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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
versão On-line ISSN 1413-6295
Cad. psicanal. vol.41 no.41 Rio de Jeneiro jul./dez. 2019
ARTIGOS
A psicanálise frente à superdotação: ensaios de uma clínica antissegregação
Psychoanalysis in front of giftedness: essays about a anti-segregation clinic
Cássio Eduardo Soares Miranda*
IUniversidade Federal do Piauí - UFPI - Brasil
RESUMO
Este ensaio tem como objetivo demonstrar como a psicanálise pode auxiliar jovens identificados como superdotados em situação de fracasso escolar. Apresenta o conceito de segregação como operador lógico na clínica psicanalítica contemporânea, sobretudo em jovens nomeados como superdotados com os respectivos efeitos de inserção promovidos pela retificação subjetiva.
Palavras-chave: Superdotação, Segregação, Retificação subjetiva.
ABSTRACT
Thais article aims at demonstrating how psychoanalysis can help gifted young people in situations of schoolfailure. It presents the concept of segregation as a logical operator in the contemporary psychoanalytic clinic, especially in young people appointed as gifted with their insertion effects promoted by subjective rectification.
Keywords: Giftedness, Segregation, Subjective rectification.
Introdução
A psicologia problematiza a superdotação pelo viés da cognição, no sentido de que o mais significativo no tema é o modo como a inteligência é empregada por esses sujeitos. Alguns estudos na psicologia tratam de sua dimensão subjetiva, tomando-a por um aspecto em que as feições emocionais ou do desenvolvimento moral são colocadas em evidência (CHAGAS, 2010). De modo geral, pode-se dizer que em todas as abordagens psicológicas o sujeito dito superdotado é colocado em uma posição idealizada, mesmo em certos estudos em que um aspecto "negativo" de sua emoção é destacado (METTREAU, 1995). Assim, de maneira geral, a superdotação é colocada como um "plus", um "a mais" na vida social. É este caráter de ideal no qual a criança é identificada que, a nosso ver, a silencia como sujeito desejante e a coloca como objeto da cultura e da ciência. A este "silenciar" podemos denominar de segregação.
De acordo com Guimarães (2010), o uso do termo segregação, em psicanálise lacaniana, é mais frequentemente empregado a partir do momento em que surge a inquietação de Lacan com os efeitos dos discursos no laço social, de modo mais preciso a partir de 1967. Nos anos ulteriores, o conceito surge com uma série de indagações às práticas sociais existentes, não se referindo, necessariamente, às concepções de discriminação e exclusão, conceitos caros ao campo das ciências sociais. Sobre esse tema, a leitura lacaniana tomará como referência a discussão linguística a respeito dos fundamentos da linguagem, a partir dos estudos de Ferdinand de Saussure (1905) e de Roman Jakobson (1965). Assim, nesse campo do saber, a significação não é uma condição nata da linguagem, mas nasce a partir de um sistema de oposições. Nesse sistema, um significante só existe como pura diferença, ou seja, por um sistema de exclusão. Por esse caminho, a segregação aparece como princípio, visto que o significante é o fundamento da linguagem e esta, por sua vez, é condição de existência da humanidade. Desta forma, o encontro do vivente com a linguagem o coloca em uma condição de segregação, tendo em vista a exclusão inerente à própria linguagem.
Em uma época em que os "Direitos do Homem" são tomados em seu extremo, o "tudo pelo social", as políticas públicas do "para todos" têm um ideal universalizante e isso inclui a superdotação. Os programas governamentais, tomando-a como uma política de educação especial, apostam no direito que o sujeito, nomeado como superdotado tem, de aceder ao universal da estrutura educacional. Isso quer dizer que as políticas públicas voltadas para a Educação Especial se preocupam em garantir um tratamento diferenciado aos superdotados ao mesmo tempo em que a eles é garantido o acesso à escola comum a todos. Desse modo, concordamos com Guimarães (2010) ao defender que o ideal universalizante tem, como efeito paradoxal, uma decorrência crescente de segregação.
