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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
versão On-line ISSN 1413-6295
Cad. psicanal. vol.41 no.41 Rio de Jeneiro jul./dez. 2019
ARTIGOS
Tensões desde uma escuta: reflexões em atlas para uma transmissão entre
Tension and listening: atlas reflections for a condition between
Léo Karam Tietboehl*
Associação Psicanalítica de Porto Alegre - APPOA - Brasil
Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS - Brasil
RESUMO
Trazendo diferentes autoras e autores para interlocução em um mesmo plano, este trabalho procura estabelecer algumas conexões e outras divergências contextualizadas no que se refere principalmente a uma escuta. Para tanto, pensa formas narrativas pelas vias de um viés psicanalítico, de um método em atlas oferecido pelo historiador da arte Aby Warburg e de uma transmissão da história analisada pelo pensador Walter Benjamin. Enquanto coloco desvios a estas linhas, faço alguns apontamentos a respeito da temporalidade, de uma espera e de uma condição aporética dos conceitos, associando-os a certa indecidibilidade fundamental relacionada a um encontro e ao acontecimento.
Palavras-chave: Atlas, Atenção, Entre.
ABSTRACT
Bringing different authors to a dialogue at the same scene, this writing aims at establishing some connections and divergences in a context referred to listening. That is to be made by the narrative forms of psychoanalysis, the atlas method proposed by the art historian Aby Warburg and Walter Benjamin's standings on the transmissions of history. While putting some veerings to these lines, I make notes regarding to temporality, waiting and the aporethic condition of a concept - associating such to a fundamental incompleteness, due to its connections with an encounter and an event.
Keywords: Atlas, Listening, Between.
Warning: perception requires involvement.
Antoni Muntadas
I'm the silence that's suddenly heard after the passing of a car
Caetano Veloso
No ano de 1924, o pesquisador Aby Warburg inicia um trabalho com a proposta de mapear as produções de uma história da arte. Atlas Mnemosyne1, projeto que se estende até 1929, restando incompleto em função da morte de seu autor, é um conjunto de painéis que intentam, pela organização esquemática e não linear de suas imagens, contar uma história desde uma perspectiva que resiste a significações terminantes e estáveis. Em um mesmo painel, veem-se imagens de diversos referenciais históricos, sociais e geográficos que guardam, entre si, um interesse singular em comum. Esta reunião mesma exige que quem experiencia tais painéis o faça a partir de certo deslocamento; de um abandono fundamental de quaisquer parâmetros definitivos estabelecidos a partir de campos discursivos que possam, a priori, ordenar ou coordenar esse encontro.
Há algo, no funcionamento deste e de qualquer atlas, que escapa às possibilidades de um procedimento prescritivo que antecipe a experiência de quem adentra seu universo. O trabalho que segue a partir das próximas páginas pretende trazer para a sua forma algo deste método de transmissão proposto por Warburg. Construído com o intuito de não se restringir, especificamente, a uma lógica serial, este escrito faz parte de uma produção maior que toma como princípios norteadores, para além da noção de atlas, os conceitos de uma mnemosyne, associado às intermitências de uma memória (e à sua relação com a história, bem como com as decorrências dessa tentativa de registro). Os caminhos que se apresentam aqui procuram deixar ver as exigências, à percepção, da ressonância de um corpo que habita certo espaço, por determinado tempo, antes que se situe a partir das conexões que daí depreende.
No intuito de oferecer um recorte do que se discutirá, direi que o Atlas Mnemosyne de Warburg é uma ocupação espaço-temporal que encontra sua potência pela provisoriedade que implica, através da condição de certa impermanência que se nos coloca a partir das exigências de seu mecanismo. Não à toa, Aby Warburg idealiza uma obra conferindo-lhe o nome de Atlas - referindo-se ao titã condenado por Zeus, na mitologia grega, a sustentar o espaço entre a terra e o céu. Em vários momentos deste escrito, se sustenta o interesse em uma análise a partir de um espaço entre conceitos, perspectivas ou planos de uma percepção. Isso porque a maneira como consideramos o discurso, aqui, é pelas vias de uma concomitância muito particular que, pelos paralelos que tenta estabelecer, tenta também dar a ver as diferenças que se colocam a partir dos encontros entre dessemelhantes posições ou momentos de enunciação e de leitura. Tais não operam desde uma noção de tempo capturada pela sucessão linear de acontecimentos ou desde uma noção de espaço cuja percepção se possa fazer alheada a certa posição. Deslindaremos mais detidamente tais aspectos ao longo desta elaboração; neste momento, limito-me a dizer que espero ser perceptível, para uma leitura, a legitimidade de uma forma de transmissão simultânea, pelo fazer dos argumentos e proposições das linhas que seguem.
