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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.35 no.29 Rio de Jeneiro dez. 2013

 

Artigos

Limites e possibilidades de diálogo: a teoria pulsional e a teoria das relações de objeto

 

Limits and possibilities of dialogue: the drive theory and object relations theory

 

 

Camila Junqueira*

Nelson Ernesto Coelho Junior**

Endereço para correspondência

 

 


Resumo

Neste artigo, procuramos examinar os limites e as possibilidades de diálogo entre duas linhas teóricas em psicanálise: a teoria pulsional de Freud e a teoria das relações objetais, representadas aqui, a partir dos desenvolvimentos de Winnicott, apresentando também as preciosas contribuições de Green para o assunto. Se para Green, em princípio, a oposição entre essas teorias não se coloca, mais recentemente esse autor apresenta sua 'teoria dos gradientes' que corrobora com nossa proposta de articular essas teorias considerando a existência de dois níveis de apreensão do Self.

Palavras-chaves: Psicanálise, teoria pulsional, teoria das relações de objeto, teoria dos gradientes, Green.


Abstract

In this paper we examine the limits and possibilities of dialogue between two lines of thought in psychoanalysis: Freud´s drive theory and object relation theory represented here from the developments of Winnicott, also, featuring the precious contributions from Green to the subject. If, to Green, in principle, the opposition between these two theories does not arise, most recently the author presents his 'theories of the gradients' which corroborates our proposal to combine these theories considering the existence of two levels of apprehension of the Self.

Key-words: Psychoanalysis, drive theory, object relations theory, Gradients theory, Green.


 

 

Dissidências, pluralismo, fragmentações...

A questão das divergências e convergências entre as diversas linhas de psicanálise não é nova, talvez possa ser datada de 1912, quando a expulsão de Adler marcou o primeiro caso de dissidência na psicanálise, seguido de Jung e outros. Bergmann (1997, 2004) sugere que há uma diferença entre os dissidentes que foram expulsos do movimento psicanalítico junto com suas ideias; entre os modificadores, que influenciaram a psicanálise tal como a conhecemos hoje, promovendo controvérsias; e entre os extensores, que apenas teriam ampliado pontos para além de Freud. Não por acaso, os dissidentes tiveram relações pessoais com Freud, que chegou a apontar a resistência às ideias psicanalíticas como um grande fator para a dissidência, foi assim com Adler e Jung. Bergmann (2004) afirma ainda que em muitos casos a dissidência esteve relacionada à forma como Freud hostilizava as ideias, dando a entender que a dissidência também poderia estar relacionada às resistências de Freud a certos conceitos, embora não chegue a afirmar isso claramente. Entretanto, para esse autor a resistência não pode ser o único fator a explicar a diversidade da psicanálise, devemos procurar outros fatores que estiveram em jogo ao longo da história da psicanálise. Esse é, assim, um assunto vasto com bibliografia ampla. Entretanto, esse trabalho, se detém em examinar os limites e as possibilidades de diálogo entre duas linhas teóricas em psicanálise: a teoria pulsional de Freud e a teoria das relações objetais representada aqui a partir dos desenvolvimentos de Winnicott, apresentando também as preciosas contribuições de Green para o assunto.

Wallerstein (1988, 1990/1999, 2004) defende, no lugar de presidente da IPA, a existência de um pluralismo teórico na psicanálise em torno de uma unidade clínica, que seria o principal eixo de um common ground. Wallerstein é duramente criticado por Green (2004), que vê na aceitação do pluralismo a recusa de uma discussão teórica mais profunda sobre as diferentes teorias em psicanálise. Kernberg (2004) também critica essa posição, afirmando que o pluralismo é uma máscara para o ecletismo, uma mistura pouco rigorosa de teorias psicanalíticas que têm pressupostos geralmente diferentes.

Para Green (2000, p. 120-1), o estado da psicanálise, atualmente, não é pluralismo, mas sim de fragmentação; ele escreve:

Eu não considero a tolerância às múltiplas concepções de psicanálise uma condição aceitável. Fragmentação é um passo em direção à morte. Nossa tarefa é tentar confrontar as hipóteses principais, para discuti-las minuciosamente, e tentar encontrar um caminho para recriar não um common-ground, mas quiçá uma concepção aberta e unificada de psicanálise (grifos nossos).

