimos haciendo una revisión de las teorías psicológicas que tratan de explicar el fenómeno de la violencia. Por último, apoyamos la hipótesis de que la violencia puede ser debido a la falta de límites morales que inhiben, o debido a la construcción de la identidad del sujeto, en cuyo caso, la violencia és valor social.

Palabras clave: La moral, La ética, La violencia, La psicología moral.


 

 

A área na qual temos pesquisado é o da chamada Psicologia Moral. O objetivo do presente texto é o de propor algumas reflexões sobre os aportes que os conhecimentos da referida psicologia podem trazer ao tema da violência e da incivilidade, algumas delas já publicadas (ver La Taille 2000, 2002a, 2002c). Mas, por que realizar tais reflexões?

Em primeiro lugar, em razão de uma preocupação que certamente compartilhamos com inúmeras pessoas, sejam elas cientistas ou não. Com efeito, o fenômeno da violência e, consequentemente, da segurança, tem sido alvo de debates na mídia, na política, na educação, na sociologia etc., e isso não somente no Brasil, como no mundo ocidental como um todo. Vivemos numa época mais violenta do que outras? Somente estatísticas podem responder a essa pergunta, e há polêmicas a respeito. Ficamos com o diagnóstico de Sérgio Adorno (2000): "Não obstante os avanços democráticos e as profundas modificações pelas quais a sociedade brasileira tem passado nos últimos quinze anos, o regime democrático coincide com a ocorrência de uma verdadeira explosão da violência no seio da sociedade" ( p. 98 - ver também Touraine, 2000). Logo, não nos parece errado dizer que a violência é tema atual, um fenômeno que tem sido pouco influenciado pelas ações políticas até hoje implementadas (pelo menos no sentido da sua diminuição), talvez porque ele ainda seja mal conhecido, sobretudo no que tange a suas dimensões psicológicas (Karli, 1987).

Em segundo lugar, na verdade, complementar ao primeiro, a escolha por este tema de reflexão foi desencadeada e inspirada pelas demandas que várias instituições educacionais têm nos feito nos últimos anos, qual seja, a de tratar de limites, de indisciplina, de incivilidades. Com efeito, se instituições de ensino chamam especialistas para falar de Psicologia Moral, não é tanto para obter subsídios para a confecção de programas de educação moral, mas principalmente para procurar equacionar e compreender um fenômeno cada vez mais presente na sala de aula, e que se traduz por conflitos incessantes entre professores e alunos, entre os alunos eles próprios. Expressões como ausência de limites, indisciplina e incivilidade remetem, direta ou indiretamente, ao tema da violência. Note-se que reflexões sobre violência e o cotidiano escolar correspondem atualmente a uma área de estudo específica (Sposito, 2001; Debardieux, 2001; Laterman, 2000).

Em terceiro lugar, se pretendemos socializar reflexões sobre as dimensões psicológicas da violência, é que este fenômeno humano não é apenas, e nem essencialmente, objeto de preocupação contemporânea, mas fenômeno universal, objeto, há longo tempo, de reflexões filosóficas, sociológicas, e psicológicas.

Finalmente, o fato de termos a absoluta certeza de que os conhecimentos de Psicologia Moral possam ser úteis para entender a violência leva-nos a querer dar nossa contribuição para compreender este fenômeno de consequências nefastas para o cotidiano. Como escreve Michaud (2002):

A característica comum é que todas as incivilidades colocam em xeque o direito do indivíduo de viver tranquilamente e em segurança, e a possibilidade que ele tem de confiar em outrem nas suas relações sociais. A consequência é um sentimento de insegurança que destrói progressivamente (e cada vez mais rapidamente à medida que as agressões se sucedem) o vínculo social, não no sentido abstrato dos teóricos da política, mas no sentido muito concreto das relações com as outras pessoas. ( p.78)

Ora, como o afirma Mucchielli (1986) em seu importante livro Comment ils deviennent délinquants, "é preciso situá-la (a delinquência) no seu verdadeiro plano: o plano moral" (p. 117).

Isto posto, o presente texto será divido em duas partes. Na primeira, trataremos de definir o que entenderemos por violência, e analisaremos a relação desta com a moral e a ética. Na segunda, falaremos das dimensões psicológicas da violência, notadamente no que tange os aspectos relacionados a juízo e sentimentos morais e éticos.

 

Parte 1: violência, moral e ética

Vamos começar por definir violência para, em seguida, relacioná-la à moral e a ética.

Consultados os dicionários Nouveau Larousse Universel (1988) e Aurélio (1999), verificamos que um elemento presente nas definições de violência é a coação, ou seja, o uso da força para constranger, física ou psicologicamente, uma pessoa ou um grupo de pessoas. A violência, portanto, implica a dimensão do poder (entendido como correlação de forças) e a privação, momentânea ou perene, do exercício da liberdade por parte da pessoa violentada. Dessa forma, cabem bem na categoria violência atos como o estupro, o roubo, o assassinato, o ferir fisicamente, a humilhação, entre outras ações. Nestes exemplos, há correlação de força favorável a quem pratica a violência, e um constrangimento que priva a vítima da liberdade de agir como pretenderia (não manter relação sexual, guardar o patrimônio, viver, gozar de integridade física e psicológica1). Mas tudo não está ainda dito, notadamente se quisermos relacionar violência com moral. Falta pensar numa dimensão essencial: o benefício ou o prejuízo que pode ter a pessoa constrangida pela força. Nos exemplos que acabamos de dar, fica claro o prejuízo sofrido pela vítima. Mas imaginemos outro: o de uma mãe que obriga seu filho, renitente, a comer frutas. Trata-se de uma correlação de força e da privação de liberdade. Logo, trata-se de um ato de violência, no sentido primeiro da palavra. Todavia, fica claro que a vítima será a primeira a beneficiar-se, do ponto de vista de sua saúde, da coação a que é submetida. Vê-se de imediato a importância deste ponto para o juízo moral: é ato moralmente condenável a humilhação, mas não o é o ato coercitivo com clara finalidade educacional2. Logo, da perspectiva moral, haveremos de discutir a legitimidade, ou não, da ação violência.