Para corroborar o que pretendo afirmar aqui, parto de diálogos entre as perspectivas já apresentadas, os enunciados de autores e autoras da psicanálise e o que nos apresenta Walter Benjamin, quando discute acerca de uma tradução e de uma transmissão ao longo de uma história. Tentei, neste escrito, operar certa harmonia entre autorias - ainda que preservando, em suspenso, algumas dissonâncias que se apresentam desde essa coexistência. Supondo um valor mais fundamental à problemática do que à resolução, alguns dos tensionamentos que são aqui apresentados restam inconclusos - talvez de maneira inspirada pelas vias de um poético, que tenta não se deixar iludir pela ideia de uma conclusão definitiva.
Especialmente sobre a verdade, trabalho-a aqui sustentado pelos dizeres de um viés psicanalítico, pela posição de que não se trata, nestes registros, de supor uma profundeza ou um ponto de partida fundamental desde onde esta emerge ou aparece. Tomamos a verdade em estrutura de ficção, como a dirá o psicanalista Jacques Lacan (1956-57/1995), para salientar sua dimensão compartilhada - - pelos diferentes pontos desde onde emerge e pelas diferentes formas como se atravessa. Dir-se-á então que no campo da verdade o que há é, pelo contrário, um conjunto complexo de atravessamentos que nos vêm de todos os lados; vozes, ainda e sempre desconhecidas, cujo sussurro só se faz perceptível a partir de uma sensibilidade ao seu acontecimento.
No entorno destes eixos, e procurando as linhas de conexões entre os mesmos, chamo para interlocução produções de referenciais cuja relação nem sempre é óbvia, por uma reunião a qual, como num método de deriva, espero que mostre seu sentido só depois2 da duração de um encontro. Entre o só-depois de uma psicanálise e um agora filosófico, este trabalho se encontra nas passagens, como as que Benjamin (1927-40/2018) nos coloca - que buscam, mais do que respostas, as conexões que se fazem sub-repticiamente entre os campos de um pensamento e um ato.
Iniciemos, portanto, nossa história. Durante a tarde do dia 28 de maio de 2014, na cidade de Porto Alegre, a professora Jeanne Marie Gagnebin oferece um tópico especial no Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. A proposta deste curso, intitulado Memória, esquecimento, transmissão: necessidade e dificuldades das narrativas ligadas à atividade do lembrar era a de proporcionar uma reflexão acerca dos paradoxos da memória através da análise de métodos narrativos contemporâneos. De maneira breve, neste contexto Gagnebin comenta a respeito de um caminhar do pensamento ao longo do século XX, colocando como elemento-chave deste processo uma nova posição frente às dicotomias; para ela, ao invés da busca por sínteses, o que desponta a partir do início deste período é a suspensão em tensão de conceitos aparentemente antitéticos.
Gagnebin parte do conceito de imagem dialética, de Walter Benjamin3, para colocar esta proposição, que complementa ao citar a associação-livre e a atenção flutuante, preceitos enunciados por Sigmund Freud no decurso da criação de uma teoria e prática psicanalíticas.
Freud nos introduz a ideia de atenção flutuante em Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (1912/2015b), colocando esta de forma conjugada à associação-livre4. Estas são, para o autor, exigências ao intuito de se produzirem ressonâncias em um discurso que se elabora em uma sessão de análise. Freud sinaliza que concentrar-se apenas em uma declaração, nestes momentos, seria minimizar os efeitos da última, já que em uma abordagem terapêutica de perspectiva psicanalítica "o que se escuta, na maioria [das vezes], são coisas cujo significado só é identificado posteriormente" (FREUD, 1912/2015b, p. 68). Nesse sentido, o que Freud propõe é que o analista se preocupe apenas em "não dirigir o reparo para algo específico e em manter a mesma 'atenção uniformemente suspensa' [...] em face de tudo o que se escuta" (FREUD, 1912/2015b, p. 67).
A atenção flutuante é um conceito que carrega, já na sua composição, um paradoxo e certa impermanência no que se refere a uma posição. Como podemos flutuar de maneira atenta ; ou, melhor, estar atentos enquanto flutuantes ? Quando propõe um método que trabalha a partir de uma expressão aporética por excelência, Freud parece saber da indecidibilidade que se coloca a cada encontro - antecipando talvez o que uma psicanálise dirá mais aprofundadamente, em outro momento, sobre uma singularidade da transferência5.