Ao que parece, até a morte de Freud ocorreram propriamente dissidências, e depois fragmentações e regionalizações da psicanálise; é nesse sentido que Bercherie (1988), em seu livro Géographie du champ psychanalytique, procura fazer uma discussão sobre a diversidade na psicanálise através de um viés teórico. Para esse autor, as contradições e ambiguidades da obra de Freud estão relacionadas ao fato dele ter criado quatro diferentes modelos metapsicológicos que ele utilizou de modo alternado sem se desfazer de nenhum deles definitivamente, e sem distingui-los claramente em seu pensamento. Como adverte Bercherie (1988, p.119), "o debate entre as teorias é um diálogo de surdos, traduzindo para seu sistema o que lhe faz eco e rejeitando sem apelo aquilo que transborda". Porém, ao lidar com essa questão, também há o risco de cair no polo oposto, forçando convergências que não são possíveis; daí pensar os limites do diálogo entre as teorias e, no que tange a especificidade desse trabalho, pensar os limites do diálogo entre a teoria pulsional e a teoria das relações de objeto.

De acordo com Greenberg & Mitchell (1994), o primeiro desenvolvimento da teoria psicanalítica foi construído em torno do conceito de pulsão. Embora Freud não desconsiderasse a importância das relações interpessoais, o estudo das pulsões era mais importante e urgente. Porém, ainda segundo esses autores, a primeira teoria pulsional se mostrou insuficiente quando Freud passou a se interessar pelo estudo das relações do Ego com o mundo externo. Fazendo então uso de uma estratégia que esses autores denominam 'acomodação', Freud teria ampliado seu modelo conceitual original para acomodar as relações de objeto. Contudo, as relações com os outros seriam sempre compreendidas em termos pulsionais, onde o objeto é, sobretudo, objeto da pulsão. Outra estratégia possível, mas muito mais radical, para lidar com a necessidade de atenção às relações de objeto foi a de substituir o modelo pulsional por outro, onde as relações com as outras pessoas estão no centro da construção da vida mental. Esse é, segundo esses autores, o caminho seguido pelos teóricos das relações de objeto, como Fairbairn, Winnicott, entre outros.

Para Green (2005), Freud tendia de fato a explicar as coisas de modo mais solipsista e deu ênfase à pulsão porque cada descobridor tende a enfatizar o que traz de mais novo e original, o que, no caso de Freud, era o determinismo pulsional. Inversamente, os pós-freudianos quiseram enfatizar o objeto, o Self e o intersubjetivo e se afastaram da pulsão. Green sugere, assim, que a dicotomia pulsão/objeto é mais uma questão estratégica de promoção de uma teoria explicativa do que uma incompatibilidade teórica. Green parece estar em acordo com Hanly (2003), visão também compartilhada por Mitchell & Black (1995), que apontam as manipulações que se podem fazer com uma teoria, ora exagerando similaridades para reivindicar continuidade, ora exagerando diferenças para reivindicar originalidade.

Mitchell & Black (1995) nos lembram que a teoria das relações de objeto nasceu ligada ao Grupo Independente, que emergiu em meio às controvérsias entre Anna Freud e Klein nos anos 40. Os participantes desse grupo não eram apenas independentes em relação aos outros dois, mas cada um independente entre si, e todos se distanciaram dos instintos (Klein) e das defesas (Anna Freud) para focar nas relações com os outros. Entretanto, nesse grupo, cada autor fez isso à sua maneira, o que torna o campo das relações de objeto muito diverso e certamente inspira a escolha de Bercherie (1988), baseado em Balint, por denominá- -los 'nebulosa marginal'. Esses autores, que preferiram a afiliação à IPA a criar uma nova escola de pensamento, não desejavam ser considerados dissidentes.

Parece haver certo consenso de que as teorias das relações de objeto tiveram suas origens ligadas à oposição de Fairbairn à ideia de que a pulsão seria decisiva na origem e no funcionamento do psiquismo (GREENBERG; MITCHELL, 1994; HUGHES, 1989; KERNBERG, 1989), embora alguns autores também apontem em Ferenczi ideias importantes para as teorias das relações de objeto. Blum (2004) nos lembra que Ferenczi foi o primeiro que se propôs a pensar como a análise influencia o analista e que já havia aí uma semente das relações objetais, pois ele estava pensando a relação analista-analisando para além da transferência.