Posto que não raras vezes, sobretudo no campo educacional, ao lado da violência, fala-se em incivilidade, vale a pena verificar se tal incivilidade é uma subcategoria da violência, ou se corresponde a um outro fenômeno. Consultando os dicionários já citados, notamos que a civilidade tem como sinônimo a polidez. A definição dada pelo Lexis é a mais esclarecedora: "conjunto de formalidades observadas entre si pelos cidadãos, em sinal de respeito mútuo e consideração; polidez, urbanidade, delicadeza, cortesia". Assim definida civilidade, é claro que toda violência é prova de incivilidade. Porém, a recíproca não é verdadeira, porque, na incivilidade, o emprego da força não está necessariamente presente. Por exemplo, não cumprimentar alguém não implica coagi-lo. Consequentemente, tampouco se acha, no fenômeno da incivilidade, a dimensão da liberdade. Com efeito, não cumprimentar alguém, ou falar-lhe de modo grosseiro, não implica obrigá-lo a agir contra a vontade. Logo, tudo leva a crer que violência e incivilidade são dois fenômenos totalmente distintos. Mas aceitar esta dissociação levaria a não perceber um elemento moral importante em comum: o desrespeito para com outrem. Ora, é justamente no plano da avaliação moral que se pode afirmar que a incivilidade é uma forma de violência. Vamos ver por que razão.

Antes de mais nada, vamos esclarecer o que entendemos por moral e por ética, que não serão, para nós, sinônimos, embora complementares (Comte-Sponville, 1998; Ricoeur, 1990; Tugendhat, 1993a; La Taille, 2006a). Por moral, entendemos, do ponto de vista formal, um conjunto de condutas consideradas como obrigatórias, portanto, como deveres (negativos e positivos). Reconhece-se nesta definição o imperativo categórico kantiano (Kant,1785/1994). Do ponto de vista do conteúdo, a obrigatoriedade das condutas deriva do reconhecimento dos direitos alheios e da dignidade inerente a todo ser humano. A pergunta da moral é, portanto, como devo agir?. A pergunta referente ao que chamaremos de ética é outra: que vida eu quero viver?. Logo, a ética remete à vida boa, à felicidade, ao sentido da vida. Enquanto a moral é deontológica, a ética é teleológica. Falta dizer que, para merecerem o nome de éticas, as respostas a respeito da vida boa devem necessariamente incluir outrem, portanto serem pensadas do ponto de vista da articulação do individual e do coletivo. Se as decisões referentes à realização de uma vida boa não contemplarem a inclusão de outrem, diremos que não são éticas, mas que são tomadas no plano ético (aprofundamos essa tese no livro Moral e Ética: dimensões intelectuais e afetivas, La Taille, 2006a).

Isto posto, pode-se discutir se moral e ética, assim definidas, representam dois sistemas de valor independentes, se um engloba o outro, ou se são complementares. Do ponto de vista filosófico, optamos pelas análises que afirmam se não a complementaridade dos dois sistemas, pelo menos a indissociabilidade de ambos (Tugendhat, 1993b; MacIntyre, 1997; Comte-Sponville, 1998; Ricoeur, 1990). E do ponto de vista psicológico, que apresentaremos mais adiante, tal indissociabilidade também se verifica se adotamos a perspectiva teórica da personalidade ética ( La Taille, 2002b, 2006).

Comecemos então por pensar a violência e a incivilidade no plano moral. Deixamos acima um ponto em suspenso, o da legitimidade da violência, entendida como emprego da força para coagir alguém. Vimos que certos atos educativos podem ser descritos como atos de violência, mas legítimos, enquanto uma humilhação, também forma de violência, não goza de tal legitimidade3. O critério é naturalmente moral: no primeiro caso, há respeito, intenção generosa, reconhecimento de um direito; no segundo, há desrespeito, intenção egoísta e negação de um direito. No primeiro caso, há o reconhecimento da dignidade de outrem, reconhecimento este que não existe no segundo. Podemos, portanto, no plano moral, nos inspirar no imperativo categórico kantiano e definir violência como um ato que coloca outrem como meio e não como fim. A violência traduz um uso instrumental de outrem, uma negação de seu estatuto de sujeito.

Assim definida a violência, verifica-se que a incivilidade pode, apesar das diferenças já assinaladas, ser considerada como forma de violência psicológica. Com efeito, os atos intencionais de incivilidade (falamos em intenção para excluir possíveis formas de grosseria devidas apenas a uma ignorância dos chamados bons costumes) traduzem a vontade de negar, em outrem, o estatuto de sujeito, de ferir sua dignidade. É por esta razão, aliás, que a vítima de incivilidade quase sempre se sente agredida, como se fosse objeto de violência. As incivilidades podem ser mais leves do que as formas reconhecidas de violência: trata-se de uma questão de grau. Porém, leves ou não, traduzem um ato de desrespeito, e nisto, são comparáveis aos atos violentos. Eis o que se pode falar da relação entre violência e moral.

Vejamos agora o que se pode dizer no plano ético.

Lembremos que o plano ético corresponde à pergunta que vida eu quero viver?. Comentamos que, para merecer o nome de ética, as respostas devem levar em conta a coletividade, logo, serem coerentes com a moral. A violência, por conseguinte, não pode ser ética se não legitimada pela moral. É por esta razão que falamos de plano ético, e não ética, para pensar a violência. Duas relações entre o referido plano e a violência podem ser destacadas.