Ora, a nosso ver, ser classificado como superdotado produz um caráter de esvaziamento da subjetividade, derivando-se em uma segregação, mesmo que, conforme fora dito, a superdotação seja colocada em uma posição idealizada em nossa cultura. Tal fato se deve, para nós, ao caráter de um a mais que dá a esses sujeitos uma promessa de terem um lugar de exceção, promessa de gozar de bens que para todos seria impossível, segundo aquilo que tradicionalmente se apresenta no campo da cultura, em relação aos classificados como inteligentes ou muito inteligentes. Paradoxalmente, busca-se incluí-los no universal das classes comuns. Diante da constatação de que a superdotação pode colocar o sujeito em uma condição de segregação operada pelo Outro da cultura, torna-se essencial a discussão em torno de como escutar tais sujeitos sem que se reforce sua condição de excluídos, e que se garanta a presença do sujeito do inconsciente. A psicanálise opera na direção oposta à da segregação tendo em vista que aposta na possibilidade subversiva do sujeito. Sobre esse fato, tomemos o fragmento de um caso clínico, uma vez que nossa prática é um referencial obrigatório para pensarmos nos efeitos que o significante "superdotação" pode ter sobre um sujeito.
1. Apontamentos de uma análise de um adolescente nomeado como superdotado
Recebemos a demanda de tratamento de um adolescente identificado desde a sua infância como superdotado. Esse diagnóstico foi realizado por uma equipe multiprofissional depois que Pedro1 ingressou na Educação Infantil e começou a apresentar desempenho verbal muito acima do das crianças de sua faixa etária, com excelente capacidade de fabulação, além de apresentar grande originalidade e flexibilidade verbais2. A mãe já percebia tal característica em seu filho, o que lhe chamava muita atenção. No entanto, quando Pedro foi para a escola isso ficou mais evidente, e a referida capacidade foi confirmada pelos professores e, logo em seguida, por uma equipe multiprofissional. De acordo com a mãe, ela começou a observar, desde muito cedo, que seu único filho era diferente das demais crianças de seu ambiente: possuía uma capacidade de percepção muito acurada, com desenvolvimento precoce da linguagem e excelente memória, o que a fez procurar atendimento especializado para saber do que se tratava, tão logo a escola confirmou sua impressão. Ao receber o diagnóstico de superdotação do filho, não comunicou nada à criança, por entender que isso poderia dificultar sua vida; também não disse nada à escola na qual iniciou a primeira série, temendo que isso pudesse acarretar uma cobrança excessiva. Esses cuidados maternos parecem confirmar que tais procedimentos podem trazer consequências àqueles que assim se veem identificados. Em muitos casos, podemos verificar que os sujeitos, à medida que buscam responder à demanda do Outro da educação, podem ser levados a inibir suas habilidades ou a exacerbá-las. Seja qual for a resposta que o sujeito tenta dar à demanda do Outro da cultura, será sempre fadada ao fracasso, já que alcançar o ideal de sucesso esperado pela família, escola ou Estado, será sempre impossível.
a) A nomeação para o sujeito na adolescência
A puberdade implica uma série de modificações na vida do sujeito, seja do ponto de vista físico, seja do ponto de vista psíquico. É nesse tempo que ocorre uma vacilação no Édipo, e os referenciais edificados no decorrer daquele drama são questionados. Para Freud (1905/1996), ocorre um questionamento da autoridade dos pais e um desenlace da rede de referenciais que até então sustentaram o sujeito como criança, o que ele indica como uma tentativa de desligamento da "autoridade paterna". A convocação feita por Freud (1905/1996) para pensar o que vem a ser a adolescência passa necessariamente pelo crivo da puberdade. Entretanto, os conceitos não se sobrepõem. A puberdade refere-se ao tempo do aparecimento da genitalidade, momento em que ocorre um escoamento da pulsão pelo real corporal-biológico; nas palavras de Freud, é a época em que prevalece o primado das zonas genitais.
Freud (1905/1996) não utiliza o termo adolescência, mas sim puberdade e descreve esse momento como um segundo tempo da sexualidade. O primeiro, em seu dizer, acontece na infância e se detém na latência. O segundo tempo incide com a puberdade, gerando uma forma definitiva da vida sexual, ou seja, a argumentação freudiana aponta para o fato de que a puberdade engendra alterações que levam a vida sexual infantil à sua configuração definitiva. Da mesma maneira, a puberdade traz à tona, novamente, o complexo de Édipo, em que há um redespertar desse tempo com a renovação dos conflitos edipianos e das fantasias incestuosas. Freud sustenta que "Contemporaneamente à subjugação e ao repúdio dessas fantasias claramente incestuosas, consuma-se uma das realizações psíquicas mais significativas, porém também mais dolorosas, do período da puberdade" e, para esse autor esse momento ao mesmo tempo significativo e doloroso refere-se ao "[...] desligamento da autoridade dos pais, unicamente através do qual se cria a oposição, tão importante para o progresso da cultura, entre a nova e a velha gerações (FREUD, 1905/1996, p. 213).