De acordo com Green (1990, 1995, 1999, 2008), embora a teoria das relações de objeto tenha sido em grande parte pensada para dar conta da clínica do que se denomina atualmente de 'patologias-limite', esse modelo não se mostra suficiente, pois o intersubjetivo, enfatizado pelas teorias relacionais, não substitui o intrapsíquico enfatizado pela teoria pulsional. Na esteira de Green, podemos observar que falta à teoria das relações de objeto uma teoria da motivação dessas relações que já era dada pela teoria das pulsões. Falta, também, à teoria das relações de objeto, uma articulação com a teoria representacional – tal como Freud expõe no Projeto (1895/1989), retoma no texto do Inconsciente (1915a/1989) e em outros momentos pontuais da obra – que permita pensar como as relações de objeto incidem na constituição e no funcionamento dos limites do aparelho psíquico.

Nesse sentido o exame proposto neste trabalho é um esforço fruto de uma dupla exigência: a inclusão de novas patologias que na época de Freud eram consideradas inanalisáveis e que, nas últimas décadas, ainda se configuram como um grande desafio para a clínica; e a necessidade de pensar o intrapsíquico simultaneamente com o intersubjetivo, a pulsão em conjunto com o objeto, inclusive para o desenvolvimento da clínica dessas patologias.

 

O objeto em Freud, o instinto1 em Winnicott

Antes de apresentar a forma de como Green vê possível essa articulação, consideramos que uma forma interessante de observar os limites e possibilidades de diálogo entre essas teorias é examinar a presença do objeto do texto freudiano e a presença do instinto no texto winnicottiano2.

O objeto está presente no texto freudiano desde A interpretação das afasias (1891/1977), podendo ser tanto um objeto externo e real quanto uma ideia abstrata. Neste texto, encontramos um modelo de como os objetos da percepção se organizam para formar a linguagem e o aparelho psíquico (concebido aqui como aparelho de linguagem). Não se menciona ainda a ideia de pulsão; o que nos permite afirmar até mesmo que o objeto chega a preceder a pulsão nas preocupações teóricas de Freud. Grosso modo, o objeto no Projeto (1895/1989) é o objeto da realidade externa que proporciona descarga e cria facilitações, ou a memória em ?.

Uma leitura atenta dos textos Afasias e Projeto permite observar que as primeiras ideias sobre a constituição do psiquismo em Freud já são bastante marcadas pela representação psíquica dos objetos. Especialmente aqueles responsáveis pelas experiências de descarga (satisfação) ou acúmulo (dor) de estímulos endógenos que se transformam em pulsões no encontro com os objetos. Isso reforça a ideia de que, no que tange a constituição do aparelho psíquico na metapsicologia freudiana, objeto e pulsão estão presentes desde o primeiro instante de sua formação. Ou ainda, é no instante de encontro entre a pulsão e um objeto que o aparelho psíquico se produz.

Coelho Junior (2002) afirma que, com a introdução do conceito de identificação, a relação entre pulsão e objeto na obra de Freud será de suplementariedade; há um processo de mútua constituição entre sujeito e objeto e não há uma relação de anterioridade nem de um, nem de outro; ainda que essas ideias estejam apenas implícitas no texto freudiano. Entretanto, o que se deseja sugerir aqui é que essa suplementariedade já se faz presente no início da obra freudiana, mesmo antes do desenvolvimento do conceito de identificação. Isso se evidencia ao considerarmos que a representação-objeto é o substrato do aparelho psíquico exposto nas Afasias (1891/1977) e no Projeto (1985/1989), como visto acima, antes ainda de o objeto ser o objeto da pulsão nos Três ensaios (1905/1989). Nesse texto, o mesmo objeto também será amplamente valorizado antes mesmo da sistematização do conceito de pulsão em Instintos e suas vicissitudes (1915b/1989), em que o objeto será finalmente parte integrante da pulsão. Contudo, não se deve perder de vista que essas ideias, assim como aponta Coelho Junior (2002), estão na maioria das vezes apenas implícitas no texto de Freud, não tendo ele se debruçado sobre elas abertamente.

Ainda sim, é importante esclarecer que, de qualquer modo, para o desenvolvimento deste trabalho não é necessário que Freud tenha afirmado a suplementariedade entre pulsão e objeto. Basta que a afirmação realizada aqui acerca da existência de tal suplementariedade não deforme a lógica da teoria freudiana.

