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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
versão On-line ISSN 1413-6295
Cad. psicanal. vol.43 no.45 Rio de Jeneiro jul.dez. 2021
ARTIGOS
O Centenário da Psicologia das Massas Freudiana
The Centenary of Freudian Mass Psychology
El Centenario de la Psicología de Masas Freudiana
Carla Penna*
Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro - CPRJ - Brasil
Group Analytic Society London/International - Inglaterra
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio - Brasil
RESUMO
O artigo celebra o centenário do texto freudiano Psicologia de grupo e análise do ego (1921). Apresenta o surgimento na França, no final do século XIX, do interesse pelo estudo do comportamento das multidões e a visão transformadora e crítica que Freud conferiu ao tema ao valorizar a importância do inconsciente, dos laços libidinais, das instâncias ideais e da identificação que, a partir de então, marcaram as relações entre massa e líder. O artigo discute ainda o legado da psicologia das massas freudiana e sua importância para a psicanálise, para a pesquisa transdisciplinar sobre a psicologia das massas e estudos sobre grupos ao longo do século XX e início do século XXI.
Palavras-chave: Freud, Psicologia das multidões, Psicologia das massas, Grupo.
ABSTRACT
The article celebrates the centenary of Group psychology and the analysis of the ego (1921). It presents the emergence in France, of the study of crowd behaviour at the end of the nineteenth century, and the transformative and critical view that Freud conferred to the topic, by highlighting the importance of the unconscious, libidinal ties, ideal instances and the identification, that from then onwards shaped mass and leader relationships. The article also discusses the Freudian mass psychology legacy and its importance for psychoanalysis and for transdisciplinary research on mass psychology and group studies throughout the twentieth century and early twenty-first 21st century.
Keywords: Freud, Crowd psychology, Mass psychology, Group.
RESUMEN
El artículo celebra el centenario del texto freudiano Psicología Grupal y Análisis del Yo (1921). Presenta el surgimiento en Francia, a finales del siglo XIX, del interés por el estudio del comportamiento de las masas y la mirada transformadora y crítica que Freud dio al tema al valorar la importancia del inconsciente, los lazos libidinales, las instancias ideales y la identificación, que a partir de entonces marcaron la relación entre la masa y el líder. El artículo también analiza el legado de la psicología de masas freudiana y su importancia para el psicoanálisis, para la investigación transdisciplinaria sobre psicología de masas y estudios de grupo a lo largo del siglo XX y principios del siglo XXI.
Palabras clave: Freud, Psicología de multitud, Psicología de masas, Grupo.
A psicologia das multidões
Fenômenos envolvendo um grande número de pessoas permearam a história por séculos na forma de turbas, multidões, massas e outras experiências nas quais as pessoas compartilharam crenças coletivas. Desde os primeiros casos registrados como a praga da dança em Estrasburgo (1518), bem como, as turbas da Revolução Francesa ou as multidões no final do século XIX na França, diferentes hipóteses foram formuladas para explicar seu comportamento.
No século XIX, Hippolyte Taine foi o primeiro a chamar a atenção no mundo moderno para o fenômeno das multidões (VAN GINNEKEN, 1992). Na última década do século XIX, profundas transformações socioeconômicas e políticas estavam em curso na França. A Revolução Industrial, a ascensão do capitalismo e o crescimento das cidades provocaram o nascimento de uma classe operária dando espaço ao movimento socialista e ao anarquismo (PENNA, 2014). Neste contexto, manifestações coletivas e o medo da insurreição das multidões chamaram atenção de estudiosos que se interessaram em decifrar sua psicologia. Assim, através do embate entre forças liberais e conservadoras, novas disciplinas como a sociologia, a psicologia e a criminologia expandiram-se. A partir de então, estudos sobre o público e a multidão (TARDE, 1890/2005), ideias sobre a consciência coletiva (DURKHEIM, 1895/2014), e mente grupal (LE BON, 1895/2008) permitiram novas investigações sobre as formações sociais. Portanto, principalmente na França, com Henri Fournial (1866-1932), Gabriel Tarde (1843-1904) e Gustave Le Bon (1841-1931), e na Itália, com Cesare Lombroso (1835-1909) e Scipio Sighele (1868-1913), surgiu uma geração de intelectuais dedicada ao estudo das multidões.