Diante dessa situação, o real da puberdade impõe escolhas ao sujeito na precariedade para lidar com o novo corpo que irrompe, à sua revelia. Frente às impossíveis respostas sobre o enigma do sexo, a adolescência pode ser entendida como uma tentativa de identificação e busca por uma nomeação. Por sua vez, Lacan (1974/2005) aponta que a puberdade traz um desenlace entre os registros do real, do simbólico e do imaginário provocado pelo real do corpo, com as consequentes modificações, por vezes bruscas, dos referenciais simbólicos que serviam de sustentação ao sujeito. Em O despertar da primavera (1974/2005), esse autor destaca que o real do pai será o elemento a partir do qual o púbere reescreverá o nome próprio, atribuindo um novo corpo à sua imagem despedaçada. A esse respeito, Lacan assevera que o pai se encontra em posição de semblante para esse sujeito que está às voltas com a irrupção de algo perturbador. Assim, o púbere é convocado a fazer certo uso do pai, mas como semblante: "o pai tem tantos e tantos [nomes] que não há um que lhe convenha, a não ser o Nome do Nome do Nome. Não há Nome que seja seu Nome-Próprio, a não ser o Nome como ex-sistência. Ou seja, o semblante por excelência" (LACAN, 1974/2005, p. 559).
Fica evidente que a irrupção da puberdade é, para Pedro, um tempo de desestabilização desses referenciais e a consequência mais imediata é o efeito que isso tem na vida escolar daquela criança que "não dava trabalho, era estudiosa, aplicada e respeitava os professores", conforme sustenta a mãe. Assim, nesse ponto, verifica-se o aparecimento de certo gozo3 no momento em que a pulsão se mostra mais forte que o ideal construído em torno da criança que Pedro não é mais.
b) O que confere o perfil do superdotado na escola
Conforme assevera Ajuriaguerra (1988, p. 833), o superdotado é aquele que possui atitudes superiores que ultrapassam a capacidade média das outras crianças e adolescentes de sua idade, não só do ponto de vista quantitativo da inteligência, mas também do ponto de vista qualitativo de características que esse autor julga como "excepcionais da personalidade". De fato, tratava-se de um sujeito muito talentoso, com habilidades lógicas e argumentativas muito acima da média, diferentes das dos outros adolescentes com quem tivemos contato no consultório ou fora dele. Além disso, os professores reconheciam em Pedro elevada capacidade de articulação e argumentação, o que lhe conferia um lugar de destaque frente aos colegas. Pedro também possuía acentuada capacidade de liderança, conforme relatam seus professores e demais profissionais da escola, o que, segundo Alencar (1986), é um dos traços da superdotação. Apesar desses elementos que, de certo modo, conferiam o nome superdotado a ele, esse sujeito fracassava na aprendizagem, sendo levado a procurar uma "escola mais fraca" para garantir sua aprovação no final do ano. A nosso ver, tratava-se de fato de um sujeito com amplos recursos cognitivos, que fracassava em sua aprendizagem desafiando assim o Outro da educação. Se tal fracasso não acontecia em função de uma dificuldade nesse campo, o que o promovia? Inferimos que o "falhar" era fruto de um conflito psíquico frente à demanda do Outro, tendo se manifestado através de um sintoma, já que o caráter repetitivo do ato falho, assim o indicava. Com Freud (1926), assinalamos que um sintoma é efeito de uma verdade particular e que se distingue de todas as outras formações do inconsciente por sua permanência.
