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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.17 no.2 Ribeirão Preto  2009

 

DOSSIÊ "PSICOLOGIA, VIOLÊNCIA E O DEBATE ENTRE SABERES"

 

FIQUE VIVO! na FEBEM-SP: a violência no limite da ética no exercício da psicologia

 

FIQUE VIVO! na FEBEM-SP: violence and ethical limits in psychological practices

 

 

Marlene Guirado

Universidade de São Paulo - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A violência será aqui tratada na trama das relações do exercício profissional, quando este se dá no interior de outras práticas instituídas. Mais especificamente, quando ele se dá em meio a práticas de atendimento ao segmento da população jovem em conflito com a lei e sob custódia do Estado e da Justiça. A marca mais evidente das relações institucionais desse atendimento é a violência: como desenvolver um trabalho psicológico, educacional e de cidadania, em tal contexto? Como trabalhar o direito à cidadania se o ponto de partida é o estado de reclusão da clientela? Até onde o trabalho, nessas condições pode se garantir num limite ético? Qual é esse limite? Todos os aspectos acima serão apresentados a partir das ações do Projeto FIQUE VIVO! na FEBEM-SP, entre 1999 e 2004. Basicamente, serão apresentadas as possibilidades da psicologia, quando seus procedimentos e conceitos ordinários podem ser revisitados.

Palavras-chave: Psicologia, Instituição, Relações de poder, Violência, Ética.


ABSTRACT

In this paper, violence will be discussed as a limit to psychological practices, when it's being part of other institutions and particularly, when psychological services are offered to young people that are against law and under governmental custodian. Violence has been the most evident mark of the relationship in these institutions. How to get educational, psychological and civil directed works in these contexts? How to work civil rights when people are under some kind of arrest? Which is the ethical limit to psychological work in this situation? All those subjects will be discussed based on the actions of a project called FIQUE VIVO! as they were developed in FEBEM-SP, between 1999 and 2004.The possibilities of psychological practices with reconsidered procedures and concepts, in these circumstances, will be demonstrated.

Keywords: Psychology, Institution, Power relationships, Violence, Ethics.


 

 

Diferentemente do que habitualmente faço em ocasiões como esta, vou tratar, hoje, de uma experiência de trabalho: a supervisão ao FIQUE VIVO! (FV), um projeto de educação e psicologia que, por cinco anos, se desenvolveu junto à Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor de São Paulo (FEBEM-SP).

Apresentarei, em princípio, o que foi o FIQUE VIVO! e a supervisão institucional. Depois, pretendo me ater ao atendimento psicológico oferecido pelo Projeto aos internos que o demandassem, direta e pessoalmente, no interior do espaço físico da própria Fundação. Na verdade, comentarei o impacto que essa proposta de atendimento individual teve para os agentes institucionais e as formas de resistência que mobilizou, denunciando as relações de poder entre o FIQUE VIVO! e as Unidades da FEBEM em que ele era exercido. Relações de poder estas que se tornaram ostensivas, também quando as atividades do Projeto trabalhavam com circulação de informação (mural com notícias de jornal, Rádio FIQUE VIVO!, publicação de histórias contadas e escritas pelos internos). Mais ao final, será possível demonstrar a relação entre o atendimento psicológico intra-muros e a da circulação da informação.

Como não faremos hoje uma apresentação imediatamente conceitual sobre as relações entre o exercício da psicologia e as possibilidades de um certo tipo de violência e como apresentaremos uma situação em que os psicólogos estão com as mãos na massa e os pés na lama de instituições que, sabemos, esbarram em situações muito próximas da violência, contamos com a tolerância de nossos interlocutores no sentido de acompanharem o esforço e a reflexão que nos fizeram produzir, sobretudo a partir das ocasiões de supervisão institucional, os limites possíveis de uma ética no exercício concreto da psicologia, naquele contexto institucional, histórico.

A ideia é que, no relato dessa experiência, possa ser mostrado o modo de pensar as instituições e a própria psicologia como instituição ou, ainda, a ética e sua relação com o jogo de forças de poder e resistência que atravessa as práticas de atenção e cuidado da custódia do Estado aos jovens em conflito com a lei. Que se possa mostrar que, no limite, o trabalho do psicólogo só se estende até onde ele pode ainda recusar as formas de sujeição da subjetividade, as formas de violência, ainda que o preço seja a própria suspensão do serviço que se presta. Não sem, antes, confrontar todas as restrições que as práticas institucionais por certo impõem. (Foucault, 1985, 2004; Rabinow & Dreyfus, 1995).