É pela via de uma atenção flutuante que se pode afirmar, como condição de uma escuta psicanalítica, a proposição de permitir-se tentar entender, para além do que se faz consciente, o que subjaz: os dizeres cuja imediatez foge à percepção6.
A atenção que Freud propõe não subsiste, desta forma, caso se coloque à espera de um estímulo predefinido. Talvez na mesma direção, Ernst Bloch (1959/2005), quando faz colocações acerca de um pensamento utópico iconoclasta7, nos apresenta a espera como elemento central de suas elaborações, falando da condição de ainda não saber como potência de uma prática - a qual, exatamente por esta incerteza, permite movimentações. Quando Bloch nos coloca reflexões sobre esta proposição, de uma espera, está implícito em seu argumento que a mesma não se dá de maneira passiva ou resignada aos acontecimentos que a circundam, mas atenta a estes eventos, disposta a operar apenas no momento propício - o qual, na leitura que se pode fazer deste autor, torna-se mais determinável a partir desta espera mesma.
Tanto nas produções de Freud a respeito de uma atenção flutuante quanto nas de Bloch a partir de uma espera atenta, parece haver algo que se compõe entre a espera e a escuta. As proposições práticas destes autores parecem operar de maneira concomitante pela problemática que incitam: como pensar conceitualmente um encontro que considere as atualizações de algo ainda não sabido - e que exige, portanto, uma leitura que seja ciente, desde o início, de que não dispõe de condições de dar conta a priori, inteiramente, dos fluxos de uma singularidade que ali se produzem?
Daí a importância de que se afirme em qualquer processo, pela via de uma atenção que sabe estar lidando com instâncias da ordem de um não-sabido, um espaço entre, que não pretenda permanentes os elementos entre os quais se coloca. Da mesma maneira que Freud, também Ernst Bloch nos apresenta um conceito antitético quando, ao falar sobre sonhos diurnos, associa uma espera a um agir: "na medida em que contêm um futuro autêntico, [estes] rumam para esse ainda-não-consciente, para o campo utópico ou daquilo que não veio a ser, que ainda não foi plenificado" (1959/2005, p. 114, grifo nosso). Por uma via da utopia, mas ainda tomando o presente como espaço temporal de uma ação, o autor coloca a esperança como a capacidade de sonhar para a frente, trazendo o futuro como elemento fundamental das ações que se operam em um agora.
Indo por partes, retomemos este ainda-não utópico, pensando-o aqui como um avesso do só-depois psicanalítico, ao elucubrar a respeito de como tais perspectivas trabalham com a verdade.
As resistências desta forma de leitura utópica a um prospecto definitivo sugerem que, mesmo diante de um enunciado que tome a aparência de uma certeza, ainda não chegamos a um consenso quanto à sua significação, ou a um lugar definitivo para a sua categorização8. Além das formalizações que Lacan (1953/1998) faz a partir dos registros de Freud, Jean Laplanche também trabalha o conceito de après-coup, em Problematiques VI (1990-91), para apontar que este é, em si mesmo, um conceito forjado só-depois do Nachträglichkeit freudiano. O autor nos oferece um paralelo entre uma volta sobre si mesmo do conceito e a maneira como, a partir do funcionamento que ele mesmo propicia, podemos pensar - ou melhor, repensar - o encadeamento temporal de uma elaboração. Ao apontar para essa dimensão de tradução inerente a qualquer processo narrativo, Laplanche faz ver o só-depois como instância que sinaliza o fracasso da postura de, diante de um signo, tomá-lo com o intuito de iluminar todas as suas possíveis significações.
Estes dois conceitos, na leitura que aqui se oferece, parecem se encontrar de alguma maneira nos desvios daquilo que, antes de um acontecimento, era o esperado9: há algo que, ao escapar de qualquer significação, sobrevive10.
Aby Warburg, quando constrói seus painéis esquemáticos, o faz sustentado pela lógica de uma sobrevivência, conforme Georges Didi-Huberman (2002) nos aponta em sua leitura de Atlas Mnemosyne. O último coloca que o termo nachleben, usado pelo primeiro para falar em sobrevivência, nada tem a ver com a ideia de "sobrevivência do mais forte", expressão inventada por Herbert Spencer e de que Charles Darwin se utiliza para falar da evolução das espécies. Para Didi-Huberman, aquilo que sobrevive não é necessariamente o que se sobrepõe ao que perde uma luta (como um enunciado "mais forte", que por isso saltaria aos olhos), mas também aquilo que escapa a uma significação (como um enunciado que não se fez perceber).
