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Temas em Psicologia
versão impressa ISSN 1413-389X
Temas psicol. vol.21 no.1 Ribeirão Preto jun. 2013
https://doi.org/10.9788/TP2013.1-14
ARTIGOS
Caracterização da revelação do abuso sexual de crianças e adolescentes: negação, retratação e fatores associados
Child sexual abuse disclosure characterization: denial, recantation and associated factors
Caracterización de la revelación de abuso sexual de niños y adolescentes: negación, retractación y factores asociados
Pedro Augusto Dias BaíaI; Milene Maria Xavier VelosoI; Celina Maria Colino MagalhãesI; Débora Dalbosco Dell'AglioII
ILaboratório de Ecologia do Desenvolvimento da Universidade Federal do Pará, Belém, Brasil
IINúcleo de Estudos e Pesquisas em Adolescência da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil
RESUMO
A revelação do abuso sexual pode garantir as intervenções psicossociais e legais às vítimas, aos(as) agressores(as), e aos familiares. Este estudo objetivou caracterizar a revelação, negação e retratação do abuso sexual por meio de trinta e um prontuários de casos de abuso sexual registrados contra crianças e adolescentes atendidos em um serviço especializado na cidade de Belém-Pará. Os seguintes fatores foram explorados: idade e sexo (vítimas/agressores), relação entre as vítimas e os(as) agressores(as) (intrafamiliar/extrafamiliar), indivíduo que fez a notificação. Os resultados indicam a predominância de vítimas entre oito e 11 anos de idade, sexo feminino, e agressores entre 14 e 32 anos, sexo masculino. Houve maior ocorrência de abuso sexual intrafamiliar. A mãe biológica realizou as notificações na maioria dos casos (n=14). O abuso sexual foi revelado pelas vítimas em 87% dos casos, e a não revelação envolveu abuso intrafamiliar. A negação predominou entre os meninos e crianças de cinco a sete anos. Os dois únicos casos de retratação ocorreram na amostra de meninos. A revelação, negação e retratação devem ser utilizadas como indicadores importantes na avaliação e compreensão dos casos de abuso sexual infantil.
Palavras-chave: Abuso sexual, revelação, negação, retratação.
ABSTRACT
The sexual abuse disclosure can ensure legal and psychosocial interventions for victims, offenders and families. This study aimed to characterize the disclosure, denial and recantation of sexual abuse by thirty-one records of reported cases of sexual abuse against children and adolescents treated at a specialized service in the city of Belém-Pará. The following factors were analyzed: age and sex (victims / offenders), the relationship between victims and offenders (intrafamilial / extrafamilial), the individual who made the notification. The results indicate the predominance of victims between eight and 11 years old, female, and offenders between 14 and 32 years, male. There was a higher occurrence of intrafamilial sexual abuse. The biological mother made the notifications in most cases (n = 14). Sexual abuse was revealed by the victims in 87% of cases, and non-disclosure involved intrafamilial abuse. The denial prevalent among boys and children from five to seven years. The only two cases of retraction occurred in the sample of boys. The disclosure, denial and retraction should be used as important indicators in evaluating and understanding of child sexual abuse cases.
Keywords: Sexual abuse, disclosure, denial, recantation.
RESUMEN
La revelación de abuso sexual puede asegurar intervenciones legales y psicosociales para las víctimas, los agresores y familias. Este estudio tuvo como objetivo caracterizar la revelación, la negación y la retractación de abuso sexual a través de treinta y un registro de denuncias de abuso sexual contra niños y adolescentes atendidos en un servicio especializado en la ciudad de Belém-Pará. Los factores analizados fueron: edad y sexo (víctimas / agresores), la relación entre las víctimas y los agresores (intrafamiliar / extrafamiliar), la persona que hizo la notificación. Los resultados indican el predominio de las víctimas de entre ocho y 11 años de edad, niñas, y los agresores de entre 14 y 32 años, hombres. Hubo una mayor incidencia de abuso sexual intrafamiliar. La madre biológica hizo las notificaciones en la mayoría de los casos (n = 14). El abuso sexual fue revelado por las víctimas en el 87% de los casos, y no divulgación ocurrió en el abuso intrafamiliar. La negación frecuente entre los niños de cinco a siete años. Los dos únicos casos de retracción se produjo en la muestra de los niños. La revelación, la negación y la retracción se debe utilizar como indicadores importantes para evaluar y entender de los casos de abuso sexual infantil.