 

O que foi o FIQUE VIVO?

De início, quatro psicólogos constituíram uma equipe que visava a oferecer um trabalho de prevenção de AIDS, junto a jovens que, de alguma forma, estivessem em situação de risco social e com algum tipo de atendimento pelo Estado ou Prefeitura de S. Paulo. A chancela institucional, naquele momento, vinha do Departamento de Doenças Sexualmente Transmissíveis da Secretaria da Saúde do Estado (mais especificamente, do DST-AIDS) e do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sobre AIDS (NEPAIDS), coordenado pela professora Vera Paiva, do Instituto de Psicologia da USP. Aos poucos, esse cenário foi se transformando e o que era um projeto sob chancela de outras instituições tornou-se uma OSCIP (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) e a clientela atendida passou a ser os internos da FEBEM-SP, sob contratos renováveis a cada ano mediante relatórios, avaliações e muito trabalho. A proposta ampliou-se, descaracterizando-se como de prevenção de AIDS e passou a ter como alvo "psicologia e educação para a cidadania", conforme eles mesmos se apresentavam.

As supervisões institucionais foram estabelecidas por contrato entre o FV e esta supervisora, com hora e meia semanal e pagamento de honorários profissionais; da mesma forma como eram pagos os trabalhos dos quatro coordenadores gerais (os que iniciaram o Projeto), dos coordenadores do Projeto em cada Unidade em que ele era realizado, dos educadores responsáveis pelas oficinas (carros-chefe de toda ação do FV), e dos psicólogos e estagiários de psicologia que participassem do Atendimento no Plantão Psicológico. Foi com essa organização formal que o FV se sustentou por vários anos, em negociações sucessivas com diretorias e presidências da FEBEM, nas idas e vindas, à exaustão, que o poder burocrático lhe impunha; ora cerceando ações que consideravam ousadas ou perturbadoras da ordem(?) das coisas internas à Fundação, ora em nome da falta de um documento aqui ou de uma justificativa ali. No entanto, a FEBEM foi a única instituição social, oficial, que financiou o Projeto. E isto também lhe deu vida. Com a prerrogativa que se atribuem os que se encontram nesse lugar, na correlação de forças, foi a FEBEM, também, que interrompeu o contrato quando, numa dessas crises de política interna, enfraqueceu-se um grupo que ainda via algum sentido no FV.

 

O que é a FEBEM?

Com certeza, a amplitude da pergunta é tal que fica facultada qualquer tentativa de brevidade na resposta.

Hoje Fundação CASA, essa é a instituição social que responde pela custódia de jovens em conflito com a lei. Suas práticas são conhecidas como controvertidas formas de reclusão que, ao invés de ressocializar, conforme se propõem em primeira voz, preservam a transgressão e a marginalidade, conforme as segundas, terceiras e demais vozes de seu discurso sobre sua missão.

Estudos e pesquisas recentes, bem como a própria supervisão ao FV, têm confirmado, em aspectos fundamentais, as relações e os efeitos na produção dos vínculos afetivos e das subjetividades, que se registraram em estudos da década de 1980/1990 e início de 2000. (Guirado, 2004; Vicentin, 2005).

Neste momento, isto é tudo o que nos cabe assinalar para situar a clientela com que o Projeto FV trabalhou.

 

FIQUE VIVO na FEBEM

Desde o início, o FV se concretizou por meio de oficinas como: grafite, hip-hop, cartas, pintura em azulejos, histórias em quadrinho, jornal, paternidade, história, instrumentos musicais, prevenção de AIDS. Ainda, houve acompanhamento das atividades educativo-escolares dos internos.

Esses procedimentos, no limite do possível, eram bem recebidos por funcionários, grande parte das vezes. Os rapazes, invariavelmente, demonstravam interesse espontâneo pelas atividades, inscrevendo-se para elas, com frequência e insistência. Ninguém era obrigado a nada. No entanto, quase sempre, as oficinas funcionavam com o número completo de participantes. O que se notava, comumente, era o esquecimento de datas e horários, por parte de monitores, educadores e técnicos da FEBEM, o que dificultava a reunião dos meninos no espaço combinado para a feitura de algumas oficinas (esses espaços eram próprios do FV, normalmente, em corredores que davam para jardins da Unidade, próximos do pátio).