Estes escombros que sobrevivem da história, um historiador - desde que disposto a, como coloca Benjamin, propor desvios à sua transmissão, como que escovando a história a contrapelo (BENJAMIN, 1940/1987, p. 225) - os atualiza ao construir uma narrativa singular, que reaja a um padrão de verdade hegemônico - trabalhando a partir da premissa de uma experiência. A cada escrita da história, há uma memória - um resto, como um gesto em suspenso - que espera o momento de sua atualização. Os meios desta aparição se tornam perceptíveis só depois de seu acontecimento11.
É nesse sentido que, aqui, associamos a tarefa do historiador à do tradutor, lembrando as reflexões de Walter Benjamin (1923/2008) acerca da intrinsecabilidade dos processos de sobrevivência e pervivência. Por esta relação, o autor vai além das afirmações sobre a impossibilidade de traduzir pela simples via de uma semelhança entre palavras. Como uma contrapartida, coloca-nos como elemento-chave deste processo uma afinidade, dizendo que não se trata, nesta operação, de fazer um texto viver, mas sobreviver a partir de uma mutabilidade do que seria, supostamente, um texto original. Mesmo que não utilizando este termo, Benjamin aponta para um discurso que sobrevive por estas vias diversas de tradução - sugerindo estas, inclusive, como condições para sua sobrevivência. Esta condição se coloca como ponto central de sua reflexão pelo conceito de pervivência12.
Quando se detém mais especificamente na questão relacionada a uma afinidade, contraposta a uma semelhança, Benjamin afirma:
A afinidade das línguas anunciada na tradução nada tem a ver com a vaga semelhança entre imitação e original. Do mesmo modo, em geral está claro que semelhança não implica necessariamente afinidade. Além disso, neste contexto, sendo o conceito de afinidade tomado em seu uso mais rigoroso, não se pode defini-lo pela identidade de origem nos dois casos, mesmo que para a determinação deste uso mais rigoroso o conceito de origem seja certamente indispensável (BENJAMIN, 1923/2008, p. 56).
Ao longo do texto, Benjamin procura borrar os limites entre um registro original e sua tradução, colocando como ponto de amarre desta proposição as ressignificações que se fazem neste processo - algo que o autor também sinaliza um pouco depois, quando afirma que
com efeito, enquanto todos os elementos singulares, as palavras, as frases, as correlações de línguas estrangeiras se excluem, essas línguas se complementam em suas próprias intenções. Para apreender exatamente esta lei, uma das fundamentais da filosofia da linguagem, é necessário distinguir, na intenção, o-que-se-significa (das Gemeine) do modo de significá-lo (die Art des Meinens) (BENJAMIN, 1923/2008, p. 56).
Narrar uma história implica traduzir. Traduzir requer implicar-se. É o que Eduardo Viveiros de Castro retoma quando, em uma reflexão a partir do pensamento de Benjamin, associa a tradução a uma traição: "a boa tradução é aquela que consegue fazer com que os conceitos alheios deformem e subvertam o dispositivo conceitual do autor, para que a intentio do dispositivo original possa ali se exprimir, e assim transformar a língua de destino" (2009/2018, p. 87). Quando trabalhamos pelas associações entre história e memória, não se trata tanto de pensar o que se quis dizer, mas de como podemos ler - ou, se preferirmos, como podemos significar isso que é, já, escrito. Ou seja: perceber as mutações e os avessos entre percipiens e perceptum de uma mensagem que, no transmitir-se, já entra em profusão de novos sentidos possíveis.
Sinais desta problemática já se fazem presentes no pensamento de Benjamin, quando este se dedica a elaborar a respeito dos declínios da experiência e de uma figura do narrador13. Como pensar uma tradução que não esteja associada a certa implicação?
Talvez em uma direção afim: podemos pensar um tempo radicalmente outro, totalmente destituído deste tempo de agora? A partir destes apontamentos, quero salientar o conceito de atenção para que possamos pensar sobre a impossibilidade de se estabelecer um plano qualquer, no presente, que não esteja sujeito aos atravessamentos de um passado ou de um futuro. Da mesma maneira como construímos um tempo nesta dialética que, conforme ao conceito de imagem dialética de Benjamin, permanece neste espaço entre, podemos pensar um espaço de mediação entre as colocações de Bloch e as de uma psicanálise com o intuito de pensar, ambas, como maneiras de fazer operar narrativas que se relacionam, desde um presente, concomitantemente com um passado e com um futuro, tempos de fora cujas relações intrínsecas com um agora poderiam ser pensadas por uma lógica moebiana.