Palabras clave: Abuso sexual, revelación, negación, retractación.
A revelação do abuso sexual é conceituada de diferentes maneiras: como sendo o relato que as vítimas fazem a alguém sobre o abuso sofrido, o relato ocorrido durante uma entrevista formal (uma avaliação clínica ou legal), ou a revelação ao longo de uma terapia (Jones, 2000).
Também é possível caracterizar a revelação a partir das seguintes categorias explicativas: (a) revelação intencional; (b) revelação acidental; (c) revelação estimulada. Na revelação intencional, as vítimas relatam deliberadamente o episódio de abuso sexual sofrido, sendo observada frequentemente em crianças mais velhas e adolescentes. A revelação acidental, ao contrário, geralmente envolve uma situação desencadeadora, por exemplo, quando exames médicos levam à descoberta do abuso sexual. Alguns estudos têm mostrado alta prevalência deste tipo de revelação em pré-escolares. A revelação estimulada corresponde às situações nas quais uma suspeita de abuso sexual leva a questionamentos, ou a implementação de entrevistas a fim de favorecer o relato das vítimas (Alaggia, 2004; Paine & Hansen, 2002).
A revelação do abuso sexual está associada à prevenção primária, caso ocorra a identificação dos(as) agressores(as), evitando assim a vitimização de outras crianças/adolescentes, e à prevenção secundária, pois poderá garantir assistência psicossocial e legal as vítimas, aos familiares e aos(as) agressores(as). Entretanto, mesmo ocorrendo o relato por parte das vítimas, muitos casos de abuso sexual são ignorados pelos ouvintes (Inoue & Ristum, 2008). A literatura especializada sugere que em decorrência das estratégias de ameaças, barganhas e violências utilizadas pelos(as) agressores(as), as vítimas mantêm em segredo o abuso. Soma-se a isto os fatores psicológicos tais como a vergonha, o embaraço, a auto responsabilização (algumas crianças/adolescentes acreditam que provocaram o abuso sexual), e o sentimento de lealdade ao(a) agressor(a), caso este seja um membro familiar (Furniss, 1993; Summit, 1983). A tentativa de falar sobre o abuso sexual poderá se estender ao longo do tempo, e quase sempre envolverá negações e retratações por parte das vítimas (Furniss, 1993; Summit, 1983).
A negação refere-se às situações nas quais a criança/adolescente declara que não foi abusado(a), a despeito de evidências físicas ou testemunhos. A retratação consiste em situações nas quais o indivíduo declara que foi abusado(a), mas posteriormente nega o próprio relato prévio (Bradley & Wood, 1996; Malloy, Lyon, & Quas, 2007). A ocorrência de negação e retratação foi identificada em 6% e 4%, respectivamente, em uma amostra de 249 casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes estadunidenses entre um e 18 anos de idade (Bradley & Wood, 1996). Complementarmente, em uma amostra de 30 crianças e adolescentes israelenses (entre sete e 12 anos), evidenciou-se 6,7% de retratações para a faixa etária de sete a nove anos, e uma taxa de 20% para as vítimas acima de nove anos, observando-se assim maior ocorrência de retratações no grupo de crianças mais velhas (Hershkowitz, Lanes, & Lamb, 2007). Na literatura nacional consultada, identificou-se apenas um estudo contabilizando a ocorrência de negação por parte das vítimas, com uma taxa de 4,3% na amostra de 93 crianças e adolescentes (Habigzang, Koller, Azevedo, & Machado, 2005).
Alguns fatores têm sido apontados como responsáveis para a ocorrência de retratações: vínculo das vítimas com os(as) agressores(as), dependência econômica da mãe ou da família em relação ao(a) agressor(a), atitude de descrença da figura de apoio principal frente à revelação do abuso, e existência de vitimização secundária. Este último fator é entendido como o sofrimento experimentado pelas vítimas quando são submetidas aos diversos procedimentos judiciais (Silva, Leiva, & Duarte, 2006).