Ao que tudo indica, o FV teve efeito evidente entre as práticas das Unidades em que foi desenvolvido. Havia reconhecimento da parte de meninos e funcionários. Ainda que isso não fosse um movimento linear, nem da parte de uns, nem da parte de outros.

Nisso, o alvo do projeto se colocava, expressamente, muito além da prevenção de AIDS. A educação para a cidadania veio para ficar e, com ela, as discussões das supervisões ganharam o fôlego de tal forma que regiões de conflitos e paradoxos puderam ser enunciadas e confrontadas, pelos que faziam o FV, naquele momento. Foi assim que surgiu a pergunta sobre a própria finalidade dessas práticas: como trabalhar cidadania em condições de privação de liberdade?

Como se afirmou anteriormente, por três vezes, esbarrou-se, de modo claro, em limites ao projeto, na FEBEM: na oficina de Jornal, na Rádio FIQUE VIVO! e no Atendimento Psicológico Individual. Apesar das diferentes faces dos impedimentos e das indisposições ao trabalho, uma qualidade deles ressaltava: tratava-se, nas três situações, de ações em que o próprio procedimento produzia e fazia circular informação, de uma forma tal que parecia ameaçar a ordem das coisas e dos discursos no interior das Unidades de Custódia. Ao ponto de causar a impressão nos trabalhadores do projeto, no caso da psicologia, de que talvez suas práticas tivessem efeito imaginário mais poderoso do que nós pensávamos. Daí o capítulo do livro Psicologia Jurídica no Brasil, "Em instituições para adolescentes em conflito com a lei - O que pode nossa vã psicologia" (Gonçalves & Brandão, 2004).

Ora, eu que acostumara, no acompanhamento de várias iniciativas de profissionais psicólogos junto a instituições e, mesmo no ensino de psicologia, a trabalhar as submissões e "assujeitamentos", os efeitos de naturalização que os discursos e práticas psicológicas produziam, registrei que não é preciso deixar de fazer psicologia para reverter a inércia repetitiva das práticas institucionais em jogo (a própria psicologia e a FEBEM). Não é preciso jogar o diploma fora e fazer política, sociologia, filosofia ou crítica teórico-literária-ideológica. Não é preciso também lançar ao desprezo a psicanálise e seus vícios de ofício. É necessário, sim, criar possibilidades de fazer diferente, de inventar novas regularidades e procedimentos, acompanhando sempre, rigorosamente, seus efeitos.

Tenho a impressão que o FV foi uma experiência desse tipo, com todos os tropeços, problemas e avanços concretos que significou.

Uma das coisas que se aprendeu com tudo isso foi que um código discursivo fechado é recorrente. Em todos os níveis institucionais e entre todos eles, não só com uma finalidade visível de exclusão de alguns ou de alguns grupos, como por exemplo, psicólogos, estagiários, pessoal do FV, ou funcionários contra os internos. É no e pelo manejo do discurso, dos rituais, dos lugares ungidos pela força que as relações de poder se exercem com veemência cênica, disposição de corpos, imposição de vozes de comando, sentidos arbitrários, estritamente ligados aos grupos em questão. Curioso notar que voice é um lugar de mando entre os segmentos dos internos que ninguém ousa desobedecer (ouso dizer que nem a direção da Unidade faz confronto direto). Termo emprestado à Organização PCC, ele tem o mesmo efeito de comando nas práticas da FEBEM.

Salta aos olhos que, para uma perspectiva reflexivo-analítica, na complexidade do jogo de forças e afetos das relações assim configuradas, torna-se impossível manter visões maniqueístas na linha vítima/agressor ou maldade/bondade. É inegável que os internos, como grupo institucional, exercem pressão ativa na violência que ali reverbera, ora entre eles, ora com outros grupos da instituição. E as práticas do seguro estão aí para mostrá-lo: alguns deles são retirados do convívio com os outros para que sua sobrevivência física seja garantida, uma vez que teriam transgredido algum dos códigos que regem a vida em comum dos internos; são códigos particulares que fazem, para eles, o mais absoluto sentido e que, sob pena de eliminação devem ser cumpridos por todos. Ou quase todos. Exceção feita a alguém que tenha reconhecido destaque na liderança dos demais.