A caracterização das multidões como irracionais, selvagens, insanas, dominou o pensamento dos estudiosos no século XIX, levando-os a criar uma ciência da multidão centrada na interpretação do comportamento coletivo como um fenômeno patológico (MOSCOVICI, 1981). Apesar de considerado por muitos como vulgarizador científico, Le Bon foi o mais importante desses pesquisadores. O talento de Le Bon parecia estar ligado à sua capacidade de captar e traduzir em palavras o espírito da época, ou seja, a conjuntura social, os temores e as aspirações características do final do século XIX. Seus trabalhos foram publicados em mais de 16 línguas, sendo lidos por Mussolini e Hitler, mas também por democratas como De Gaulle. Teses sobre as hierarquias sociais, a hereditariedade das raças e crenças coletivas moldaram suas ideias. O comportamento das multidões foi associado às "formas inferiores de evolução" (LE BON, 1895/2008, p. 39) como os selvagens, as crianças e as mulheres. Como autor, Le Bon encontrava-se sintonizado ao desenvolvimento científico da época. Importou da medicina de Salpêtrière e Nancy conceitos como imitação, sugestão, hipnose e contágio para discutir a psicologia da multidão (PENNA, 2014).
Moscovici (1981) afirma que a novidade apresentada por Le Bon não está simplesmente no fato de ele ter associado os meios da sugestão à política, mas, sobretudo, no de transpor uma perspectiva estritamente jurídica, que tratava o problema das multidões de um ponto de vista exclusivamente criminal, buscando na psicologia uma explicação plausível para as desordens provocadas pelas multidões naquele momento. Neste sentido, diferentemente de outros teóricos de sua geração, para Le Bon não havia nada de demente ou patológico nas multidões. As multidões eram constituídas por indivíduos que, quando reunidos, apresentavam uma "vida mental característica, tornando-se uma realidade autônoma organizada coletivamente, como uma alma coletiva" (LE BON, 1895/2008, p. 25). Para compreendê-las era necessário estudar seu estado de espírito, seus modos de sentir, pensar e agir, enfim, sua psicologia.
Na multidão a consciência e a individualidade desaparecem, dando lugar ao pensamento automático e a uma sensação de invencibilidade. Tais comportamentos foram atribuídos ao contágio mental, à hipnose e à sugestionabilidade, especialmente quando associados ao fascínio exercido pelo hipnotizador/líder (LE BON, 1895/2008). Nesse sentido, estados hipnóticos e sugestões hipnóticas pareciam moldar o "estado coletivo" das multidões. Anos mais tarde, Freud constatou que na massa, os indivíduos são levados à regressão psíquica, afetiva e intelectual, mergulhando em um estado semelhante ao da fascinação encontrada pelo hipnotizado na relação com o hipnotizador (FREUD, 1921/1976).
A psicologia das massas freudiana
A caracterização das multidões como irracionais e selvagens dominou o pensamento conservador do final do século XIX. Nesse sentido, Le Bon estava convencido de que o século XIX prenunciava o advento de uma nova era - a era das multidões (LE BON, 1895/2008, p. 20). De fato, como Ortega Y Gasset (1926/1987) analisou - através da observação da coletivização da vida moderna e do conceito de "homem-massa" - o triunfo das massas parecia verdadeiramente ter-se imposto sobre a sociedade ocidental. Assim, no início do século XX, no alvorecer da sociedade de massas (ORTEGA Y GASSET, 1926/1987), indivíduos anônimos foram transformados pela influência da propaganda e dos meios de comunicação em massas atomizadas fascinadas pelo poder ilusório de seus líderes. Dessa forma, o que era temido no século XIX passou a ser manipulado, controlado e docilizado no século XX (PENNA, 2014).
Após o fim da Primeira Guerra Mundial, ao longo do ano de 1919, uma série de tratados, especialmente o de Versalhes, marcaram o fim dos impérios centro-europeus imprimindo, embora de forma desastrosa, uma nova ordem Europeia. Além da Grande Guerra, a Gripe Espanhola havia dizimado parte da população, levando a rebote a filha de Freud, Sophie. O contexto histórico em que foi produzido, apresentou o pensamento de um Freud que substituiu um investimento pessoal libidinal, inicialmente favorável ao Império Austro-Húngaro, por argutas reflexões sobre a guerra e a morte iniciadas a partir de 1915 em Reflexões para os tempos de guerra e morte e concluídas na correspondência Por que a guerra? trocada com Einstein em 1933. Publicado em 1921 e escrito entre 1919 e 1920, Psicologia de grupo e análise do ego foi preparado em um dos piores invernos vienenses quando um já sexagenário Freud, submetido a uma "verdadeira dieta de fome - Hungerkost - sem luz ou calefação, redigia à luz de velas em "um quarto cortantemente frio" (GAY, 1989, p. 351).