A negação e a retratação de alegações prévias de abuso sexual, ainda que se constituam em eventos possíveis de ocorrer ao longo do processo de revelação, poderão gerar desconfiança sobre a credibilidade do relato das vítimas, e em muitos casos condicionarão a resposta do sistema judiciário, ao serem usados como argumento de que as crianças fabricam relatos sobre a experiência de abuso sexual (Rieser, 1991).
Assim, a idade, o sexo, a familiaridade entre as vítimas e os(as) agressores(as), e o indivíduo que realizou a notificação dos casos, por exemplo, se constituem em fatores que poderão atuar sobre o processo de revelação do abuso sexual, de maneira a impedir a sua ocorrência, ou criando contingências para o surgimento de negações e/ou retratações. Em relação à idade das vítimas, em uma amostra de 26.446 crianças e adolescentes israelenses, foram observadas as seguintes frequências de revelação de acordo com as faixas etárias: três a seis anos (47,5%; n=1049); sete a 10 anos (71,9%; n=3095); onze a 14 anos (81,9%; n= 3668; Hershkowitz, Horowitz, & Lamb, 2005). No estudo nacional envolvendo 94 meninos e meninas com histórico de abuso sexual, a idade da denúncia dos casos concentrou-se na adolescência (12 a 18 anos: 42,6%; Habigzang et al., 2005).
A idade do suspeito de perpetrar o abuso sexual também poderá afetar a ocorrência de revelações. As vítimas percebem o abuso de maneira diferenciada (como algo natural ou exploração sexual mútua) dependendo da idade dos(as) agressores(as), ou sentem diferentes graus de culpa quando o(a) agressor(a) compartilha idades próximas as suas (Kellogg & Huston, 1995; Lippert, Cross, Jones, & Walsh, 2009).
Em relação ao sexo das vítimas, há indícios de que os meninos são mais hesitantes para revelar, havendo relutância para relatar informações íntimas, principalmente se o agressor é do sexo masculino (DeVoe & Faller, 1999; Gries, Goh, & Cavanaugh, 1996; Hershkowitz et al., 2005). Essa relutância pode ser associada, entre outras coisas, ao impacto da violência sexual no garoto, receio de exposição e questionamento de papel e orientação sexuais, além da maior dificuldade de o homem relatar a violência (Inoue & Ristum, 2008). Nos casos envolvendo mulheres agressoras sexuais, fatores psicológicos, sociais e culturais poderão contribuir para que o contato sexual não seja considerado como abuso pelas próprias vítimas ou pelo meio social (Peluso & Putnam, 1996).
No abuso sexual intrafamiliar, a revelação poderá ocorrer tardiamente, e sabe-se que as vítimas apresentam maior sentimento de responsabilidade e medo das consequências negativas relacionadas ao conhecimento do abuso sexual pelos outros (Goodman-Brown, Edelstein, Goodman, Jones, & Gordon, 2003). Assim, em um estudo envolvendo crianças e adolescentes entre quatro e 13 anos de idade, foram observadas maiores taxas de revelação na amostra envolvendo agressores(as) não familiares, do que na amostra envolvendo agressores(as) familiares (Pipe et al., 2007).
Compreender as dinâmicas familiares associadas ao abuso sexual é de vital importância, pois as medidas de proteção que devem ser adotadas para retirar as vítimas da situação de vulnerabilidade necessitam da colaboração do meio familiar. No contexto brasileiro, em uma amostra envolvendo 40 meninas entre nove e 13 anos, observou-se que a maioria das vítimas revelou aos pais, e ainda que as denúncias tenham sido efetivadas geralmente por este familiar, os familiares não realizaram a denúncia formal da violência aos órgãos de proteção em 32,5% dos casos (Habigzang, Ramos, & Koller, 2011). Em uma amostra maior envolvendo 93 vítimas, o abuso sexual foi denunciado pela mãe das vítimas em 37,6% dos casos (Habigzang et al., 2005). O apoio recebido pelas vítimas durante a descoberta ou revelação do abuso sexual, bem como as reações dos cuidadores imediatos é de vital importância para o desenvolvimento psicossocial das vítimas. Este apoio recebido pode se manifestar através de estratégias de proteção, tais como a realização da notificação aos órgãos competentes.