Por esses mesmos códigos e suas exceções, regem-se condutas e discursos autorizados ou excluídos, havendo previsões bastante claras de punição em caso de desobediência. Por exemplo: em dia de visita é proibido circular sem camisa pela casa, uma vez que ninguém pode ousar insinuar-se a familiares ou namoradas de outros internos.

Como se pode observar, nada que lembre uma alma sem lei. Os critérios, as finalidades e as contingências seguem o mais coerente modo de funcionamento de uma instituição discursiva: o aleatório a serviço dos interesses de determinada comunidade discursiva.

Lá tudo é forte e definitivo. Venha de onde vier o mando, seu destino é o cumprimento automático. Em caso de conflito de interesse, vence o mais forte. Aquele que domina e imobiliza a ação do outro. Não é de se espantar, portanto, que a marca da relação seja a violência e que ela se reproduza com indiscutível e insuspeitável legitimidade.

É de se esperar, portanto, que o exercício da psicologia, nessas condições, se (des)equilibre constantemente sobre um fio de alta tensão. Talvez tenha sido esse o efeito de nosso trabalho: manter viva a possibilidade de produzir em meio a relações marcadas pela dominação e pela violência (desde a física até essa da constrição da ação), no limite da ética. Testando até onde foi ou fosse possível a resistência a essa marca das relações instituídas.

Uma dessas situações-limite foi, como indicamos antes, o início do atendimento psicológico individual como uma das ações do FV.

Como sempre faziam, ao introduzir uma atividade nova, os coordenadores do projeto a discutiam com os funcionários que teriam sua rotina alterada, antes de a apresentarem aos internos. Nesse caso, ocorreu algo diferente do que ocorrera com a oficina de jornal, que foi advertida somente depois de um interno ter tentado entrevistar o diretor da Unidade, ou com a Rádio FIQUE VIVO!, que somente ficou ameaçada quando houve uma mudança na diretoria técnica e na presidência da FEBEM, as quais, por sua vez, passaram para o âmbito da Secretaria da Justiça do Estado (antes era da Secretaria da Educação). Como tais fatos ocorreram em momentos distintos, não se pode associar tudo à dança dos poderes burocráticos. Permanece a hipótese de que pode haver algo da ordem do risco e da ameaça que a circulação da informação representa nesses contextos em que há um controle formal do que se pode saber. Ainda que se saiba que não é exatamente isto o que se sabe...

Em supervisão, já havíamos discutido também sob vários ângulos esse atendimento. Isto porque alguns dos trabalhadores do Projeto ainda se mostravam aprisionados ao preconceito de que o atendimento individual correria o risco de ser um atendimento clínico-psicanalítico em instituição; o que, de forma alguma, ostaríamos de fazer. Mas, se este era o preconceito crítico consciente, havia um outro naturalizado e legitimado que se escondia à superfície in-consciente dos que praticavam a clínica como uma área da psicologia aprendida desde os tempos de formação e praticada sob supervisão (ou sem ela) como exercício profissional. Este foi o mais sutil e a-crítico procedimento que tivemos que, em ato, mover e remover, criando outras formas de escuta que, sem deixar de lado ensinamentos da psicanálise, faziam-nos passar pela consideração do contexto institucional específico em que o atendimento institucional se fez, quer no que diz respeito às interferências nas posturas, sentimentos, fantasias e angústias do atendente, quer no que diz respeito aos sentimentos, fantasias e angústias do atendido. Basta pontuar algumas das especificidades desse contexto para que se possa melhor entender como tal universo afetivo poderia instrumentar expectativas desses dois interlocutores na situação: o atendimento era feito mediante a procura espontânea dos internos, no pátio da Unidade, quando eles ali estivessem, como parte da rotina da casa; à vista de todos, psicólogos e estagiários de psicologia postavam-se em bancos desse pátio, em dias e horários previamente determinados por eles próprios; à vista de todos, também, com a casa mais calma ou mais agitada, ou ainda, em vias de "quebrar", e com funcionários que faziam a segurança dos pátios, ou com as lideranças dos internos, mais ou menos ostensivamente intimidadoras, os rapazes procuravam esses profissionais.

Ora, nada aqui que lembre o ar europeu ou empresarial moderno dos consultórios particulares onde, predominantemente, acontece a clínica psicanalítica e que, como uma espécie de imprinting, passou a compor a cena reconhecida como o setting adequado para (e favorecedor de) revelações inconscientes.