Numa primeira, a violência comparece como meio para a realização de projetos de vida. Por exemplo, se para determinada pessoa, ter sucesso e dinheiro representa o essencial da felicidade, poderá acontecer de ela ter recurso à violência para realizar seus planos. Logo, no plano ético, que corresponde a um sistema de valores a respeito do que é a vida boa, a violência pode ser pensada enquanto estratégia. Do ponto de vista de pesquisas psicológicas sobre os comportamentos violentos, o plano ético é de fundamental importância. Com efeito, dependendo do que um indivíduo escolhe ser o seu ideal de uma vida bem sucedida (Ferry, 2002), ele poderá fazer mais ou menos uso da violência, ou nunca fazê-lo.

Uma segunda relação entre o plano ético e a violência pode ser feita se considerarmos que a pergunta que vida eu quero viver? implica outra: quem eu quero ser? (La Taille, 2006a). O plano ético está, portanto, intimamente relacionado à construção identitária, à procura da afirmação de si. Ora, a violência pode comparecer neste nível. Neste caso, a pessoa terá orgulho de se ver como violenta e vergonha de se pensar como pacífica. Um destaque talvez deva ser feito para a virtude coragem. Como ela se define como superação do medo, e é frequentemente associada ao enfrentamento de outrem, pessoas poderão ver a si próprias e valorizar-se como corajosas, realizando atos de agressão.

Antes de passarmos à análise psicológica da violência, resumamos o que até agora foi apresentado:

1. No plano moral, está em jogo a legitimação da violência. Esta levanta um problema moral quando traduz uma forma de desrespeito, logo quando traduz uma ação sobre outrem na qual este é visto apenas como meio, e não como fim em si mesmo.

2. No plano ético, a violência deve ser pensada, seja como meio para realização de projetos de vida, seja como expressão de um traço de caráter valorizado.

Decorre do que escrevemos até agora que o fenômeno da violência pode ser estudado, do ponto de vista psicológico, por intermédio do que sabemos sobre as dimensões intelectuais e afetivas das ações morais e das escolhas éticas.

 

Parte 2: dimensões psicológicas da violência

A revisão bibliográfica que fizemos das análises psicológicas da violência nos mostra um campo bastante disperso, no qual múltiplas variáveis são apontadas. Para não nos limitarmos a um mero elenco de afirmações teóricas, resolvemos eleger alguns temas gerais em torno dos quais têm girado os debates.

Comecemos por aquele que talvez seja o mais importante, e que pode ser apresentado por intermédio de uma pergunta: a agressividade (uma dimensão psicológica da violência) corresponde a um instinto animal e humano, ou a uma estratégia para se alcançar determinados fins, estratégia esta escolhida em razão de determinados traços de personalidade construídos durante a vida do indivíduo? Como se sabe, Lorenz (1969) e Freud (1929/1971) optaram pela primeira alternativa, enquanto as abordagens inspiradas do interacionismo (ou construtivismo) optam pela segunda (Karli, 1987; Mucchhielli, 1986). Quanto a nós, concordamos com Karli, um neurobiólogo, quando afirma que a hipótese do instinto agressivo não somente é reducionista como nos impede de perceber que os atos violentos costumam ter variadas causas e não serem expressão de uma suposta natureza humana. Escreve ele:

Interrogar-se sobre os motivos que levam um indivíduo, confrontado a uma determinada situação, a empregar certo comportamento, consiste - para o neurobiólogo - a fazer o inventário do conjunto dos fatores que contribuem a determinar a probabilidade do emprego de uma estratégia dada, e a analisar os mecanismos cerebrais por intermédio dos quais esses fatores agem. Esses fatores são numerosos e diversos, pois remetem a uma personalidade formada por tudo que viveu, a uma situação que faz parte de um contexto sócio-cultural, e à relação individual que se estabeleceu entre eles, relação esta que o comportamento exprime e que eventualmente ele visa preservar ou modificar. (p.30)

Não deixa de ser interessante notar que é justamente no campo de biologia que a tese do instinto agressivo é abandonada, assim como foram abandonadas referências a disposições genéticas para a violência (a famosa hipótese do cromossomo XYY, o cromossomo assassino).4 Pelo lado da Psicanálise, Costa (1984) também constata que falar em violência como instinto ou como condição de possibilidade natural do existir humano não somente pouco ajuda para compreender o fenômeno, como o banaliza.

Então, que fatores podem ser evocados? Quatro grandes conjuntos deles se destacam em nossa revisão: o contexto, a inteligência, a afetividade e a moral.

Devemos a Milgram (1974) a tese segundo a qual o homem é um animal obediente, portanto dependente de variadas formas de autoridade. Tal tese tem antecedentes na clássica teoria de Gustave Le Bon (1895/1983), que afirma que o homem não se comporta da mesma forma quando sozinho e quando em grupo. Quando em grupo, costumaria apresentar comportamentos mais grosseiros e primitivos, entre os quais, os comportamentos violentos. Esta ideia foi retomada por Freud (1921/1991) em seu Psychologie des Masses et Analyse du Moi, e, depois, por Moscovici (1981) em seu L'Age des Foules. Milgram concorda com esta tese, dando ênfase à irremediável heteronomia do homem em relação à autoridade. Seus clássicos experimentos demonstraram que por volta de 70% dos indivíduos pesquisados agridem seus semelhantes (alguns de forma extremamente violenta, ministrando-lhes choques elétricos letais) se assim comandados por uma pessoa prestigiosa para eles. Algumas variantes de seus experimentos mostraram que, sem a presença da autoridade, seus comportamentos agressivos diminuem significativamente. Em resumo, segundo esta abordagem, o comportamento violento não deve ser explicado por fatores individuais, mas sim por fatores de contexto. Dito de outra forma, qualquer pessoa pode, se assim o contexto o favorecer (com destaque para as grandes concentrações de pessoas e para a relação para com a autoridade), agir de forma violenta. Esta abordagem teórica, rica de dados e reflexões, não pode ser negligenciada. Porém, fica uma questão importante: o que faz os 30% de desobedientes não agirem de forma violenta? Logo, por que algumas pessoas são mais dependentes do contexto do que outras? Kohlberg (1981) explicada o fenômeno pelo nível de juízo moral (chegou a entrevistar os sujeitos de Milgram). Colby e Damon (1993), e nós mesmos (La Taille, 2002b) pela integração dos valores morais ao self. O estudo da relação violência/moral parece, portanto, ser um complemento importante para compreender a força da influência do contexto nas condutas violentas.