Cabe ressaltar que até os anos finais da Educação Básica Pedro saiu-se bem, sem maiores dificuldades; no entanto, com o início do ensino médio estas apareceram, o que nos faz pensar que a perturbação na vida desse sujeito se deu com a chegada da puberdade, conforme fora dito anteriormente. Freud em Inibições, sintomas e ansiedade, caracterizava o sintoma como signo e substituto (Anzeichen und Ersatz ) de uma satisfação pulsional. "O sintoma é um sinal e um substituto de uma satisfação pulsional que permanece em estado jacente" (FREUD, 1926/1980, p. 112).
c) A queixa do Outro que justifica o tratamento
A tomada de iniciativa para esse adolescente ir ao analista é feita pela mãe, que identifica nele um caso de inadaptação e dificuldades escolares. O motivo deu-se em função de ele apresentar-se confuso e com muitos problemas escolares, tais como indisciplina, desinteresse, rebeldia em relação às autoridades escolares, e notas baixas. Por diversas vezes ele foi suspenso pela escola por não se calar diante das professoras e dos diretores; por contestar a autoridade dos mestres e demais funcionários; por falar muito na sala de aula e por ser um "mostrador de gracinhas", significante que agora o identificava. A mãe diz já se sentir cansada com as recorrentes chamadas para comparecer à escola para tratar das inadequações do filho. Ela afirma que a cada vez que é convocada já sabe, de antemão, que se trata de um problema referente ao Pedro. Exausta de tanto tentar ajudá-lo, resolveu recorrer a um tratamento psicanalítico para tentar entender o que se passava com seu filho.
2. A superdotação como degenerescência catastrófica
Único filho de um casamento inicialmente feliz, Pedro dizia-se chateado com a separação dos pais. No entanto, a situação tornara-se insuportável, uma vez que o estado de alcoolismo do pai havia chegado a um ponto insustentável. De acordo com a mãe, o pai de Pedro é alguém que não se importa com o futuro e em razão de seu quadro de alcoolismo não conseguia permanecer no trabalho. O cansaço diante de tal situação - alcoolismo e desemprego - faz com que ela se divorcie e passe a viver sozinha com o filho. Filho único de pais que tinham realidades sociais e culturais bem diferentes, Pedro ainda se deparava com uma falência paterna explicitada pelo alcoolismo e fracasso profissional. Tal cenário se desenlaça com o divórcio e o pai de Pedro apresenta-se como um fracasso como pai, trabalhador e homem.
a) O sintoma do sujeito
De fato, conforme sustentam Couto e Santiago (2007, p. 39), a questão familiar sempre se encontra presente nas queixas em torno do fracasso escolar e a maior parte dos encaminhamentos de escolares para tratamento psicanalítico pode ser dividida em duas categorias: a das questões cognitivas ou das questões comportamentais. Assim, trata-se de pensar em um grupo que incorpora os assim chamados "comportamentos desviantes ou perturbadores dos alunos em relação ao que se concebe como ambiente favorável ao processo de ensino-aprendizagem..." e, de outra maneira, um grupo "[...] que reúne dificuldades específicas de aprendizagem na leitura e na escrita".
Desse modo, nossa hipótese, nesse caso, é que a resposta sintomática que Pedro dá ao mal-estar presente no Outro encarnado na família, ao ser associado ao real do corpo pela irrupção da puberdade, explicita-se como fracasso escolar, como modo de gozo específico desse sujeito. Conforme apresenta Cohen, o fracasso é visto como um sintoma (COHEN, 2007, p. 58) "[...] quando o ineducável, o real próprio aos mecanismos inconscientes, faz com que algo não funcione, ou seja, quando esse algo que não funciona se repete e se mantém, impedindo a aprendizagem". Com a chegada da puberdade, ocorre uma vacilação imaginária em torno das construções que se fazia com base no significante da criança superdotada, e o fracasso escolar se instala, sobretudo na vertente de um "transtorno do comportamento". Ademais, as questões relativas ao pai, a nosso ver, também se apresentam como fator importante na formação do sintoma de Pedro.
b) O tratamento
Neste caso, a condução do caso passou pela possibilidade de Pedro dizer não apenas de seu fracasso, mas também pela possibilidade de ele falar do pai e construir uma versão particularizada4 deste, com suas devidas consequências. Logo no início do tratamento, o sintoma de Pedro se evidenciou. De acordo com ele, a escola não o compreendia, não conseguia entender o que sentia. Ao ser interrogado pelo analista sobre seus sentimentos, afirma que tem vontade de fazer algo grande para a humanidade, que dentro dele há uma enorme angústia. Ele também achava "uma grande besteira ficar estudando as bobagens ensinadas pelos professores em sala de aula". A situação de Pedro exemplifica como uma queixa de caráter pedagógico pode vir marcada por aspectos provenientes de sua subjetividade, pois verifica-se que, do ponto de vista conceitual, não existe qualquer situação que possa definir uma dificuldade de aprendizagem.