Isso, porém, quer dizer que a psicanálise não é adequada para situações como essas? Ou, invertendo e mudando bem o sentido, que essas situações não são favorecedoras de um bom trabalho analítico?

Seguramente, nem uma coisa e nem outra. A questão toda é que essas situações nos forçam a ir além do instituído e do repetido, à exaustão dos sentidos. Forçam-nos a encarar os conceitos com que operamos intelectualmente nossos discursos e torná-los termos vivos de um discurso aberto que considera a inevitabilidade de circunstanciá-los, ajustá-los aos lugares que, porventura venham a ter, e, por tabela, os sentidos que possam portar, em contextos outros, diferentes daqueles de origem.

Foi com tudo isso em mente que trabalhamos nas supervisões institucionais alguns aspectos. Da parte do interno, por exemplo, como é que o medo de ser punido pelos colegas por ter procurado a psicóloga (porque estes colegas poderiam desconfiar que seriam "dedados") determina, assim como os vínculos estabelecidos antes e durante a vida do crime, ou como a auto-imagem de bandido, o lugar que se verá ocupando na relação com aquela psicóloga. Ainda, da parte da psicóloga: como o receio de tornar-se refém em dia em que a Unidade pode "virar", como uma provocação aparentemente elogiosa feita por um funcionário, como o receio de ser agredida pelo interno, enfim, como essas circunstâncias-limite entre realidade e imaginação determinam o lugar que ela atribui ao seu cliente e a si, nesse atendimento? Finalmente, quando quem atende é um rapaz, que reverberações isso pode ter? Que reverberações pode ter, para um e outro interlocutores, o fato de terem condições de vida e liberdade, tão dessemelhantes?

Como se pode notar, mesmo que não estejamos falando de repetições de relações com figuras parentais na relação com o analista, estamos, sim, falando de transferência. Só que agora, operamos com esse conceito, num terreno já não mais estritamente freudiano. Tomamos a transferência nas dobras da superfície discursiva de uma instituição como a FEBEM que, por sua particularidade de contexto, vai produzir sentidos numa rede que, ao seu perfil, atualiza os vínculos até então construídos vida afora; e não só por aquele que, na cena, ocupa a posição de cliente, como por aquele que ocupa o lugar de psicólogo.

Voltemos, porém, ao que deixamos em suspenso quando falávamos das múltiplas relações entre psicologia e mobilização de informação, como hipótese sobre o que teria provocado impacto ao ser apresentado o atendimento individual como parte dos trabalhos do FV.

Dizíamos que essa proposta levantou, de imediato, resistências de todos os tipos: desde insinuações de que levaria a situações de indisciplinas e rebeliões, até perguntas expressas sobre o que fariam os profissionais do FV se algum interno se queixasse de maus-tratos sofridos, por agressões de funcionários. Em ato, provocações aos psicólogos no pátio, aparentando brincadeiras, e boicotes a horários, também costumavam acontecer.

Essas e outras questões motivaram, em várias reuniões de supervisão, muita discussão. Até porque os trabalhadores do Projeto tinham como uma importante questão ética para as ações do grupo, a de ter uma postura diante dos desmandes das práticas institucionais. Ninguém ali se sentiria coerente com seus próprios princípios se, em nome do sigilo dos atendimentos, calassem sobre tais agressões.

As subscrições que se seguem pertencem ao capítulo escrito por mim, para o do livro Psicologia Jurídica no Brasil (Gonçalves & Brandão, 2004), "Em instituições para adolescentes em conflito com a lei - O que pode a nossa vã psicologia?":