Um fator psicológico que parece ter bem menos importância é a inteligência. Seria a violência decorrência de um QI baixo, ou de um desenvolvimento cognitivo insuficiente? Tudo leva a crer que não, a começar pelas observações cotidianas. Existem, sem dúvida, pessoas brutais com pouquíssima sofisticação intelectual, mas também há aquelas de quem não se pode duvidar da capacidade de elaborar planos complexos. Mucchieli (1986), especialista em Psicologia da delinquência, escreve que "os delinquentes vivem com uma exigência permanente de vigilância, de atenção a detalhes, de ajustamento das condutas às circunstâncias" (p.75). Tivessem todos eles algum déficit intelectual, não se explicaria a sofisticação de algumas de suas estratégias. O mesmo pode ser dito das pessoas que frequentam o crime organizado. Em suma, o nível de inteligência ou de desenvolvimento cognitivo não parece ser uma variável psicológica relevante para o estudo da violência (Astor, 1994). Havemos de lembrar, todavia, que existe uma relação entre inteligência e juízo moral, sendo o desenvolvimento da primeira condição necessária, mas não suficiente, ao desenvolvimento do segundo (Piaget, 1932/1992). Logo, podemos afirmar que o emprego de critérios morais para equacionar o tema da violência (notadamente para achar alternativas ao seu uso, como no caso do diálogo) pressupõe certo nível de sofisticação intelectual. O desenvolvimento da capacidade de refletir sobre as dimensões morais da violência deve ser um fator que pode inibir o comportamento agressivo (Puig, 1998).

Bem mais complexa é a análise do fator afetividade. A tendência para realizar ações violentas deve-se à presença de emoções aversivas? A lacunas afetivas nas relações mãe/bebê? A um sentimento perene de inferioridade? A uma impulsividade mal controlada? À desestruturação da família? A um desinvestimento afetivo nas relações sociais?

Todas essas hipóteses, e outras ainda, foram e são defendidas. Vejamos rapidamente o que se diz delas, começando pelas chamadas emoções aversivas. Segundo Karli (1987), emoções como medo, cólera, dor, frustração, neofobia costumam ter um efeito estimulador de condutas agressivas. As pesquisas que o demonstram foram feitas, sobretudo, com animais, e as poucas realizadas com seres humanos confirmam o fato. O autor dá um destaque para a neofobia, ressaltando que a familiaridade costuma ter um efeito pacificador, mas pondera que para explicar condutas preconceituosas, racistas, outros fatores, notadamente morais, devem ser levados em conta.

O mesmo autor debruça-se sobre uma questão polêmica, a saber, se o isolamento precoce do indivíduo de sua mãe geraria, mais tarde, uma tendência a se comportar agressivamente no seio do grupo. As pesquisas com animais tendem a mostrar que sim, porém, Mucchielli (1986) traz uma revisão bibliográfica que mostra que tal não é o caso quando se trata de delinquentes. Escreve ele com ênfase que "estamos, portanto, liberados da tese do delinquente 'mal amado' e frustrado de amor materno na sua tenra infância" (p.138). Acrescenta ele que não há relação entre agressividade e ter sido educado numa família desestruturada, no sentido de pais separados.

Embora Mucchielli abandone a tese da necessidade de uma relação precoce entre e mãe e o bebê para diminuir as chances da gênese do comportamento violento, ele analisa tal relação do ponto de vista da permissividade:

A mãe dos futuros delinquentes são mães fracas que se creem obrigadas a exercer um controle e frustrações, mas que, ao mesmo tempo, se acusam de não amar seus filhos. Assim, logo após a frustração ou a sanção, apressam-se em compensá-las por uma hiper-indulgência e uma permissividade excessiva. (p.138)

Mesma ideia encontra-se na revisão realizada por Karli (1987), acrescida de outra: a frieza com que a mãe trata seus filhos.

Apareceu muito claramente que os dois principais determinantes (da conduta agressiva posterior) eram constituídos por atitudes da mãe em relação a seu filho: de um lado, sua atitude 'negativa', feita de frieza e de indiferença, ou traduzindo-se por uma clara hostilidade e rejeição da criança; e por outro lado, sua atitude permissiva que tolera na criança todas as suas agressões, que não se esforça em controlá-las e em ensinar à criança controlar-se. (p.222)

Acrescenta ele que o fato de sofrer agressões durante a infância aumenta a probabilidade de ser, mais tarde, uma pessoa violenta. Embora nem Mucchielli, e nem Karli façam referência a Alfred Adler (1933/1991), reconhecemos no diagnóstico que eles apresentam um fenômeno predito por ele. Como, segundo ele, a pulsão natural do homem é procurar a expansão de seu Eu, superar o inevitável complexo de inferioridade, experiências de vida que frustrem tal expansão (a hostilidade dos pais, sua frieza, sua agressividade) ou que deem a ilusão de que ela está ocorrendo (permissividade, ausência de frustração, de limites) levam a um estado psicológico de intenso mal-estar que, entre outras decorrência, gera comportamentos violentos. Eis como Adler resume sua tese:

A guerra, a pena de morte, o ódio racial, e também a neurose, o suicídio, o crime, o alcoolismo, etc., nascem de uma falta de sentimento social e devem ser compreendidos como complexos de inferioridade, como tentativas negativas de resolver uma situação de uma forma inadmissível e inoportuna. (p.44)