Nas primeiras sessões de análise Pedro dizia-se um adolescente tímido, de poucos amigos, que gostava muito de ler e participar de saraus com sua mãe. Afirmava que seu tipo de leitura preferida era o de obras filosóficas, principalmente Schopenhauer; histórias de cavalaria e maçonaria, ou seja, histórias em que um aspecto de grandeza se presentificava. Alguns elementos elencados no caso em questão foram relatados por Pedro e/ou pontuados pelo psicanalista, a saber:
Elementos cognitivos | Elementos subjetivos | Problemas escolares |
Capacidade verbal acentuada | Timidez | Indisciplina |
Alta capacidade de fabulação | Poucos amigos | Desinteresse |
Originalidade e flexibilidade verbais | Interesse por leituras filosóficas | Notas baixas |
Percepção acurada | Identificação ao pai | Suspensão das aulas |
Excelente capacidade de memorização | Posição frente ao desejo da mãe | Inquietude |
______ | Decisão: não querer fracassar | Mudança de escola |
______ | Decisão: não querer ser mostrador de gracinhas | Aprovação |
______ | Mutação subjetiva | Carreira universitária |
Quadro 1: elementos subjetivos, cognitivos e escolares destacados no "Caso Pedro"
À medida que Pedro começa a falar dessas questões, relata que tem tido sensações de estranheza e da presença do mal em seu quarto. O pôr-se a falar coloca para ele a possibilidade de encontrar um dizer acerca do que o perturbava e o adolescente, autonomeado de tímido, se põe a falar sobre suas perturbações. De acordo com ele, esses fenômenos apareciam somente à noite, quando se deitava para dormir. Em uma dessas sensações noturnas, afirma que viu o quarto se dissolvendo, com as paredes moles, "semelhantes às pinturas de Dali", relata, e que tais paredes iriam engoli-lo, o que lhe causava muito sofrimento. Durante um tempo, Pedro não disse isso a ninguém. Interrogado se isso não se tratava de um sonho ele diz que não e afirma que isso acontece exatamente nos momentos em que está acordado; destaca que esses fenômenos não o deixam dormir. No entanto, à medida que seu pavor aumenta, passa a relatar tal fato à avó paterna, por quem foi informado sobre a necessidade de se fazer um combate ao mal, colocando lá a Bíblia e dependurando na porta do quarto um "filtro de sonhos". Tal medida resolve parcialmente o fato, mas a presença do mal ainda continua em seu quarto, até que, após um tempo de análise, Pedro garante que suas noites de sono já haviam se normalizado. Seria um efeito da crença na palavra da avó, associada à possibilidade de se dizer isso em análise? Uma dúvida diagnóstica se impõe ao que parecia um fenômeno elementar, mas pontual, que desaparece com a interpretação da avó e com o fato de ser escutado em análise.
Um fato curioso na história desse adolescente era a constante ideia de que a mãe desejava que ele fosse um sujeito excepcional, genial em tudo o que fazia. Dizia querer ser alguém como Schopenhauer5. A mãe relatava que desejava apenas que ele conseguisse ser aprovado na escola, que obtivesse aprendizagem suficiente para passar e não fosse tão indisciplinado conforme diziam. De algum modo, a mensagem que ele recebia da mãe, nos moldes de uma enunciação, o colocava na posição de "super" e surgia como uma tentativa de reparar uma falha no simbólico, advinda de um pai alcoólatra fracassado em suas empreitadas escolares, profissionais e amorosas; significantes construídos pelo discurso da mãe em relação ao pai de Pedro. Aqui podemos isolar o primeiro elemento sintomático norteador do tratamento: ser um grande homem aponta para o desejo do Outro endereçado à mãe; ser um Schopenhauer é uma tentativa de encontrar um lugar no desejo do Outro, suturar a falta deixada pelo pai, no desejo da mãe.
Pedro relata amar o pai, mas sente que "ele é um fracassado" e que tem muito medo de ficar igual a ele. Nesse momento, o que cabe ao analista é realizar uma retificação subjetiva da condição de fracassado à qual Pedro começava a se identificar, esclarecendo-lhe que ele não necessitava ser como o pai, fracassando na vida. O objetivo dessa retificação foi abalar a certeza de Pedro a respeito de seu fracasso que já se esboçava. É aí que, de fato, a retificação relativiza o ponto maciço de identificação ao pai que, para ele, assumia um valor de verdade; é neste ponto que a verdade do sujeito pôde ser interrogada e algo de uma elaboração psíquica pôde ser realizada. Tem-se, desse modo, o segundo elemento destacado na construção do caso clínico: o grande homem imaginariamente construído por esse sujeito é o mesmo que fracassa.