Em Psicologia de grupo e análise do ego (1921), Freud inaugurou o estudo da psicologia das massas1 imbuído do desejo de empreender uma análise da vida coletiva dos indivíduos destacando o conflito entre a vida instintual e os vínculos grupais. Freud distanciou-se tanto da imitação de Tarde (1890/2005) e da sugestão mútua e do prestígio dos líderes de Le Bon (1895/2008) quanto do instinto de horda de Trotter (1919/2016) e das ideias de McDougall (1920/2010) ao associar sugestão à libido (FREUD, 1921/1976, p. 114). Costa (1989) acredita que o segundo encontro de Freud com a sugestão hipnótica na psicologia das massas teve importância fundamental por deslocar as reflexões psicanalíticas do âmbito individual para o universo das massas. Perguntas sobre o pai da horda primeva, sobre como ocorria a formação de um grupo ou qual seria a origem da cultura passaram a ser foco de interesse revelando manifestações antes desconhecidas do psiquismo humano (MOSCOVICI, 1981; COSTA, 1989). A psicologia das massas freudiana transformou a reflexão sobre estas questões ao afirmar que as relações amorosas, ou seja, o investimento libidinal, através do poder agregador de Eros, constituía a essência da mente grupal. Assim, a ideia de que a sugestão seria um fenômeno irredutível e essencialmente primitivo no psiquismo humano foi definitivamente substituída em Freud pelo conceito de libido que possibilitou pensar que a "sugestão não está baseada na percepção ou no raciocínio, mas em um vínculo erótico" (FREUD, 1921/1976, p. 161).
Na introdução do trabalho, Freud foi revolucionário ao afirmar que "desde o começo, a psicologia individual (...) é, ao mesmo tempo, também psicologia social" (FREUD, 1921/1976, p. 91). A afirmação de Freud (1921/1976) desferiu um tiro mortal às tendências da modernidade que desprezavam a ligação entre o psiquismo individual e o psiquismo coletivo na explicação de fenômenos sociais, apontando para a necessidade da alteridade na constituição subjetiva e no estabelecimento das relações sociais. O trabalho sobre as massas apresentou uma visão interdependente dos processos sociais e individuais ao valorizar o vínculo que reúne indivíduo e social e que necessariamente envolve o outro "como modelo, objeto, auxiliar ou oponente" (FREUD, 1921/1976, p. 91). Infelizmente, apesar dos esforços dos freudo-marxistas nas décadas de 1920 e 1930 (ROUANET, 1986) e de trabalhos pioneiros realizados nas clínicas sociais de psicanálise (DANTO, 2019), as palavras de Freud demoraram anos para ser verdadeiramente compreendidas pela psicanálise clássica. Hoje, essa tendência parece modificar-se.
O núcleo fundamental da exposição de 1921 consistia na afirmativa de que o cerne do funcionamento grupal estava no vínculo libidinal estabelecido entre os membros da massa e o líder e na ilusão fomentada de que o líder, fosse ele Cristo, o comandante ou o chefe, amava todos os membros com um amor igual (FREUD, 1921/1976, p. 120). Assim, a massa é mantida unida pela força agregadora de Eros levando o sujeito a abandonar sua individualidade e suas demandas pulsionais para identificar-se horizontalmente com os demais membros do grupo, harmonizando-se com eles a ponto de impedir que as iniciativas individuais concorram na reunião do grupo, levando à formação de um "indivíduo grupal" (FREUD, 1921/1976, p. 149).
O conceito de identificação é essencial para a compreensão da natureza dos vínculos libidinais na massa adquirindo valor central na obra freudiana, pois através das identificações os seres humanos se constituem. Embora Freud já tivesse se referido à identificação - em cartas enviadas a Fliess ou na descrição de sua relação com os fenômenos histéricos e com o sonho ou nos estudos sobre narcisismo e homossexualismo (LAPLANCHE; PONTALIS, 1983, p. 295) - foi somente em 1921 que se dedicou a investigá-la, apresentando-a como a mais remota expressão de laço emocional com um objeto (Freud, 1921/1976, p. 133).