Nesse sentido, talvez seja pertinente lembrarmos algumas colocações do historiador Reinhardt Kosellek que, especificamente no capítulo The temporalization of utopia, de um livro chamado The practice of conceptual history (2002), traz a obra histórica escrita por Louis-Sébastien Mercier (1770/1802), na qual se apresenta um prospecto ficcional do ano de 2440. O livro L'an 2440 mostra uma perspectiva de futuro que se dá, para os efeitos do tempo presente em que vivemos, desde um passado. Koselleck faz mão deste e de outros exemplos para pensar um tempo que não se resume, apenas, às dimensões simples e não associadas de presente, passado e futuro. Com isso, faz-nos ver que uma história se constrói sempre capturada a um contexto - que por sua vez será diferente daquele em que a primeira será lida. Para além de suas conexões possíveis com as colocações de Benjamin sobre uma imagem dialética, estes apontamentos servem a que possamos tomar uma escrita não como material de projeção de uma realidade descolada desta em que vivemos; mas como narrativa que, porque produzida a partir de uma dimensão de desejo, pode produzir ato - isto é, movimentar algum desvio da ordem de um atual.
Tais menções aqui se colocam com o intuito de que possamos associar a ficção e a autoria em uma relação que remete à temporalidade. Este último conceito, Kosellek o toma associado ao de história, pensando a partir daí algumas formulações importantes à nossa maneira de considerar e transmitir, propriamente, o tempo. Fica mais explícita em Futuro passado (2002/2007) a posição do autor de que o estudo da história e da temporalidade não deve se reduzir, apenas, às dimensões lineares de um passado, presente e futuro. Ali, Koselleck dirá que se trata, pelo contrário, de pensar as múltiplas combinações entre estas três instâncias, cuja associação e entrecruzamento de suas dimensões é o que pode produzir uma narrativa histórica singular, propiciada a partir deste encontro. Diremos, analisando a obra de Mercier, que há ali um futuro passado ; qual seja, um futuro produzido a partir de um passado - e cujas localizações temporais se oferecem aqui desde um presente. Da mesma maneira poderíamos pensar, por exemplo, um presente futuro ou um presente passado - que, como instâncias cuja transmissão unívoca a um presente é impossível, produzam suas narrativas de futuros passados, futuros futuros, passados passados ou futuros passados.
Retomando portanto a lógica dos sonhos diurnos, a partir destas colocações de Koselleck, precisaremos dizer que importa não um sonho em si (até porque, conforme sabemos a partir das elaborações da psicanálise, este em essência é inatingível), mas as narrativas que se podem produzir a partir deste14. Podemos pensar, junto à noção de utopia de Bloch, a práxis psicanalítica que lida com as formas de uma ficção tomando esta, também, como algo cujo valor se produz a partir não daquilo que projeta, mas do contexto em que se produz - e aqui diremos ainda que é a partir do que se apresenta por esta produção discursiva, inclusive, que se pode pensar um trabalho15.
Suspendamos o sentido por um instante, sem tentar antever o depois, mas à escuta do que se revela das elucubrações sobre um depois (diremos, também, de um antes) que se coloca agora. É por esta via que proponho um diálogo entre os autores deste texto: pela tentativa de fazer explícita a dimensão do incapturável que constitui qualquer processo de formação discursiva - e, daí, a importância de que tomemos qualquer objeto não como coisa em si cujas potencialidades encontram-se reduzidas; mas instância cujas competências de leitura se encontram prejudicadas16.
Nestas condições, é necessário perceber a singularidade de cada conexão (sujeita às condições espaço-temporais em que ocorre) para pensar, implicadamente, uma forma como transmiti-la, sabendo que esta é uma tarefa sujeita, inevitavelmente, a um tipo de contaminação de um corpo, um si, que ressoa a partir deste atravessamento.
Por estes motivos, afirmo no argumento deste texto uma escuta que, na imprevisibilidade que exige, se difere das modalidades de uma visão. As formas desta escuta exigem, para que se possa propiciar uma percepção, a implicação de um corpo a uma dimensão de tempo e de espaço específicas - algo que a visão tenta suprimir ao procurar, em seu funcionamento, uma perspectiva que se faça de maneira estática, a partir de uma distância. Diferentemente dos modos de uma visão, que trabalha supondo certa linearidade e sucessividade, a escuta exige uma ressonância - conforme Jean-Luc Nancy (2002) a coloca: de si a si. Pois um corpo, ao escutar, percebe seu entorno de maneira difusa e complexa; e as condições de percepção a partir dessa vibração - mecânica - confundem, em algum momento, este corpo ao seu entorno.