Assim, o estudo sistematizado das variáveis associadas à revelação do abuso sexual poderá fornecer dados relevantes aos profissionais que lidam com a escuta de crianças/adolescentes nestas situações. Esta pesquisa objetivou caracterizar a revelação, negação e retratação do abuso sexual de crianças e adolescentes, buscando avaliar a influência dos seguintes fatores: idade e sexo (vítimas e agressores), relação vítimas e agressores (intrafamiliar/extrafamiliar) e indivíduo que fez a notificação.
Método
Amostra
Esta pesquisa consistiu em um estudo documental de amostragem não probabilística. A amostra foi composta de 31 prontuários referentes a casos de abuso sexuais registrados entre os anos de 2006 e 2008, em um centro de referência para atendimento de crianças e adolescentes (com idades até 18 anos incompletos), na região metropolitana de Belém-Pará. Os prontuários continham: fichas de entrevista inicial, relatórios das entrevistas psicológicas, laudos/pareceres e/ ou relatórios psicológicos referentes a cada um dos casos.
A ficha de entrevista inicial consiste em um documento próprio do serviço de atendimento, no qual são anotados os seguintes dados acerca das vítimas e dos(as) agressores(as): idade, sexo, se houve ou não notificação, quem fez a notificação, quem é o indivíduo acusado de abuso sexual, qual a relação entre as vítimas e os(as) agressores(as). Os relatórios apresentam a evolução individual dos casos e contêm o registro das principais ocorrências das sessões psicológicas com as vítimas.
Foram utilizados como critérios de inclusão na amostra: (a) prontuários contendo pelo menos um dos documentos psicológicos apontados anteriormente; (b) prontuários nos quais a criança/adolescente compareceu a mais de três atendimentos, para garantir a inclusão de casos com o maior número de informações possíveis; (c) prontuários contendo as seguintes informações: idade e sexo das vítimas e agressores(as), relação entre as vítimas e os(as) agressores(as) (intrafamiliar/extrafamiliares), indivíduo que fez a notificação do abuso sexual; e (d) casos envolvendo apenas um agressor. Optou-se pela não inclusão dos casos envolvendo mais de um(a) agressor(a) a fim homogeneizar a amostra.
Instrumentos
Foi utilizada uma ficha elaborada pelos pesquisadores para caracterizar individualmente os casos, registrando-se os seguintes fatores: (a) sexo da criança/adolescente e agressores(as); (b) idade da criança/adolescente e agressores(as); (c) indivíduo que fez a notificação; (d) relação entre as vítimas e os(as) agressores(as): intrafamiliar ou extrafamiliar; (e) ocorrência ou não de revelação, negações e retratações.
A ocorrência de negação do abuso sexual foi considerada nos casos em que, a despeito das evidências físicas e/ou testemunhais, as vítimas apresentaram relatos negando a ocorrência de abuso sexual. A retratação foi identificada nos casos em que, a despeito das evidências físicas e/ou testemunhais, as vítimas apresentaram relatos afirmando a ocorrência do abuso sexual, mas posteriormente, ao longo das entrevistas, negaram os relatos prévios.
Procedimentos
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará (protocolo nº 062/10). O estudo seguiu as normas da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde que regulamenta as normas aplicadas a pesquisas que envolvem, diretamente ou indiretamente, seres humanos. Ao manusear os documentos advindos de entrevistas psicológicas, foram assegurados os princípios éticos da confidencialidade e sigilo, preservando-se a não identificação dos envolvidos. Na fase um iniciou-se a coleta de dados, realizada pelo primeiro autor nas dependências da instituição, com a duração aproximada de quatro meses. O pesquisador selecionou os prontuários referentes aos casos de abuso sexual de acordo com os critérios de inclusão referidos anteriormente. Seguindo-se a isto, na fase dois foi efetuada a caracterização individual dos casos selecionados, com o auxílio da ficha de coleta de dados. Na fase três foi elaborado um banco de dados por meio do software Statistical Package for Social Sciences (SPSS)
Análise dos Dados
Os dados foram analisados por meio do software SPSS, aplicando-se a estatística descritiva (frequência, média e desvio padrão). A ocorrência de negação e/ou retratação foi identificada a partir da leitura dos registros das sessões psicológicas constantes nos relatórios.
