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Temas em Psicologia

versão impressa ISSN 1413-389X

Temas psicol. vol.17 no.2 Ribeirão Preto  2009

 

DOSSIÊ "PSICOLOGIA, VIOLÊNCIA E O DEBATE ENTRE SABERES"

 

Aviso de incêndio

 

Fire warning

 

 

Edson Luiz André de Sousa

Universidade Federal do Rio Grande do Sul - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo parte de duas cenas trágicas que aconteceram no Rio de Janeiro em outubro de 2009: o incêndio de grande parte do acervo do artista plástico carioca Helio Oiticica e o assassinato do coordenador de projetos sociais do grupo AfroReggae, Evandro João Silva. Cada uma delas desdobra seu cenário próprio de desesperança. Procuramos reagir a estes acontecimentos dialogando com a reflexão de Pierre Naville em seu livro A revolução e os intelectuais, que propõe o legendário slogan "É preciso organizar o pessimismo". Pierre Naville e Walter Benjamin fazem deste princípio uma ferramenta crítica essencial.

Palavras-chave: Violência, Utopia, Esperança, Pessimismo, Pierre Naville.


ABSTRACT

This article describes and discusses two tragic scenes that took place in Rio de Janeiro, in October 2009: the fire that destroyed much of the collection by the Rio's plastic artist Helio Oiticica and the murder Evandro John Doe, who coordinated social projects promoted by the group AfroReggae. Each one of this episodes, unfolds its own scenary of hopelessness. We aim to respond to these events dialoguing with the reflection proposed by Pierre Naville in his book "Revolution and the intellectuals" which presents the legendary slogan "We must organize pessimism." Pierre Naville and Walter Benjamin make this principle a critical and essential tool.

Keywords: Violence, Utopia, Hope, Pessimism, Pierre Naville.


 

 

Aviso de incêndio

"Escuchar a los muertos con los ojos"
Quevedo1

Na entrada da grande sala de leitura da Biblioteca Saint-Geneviève, em Paris, há uma pequena cabine de madeira com uma janela de vidro. As duas placas fixadas em letras garrafais nos indicam sua função de outrora. Em uma delas lemos: "Poste d'incendie" e na outra "hors service"2. A tensão entre estas duas mensagens é eloquente, pois evoca as clássicas situações oníricas do sujeito que precisa correr para fugir do perigo, mas suas pernas não respondem. Contudo, esta paralisia pode ser esclarecedora para o sonhador interessado em saber sobre o perigo que o ameaça. O assustador é quando o "fora de serviço" se expande e aniquila a força de qualquer pensamento, de qualquer crítica àquilo que nos espreita, deixando-nos imóveis e mudos. Portanto, é quando a linguagem abandona o campo de batalha que as condições para que a violência se instaure surge no horizonte. Este tem sido um dos maiores desafios das práticas humanas seduzidas pela falsa e narcísica harmonia engendrada pelo esquecimento da história que, entre outras coisas, libera parcialmente os sujeitos de sua parte de responsabilidade naquilo que assistem. Este pequeno monumento em silêncio na porta da sala leitura adquire aqui um certo estatuto de imagem-guia nos orientando minimamente sobre o perigo quando as funções que podem nos salvar do fogo deixam de operar. Quem irá nos avisar sobre o incêndio que começou? É esta a questão que surge como motor de reflexão no inicio da Interpretação dos Sonhos, de Sigmund Freud (1981), na clássica imagem: "Pai, não vês que estou queimando?". O pai acorda em sobressalto e pode ainda apagar o fogo provocado por uma vela caída no corpo do filho que estava sendo velado na sala ao lado do seu quarto.

Imagens disparadoras de novos movimentos, pois é neste momento preciso que o pai desperta. Como evoca com muita precisão Georges Didi-Huberman no seu recente ensaio sobre Pier Paolo Pasolini, e sobretudo evocando o texto de Pasolini O desaparecimento dos vagalumes: "a imagem seria o clarão que passa e atravessa, como um cometa, a imobilidade de todo horizonte" (Didi-Huberman, 2009, p. 101). Evidentemente não se trata aqui de pensar a imagem em geral. Não é qualquer imagem que tem esta potência. Walter Benjamin (1988) insistia para a qualidade de certas imagens que ele nomeava de imagens dialéticas. Estas teriam a condição de iluminar o acontecimento, funcionando, portanto, como instrumentos óticos que nos permitem ver além da fumaça. Sabemos que depois do incêndio só nos resta entrar nos escombros, recolher as cinzas para compreender minimamente o que provocou o fogo. Não há outro caminho se queremos prevenir futuros sinistros.