Algo mais nos apresenta Jean-Luc Nancy (2002), quando nos diz que a escuta não tem pálpebras - pontuando assim a premissa de não antecipar e tampouco resistir ao que surge a esta percepção particular. O autor dirá que o que ocorre é de fato o contrário: a escuta flerta com o incerto e o insuportável - e, ao inevitavelmente implicar quem escuta a um contexto, deixa perceptíveis as reverberações de uma indecidibilidade que, por sua vez, reestruturam um corpo. Como um salto no vazio17, escutar sugere este processo de si a si que implica o risco de não saber de antemão18 e, intrínsecas a este, as condições de fazer-se disposto ao desvio e atento ao que há de vir. Mais do que isto, dizemos já que escutar exige que assumamos a nossa condição de corpo, que habita certo momento no tempo e no espaço - e que é sujeito às interferências imprevisíveis que nestas circunstâncias se podem colocar.
À serialidade ordinal de uma visão, contrapomos aqui a cardinalidade de uma escuta; porque aquilo que se produz a partir da última se atravessa desde todos os lados. É indo nesta direção (ainda que de maneira atenta aos desvios), que não construo neste texto um pensamento que se balize pressupondo haver uma profundeza a partir de onde emerge fundamentalmente a verdade, imune e unívoca. Procuro tomar aqui a verdade e a história pelos seus diversos atravessamentos, cujos ecos se escutam desde um passado, tanto quanto desde um futuro19.
Aby Warburg parece ciente destas premissas quando constrói os painéis de Atlas Mnemosyne (1924-29) por relações entre imagens que permanecem de alguma maneira em suspenso, à espera de uma instância outra que as escute e, por uma vibração a fim, as presentifique de maneira singular - propiciada a partir do momento específico de um encontro. Warburg, nesta maneira de transmissão, salienta a dimensão irredutível da imagem para dizer da impossibilidade de capturá-la, in essentia e a priori. A sustentação de um tensionamento - nunca resolvido - entre os elementos de seu trabalho deixa esta posição evidente. Experienciar o eterno enigma de Atlas Mnemosyne exige uma atenção constante, trazendo para o foco não apenas a imagem, mas seu lugar - e as interlocuções que desde aí se podem estabelecer com os outros pontos de uma referência.
Sustentado pelas linhas deste texto - e na esperança de ser perdoado pela obviedade do trocadilho -, direi, a fim de salientar a importância de uma atenção, que esta se produz a partir da tensão, em suspenso: do entrecruzamento destes atravessamentos em um recorte espaço-temporal específico - e sempre inédito - de um aqui-agora. Algo de que Walter Benjamin parece já saber, quando nos oferece suas passagens permeadas por esta dialética que se faz por lampejos, entre um acontecido e um agora. Algo, ainda, que a psicanálise procura operar, quando sustenta a legitimidade das construções narrativas que se fazem por intervalos; que se suspendem à espera de cada instante de uma escuta.
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Artigo recebido em: 03/05/2019
Aprovado para publicação em: 29/10/2019
Endereço para correspondência
Léo Karam Tietboehl
E-mail: leokt2@gmail.com
*Psicólogo e psicanalista em formação do Percurso em Psicanálise da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA). Mestre em Psicanálise: Clínica e Cultura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Participante do Laboratório de Pesquisa em Psicanálise, Arte e Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (LAPPAP/UFRGS). Porto Alegre, RS, Brasil.
1Alguns registros deste trabalho podem ser encontrados no site oficial de The Warburg Institute.
2Jacques Lacan formaliza o conceito de só-depois, ou après-coup, retomando algo que Sigmund Freud já propõe, ainda que de maneira não muito sistemática, sob o título de Nachträglichkeit. Em Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953/1998), Lacan faz várias elaborações que sinalizam que o discurso só se pode significar depois de seu acontecimento - e que esta significação é sempre sujeita a ser refeita, a partir dos novos encontros que se poderão dar entre palavra e receptor. Falaremos mais a respeito deste conceito em um momento além.
3Benjamin afirma, em alguns momentos de suas Passagens (1927-40/2018), que a imagem só existe como dialética entre o momento da sua concepção e o instante em que a observamos - recusando, desta forma, qualquer definição que pretenda estabelecê-la numa significação ou posição estanque.