No decorrer da análise, Pedro revela suas estratégias para conseguir notas melhores: passa a observar o modo como as provas escolares são guardadas e percebe que há falhas de segurança. Com isso, decide roubar provas, resolvê-las e decorar o gabarito; distribui entre alguns colegas o gabarito e combina com eles de errar uma ou duas questões para que os professores não desconfiassem. Procede assim após algum tempo, mas também mostra certa inquietação com isso, pois questiona-se sobre a causa de ter que roubar provas diante de sua elevada capacidade cognitiva. Neste momento, o analista intervém: "Você não precisa ser nenhum Schopenhauer, mas também não precisa ser nenhum ladrão de provas!". O impasse vivido por esse adolescente intensifica-se no momento da enunciação que a mãe faz acerca de sua superdotação cuja intencionalidade assentava-se na busca por uma melhoria da situação dele na escola. Todavia, tal nomeação precipita-o em uma condição de ser um "ladrão de provas" para tentar responder ao desejo da mãe; o roubar provas é um efeito da nomeação como superdotado, proveniente do campo do Outro. É aqui que se instala o terceiro elemento direcionador do tratamento: uma oscilação entre o homem que faz uma contribuição para a humanidade e o homem que rouba provas.
A partir da intervenção citada acima, há um questionamento acerca do desejo do próprio sujeito, um Che vuoi6 se instala e, algumas sessões depois, Pedro revela que se transferirá para uma "escola mais fraca", principalmente pelo fato de as pessoas de lá não o conhecerem e não saberem nada a seu respeito. Muda-se; é aprovado; resolve deixar a análise, pois pretende mudar de cidade para continuar seus estudos e seguir uma carreira universitária. No entanto, antes disso, relata que sua fama chegou de algum modo à escola, pois certos alunos tidos como "maus-elementos" começaram a se acercar dele na sala-de-aula. Da intervenção realizada, duas respostas são dadas pelo sujeito:
1) uma tomada de posição frente ao não fracasso ("Eu não quero fracassar"); 2) uma decisão em tornar-se diferente na nova escola ("Eu não quero ser um mostrador de gracinhas"), embora uma repetição surja como sintoma, como pode ser visto na sua fama que surge na escola e faz com que "os maus elementos" - os fracassados - comecem a se aproximar.
A partir do ensino de Lacan (1974), é possível localizar no caso acima os efeitos catastróficos de uma nomeação que traça o destino de um sujeito, não mais orientado pelo pai, mas pelo social. A degenerescência catastrófica alude à não articulação entre Lei e o desejo, tendo sido o Nome-do-Pai exilado para as múltiplas manifestações da norma social que, por ser desarticulada do desejo, tornou-se uma verdadeira ordem de ferro. Assim, substituindo a significação do falo como desejo, o falocentrismo aparece na vertente imaginária do significante e produz, como consequência, uma degenerescência catastrófica para o sujeito, no dizer de Lacan, causando impasses, estorvos e embaraços. Desse modo, a degenerescência catastrófica é a substituição do pai como mensageiro de uma interdição por outra função que incorpora o social com seus efeitos deletérios.
Considerações Finais
O recurso de se escutar o que esse adolescente tem a dizer a respeito de sua dificuldade encerra a finalidade de elucidar elementos de sua subjetividade sem, no entanto, desconsiderar aquilo que é significativo em sua cognição. No caso específico, trata-se de acompanhar o sujeito em suas elaborações e também de se verificar a função que o nome superdotado tem para ele, sem que se aprisione o sujeito no caráter segregativo que a nomeação lhe coloca, mas, também, sem retirá-lo por completo desse lugar por se entender que este nome serve como um norteador das escolhas desse adolescente: ele resolve seguir uma carreira universitária em áreas em que a linguagem se encontra em dominância, o que pode ser no curso de Letras ou de Relações Internacionais. Trata-se, então, de separar algo em que Pedro era reconhecidamente bom - a língua -, e então conduzir o tratamento pelo viés de o sujeito ser capaz de sustentar esse novo elemento que surge como marca de sua subjetividade.