Com esse breve exame, esperamos ter posto em questão a 'oposição evidente' entre a teoria pulsional de Freud e as teorias das relações de objeto defendidas por Greenberg & Mitchell (1994). Isso considerando que, no texto freudiano, o objeto está presente como parte constitutiva do psiquismo desde o início da sua teoria, o que constitui ali uma abertura para a sua articulação com a teoria das relações de objeto, sem que essa articulação se constitua numa deformação do conjunto das ideias de Freud.

Por outro lado, uma das diferenças mais marcantes da teoria de Winnicott para com a de Freud é o lugar reservado para o conceito de instinto no desenvolvimento do sujeito. Fazendo um balanço de textos relevantes de sua obra, a impressão que se pode ter é a de que Winnicott não nega a existência nem despreza a importância dos instintos para o desenvolvimento emocional. Contudo, o autor propõe a existência de uma fase anterior e em seguida de um nível concomitante, onde os instintos são fundamentais. Essa fase anterior, Winnicott relaciona ao que denomina 'necessidades do Ego', e que não possuem relação com as necessidades instintivas.

Em Natureza humana (1971/1990, p. 54), obra publicada postumamente e escrita entre 1954 e 1971, Winnicott afirma:

Freud fez por nós toda a parte desagradável do trabalho, apontando para a realidade e a força do inconsciente, chegando à dor, à angústia e ao conflito que invariavelmente se encontram na raiz da formação de sintomas, anunciando publicamente, de forma arrogante se necessário, a importância dos instintos e o caráter significativo da sexualidade infantil. Qualquer teoria que negue ou ignore essas questões é inútil (grifos nossos).

Em Desenvolvimento emocional primitivo, num dos primeiros textos onde Winnicott (1945/2000) esboça sua contribuição original à psicanálise, ele menciona as experiências instintivas como fundadoras da integração do Ego (construção do espaço e tempo) e da personalização (psique habitando um corpo) do indivíduo. Winnicott (1945/2000, p. 224-5) escreve:

A tendência a integrar-se é ajudada por dois conjuntos de experiência: a técnica pela qual mantém a criança aquecida, segura-a e dá-lhe banho, balança-a e chama pelo nome, e também as agudas experiências instintivas que tendem a aglutinar a personalidade a partir de dentro... Igualmente importante, além da integração, é o desenvolvimento do sentimento de estar dentro do próprio corpo. Novamente, é através da experiência instintiva e da repetida e a silenciosa experiência de estar sendo cuidado fisicamente que constroem, gradualmente, o que poderíamos chamar de personalização satisfatória (grifos nossos).

Contudo, nesse trecho também já podemos ver esboçar-se a noção de 'necessidades do Ego' quando Winnicott afirma que, ao lado dos instintos, há o cuidado da mãe (mantém a criança aquecida, segura-a e dá-lhe banho, balança- a e a chama pelo nome) como um conjunto de experiências também fundantes da integração. O que nos remete à ideia de que Winnicott não vai negar a existência ou a importância dos instintos, mas sim vai começar a estabelecer outro nível de desenvolvimento, tal como podemos observar em alguns de seus textos seguintes. Já em outros momentos, Winnicott (1960/1983, p. 44) deixa claro que esse nível que se torna concomitante é, no início, uma fase anterior; ele afirma: "isso [o holding, a provisão ambiental] se superpõe, mas na verdade se inicia antes das experiências instintivas que, com o tempo, determinaram as relações objetais" (grifos nossos), por outro lado, afirma também que, por melhor que sejam os cuidados, as crianças continuam sujeitas aos conflitos originados da vida instintiva (WINNICOTT, 1962/1983). Mas essa fase, que é anterior, já que é pré-condição, se torna, ao longo do desenvolvimento, concomitante, constituindo-se como uma fase que não se conclui – daí denominá-lo 'nível' (WINNICOTT, 1963a/1983).

Ao mesmo tempo em que Winnicott relaciona a maturação com o instinto, ele deixa claro que os instintos só adquirem importância após a organização de um Ego que possa vivê-los. (WINNICOTT, 1963c/1983). Desse modo, a partir dos trechos destacados acima, parece possível afirmar que Winnicott não ignora a importância do instinto no desenvolvimento emocional. Contudo, ele procura estudar um momento tão precoce do desenvolvimento emocional que, para ele, a questão do instinto não se coloca, pois ainda não há Ego que dê sentido a este. Paradoxalmente, o momento que Winnicott deseja estudar, onde não há Ego, é caracterizado pelo que ele denomina de 'necessidade egoica' de se integrar (WINNICOTT , 1949).