4A regra fundamental da associação livre-é de suma importância para um método psicanalítico. Freud a estabelece pela primeira vez em A dinâmica da transferência (1912/2015a), mas esta se apresenta como uma prática desde o momento em que é afirmada a aposta em um método diferente do de hipnose. Em um texto chamado O método psicanalítico de Freud (1904/2015), escrito pelo mesmo na terceira pessoa, o autor relaciona a importância de uma técnica terapêutica que ofereça as possibilidades de encontro entre um material psíquico recalcado e uma consciência: tensionamento que não se propicia na proposta da hipnose, a qual dificulta que se visibilizem os momentos de resistência a um tratamento.
5O conceito psicanalítico de transferência toma importância aqui para este texto por supor um espaço entre(no caso de um método da psicanálise, entre terapeuta e paciente) cujas dimensões e os deslindes não se podem prever antes deste encontro. A partir dos escritos de Freud, Lacan trabalha este processo em um seminário chamado A transferência (1960/1995).
6Escolho falar de uma imediatez que escapa à percepção por considerar importante que não tomemos, aqui, aquilo que subjaz como uma essência ou natureza, veladas porque capturadas a certa internalidade de qualquer existência. Por uma articulação moebiana, e junto ao que Henri Bergson afirma em Ensaio sobre os dados imediatos da consciência (1899/2008) a respeito de um eu profundo e um eu de superfície, poderíamos tomar aqui a superfície e o imediato justamente como instâncias complexas e incapturáveis - que, de tão diretas à percepção, escapam dos limites de uma consciência, guardando relações com o que uma filosofia deleuziana dirá, em outro momento, sobre um virtual. Aqui divergimos de uma leitura freudiana que entende, por exemplo, a partir da interpretação de alguns fragmentos do texto intitulado O inconsciente (1915/2015), este como cerne de uma existência, ou origem localizável de uma produção discursiva.
7É Russel Jacoby (2001) quem vai oferecer esta leitura da utopia de Bloch, contrapondo-a a uma utopia projetiva. Segundo o autor, enquanto a última se propõe a definir um prospecto bem acabado dos deslindes de um futuro, a primeira sabe, desde o início, do fracasso desta tarefa, procurando compor com os desvios que se apresentam desde as recolocações de uma perspectiva, a partir de um percurso.
8Este ainda-não, o autor Louis Marin o retoma em Utopiques: Jeux d'Espaces(1973) a partir da leitura de Ernst Bloch (1959/2005), tomando a noção de jogo para salientar que uma utopia não pode dar-se senão como situada no acontecimento, pelo seu fazer-se, como produção coletiva.
9Talvez seja pertinente mencionar aqui as colocações que Lacan traz a respeito de um ato analítico (1967-68/2018). Em seminário sobre esta temática, o psicanalista o colocará como um desvio da cadeia de significantes - que, no entanto, mantém certa conexão com esta cadeia como um significante desviante. Nesse sentido, algumas associações se podem fazer entre as significações possíveis de um ato e aquilo que persiste nas leituras e transmissões que se fazem nos escombros de uma história.
10A junção das expressões nach(depois) e trag(surgir; trazer), em alemão, pode ser pensada como uma referência àquilo que só pode surgir depois. Algumas importantes associações se podem fazer entre o Nachträglichkeitfreudiano e o conceito de sobrevivência, ou nachleben(nach= depois;leben= vida), que Aby Warburg trabalha em sua tese de doutorado (1892/2015).
11O termo aparição neste ponto se coloca em relação a um só-depois psicanalítico a fim de remeter ao que Didi-Huberman trabalha em um momento específico de suas elaborações sobre uma imagem sobrevivente. Ali, o autor se detém sobre o conceito de imagem-fantasma (2002, p. 11-114). A aparente imaterialidade de um fantasma que aparece, apesar de sua presença se fazer, já, desde o início, faz refletir acerca das sobrevivências de um discurso. Marcel Proust (1913/2016) também nos introduz uma ideia que vai neste mesmo sentido em vários momentos de seu romance, quando apresenta e retoma elucubrações sobre uma memória involuntária.
12E aqui se coloca, nova e sempiternamente, uma questão de tradução. O termo que se nomeia sobrevivência, na tradução de Karlheinz Barck, originalmente foi escrito por Benjamin (1923/2008) como überleben, numa tradução mais literal do que a de nachleben, oferecida pelos autores que trabalham este conceito de Aby Warburg. O texto de Barck consta em um compilado de quatro traduções desta obra, que se seguem ao original. Nos quatro escritos, o termo foi traduzido da mesma maneira. A proposta desta reunião de traduções, bem como o encontro inesperado, em outra língua, de dois termos em uma mesma palavra, é o que gera esta elaboração - e o que, podemos aqui pensar que por este motivo mesmo, permite a pervivência do original de Benjamin, enquanto já outras coisas.