Quando tudo se torna palatável e engolimos sem saber o que estamos comendo vale o alerta sutil, fragmentário e lúcido de Walter Benjamin no rascunho das seis linhas que deixou em um de seus manuscritos intitulado Teoria da repugnância e que finaliza desta forma: "Basta conhecer um pouco alguém para adivinhar qual animal lhe provoca a mais profunda repugnância. Talvez um organismo minúsculo, um bacilo que observamos somente no microscópio" (Benjamin, 2001, p. 95). Este fragmento vai ser o ponto de partida do pequeno texto intitulado Luvas, publicado por Benjamin junto com dezenas de outros pequenos textos com o título de Sentido Único. Na versão publicada pela primeira vez em janeiro de 1928 em Berlim, encontramos a seguinte frase: "Toda repugnância é originalmente repugnância de contato. Só conseguimos dominar este sentimento por um gesto radical e excessivo, o repugnante é estritamente engolido e consumido enquanto a zona de contato epidérmica mais delicada se torna tabu" (Benjamin, 1988, p. 147).

O desafio em jogo é encontrar o minúsculo, o quase invisível, germe de uma perturbação que nos possibilite reconstituir o cenário não só com os heróis já escolhidos pelo senso comum, mas com todos os figurantes que compõem a história. Bacilo ínfimo, mas potente e que se prolifera nos porões do que insistimos em não tocar. Com as luvas na mão, não saberíamos fazer operar o frágil telescópio, pois perderíamos o tato necessário para encontrar o foco preciso.

Precisamos encontrar o método que nos possibilite o mínimo contato com o cenário do incêndio, ou seja, como construir uma imagem-crítica que nos oriente em nosso percurso. Passaremos por sobre os cadáveres se não tivermos na mão um pouco de luz.

 

Um breve relâmpago

Um dos trabalhos emblemáticos da arte brasileira contemporânea é a bandeira proposta por Helio Oiticica, que reproduz a imagem do bandido "cara de cavalo" morto com dezenas de tiros pela polícia do Rio de Janeiro. Abaixo da imagem do corpo estendido, escreveu: "Seja marginal, seja herói". Esta frase acabou sendo um dos slogans mais conhecidos de sua obra, pois indica a posição clara deste artista ao refletir sobre tudo aquilo que está na margem, no fora de eixo, evocando as histórias que ainda não foram lidas. Seu trabalho plástico vem à luz como uma espécie de aviso de incêndio no sentido mesmo do que Walter Benjamin escreve no texto com este mesmo título: "É preciso cortar a mecha que queima antes que a faísca chegue no dinamite" (Benjamin, 1988, p. 193). O ato de criação surge, neste contexto, como um grito utópico, indicando que pode haver, eventualmente, outro destino que não o da explosão mortífera. Contudo, estes avisos nem sempre são escutados e o fogo chega antes da esperança.

O que é sem dúvida mais catastrófico é quando não temos a coragem de ir ler o texto das cinzas. Sabemos que há mecanismos sociais e psíquicos potentes que tentam barrar este caminho e que precisam ser considerados se quisermos entender um pouco das razões da covardia e obscurantismo de um determinado tempo. Acredito ser este um caminho promissor para reagir contra a violência que nos paralisa. Vale aqui lembrar, por exemplo, as reflexões de Jean Nabert em seu ensaio sobre o mal. "Sem dúvida uma certa esterilização das lembranças, somado ao apagamento ou atenuação das reverberações emocionais de nossos atos, favorece a produção de um momento onde o passado mais pesado parece se separar do eu" (Nabert, 2001, p. 138).

Neste ponto preciso, vemos o quanto o campo da psicanálise desdobra sua vertente política, uma vez que o enunciado de Nabert retoma teses que encontramos quase literalmente em Freud e em Karl Marx. Aqui, os conceitos de recalque e alienação surgem como pequenos microscópios para o bacilo oportunista. Por sorte, a história não pode se esquivar totalmente dos efeitos do retorno do recalcado.

Talvez esta bandeira tenha virado cinza.3 O que ainda nos resta?