Vejamos rapidamente um último grupo de fatores afetivos que, segundo Karli (1987, ver também Zaluar, 1985; Latermann, 2000), comparecem para aumentar a probabilidade de condutas violentas, e que nos aproxima das dimensões morais e éticas. Com efeito, trata-se de fatores presentes no contexto em que vive o indivíduo. Ele começa por associar consumismo e agressividade: a sociedade, que nos convence de que só existimos pelo que consumimos, leva-nos a uma necessidade imperativa de obtermos dinheiro para comprar e comprar, e, por conseguinte, acabamos empregando a violência para chegarmos a nossos fins consumistas. Estamos, aqui, no plano que chamamos ético: é uma certa ideia do que seja a vida boa que pode nos levar a legitimar a violência como meio de alcançá-la ou preservá-la. Outro fator de contexto sublinhado por Karli é pura e simplesmente a valorização da violência enquanto meio e da pessoa enquanto violenta: "Nos lugares onde as condutas agressivas são toleradas, até encorajadas, elas caminham junto a uma desvalorização sistemática do adversário, desvalorização esta que nega um limite e facilita a agressão" (p. 245). Referindo-se à televisão, o autor nota que "a linguagem empregada (sobretudo pelas propagandas) transmite a idéia de que a agressividade, quem sabe até a maldade, são sinais de 'virilidade' e de eficácia" (p. 334). Mucchielli caminha na mesma direção ao mostrar que os delinquentes se desinvestiram socialmente, e assim desprezam sentimentos de compaixão, negam a existência do outro ou, melhor, afirmam-se pela negação do outro (ver também Araújo, 2001 e Peralva, 2000).

Ambos os autores acabam por afirmar que a agressividade e a violência devem ser pensadas em termos morais. Já vimos que Mucchielli afirma que devemos pensar a delinquência no plano moral. Karli afirma que o freio mais potente contra a agressividade é o "respeito pela dignidade de outrem" (p.246).

Vejamos, agora, o que se sabe das relações entre moralidade e violência. Notemos, para começar, que a revisão bibliográfica que encetamos nos leva a crer que existem poucos estudos a respeito desta relação.

Comecemos por estudos que enfocam o juízo moral e sua relação com condutas violentas. Lembramos que as pesquisas de Milgram (1974) deixaram uma questão relevante: o que explica a decisão dos 30% de sujeitos que não obedeceram à autoridade e, logo, não apresentaram condutas violentas? Kohlberg (1981), naturalmente intrigado com este fato, e convencido de que o nível de juízo moral poderia explicar tomadas de decisão de agir com violência, ou não, entrevistou sujeitos que haviam participado da pesquisa de Milgram e constatou que os rebeldes aos mandamentos da autoridade apresentavam um nível de desenvolvimento superior (Milgram, 1974). Comenta Milgram que "se tratou de resultados interessantes, mas não definitivos" (p.252). A apreciação de Milgram apareceu como correta.

Com efeito, Blasi (1989, 1993, 1995) realizou uma ampla revisão daquelas pesquisas que procuraram verificar se havia correlação entre ações morais e nível de juízo moral, medido pelo método e teoria de Kohlberg. No geral, os resultados não permitem afirmar que tal correlação exista. Uma parte do artigo é justamente dedicada aos chamados delinquentes, ou seja, pessoas que cometeram delitos e foram condenadas pela justiça. Como o próprio Blasi sublinha, o conceito de delinquência não é tão preciso quanto parece, podendo ser considerados delinquentes pessoas que cometeram variados tipos de transgressão e por variados motivos. Todavia, não parece haver dúvidas de que tal conceito implica, quase sempre, o emprego de algum tipo de violência. Os dados são, portanto, relevantes. E eles apontam para dois diagnósticos. O primeiro: na maioria dos estudos visitados (onze de quinze) avalia-se que os autores de algum tipo de delinquência apresentam nível menor de desenvolvimento do juízo moral que as pessoas que não cometeram este tipo de violência. Logo, parece haver, de fato, uma correlação entre emprego da violência e sofisticação do juízo moral. Porém, é preciso lembrar que dos seis estágios identificados por Kohlberg (1981), apenas os dois primeiros seriam coerentes com condutas violentas, pois, como lembra Blasi (1989): "a delinqüência deveria vir acompanhada de uma forma de juízo sobre temas morais caracterizada pela primazia do interesse próprio, pelo pragmatismo, pelo relativismo e pelo oportunismo, ou seja, pelo que Kohlberg denomina a moral pré-convencional" (p. 345). Ora, os estudos não confirmam esta hipótese, pois, em vários deles as pessoas que cometeram alguma forma de delinquência encontram-se no nível convencional, nível este no qual se encontra a maioria das pessoas. Pela recíproca, Colby e Damon (1993), ao aplicar a entrevista de Kohlberg para avaliar o nível de desenvolvimento do juízo moral em pessoas de vida moral exemplar, logo em pessoas que não somente não agem com violência, como também procuram promover a paz social, Colby e Damon, dizíamos, não encontraram sistematicamente níveis superiores nestas pessoas, sendo muitas delas convencionais. Entre nós, Oliveira (2002) procurou medir o nível de desenvolvimento moral de presos por tráfico de drogas, e também não verificou que a maioria estaria em nível pré-convencional. Em suma, nada pode nos levar a afirmar, sem maiores cuidados, que as pessoas que cometeram violência condenada pela Justiça tenham necessariamente um nível primitivo (ou infantil) de desenvolvimento do juízo moral. Logo, não nos parece promissor realizarmos uma pesquisa que procuraria avaliar se pessoas violentas são heterônomas ou autônomas, no sentido piagetiano do termo.