Resultados
Aspectos Gerais
Na amostra estudada (n=31), foram identificadas vítimas com idades entre dois a 16 anos (M= 8,97; DP=4,01), observando-se as seguintes taxas de abuso sexual de acordo com a faixa etária: dois a quatro anos (13%, n=4); cinco a sete anos (25,8%, n=8); oito a 11 anos (35,5, n=11) e 12-16 anos (25,8%, n=8). Foram registrados 80,6% (n=25) de vítimas do sexo feminino e 19,4% (n=6) do sexo masculino, sendo todos os agressores do sexo masculino, com idades entre 13 a 76 anos (M = 33,24; DP = 14,51), contabilizando-se seis casos sem esta informação. O abuso sexual foi caracterizado como intrafamiliar em 57,7% (n=17) dos prontuários analisados, e como extrafamiliares em 43,3% (n=13), havendo um caso sem esta identificação. Nos abusos intrafamiliares, observou-se como agressores: pai (23,3%, n=7); o padrasto (20%, n=6); outros familiares: avô, tio, primo (13,3%, n=4). Em relação ao indivíduo que fez a notificação a mãe aparece em 45,2% (n=14) dos prontuários, seguida por outros familiares (19,4%, n=6), o pai (16,1%, n=5), pai e mãe (6,5%, n=2), madrasta e/ou padrasto (6,5%, n=2) e extrafamiliares (6,5%, n=2).
Revelação e Não Revelação
As vítimas relataram o abuso sexual em 87% (n=27) da amostra total do estudo (n=31), com revelações prévias (n=24) em contexto informal (casa, escola, etc) e revelações apenas no contexto formal de atendimento (n=3), isto é, no serviço especializado de atendimento às vítimas de abuso sexual. De outro modo, em 13% (n=4) da amostra total, a criança/adolescente não relatou o abuso sexual em nenhum contexto. Nestas circunstâncias, a descoberta do abuso sexual ocorreu através de sinais físicos, comportamentais ou do testemunho de terceiros que ocasionaram o encaminhamento das vítimas para o serviço especializado. A frequência de revelação aumentou de acordo com a faixa etária das vítimas (dois a quatro anos: 6,5%, n=2), (cinco a sete anos: 22,6%, n=7), (oito a 11 anos: 32,2%, n=10), observando-se que todos os adolescentes na faixa etária de 12-16 anos revelaram (25,8%, n=8). Também foi observado predomínio de revelações por parte das vítimas (n=14) nos casos envolvendo agressores com idades abaixo da média registrada (M=33). Em relação a não revelação, obteve-se uma frequência igual à de revelação para as crianças entre dois a quatro anos (6,5%; n=2). Entretanto, houve diminuição na frequência de não revelação para as vítimas entre cinco a sete anos (n=1) e oito a 11 anos (n=1).
Na amostra de vítimas do sexo feminino (n=25), constatou-se 23 casos com revelação. Na amostra de vítimas do sexo masculino (n=6), em quatro casos a criança/adolescente revelou o abuso sexual. No total de casos em que não ocorreu revelação em nenhum contexto (n=4), obteve-se distribuição similar para ambos os sexos: feminino (n=2) e masculino (n=2).
Quando as vítimas relataram o abuso sexual sofrido, constatou-se 51,9% (n=14) de revelações eliciadas (ou seja, a suspeita de outras pessoas propiciou o questionamento às vítimas, levando estas a relatarem os eventos abusivos); 33,3% (n=9) de revelações intencionais (as próprias vítimas buscaram relatar o abuso sexual diretamente para alguém), e em 14,8% (n=4) dos casos foram os sinais físicos, comportamentais ou o testemunho de terceiros que ocasionaram o encaminhamento das vítimas para o serviço especializado, contexto no qual estas crianças/ adolescentes posteriormente revelaram. No grupo de crianças/adolescentes abusados por agressores na faixa etária de 13-32 anos (abaixo da média), houve predominância da revelação eliciada (50%, n=12) e baixa frequência de revelação intencional (8,3%, n=2). Nos casos de agressores entre 33-79 anos (acima da média), a taxa de revelação intencional aumentou (25%, n=6), e diminuiu a ocorrência de revelações eliciadas (16,7%, n=4).