A única resposta possível talvez seja a de Pierre Naville e que se tornou célebre na pluma de Walter Benjamin.4 Segundo eles, nossa missão seria a de organizar o pessimismo. Walter Benjamin é explícito ao dizer que organizar o pessimismo significa descobrir um espaço de imagens no campo da conduta política.5 É curioso que o texto de Naville "A revolução e os intelectuais", escrito no final dos anos vinte, vai justamente desenhar o panorama de violência e obscurantismo de uma Europa marcada pela tirania stalinista e a ascensão do nazismo. A questão disparadora do texto, contudo, é uma defesa feroz do surrealismo contra todas as críticas a esta revolução artística. O texto de Naville é de uma atualidade impressionante.

Destacarei um aviso de incêndio que pode ser deduzido do texto de Naville e que nos permite pensar o conceito de utopia em uma vertente de um pessimismo crítico. Naville em seu texto nos mostra a potência utópica do verdadeiro pessimismo

Naville defende a ideia de um pessimismo responsável e consequente, indicando que a desesperança pode cumprir uma função importante no cenário político. Faz uma certa crítica à esperança ingênua associada, segundo ele, aos aspectos medíocres de uma época. Neste sentido, podemos dizer que Naville propõe um pessimismo ativo e que precisa encontrar seu prumo. "É preciso organizar o pessimismo, ou melhor, já que não se trata de submeter-se a um chamado, é preciso deixar que ele se organize" (Naville, 1975, p. 117). O desafio colocado em cena seria o da necessária resistência ao que ele nomeia como tirania do futuro. Contudo, a questão que fica é justamente de saber como é possível injetar potência utópica na desesperança. O caminho não é simples, mas, certamente, a única saída é poder narrar e testemunhar ao mundo este afeto. Em outras palavras, verter em linguagem o que experienciamos. Assim, algumas imagens potentes talvez possam surgir ajudando a ver e entender melhor o que vivemos. Charlotte Beradt, por exemplo, entre 1933 e 1939, recolheu inúmeros sonhos de angústias de centenas de pessoas que, como ela, eram acossadas todas as noites por fortes pesadelos. Estes textos constituem, segundo Didi-Huberman, um documento psíquico do totalitarismo, do terror político, "um sismógrafo íntimo da história política do III Reich" (Didi-Huberman, 2009, p. 117). Aqui temos uma indicação preciosa de um pessimismo que não silencia e que reage a catástrofe do continuum da história. Pessimismos, portanto, inquietos, críticos, criativos. Como diz Naville: "vemos que este pessimismo não é a fadiga, e não é tampouco o abandono, longe disto... O desespero é uma paixão virulenta. Ele se nutre de desejos dilatados e profundos. Ele coloca à prova a paciência" (Naville, 1975, p. 113).

Certamente teremos alguma chance de mudar o curso dos acontecimentos se nosso pessimismo não nos impedir de escutar nossos mortos. Enquanto isto, sofreremos, junto com tantos outros Evandros Silva que se depararam com o fora de serviço em uma situação de urgência. Quem irá recolher nossos sonhos de angústia?

 

Referências

Benjamin, W. (2001). Fragments. Paris: PUF.         [ Links ]

Benjamin, W. (1988). Sens Unique. Paris : Les Lettres Nouvelles/Maurice Nadeau.         [ Links ]

Didi-Huberman, G. (2009). Survivance des lucioles. Paris: Editions de Minuit.         [ Links ]

Freud, S. (1981). Obras Completas (Vol. 1). Madrid: Biblioteca Nueva.         [ Links ]

Nabert, J. (2001). Essai sur le mal. Paris: Cerf.         [ Links ]

Naville, P. (1975). La révolution et les intellectuels. Paris: Gallimard.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência:
Edson Luiz André de Sousa
Pesquisador CNPQ
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Rua Fernandes Vieira, 474/32
Porto Alegre, RS. CEP.: 90035-090
E-mail: edsonlasousa@uol.com.br

Enviado em Novembro de 2009
Aceite em Janeiro de 2010
Publicado em Outubro de 2010

 

 

1 Todas as citações em francês do texto foram traduzidas por mim.
2 Posto de incêndio e fora de serviço, respectivamente.
3 Em 16 de outubro de 2009, um incêndio na casa de Cesar Oiticica destruiu grande parte da obra de seu irmão Hélio Oiticica. Como é possível que um acervo tão significativo da história de nosso país possa ter tido um destino tão trágico? Aqui ninguém pode ouvir o apelo "Pai, não vês que estou queimando?"
4 Walter Benjamin faz uma menção elogiosa e entusiasmada a este ensaio de Pierre Naville em seu texto sobre o surrealismo. Ver neste ponto o ensaio de Georges Didi-Huberman sobre esta questão.
5 Ver neste ponto o ensaio de Georges Didi-Huberman sobre esta questão.

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