Todavia, tudo não está dito ainda sobre a relação entre juízo moral e ação violenta. Com efeito, falta-nos citar uma pesquisa realizada por Astor (1994) cujos resultados parecem-nos dignos de nota. Este autor inovou no seguinte aspecto: ao invés de entrevistar seus sujeitos violentos e não violentos a partir de dilemas morais clássicos (como o de Heinz, elaborado por Kohlberg), ele submeteu-lhes histórias que continham ações violentas (Oliveira também o fez nas suas entrevistas com traficantes de drogas, empregando histórias que colocavam dilemas possíveis deste tipo de atividade5), e pediu-lhes que avaliassem sua legitimidade. Dois tipos de ação foram por ele escolhidas: uma violência cometida gratuitamente (por exemplo, alguém fica nervoso e bate em um terceiro totalmente estranho às razões do destempero emocional) e outra cometida como retribuição (por exemplo, alguém bate numa pessoa que o insultou). Seus sujeitos, crianças de seis, oito e doze anos, foram classificados em violentos e não violentos em razão de suas atitudes observadas no convívio escolar. Seus dados mostram que, em se tratando de uma violência gratuita, a totalidade dos sujeitos das duas amostras condena a agressão, e isto empregando argumentos morais. Em compensação, enquanto a maioria dos sujeitos não violentos também condena a violência decorrente de um revide, a maioria daqueles violentos legitima este revide. Conclui o autor que os sujeitos violentos não diferem dos demais por serem privados de juízo moral, mas sim na avaliação da legitimidade do emprego da violência.

O fato de as pesquisas não atestarem uma correlação clara entre nível de juízo moral e ação moral deve nos levar a refletir sobre a dimensão motivacional. Com efeito, a um saber fazer não corresponde necessariamente um querer fazer' (La Taille, 2006a), e ficaram famosas as observações de Damasio sobre indivíduos com lesões cerebrais que, embora capazes de juízos morais sofisticados, agem no dia a dia de maneira totalmente contraditória com o que dizem ser o correto, fazem uso de violência quando, verbalmente, defendem a paz e o diálogo (Damasio, 1996). Acima colocamos referências à dimensão afetiva relacionada à violência. Agora nos interessa pensar esta dimensão afetiva relacionada ao agir moral e ético.

Dos textos revisados, apenas o de Mucchielli, cuja tese é a de que os delinquentes carecem de senso moral, faz referência à dimensão afetiva. Para ele, não é o juízo moral que faz falta aos criminosos, mas sim sentimentos que orientem condutas morais: "O Eu desenvolve-se sem se descentrar, e aí está o segredo do que será, mais tarde, o Eu exorbitante e egocentrado que caracteriza o delinquente" (p. 141). Trata-se, evidentemente, empregando os termos de Piaget (1954), de uma ausência de descentração afetiva, e não cognitiva. Por que tal descentração não ocorre? Vimos acima que Mucchielli atribui grande importância ao fato de os pais serem por demais permissivos. Mas, aceita ou não esta explicação, o fato é que o futuro delinquente vai, sempre segundo Mucchielli, desenvolvendo um Eu sem a contrapartida de valores, ou seja, sem aderir a valores culturais que limitam e situam as suas aspirações. Mucchielli (1986) escreve: "Eis porque, escreve o autor, a frustração que será depois sentida, após o período sensível da formação dos valores vividos e do Eu descentrado, será um frustração sem valor, sem contrapartida, gratuita, por nada, e, portanto, uma injustiça vivida" (p. 143). Dito de outra forma, qualquer frustração pessoal será vivida como injustiça, como agressão. Mais tarde, acontecerá o fenômeno decisivo para explicar a opção pela delinquência e os atos violentos que a caracterizam, a saber o desengajamento social (withdrawal), que se traduzirá por um grande desprezo pelo valores culturais, pelos sentimentos de apego e compaixão, pelas normas de conduta. O outro será visto, antes como um inimigo, uma ameaça, do que como companheiro, uma ajuda. E, se é verdade que os delinquentes às vezes unem-se em bandos, ou seja, se aparentemente formam um espécie de sociedade, tal fato não desmente, apesar das aparências, o diagnóstico de que houve um fracasso da sociabilização: longe de configurarem uma mini-sociedade, os bandos têm pouca estrutura interna e mais servem de apoio para que cada um possa dar satisfação a seus desejos egoístas (Mucchielli, 1986). Em uma palavra, Mucchielli explica a violência dos delinquentes por uma sociabilização mal sucedida que leva a uma não conexão do indivíduo com o grupo, com a cultura, seus valores e normas.

Mas nem todos concordam com esta visão radical. Touraine (2000) lembra que se observa um grande conformismo quanto aos fins das ações de variados jovens delinquentes (por exemplo, possuir um automóvel), sendo os meios empregados para chegar a esses fins tradução de uma recusa das normas (roubar o automóvel). Vale dizer que tais jovens parecem aderir, de fato, a certos valores culturais (notadamente relacionados ao status que confere certos objetos de consumo), que podemos chamar de valores fins, mas não a outros, os valores meio, que dizem respeito à moral. Logo, não se trataria tanto de uma sociabilização mal sucedida (de onde viriam os valores fins?), mas sim de um tipo especial de sociabilização. Ou seja, não se trataria tanto de ausência de valores, mas sim da presença de valores contraditórios com aqueles que inspiram a moral. Assim equacionada a questão da violência, ela deve ser antes pensada como produção cultural do que como ausência de cultura. Tal será a perspectiva na qual trabalharemos, embora, como vamos ver, não descartemos elementos da tese de Mucchielli. Para explicar tal opção, e para finalizar a presente Parte, vamos rapidamente apresentar o que tem sido a abordagem que temos seguido para compreender a dimensão afetiva da moral (La Taille, 2002b, 2006a).