Tabela 1 - Clique para ampliar
Negação e Retratação
Especificamente em relação à ocorrência de negações e retratações, foram encontrados 19,4% (n=6) e 6,5% (n=2) de casos, respectivamente. Observou-se a seguinte distribuição de casos envolvendo negações de acordo com a faixa etária das vítimas: dois a quatro anos (n=1), cinco a sete anos (n=3), oito a 11 anos (n=1) e 12 a 16 anos (n=1). Os dois casos envolvendo retratações ocorreram nas faixas etárias de cinco a sete anos, e oito a 11 anos. Somente em dois casos de negação foi possível identificar a idade dos agressores (13 anos e 38 anos). Em contrapartida, na amostra de retratação, os agressores tinham 41 anos e 38 anos de idade.
A negação foi predominante entre as vítimas do sexo masculino (n=5), observando-se uma ocorrência (n=1) para o sexo feminino. Todos os casos de retratação (n= 2) situaram-se na amostra de meninos. A ocorrência de negação distribuiu-se da seguinte maneira de acordo com a familiaridade entre as vítimas e os agressores: intrafamiliar (n=3) e extrafamiliar (n=2). De outro modo, todos os casos de retratações (n=2) situaram-se na amostra de abusos sexuais intrafamiliares. Na amostra envolvendo negação (n=6), as mães biológicas das vítimas foram protagonistas na notificação (n=4), e os demais casos foram notificados pelo pai biológico (n=1) e um profissional (n=1). Na amostra envolvendo retratações (n=2), a mãe biológica (n=1) e a tia materna (n=1) foram as responsáveis pelas notificações.
Discussão
Na amostra estudada, a maioria das vítimas de abuso sexual correspondeu ao sexo feminino, e os agressores foram familiares do sexo masculino, tal como observado em outros estudos (Habigzang et al., 2005; Habigzang et al., 2011; Inoue & Ristum, 2008).
A frequência de casos envolvendo a revelação do abuso sexual (87%) aproximou-se dos resultados obtidos na literatura (Hershkowitz et al., 2005; Pipe et al., 2007), os quais aumentaram de acordo com a faixa etária das vítimas. A ocorrência de revelações na amostra de adolescentes, ainda que tenha alcançado um valor inferior em relação às demais faixas etárias, correspondeu ao total de casos analisados naquele grupo. Entretanto, ao considerar que as revelações em contextos informais (casa, escola, etc) foram as responsáveis pelo encaminhamento das vítimas para atendimento, a baixa ocorrência de notificações de abuso sexual contra adolescentes, comparativamente às faixas etárias de oito a 11, deve ser vista com cautela. O padrão ascendente entre a idade das vítimas e a ocorrência de revelação não se apresenta como uma regra, pois os adolescentes poderão reter a informação de que foram sexualmente abusados por discriminarem mais claramente as consequências de tal revelação (London, Bruck, Wright, & Ceci, 2008). Além disso, este grupo apresenta a tendência para revelar predominantemente para pares da mesma faixa etária, o que poderia contribuir para a não notificação dos casos. Complementarmente, a capacidade de relatar o abuso sexual depende também do nível linguístico e cognitivo das vítimas, e da capacidade em compreender determinadas interações como abusivas. No presente estudo, essas diferenças desenvolvimentais são evidentes quando se observa a predominância da não revelação na faixa etária de dois a quatro anos.
Os padrões de revelação observados mostraram maior incidência de revelação eliciada, principalmente para as crianças entre cinco a sete anos e oito a 11 anos, comparativamente à revelação intencional entre os adolescentes (12 a 16 anos). As crianças na fase pré-escolar são menos propensas a iniciar o processo de revelação. A busca por indicadores médicos ou comportamentais a fim de favorecer a detecção do abuso para esta faixa etária é apontada como prioridade, destacando o meio familiar ou a rede de apoio (escola, hospitais, por exemplo) como agentes importantes na detecção do abuso sexual envolvendo crianças mais novas (Nagel, Putnam, Noll, & Trickett, 1997).