Com esse exame, esperamos ter demonstrado que o instinto está presente como parte constitutiva do Self em momentos posteriores à integração do Ego, o que constitui uma abertura na teoria de Winnicott para uma articulação com a teoria freudiana, sem que essa articulação se constitua necessariamente numa deformação do conjunto das ideias de Winnicott. Contudo, essa articulação encontra certos limites, pois, ao que tudo indica, Freud e Winnicott estão se referindo ao que nós compreendemos como dois níveis diferentes de apreensão do Self: o aparelho psíquico e o desenvolvimento emocional. Compreendemos o Self como a pessoa como um todo em excluindo o corpo biológico, numa acepção próxima a de Klein (1959) que ao diferenciar Ego de Self define: "O Ego, em acordo com Freud, é a parte organizada do Self, constantemente influenciada por impulsos instintivos, porém mantendo-os sob controle pela repressão. Além disso, o ego dirige todas as atividades e estabelece e mantém a relação com o mundo externo. O termo Self é utilizado para abranger toda a personalidade, o que inclui não apenas o ego, mas também a vida pulsional, que Freud nomeou de id" (p. 283); assim, o Self em Freud compreende o aparelho psíquico não apenas em termos de sua tópica, mas também de sua dinâmica e economia, em contrapartida, o Self em Winnicott está referido ao que ele denomina de desenvolvimento emocional. Assim, ainda que Freud não utilize o termo Self em sua teoria pensamos que sua introdução no diálogo dessas teorias é fundamental.

Entretanto, antes de discutir os limites do diálogo entre Freud e Winnicott, consideramos importante apresentar algumas ideias de Green que partem da proposição de que a pulsão e o objeto formam um par inseparável.

 

As 'soluções' de André Green

Para Green (1995), a afirmação de que Freud negava o papel do objeto contém certo tom de exagero, tendo em vista que ele dava importância às vivências da infância e ancorava o psiquismo no corpo, que biologicamente prematuro depende dos pais, objetos primários. Por outro lado, Green reconhece que a fidelidade de Freud ao conceito de pulsão, observada através do enraizamento corporal, é o responsável pelas críticas que recebe por seu solipsismo e por certa negligência ao papel do objeto na constituição do psiquismo. De acordo com Green (1990, 1999), Freud teria negligenciado o papel do objeto em função de seu desejo de ser científico, do mesmo modo como tentou negligenciar a transferência; ele queria garantir uma teoria geral que fosse independente das circunstâncias e de objetos específicos. Green acredita que o objeto adquiriu importância na busca por soluções terapêuticas iniciadas por Ferenczi e Abraham. Porém, somente depois da morte de Freud é que o lugar do objeto realmente cresceu na teoria, sempre muito estreitamente ligado à análise das estruturas não-neuróticas que obrigaram os analistas a elaborar o papel do objeto na etiologia dos quadros psicopatológicos, tornando-o o conceito mais múltiplo da psicanálise (GREEN, 1995).

Incomodado com a falta de uma fonte motivadora das ações e dos processos psíquicos nas teorias de relações de objeto, Green (2002) também afirma que 'a causalidade psíquica' nasce da articulação entre o intrapsíquico e o intersubjetivo, não podendo ser explicada apenas por um ou por outro. De acordo com Green (1995), a pulsão não é psíquica em sua fonte, ela se torna psíquica no encontro com o objeto. Isso lhe permite afirmar que o objeto é revelador da pulsão e que pulsão e objeto formam um par inseparável.

Desse modo, para Green (2003), a pulsão e objeto guardam uma relação de co-determinação. Segundo Green (1995), na esteira de Freud, os objetos serão os meios de lidar com a pulsão que resultaram na organização do psiquismo. Portanto, também não se trata de minimizar o papel do objeto, e sim de determinar o fundamento e o motor das ações humanas. Nisso, temos que a resposta por meio da satisfação pulsional implica o objeto. Figueiredo & Cintra (2004) advertem que Green não chega a transformar o objeto em fonte da pulsão, como faz Laplanche, mas enfatiza a capacidade do objeto de despertar e de conter a pulsão.

Retomando essa temática mais recentemente, Green (2008) afirma que a polêmica entre os partidários das relações de objeto e os partidários da teoria pulsional não tem fundamento e que sua articulação nos dias de hoje é incontornável. A ênfase na pulsão ou no objeto seria um falso problema, pois eles são indissociáveis: o objeto é revelador da pulsão (GREEN, 1990, 1995, 2002, entre outros).