No início da vida moral, ou seja, quando do despertar do senso moral (por volta dos quatro, cinco anos de idade), entendido como compreensão de que existe um universo do dever e vontade dele participar (Tugendhat, 1993a), seis sentimentos comparecem para explicar esta nova adesão. Dois são bem conhecidos e estudados pela Psicologia Moral: amor e medo. A fusão destes dois sentimentos explica o respeito pelas ordens de figuras de autoridade, configurando uma moral da heteronomia. Reconhece-se aqui a tese de Piaget (1932/1992). A partir da década de 1980, levantou-se a hipótese de que nem tudo é obediência na primeira fase do desenvolvimento moral (Turiel, 1993; Tugendhat, 1993a). Outros sentimentos estariam presentes. Um deles é a simpatia, entendida como capacidade de perceber e comover-se pelos estados afetivos alheios (Smith,1723/1999), já pressentido por Piaget como causa de descentração moral. Com efeito, verifica-se que a criança pequena já dá mostra de simpatia e, por seu intermédio, presta atenção, não aos direitos alheios, mas sim às suas necessidades singulares. Pesquisa recente (La Taille, 2006b) permitiu-nos sustentar a hipótese de que a generosidade (virtude de fazer um dom de si para satisfazer necessidades alheias) faz parte do universo moral das crianças pequenas, notadamente com mais penetração na consciência e na afetividade do que a virtude justiça. Devemos, portanto, incluir a simpatia na lista dos sentimentos morais de crianças em fase de despertar do senso moral e a eles acrescentar o seu correlato: a culpa¸ entendida como sentimento negativo de ter causado algum dano a alguém. A culpa também é correlata da fusão de amor e medo, responsável pela legitimação das figuras de autoridade: a criança sente-se culpada de ter desobedecido. Também devemos incluir o sentimento que podemos chamar de indignação, entendida como reação negativa forte decorrente da vontade de zelar pelo que é considerado um direito. Verifica-se que crianças pequenas brigam pelo que consideram lhes ser devido, e isto mesmo perante as figuras de autoridade. Kohlberg já tinha observado essa característica das crianças pequenas e definido seu nível 1 como mistura de obediência - com Piaget - e busca de satisfação dos interesses pessoais. Quanto a nós, pensamos que a indignação prefigura a noção de direito moral, noção esta que será, pela reciprocidade, estendida ao outro, e depois ao grupo, à sociedade e à humanidade. Um último sentimento deve ser lembrado: o sentimento de confiança. Tugendhat (1993b) já dizia que as crianças pequenas prestam muita atenção à coerência entre discurso moral e ação e ao cumprimento das promessas, ou seja, ao grau de confiabilidade das pessoas de seu entorno social, e que a falta de confiança fragilizava a vontade de participar de uma comunidade moral. Pesquisa recente (Tisselli, 2002) mostrou que um número significativo de crianças, de seis e sete anos, preconiza a desobediência a figuras de autoridade que não merecem confiança. Em uma palavra, nem tudo é questão de obediência e autoridade na fase do despertar do senso moral.

Na sequência do desenvolvimento, os sentimentos de simpatia, de culpa, de indignação e de confiança permanecerão desempenhando papel importante,. A simpatia tornar-se-á generosidade, a indignação, justiça, a confiança, fidelidade e a culpa permanecerá acompanhando transgressões e danos causados a outrem. Porém, a fusão de amor e medo, por serem base afetiva da obediência heterônoma, e, portanto, configurarem ainda um controle externo, deverão desaparecer da moral autônoma, e serem substituídos por outros, que traduzam um controle totalmente interno (Piaget, 1954, falava da passagem de um sistema semi-normativo para um sistema normativo). Um outro sentimento moral passa, por volta dos nove anos de idade, a ser essencial para a ação moral, a vergonha, que somente tem recebido maior atenção nos últimos dez anos (ver, entre outros, Lewis, 1992; Harkot-de-La-Taille, 1999; Tugendhat, 1993a). Nós mesmos dedicamos reflexões e 16 pesquisas sobre a relação entre a vergonha e ação moral, consignados num livro (La Taille, 2002b). Abaixo resumimos nossa abordagem:

1. abordamos a moral na sua relação com o Eu, entendido como conjunto de representações de si (identidade);

2. adotamos o critério da integração dos valores morais ao Eu como explicação da força motivacional para o pensar e agir morais;

3. adotamos o critério da presença de sentimentos morais para aquilatar o lugar da moral na personalidade, entendida como sistema;

4. a busca de representações de si positivas é a uma das motivações básicas das condutas humanas;

5. tais representações de si estão, na sua gênese e manutenção, vinculadas aos juízos alheios, porém tal vínculo não implica sua total dependência a estes juízos: há um constante embate entre as imagens que a pessoa tem de si e os juízos positivos e negativos de outrem, o julgar-se interage com o ser julgado;

6. o sentimento de vergonha aparece como fundamental para a presente perspectiva teórica uma vez que, com a exceção da vergonha de exposição: 1) implica num auto-juízo negativo doloroso (dor decorrente da incessante busca de representações de si de valor positivo), 2) diz respeito ao ser, portanto às representações de si, e, 3) embora ocorra em decorrência de alguma falha, real ou antecipada, moral ou não, sua presença pode ser vista como sinal de valor por parte de quem o experimenta (La Taille, 2002b, p.114).

Em suma, o sentimento de vergonha é condição necessária ao agir moral, pois somente respeita outrem, no âmbito moral, quem, ao assim fazê-lo, respeita a si próprio (sentido da própria honra). Note-se que assim definida a importância do sentimento de vergonha para a ação moral, os planos moral e ético articulam-se. Com efeito, uma vez que a pergunta ética que vida eu quero viver? implica esta outra quem eu quero ser?, e que a vergonha incide justamente sobre o Eu (item 6, acima), temos que a personalidade ética (aquela na qual os valores morais são centrais) está intimamente relacionada às opções pessoais no plano ético. Quando, por exemplo, um criminoso apresentado por Paulo Lins em seu romance Cidade de Deus (1997) diz ter optado pelo mundo do crime por que não toleraria ser um "otário de marmita" (vergonha de ser empregado de pouca qualificação), vemos que uma opção de vida - logo identitária - tem decorrências na esfera moral (ele rouba e mata).