Parecia, então, ter-se chegado a uma encruzilhada intransponível, em qualquer direção. Seriam (estagiários, trabalhadores do Fique-Vivo e esta supervisora, inclusive) coniventes com a violência, respeitando o sigilo profissional e evitando que os meninos que procurassem o atendimento individual corressem ainda mais risco de vida? Como o leitor pode notar, a pergunta é um paradoxo; um paradoxo que assim se desdobrava: seriam esses trabalhadores coerentes com seus princípios de não tolerância para com certos atos que põem em risco a vida da clientela da instituição, e por isso, abririam ao discurso geral o que alguém lhes confidenciasse?; no entanto, não seria exatamente aí que se poria em risco aquele cuja vida pretendiam garantir?
Tínhamos apenas certeza de uma coisa: essas encruzilhadas só se configuram quando se leva até o limite o alcance de um trabalho institucional, cujo objeto e alvo vão na contramão do objeto e alvo da instituição dominante/contratante.
Naquele momento, como costuma acontecer quando nos deparamos com a dimensão paradoxal de nossas intenções e gestos, parecia estar havendo engessamento ético do trabalho. Como sair disso? Ou melhor, como garantir a vida, como ficar vivo? A resposta parecia ser uma, apenas: não paralisando. Exercendo o básico: o movimento.
Um esclarecimento maior aconteceu quando, nas supervisões, pôde-se falar tanto desse engessamento ético, como também de uma espécie de ameaça da intimidade. O que isto quer dizer? Que os trabalhos do Fique-Vivo poderiam fluir enquanto não chegassem muito perto daquilo que eles (os grupos que definem, por sua ação, o objeto da instituição) entendiam como o mais íntimo das vivências institucionais. Enquanto não levassem cada um a dizer do que mais o incomodava, atingia e o fizesse sofrer.
Assim, tudo indicava, o segredo do um remetia, sem fronteiras, a um segredo institucional. E a Psicologia seria o passaporte. É interessante que exatamente a psicologia e seus recursos de atendimento individual, tão criticada como sendo alienadora, pouco crítica, por certos discursos mais à esquerda de nossas vanguardas, viesse a provocar esse ato disparador de tantas tensões, crises, momentos e discursos críticos.
É que se pôde, por uma de suas práticas, por sua inserção dessa forma no contexto imaginário e político daquelas relações, fazer do exercício da psicologia uma ocasião de circulação de um outro discurso, esse da intimidade como segredo do um, que põe em risco o segredo da instituição. Vira-a do avesso. Mostra suas costuras básicas; aquilo que lhe dá consistência e formas visíveis, pelo lado direito.
A psicologia, tal como reconhecida naquelas relações, trouxe, pelos procedimentos em que seu discurso se produz, todo o jogo de tensão e poder na produção de subjetividade, nessas práticas de cuidado/contenção da delinquência/violência dos (e com os) jovens infratores na FEBEM. A psicologia pôs em evidência os impasses de uma ética da intimidade; de uma ética na produção da subjetividade. (p. 274-275)

Com a possibilidade de interromper este e todos os trabalhos, caso se colocasse uma situação de impasse em que, ostensivamente, as ações do FV não mais pudessem favorecer, minimamente, a quem as demandasse, movemo-nos nessa e noutras cordas-bambas, sem jamais baixar uma guarda: a de continuar pensando sempre.

Comentar uma experiência como esta, quando ela já não mais acontece como tal, tem que ser feito sem nostalgias, desesperanças ou desânimos. Na verdade, se me disponho, agora, a fazê-lo é exatamente pelo fato de que essa foi uma das experiências que mais permitiu alterar pautas de pensar, agir e fazer a psicologia, de que eu participei. Eu mudei. Ficamos todos vivos, nessas mudanças. E elas perduram em falas e escritos como este, como parte de um jogo de desestabilização inelutavelmente constante.

 

Referências

Foucault, M. (1985). História da Sexualidade I: a vontade de saber (7ª ed). Rio de Janeiro: Graal.         [ Links ]

Foucault, M. (2004). Ditos e Escritos V. Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

Gonçalves, H. S., & Brandão, E. P. (2004). Psicologia Jurídica no Brasil. Rio de Janeiro: Nau Editora.         [ Links ]

Guirado, M. (2004). Instituição e Relações Afetivas: o vínculo com o abandono (3ª Ed). São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Rabinow, P., & Dreyfus, H. (1995). Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além da hermenêutica e do estruturalismo. Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

Vicentin M. C. G. (2005). A Vida em Rebelião. São Paulo: HUCITEC/FAPESP.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Marlene Guirado
Rua Canário 755, ap.71
São Paulo SP. CEP:04521-003
Fones: 5051-6032/5051-0020/7333-1633
E-mail: mguirado@terra.com.br

Enviado em Novembro de 2009
Aceite em Janeiro de 2010
Publicado em Outubro de 2010

 

 

Sobre a autora:

Marlene Guirado. Professora Livre Docente do Instituto de Psicologia da USP.

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