Green propõe, assim, o que parece ser sua primeira 'solução' para os limites do diálogo entre a teoria pulsional e a teoria das relações de objeto. Aceitando pulsão e objeto como par inseparável, baseado em análise do texto de freudiano, Green procura reler e articular ambas as teorias desse ponto de vista, desconstruindo com essa afirmação os limites entre esse diálogo. Essa posição resultou também na construção de outro par inseparável que será sustentado por Green (1995), a saber, o intrapsíquico e o intersubjetivo.

Entretanto, depois de sustentar, por mais de uma década, a inseparabilidade do par pulsão-objeto como argumento para a unificação das teorias de Freud e Winnicott, mais recentemente, Green apresenta uma segunda solução, para a oposição entre a teoria pulsional e as teorias das relações de objeto que ele denomina 'teoria dos gradientes'. Em 2008, Green retoma parte de suas ideias afirmando que o fato de reconhecermos em Freud uma carência teórica acerca das relações de objeto não justifica abandonarmos sua teoria pulsional, reafirmando que a célula fundamental da teoria deve ser constituída pelo par pulsão-objeto. Por outro lado, não se trata simplesmente unificar as teorias pulsionais e de relações de objeto; Green (2008, p. 147) afirma:

Trata-se de duas correntes, ao mesmo tempo independentes uma da outra e interconectadas em alto grau, onde se articulam formações subjetivas e formações objetais. Cada corrente possui uma unidade, mas se decompõe em diversas entidades. Diante de cada problema é preciso buscar a entidade que tenha mais relação com ele... (p. 143). Sou levado a crer que é de interesse da psicanálise adotar uma teoria de gradientes que, em cada linhagem, se veja obrigada a decidir qual aspecto está mais envolvido no problema considerado (grifos do autor).

Na passagem citada, é, primeiramente, importante observar que Green desliza da pulsão para o sujeito; mais adiante justifica esse ajuste afirmando que a linhagem subjetal, que será oposta à linhagem objetal, tem como matriz a pulsão. Em seguida, é importante observar que sem abandonar a pulsão e o objeto como par inseparável, Green passa a enxergar um limite na aproximação entre as teorias que se apresentam com mais frutíferas para explorar o polo subjetal e as mais frutíferas na exploração do polo objetal, considerando a utilização dessas teorias de modo alternado sem sua necessária articulação. O que até então parecia ser um de seus focos de trabalho, a propósito da metapsicologia dos limites.

 

Níveis de apreensão do Self

Acerca dessa discussão, nos parece bastante importante considerar que, enquanto Freud fala em aparelho psíquico, Winnicott está o tempo todo preocupado com o desenvolvimento emocional. É importante notar também que essa fase anterior, para a qual Winnicott chama a atenção, é uma fase que não se conclui, embora uma segunda fase – onde há a integração do Ego e onde os instintos começam a fazer sentido – já se tenha iniciado. Essas proposições parecem indicar que Freud e Winnicott estão falando de dois níveis diferentes de apreensão do Self que se desenvolvem em paralelo: o primeiro tem relação com o desenvolvimento emocional, tal como descreve Winnicott: percurso da indiferenciação para a diferenciação, do objeto subjetivo ao objeto objetivamente percebido como forma de contato com a realidade, etc. O outro tem relação com a constituição do aparelho psíquico, mais próximo das ideias freudianas: diferenciação tópica, trânsito da pulsão mediada pelos mecanismos de defesa, etc.

Essa ideia da existência de dois níveis é muito relevante porque indica, a nosso ver, um limite nas aproximações que podemos fazer entre Winnicott e Freud, pois esses autores teorizaram sobre fases que em algum momento ocorrem simultaneamente, mas, são, sobretudo, diferentes níveis de apreensão. Esses níveis se relacionam, mas não se sobrepõem perfeitamente nem se igualam, por outro lado. Também não podemos afirmar que são opostos e, sobretudo, não parece ser possível articular as ideias de Freud e de Winnicott sem levar essa diferença em conta. Desse modo, as relações entre os diferentes processos que cada um desses autores tentou descrever é algo a ser construído. Como descrever o que ocorre com a libido quando o desenvolvimento emocional é interrompido pela ausência de um objeto primário confiável, danificando a construção do espaço potencial? Ou, o que ocorre no desenvolvimento do Self quando a perda de um objeto produz uma forte regressão narcísica da libido, resultando num quadro melancólico? Como o que se apresenta num nível de apreensão do Self se apresenta no outro nivel?