Sabendo-se que revelações prévias (circunstâncias nas quais as vítimas relataram em contextos anteriores ao encaminhamento para o atendimento especializado) são preditoras de revelações durante os atendimentos nos serviços especializados (relatos que ocorreram durante os contextos formais de atendimento; Elliott & Briere, 1994), as revelações prévias ocorridas no ambiente doméstico foram responsáveis pelo encaminhamento das vítimas para a rede de atendimento na maioria dos casos analisados nesta pesquisa. Ainda assim, a ocorrência de revelações prévias em contextos informais não assegurou que posteriormente, quando entrevistadas em contextos formais, tais crianças e adolescentes mantiveram as alegações de abuso sexual. Em oito dos casos envolvendo a revelação do abuso sexual, a vítima negou ou retratou o abuso sexual em algum momento ao longo dos atendimentos formais. Em relação à taxa de negação do abuso sexual, os resultados são superiores aos de Bradley e Wood (1996). Considerando que os meninos são mais relutantes no processo de revelação do abuso sexual (Hershkowitz et al., 2007), houve frequência acentuada de negação na amostra de vítimas masculinas, bem como os dois casos de retratação também envolveram as vítimas masculinas. Se existe maior probabilidade dos meninos negarem ou retratarem o abuso sexual sofrido, a detecção dos casos neste grupo e o posterior encaminhamento aos serviços especializados também poderá ser prejudicada.
O abuso sexual ocorre em um contexto de gênero (Ullman & Filipas, 2005) e há escassez de estudos fazendo referências ao abuso sexual de meninos. Os profissionais e clínicos que trabalham com esta demanda têm caracterizado o abuso sexual como sendo exclusivamente associado a vítimas femininas e agressores masculinos. Os meninos e homens têm dificuldade em revelar o abuso sexual ou buscar tratamento para isto quando a violência ocorre porque as regras de gênero definidas socialmente estabelecem que os homens são fortes, e não precisam de proteção. A fraqueza masculina poderá ser associada com traços femininos, o que algumas vezes é desvalorizado em uma cultura sexista (Alaggia & Millington, 2008).
Além disso, todos os casos de retratação estavam relacionados a abuso sexual intrafamiliar, tal como em pesquisas internacionais (Hershkowitz et al., 2007; Malloy et al., 2007; Silva et al., 2006). O contato mais frequente das vítimas com os agressores, bem como as consequências advindas da revelação ou descoberta do abuso sexual (envolvendo o pai biológico ou o padrasto, por exemplo) criam um ambiente no qual o relato da vítima pode representar consequências percebidas como aversivas tanto para ela própria, quanto para o funcionamento familiar. Soma-se a isto a ausência de suporte social de maneira geral, que pode se refletir na descrença por parte do cuidador não abusador, na morosidade das intervenções legais e a ausência ou ineficiência de intervenções psicossociais que englobem a família da vítima de um modo geral.
Os fatores que dificultam o processo de revelação não podem ser analisados apenas no contexto formal de atendimento às vítimas de abuso sexual. É imprescindível considerar estes fatores atuando em outros contextos e inclusive determinando a possibilidade de encaminhamentos dos casos de abuso sexual aos centros especializados. Neste sentido, a identificação de quem fez a notificação do abuso sexual mostra que a mãe aparece como o indivíduo que mais participou deste processo, colaborando no fornecimento dos dados acerca do abuso sexual, embora tenha havido casos em que as mães não colaboraram no processo de notificação quando o indivíduo acusado de abuso sexual era seu novo companheiro (padrasto da vítima). Nos casos em que o agressor era o pai biológico das vítimas, as mães biológicas participaram do processo de notificação e não contestaram o relato da criança/ adolescente. Sirles e Franke (1989) encontraram resultados similares, observando que as mães acreditaram nos relatos dos(as) filhos(as) somente quando o agressor era o pai biológico das vítimas, e não coabitava mais com as genitoras.