13Walter Benjamin elabora sobre a narrativa em boa parte de sua obra; poderemos citar aqui especialmente as associações que este coloca entre esta e uma experiência, em textos como Experiência e pobreza (1933/1987) e O narrador (1937/1987). Para o autor, o advento de uma modernidade permeada por saberes ancorados em uma verdade inequívoca e em valores já-dados exerce seus efeitos ao aniquilar as possibilidades do emergir de uma história subjetiva. Em Sobre alguns temas em Baudelaire (1940/1994), Benjamin contrapõe claramente a experiência (erfahrung) à vivência (erlebnis). A última seria a simples apreensão acrítica de um conteúdo como informacional; a primeira referir-se-ia a um acontecimento que, no reconhecer da complexidade de suas repercussões, recusa inscrever-se totalmente na enunciação de um discurso. Para saber mais a respeito da experiência para Benjamin, além dos textos supracitados, sugiro a leitura do texto de Lima e Baptista (2013).
14Fredric Jameson (1992) parece ir por uma via consoante a esta quando associa inconsciente e utopia ao teorizar a respeito de uma ficção científica.
15Aqui podemos retomar, como uma diferenciação fundamental entre a psicanálise e outros campos do saber, o que esta produz a partir do conceito de transferência a fim de afirmar a verdade que, como ficcional, se produz inevitavelmente entre.
16Colocações muito afins a este sentido nos fará Eduardo Viveiros de Castro (2009/2018) quando, a partir das noções de um perspectivismo ameríndio, situa as condições de percepção daquilo que, numa leitura ocidental e pretensamente hegemônica de ciência, se considera um objeto. O autor situa: "os animais veem da mesma forma que nós coisas diversas do que vemos porque seus corpos são diferentes dos nossos. Não estou me referindo a diferenças de fisiologias [...], mas aos afetos que atravessam cada espécie de corpo" (2009/2018, p. 66). É de maneira consoante a esta análise em uma linha tênue entre humano e não humano que Christian Dunker buscará as aproximações entre uma diagnóstica da psicanálise e um perspectivismo ameríndio, associando de forma talvez não explícita as noções de corte e de neutro ao dizer que "o corte é a figura conceitual que representa a não identidade entre um e outro" (DUNKER, 2011, p. 124).
17Procuro fazer referência ao texto O circuito dos afetos (2016), de Vladimir Safatle - que inicia a partir de uma leitura da obra de Yves Klein chamada Salto no vazio. Este momento do livro coloca a necessidade de certas rupturas de um já estabelecido para que algo do novo possa irromper: "há momentos em que os corpos precisam se quebrar, se decompor, ser despossuídos para que novos circuitos de afetos apareçam" (SAFATLE, 2006, p. 36).
18Aqui se propõe mais um desvio para que pensemos as escutas que se produzem especificamente nos consultórios psicanalíticos - e a indispensabilidade de que estas possam permitir-se não saber de antemão caso pretendam tornar-se atentas às normatividades implícitas que se colocam nesta atividade. Há no Brasil, na atualidade, uma série de produções inseridas no campo psicanalítico que, por uma interlocução com os estudos de gênero e queer, procuram apontar os momentos em que algumas psicanálises, ao defenderem certa essencialidade de um saber neste campo, de maneira incauta invisibilizam a insuficiência que se coloca, incontornavelmente, a qualquer escuta clínica. A quem interesse o assunto, sugiro a leitura das produções de Porchat (2014), de Ambra (2016) e do texto que escrevi junto aos colegas Cavalheiro e Kveller (2018).
19Indo além das menções já feitas ao trabalho de Bergson (1899/2008), talvez caiba mencionar as perspectivas sobre o conceito de discurso que nos apresentam Michel Foucault, assim como Deleuze e Guattari (1980/1995), quando afirmam um funcionamento rizomático. Segundo Foucault, o discurso seria como um emaranhado complexo e incapturável em sua totalidade, cuja natureza não esconde nada por trás: "atrás do sistema acabado, o que descobre a análise das formações não é, ardente, a própria vida, a vida ainda não capturada; é uma espessura imensa de sistematicidades, um conjunto cerrado de relações múltiplas" (1969/1972, p. 94).