O que nos chama atenção no breve relato acima é o fato de termos o significante superdotação como o precipitador de uma vacilação para o sujeito. Diante da enunciação proveniente do Outro materno, sustentado pelo discurso da ciência psicopedagógica, podemos pensar em um efeito de sentido que ser nomeado como superdotado causou sobre Pedro. Tais fatores inquietam-nos a ponto de levar-nos a pesquisar a superdotação a partir de uma lógica do "nomear para", com seu possível efeito de "degenerescência catastrófica" (LACAN, 1973-1974), neste caso específico. Ademais, o efeito segregador promovido pelo discurso da ciência surge como uma forma de tratar o impossível de suportar e que Jacques Lacan denuncia como efeito de um ideal uniformizante. É nesse sentido que a psicanálise pode ser vista como uma clínica antissegregação pois, ao interrogar os ideais da civilização, também pode pautar os "efeitos dessubjetivantes" promovidos pelo discurso da ciência que tende a segregar os sujeitos por ela nomeados.
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Artigo recebido em: 21/12/2018
Aprovado para publicação em: 30/09/2019
Endereço para correspondência
Cássio Eduardo Soares Miranda
E-mail: cassioedu@ufpi.edu.br
*Doutor em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor do Programa de Pós-Graduação em Saúde e Comunidade (Saúde Coletiva) do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Piauí. Teresina, PI, Brasil.
1O nome, como de praxe, é fictício.
2A originalidade verbal refere-se à capacidade criativa que o sujeito tem com as palavras, enquanto a flexibilidade é a habilidade de mudar a forma, mudar a informação, ou mudar a perspectiva do olhar para a realidade focalizada e comunicá-la (Cf. BRASIL, 2006).
3O conceito de gozo, em psicanálise, é amplo e sofre variações. De início, Lacan assume uma concepção jurídica do termo ao sustentar que o gozo é sempre gozar de alguma coisa, ou seja, o sujeito possui alguma coisa da qual possa se apossar. Assim, o gozo é a realização da demanda do Outro: o gozo é o gozo do Outro. Além disso, há a conceituação baseada na ideia de que o gozo é uma espécie de satisfação pulsional. Segundo Leite (2000), no seminário 17 Lacan tenta evidenciar o caráter primário do gozo, sendo que o próprio sujeito surgiria da relação do significante com o gozo. Para um estudo mais detalhado acerca do tema em Lacan, conferir: Miller (2012) e Machado (2005).
4A partir do ensino de Miller (1998) e daquilo que se retira da prática analítica, é possível sustentar que o pai não se refere apenas à concepção mais corrente do Nome-do-Pai como Outro da Lei, mas, sobretudo pela ressonância, em perversion, de uma "versão do pai", de uma "versão rumo ao pai", ou seja, de uma "paiversão" como enfoque do pai que designa um "modo de gozo", na medida em que "seu nome é o vetor de uma encarnação da Lei no desejo". Para tanto, conferir: MILLER, Jacques-Alain. A criança entre a mulher e a mãe. Opção Lacaniana, São Paulo, n. 21, p. 369, abr. 1998.
5Segundo Vergez e Huisman (1982), Arthur Schopenhauer foi um filósofo alemão do século XIX da corrente irracionalista. Considerado como um pessimista em sua visão do mundo, considerou ser a "Vontade a última e mais fundamental força da natureza, que se manifesta em cada ser no sentido da sua total realização e sobrevivência". Para Schopenhauer, a realidade é vontade irracional, onde o finito nada mais é que mera aparência da realidade. Além disso, Schopenhauer postula que o mundo nada mais é que uma representação, ou seja, o mundo é um fenômeno cuja essência não se centra nele, mas em seu aspecto exterior.
6Tal expressão italiana é utilizada por Lacan (1960) no processo de construção do grafo do desejo. Segundo esse autor, na operação de castração o sujeito se dirige ao Outro e coloca-lhe a seguinte questão: Che vuoi ? - Que queres? - para assim estabelecer seu desejo baseado naquilo que ele supõe que o Outro queira dele. A resposta a esse questionamento determinará a fantasia como uma forma que o sujeito encontra para lidar com a castração do Outro que se inscreve para o sujeito como sua própria fenda. Lacan (1960, p. 831) argumenta que "o desejo é regulado a partir da fantasia" e o Che vuoi ? instaura um mistério acerca do desejo do Outro.