Com isto, torna-se importante o estudo das contingências familiares que incidem no processo de revelação. É possível que os fatores desenvolvimentais somados às dinâmicas do abuso sexual funcionem como variáveis que atuam de maneira conjunta para facilitar ou dificultar o processo de revelação do abuso sexual. Tais variáveis devem ser explicitadas nos documentos de registro e nas entrevistas psicossociais realizadas em centros especializados, com o objetivo de utilizá-los como indicadores compreensivos, apontando ou não a possibilidade de revelação, negações e retratações.
É de vital importância não negligenciar o nível desenvolvimental da criança/adolescente, e fornecer um contexto de entrevista adequado à faixa-etária, analisando também as contingências anteriores ao encaminhamento da vítima para o atendimento: se houve ou não revelações prévias, as relações entre o cuidador não agressor e as vítimas, por exemplo. Sugere-se que os serviços especializados integrem em seus protocolos intervenções no contexto familiar, a fim de minimizar possíveis interferências advindas da revelação do abuso sexual.
A presente pesquisa optou pela análise documental em virtude da possibilidade de identificar, nos prontuários e relatórios de casos atendidos em um serviço especializado, os fatores de análise (idade, sexo, relação vítimas e agressores, indivíduo que notificou) a fim de caracterizar a revelação. Entretanto, a análise documental apresenta limitações, pois em muitos casos analisados não foi fornecida a idade dos agressores, ou as informações sobre as situações que precederam o encaminhamento das vítimas para os atendimentos. No contexto nacional, outros estudos também observaram a ausência de informações sobre os agressores nos prontuários pesquisados (Habigzang et al., 2005; Inoue & Ristum, 2008), o que se constitui em um indicativo de que não está ocorrendo a caracterização apropriada desta população específica. Do mesmo modo, ao longo dos casos que compuseram a amostra do presente estudo, a revelação, a negação ou a retratação do abuso sexual foram pouco enfatizadas.
Recentemente, estudos buscaram compreender a revelação entrevistando diretamente os sujeitos envolvidos (Hershkowitz et al., 2007; Schaeffer, Leventhal, & Asnes, 2011), a fim de conhecer suas percepções, sentimentos, o contexto de ocorrência da revelação e fatores apontados como facilitadores ou não para a revelação. Sugere-se que estudos futuros utilizem não apenas os dados de prontuários, mas também informações coletadas diretamente com as vítimas, através da realização de entrevistas semiestruturadas. Tais entrevistas poderão ser realizadas diretamente pelos profissionais responsáveis pelos atendimentos às vítimas e seus familiares, utilizando-se de perguntas abertas e fechadas a fim de conhecer, por exemplo: o contexto de ocorrência do abuso sexual, a idade das vítimas e dos(as) agressores(as) na época do abuso e na época da revelação, quais fatores facilitaram ou dificultaram a decisão para revelar/não revelar, qual a percepção das vítimas sobre o suporte social recebido, quais estratégias foram utilizadas pelos(as) agressores(as) para manter o silêncio, qual a percepção das vítimas sobre as consequências da revelação. Estudos longitudinais também poderão elucidar as dinâmicas da revelação, através da realização de entrevistas diretas com as vítimas e seus familiares nas seguintes etapas: durante a notificação do abuso sexual, ao longo dos atendimentos recebidos nos serviços especializados, durante e após os procedimentos judiciais, e entrevistas de follow up para avaliar as ocorrências de negações e retratações, por exemplo.
O desenvolvimento de pesquisas para compreender não apenas como ocorreu a revelação, mas também o impacto deste processo no microssistema familiar, no ajustamento psicológico dos sujeitos envolvidos, bem como a investigação de fatores temporais (o tempo entre o episódio de abuso e a revelação) poderá maximizar as possibilidades de intervenção primária e secundária, além de fornecer dados cruciais para embasar as entrevistas psicológicas de intervenção ou investigação do abuso sexual.
Referências
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Endereço para correspondência:
Laboratório de Ecologia do Desenvolvimento, Universidade Federal do Pará
Av. Augusto Correa, 01, Campus Universitário Guamá
Belém, PA, Brasil 66075-900
E-mail: padbaia@yahoo.com.br, mveloso@ufpa.br, celinaufpa@gmail.com e dalbosco@cpovo.net
Recebido: 20/07/2012
1ª revisão: 22/12/2012
Aceite final: 23/01/2013