Este exemplo nos remete à questão da violência. Pelo que apresentamos da abordagem por nós adotada para analisar a dimensão afetiva da moral, podemos fazer as seguintes ponderações a respeito das opções por ações violentas.

Uma possibilidade de relacionar a violência à dimensão afetiva da moral é raciocinar pela falta. Assim, a falta de uma relação precoce com figuras de autoridade pode gerar anomia, e esta aumentar a probabilidade da violência, pois não estaria balizada por normas morais (é, grosso modo, a tese de Mucchielli). A falta de simpatia, ou o progressivo desaparecimento deste sentimento, também pode levar à violência, pois se perde a compaixão pelo outro. Todavia, este cenário pode não levar à violência, mas sim ao desprezo dos deveres ditos positivos (generosidade, gratidão). Neste caso, a relação social fica fria, porém não necessariamente violenta, pois os direitos alheios podem ser respeitados. A falta de indignação parece corresponder a uma hipótese muito pouco sustentável para o tema da violência. Mas pode acontecer, notadamente em razão de motivações religiosas, que tal sentimento seja visto como errado. Neste caso, pode-se falar numa violência dirigida contra si mesmo, caso que não nos interessa no presente contexto. Finalmente, a falta de confiança pode levar o indivíduo a não querer participar da comunidade moral e, portanto, não se submeter a seus deveres, entre eles aqueles que rezam que cada pessoa deva ser considerada como um fim em si, e não como um meio.

Em resumo, o raciocínio pela falta leva a pensar que os atos violentos acabam acontecendo, pois o indivíduo não baliza seus atos por leis morais. A literatura que visitamos costuma abordar o tema desta forma. Mas há outra: pensar que alguns desses sentimentos participam da legitimação da violência.

É o caso dos sentimentos de medo e amor, base para o respeito pela autoridade. Ora, esta pode muito bem legitimar a violência como meio e, portanto, levar as pessoas a ela submetidas a também legitimá-la. Podemos lembrar aqui da pesquisa, acima citada, realizada por Astor: os sujeitos violentos não carecem de senso moral (portanto, não há falta), tampouco legitimam toda e qualquer forma de agressão, mas legitimam a violência como estratégia de defesa a ofensas. Talvez o façam porque as figuras de autoridade de seu entorno pensem da mesma forma6.

O sentimento de indignação, se não balizado pela reciprocidade (justiça) e não relativizado pela simpatia (generosidade) também pode levar à violência A defesa de direitos, não compensada pelo reconhecimento de deveres, pode gerar constantes conflitos interpessoais, com as agressões decorrentes.

Quanto ao sentimento de confiança, não se vê como sua presença seria geradora de violência. Todavia, sua falta pode ter outra consequência que a ausência de senso moral. Ela pode gerar uma violência digamos antecipatória: agride-se porque se acredita que outro certamente vai fazê-lo.

Finalmente, quanto ao sentimento de vergonha, sua relação com a produção de violência é clara. Um cenário possível: as representações de si que a pessoa mais valoriza e persegue são estranhas à moral e a vergonha decorrente da ausência destas representações leva-a a escolher meios violentos para alcançá-las (ou mantê-las). É o caso, por exemplo, de uma pessoa cuja vergonha de ser anônima é maior que as outras causas deste sentimento e que faz de tudo para sobressair-se, mesmo que precise, para tanto, empregar outrem como meio. Outro cenário é o seguinte: no conjunto das representações de si, o ser violento é altamente valorizado e, logo, o ser pacífico causa vergonha. Como apontado por Karli (1987), os valores de nossa sociedade contemporânea correspondem a estes dois cenários. Assim, a violência não seria apenas falta de limites, mas uma produção social, seja como estratégia legitimada de trânsito social, seja um valor em si, típico de uma cultura da vaidade ( La Taille, 2009).

 

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Endereço para correspondência:
Yves de La Taille
Avenida Professor Mello Moraes, 1721
Cep 05508-900. São Paulo, S.P
E-mail: ytaille@uol.com.br

Enviado em Novembro de 2009
Aceite em Janeiro de 2010
Publicado em Outubro de 2010

 

 

Sobre o autor:

Yves de La Taille. Professor Titular do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.

 

 

1 Pode-se discutir se a possível aceitação ou cumplicidade da vítima em relação às violências a que é submetida ainda configura uma relação violenta. Não vamos entrar neste debate. Limitando-nos aos casos em que a vítima não deseja, de forma alguma, o constrangimento por que passa.
2 De certa maneira, pode-se dizer que o ato educacional, aquele que civiliza, é violento porque não raramente começa por contrariar desejos dos educandos. Mas devemos acrescentar que, mesmo em benefício da pessoa que sofre violência, esta tem limites claros, do contrário, perde legitimidade. No exemplo dado acima, uma mãe pode obrigar o filho a comer frutas, mas tal não a autoriza a espancá-lo ou humilhá-lo para alcançar o referido fim.
3 Notemos que Greimas e Fontanille (Sémiotique des passions, 1991) falam em "humilhação pedagógica" para se referir à estratégia didática que consiste em negar o que o aluno por ventura já saiba a respeito de determinada matéria. Aceita esta qualificação, a humilhação nem sempre pode ser condenada moralmente, uma vez que o fim da ação didática é o próprio aluno.
4 Tampouco parece haver relação entre características hormonais e tendência para a agressividade (Karli, 1987).
5 Por exemplo: o fato de um traficante ver seu filho doente em razão do consumo de drogas o levaria, ou não, a rever a legitimidade de sua atividade?
6 Em palestras que, às vezes, realizamos com um público de pais, não é raro ouvirmos alguns absolutamente convencidos de que seus filhos devem revidar os ataques sofridos. Eis uma forma de violência legitimada e incentivada por figuras de autoridade.

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