Uma análise do conceito de regressão pode ilustrar a existência desses dois níveis. Enquanto Freud fala da regressão da libido e das influências que essa regressão pode gerar na dinâmica do aparelho psíquico, Winnicott usa o termo regressão para descrever o retorno do indivíduo à fase de dependência, onde se baseia a possibilidade de cura. Para Winnicott, se o ambiente for favorável, há a possibilidade de restauração de falhas do passado, que implicam na restauração da ilusão e das experiências de onipotência e que, por sua vez, resultam numa possibilidade de desenvolvimento do espaço potencial e do verdadeiro Self. Resta-nos saber, por exemplo, o que ocorre com a libido na regressão à dependência, será que regride também? Necessariamente? Respostas mais acuradas para este diálogo precisam ainda ser construídas caso se considere interessante levar as duas teorias em considerações para compreensão de um mesmo fenômeno clínico, assim como procuramos apontar noutro trabalho como necessário para compreensão dos pacientes-limite (JUNQUEIRA, 2010).

 

Considerações finais

Como vimos, ao refletir sobre a oposição entre a teoria pulsional e a teoria das relações de objeto, Green compreende essa oposição como um falso problema, uma vez que considera pulsão e objeto como par inseparável. Desse modo, para ele seria inaceitável uma teoria que privilegiasse um em detrimento do outro para descrever o que se passa no psiquismo, no sujeito ou nas relações intersubjetivas. A partir dessa perspectiva, Green produz avanços importantes para a compreensão de uma metapsicologia dos limites.

Contudo, mais recentemente, sem desejar abandonar a perspectiva da pulsão e objeto como par inseparável, Green propõe sua 'teoria dos gradientes', como que afirmando que a inseparabilidade do par não garante uma unificação e quiçá nem mesmo uma articulação entre teorias que privilegiam a pulsão e as que privilegiam o objeto. Ao que parece, Green poderia então rever a dramaticidade de sua afirmação de 2004 (citada no início do texto) de que 'a fragmentação é um passo para a morte' e talvez imaginando o movimento pendular entre os polos: pulsão-objeto, subjetal-objetal, intrapsíquico-intersubjetivo, sem o privilégio de um ou outro, como o que dá vivacidade à teoria psicanalítica. Talvez tenha ficado mais claro para Green que a unificação da pulsão e do objeto num par inseparável não garante a unificação das teorias pré-existentes e que talvez a articulação dessas teorias venha a produzir uma nova teoria, outra variação entre as diferentes teorias existentes em psicanálise.

De certo modo, a teoria dos gradientes parece bastante mais próxima da ideia que apresentamos sobre a existência de dois diferentes níveis de apreensão do Self em Freud e Winnicott, que não podem ser superpostos, mas que são passíveis de alguma aproximação. Ainda que pulsão e objeto formem um par inseparável, no que estamos de acordo com Green, parece que os movimentos de encontro e desencontros entre esses dois podem ser apreciados por, pelo menos, dois ângulos diferentes: do aparelho psíquico e do desenvolvimento emocional.

 

 

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Endereço para correspondência:

Camila Junqueira
e-mail: camilajunqueira@gmail.com

Nelson Ernesto Coelho Junior
e-mail: ncoelho@usp.br

Tramitação: Recebido em 21/05/2013
Aprovado em 18/07/2013

 

 

* Psicanalista, mestre, doutora e pós-doutoranda/Instituto de Psicologia-Universidade de São Paulo, com apoio da FAPESP
** Psicanalista, professor doutor/Instituto de Psicologia-USP
1 Embora prefiramos a tradução de pulsão para Trieb pela perda da acepção naturalista que o termo 'instinto' conserva, não a utilizaremos aqui, respeitando a tradução dos textos de referência e a própria concepção biológica que Winnicott atribui ao termo quando escreve: "o instinto é o termo pelo qual se denominam poderosas forças biológicas que vêm e voltam na vida do bebê ou da criança, e que exigem ação" (1971a, p. 57). Isso, sem perder de vista que talvez essa diferença entre pulsão em Freud e instinto em Winnicott já aponte para limites na articulação da teoria desses autores
2 Para um exame mais detalhado desses aspectos remetemos o leitor ao trabalho de (JUNQUEIRA, 2010).