Partindo da natureza dos laços libidinais na massa, Figueiredo (1999) comenta que nos grupos artificiais as vinculações eróticas ocorriam em dois eixos. No eixo horizontal, os membros do grupo ligavam-se libidinalmente e com mesmo grau de intensidade uns aos outros. Já no eixo vertical, seus membros estavam ligados ao líder, ao chefe, figura substituta do pai primordial da horda primeva (FREUD, 1913/1974). Para Freud, a psicologia das massas envolvia um estado de regressão a uma atividade mental primitiva semelhante ao da horda primeva e os atos individuais acabavam sendo abolidos dando lugar ao funcionamento coletivo. Contudo, para a manutenção do laço libidinal no grupo organizado, era necessário um equilíbrio entre as forças horizontais e verticais e uma boa dose de ilusão contra a irrupção de forças psíquicas contrárias à manutenção da coesão do grupo, responsáveis pela construção de uma série de defesas grupais contra a dissolução desses vínculos. Nessa direção, Freud (1921/1976) chamou a atenção para as consequências do desprezo aos laços libidinais no grupo organizado tomando como exemplo o Exército ao atribuir parte do fracasso do militarismo prussiano na Primeira Guerra Mundial e do aumento das neuroses de guerra - tratadas em grupo pela primeira vez por Ernst Simmel - à fragilidade do laço emocional que unia esse exército submetido a rigoroso tratamento por parte de seus oficiais (FREUD, 1921/1976, p. 128). Assim, submetidos ao medo ou ao pânico coletivo, os indivíduos passavam a se preocupar apenas com a sua própria existência e o grupo era levado à desorganização ou à desagregação. Nessas ocasiões, ocorria um afrouxamento nos laços libidinais que mantinham o grupo unido e a própria ilusão do amor do líder se desfazia.
Circuito pulsional nos vínculos grupais: uma questão econômica
Embora Freud tenha se apoiado na natureza dos laços libidinais nas formações grupais, seu maior ou menor grau de coesão ou mesmo sua própria desagregação dependiam não só do grau de identificação entre seus membros e com o líder, mas também de um equilíbrio entre os investimentos libidinais do indivíduo seja em seu próprio eu, seja na vinculação grupal. No contexto do grupo, sobrevém o narcisismo coletivo e o indivíduo identificado com os demais investe seu ideal de ego no grupo. Sem dúvida, os investimentos libidinais no grupo garantem a preservação do indivíduo a expensas duma presteza em odiar e agressivamente rejeitar o outro ou aquilo que é diferente. Freud (1921/1976, p. 128) afirmava que a identificação de um indivíduo em um grupo tinha sempre uma natureza ambivalente na medida em que toda a relação emocional íntima entre duas pessoas continha sempre sentimentos de aversão e hostilidade. Nos grupos, não poderia deixar de ser diferente e Freud apropriou-se da metáfora dos porcos-espinhos de Schopenhauer para demonstrar a necessidade de uma distância ótima entre os membros de um grupo na garantia de uma coexistência pacífica, pois também nos grupos concorriam tendências ambivalentes que levavam os indivíduos ora à preservação da individualidade, ora à necessidade de vinculação grupal. Entretanto, devido à ambivalência de sentimentos e à necessidade de manutenção da identificação e da coesão entre os membros, os sentimentos hostis e agressivos são projetados para fora. Nesse momento, o narcisismo das pequenas diferenças (FREUD, 1921/1976, 1930/1976) sobrevém, funcionando por um lado, como amálgama para a ilusão de coesão nos grupos, e por outro na projeção de tudo aquilo que é hostilizado e rejeitado pelo grupo, mas que é fundamental para a sua preservação. O narcisismo das pequenas diferenças aponta, portanto, para o intrincamento pulsional entre as pulsões de vida e de morte, contribuindo tanto para a manutenção da coesão grupal quanto para a projeção das pulsões agressivas no mundo externo.
Para Freud as limitações narcísicas existentes nos grupos eram produzidas devido ao laço libidinal estabelecido entre os membros que se solidificam na vida em civilização. "No desenvolvimento da humanidade (...) só o amor atua como fator civilizador no sentido de ocasionar a modificação do egoísmo em altruísmo" (FREUD, 1921/1976, p. 130). A partir daí, a relação entre narcisismo e psicologia das massas torna-se evidente, e é exatamente nesse ponto que a análise de Costa (1989) sobrevém, já que o principal objetivo de Freud em psicologia das massas parecia ser o de encontrar os limites à expansão narcísica dos indivíduos no social. A condição básica para a adesão a um grupo dependia da possibilidade de os sujeitos investirem parte do narcisismo individual na identificação com o grupo e com o líder para, a partir desse momento, limitados em seu narcisismo individual, adquirirem um narcisismo coletivo que possibilitaria o investimento no grupo e na vida em sociedade. Nessa direção, para Freud parecia existir uma oposição entre "o estado de indivíduo e o estado de massa" (COSTA, 1989, p. 67) revelando uma polarização entre o investimento libidinal no eu ou no grupo ou mesmo entre o narcisismo individual e o narcisismo coletivo. Esse tipo de dicotomia sustentava-se em tradições do racionalismo moderno que opunham mente e corpo, indivíduo e sociedade. Contudo, em vez de refletirmos sobre a questão em termos dualistas, o ponto de vista econômico da psicanálise permite investigar o assunto em termos quantitativos. Isto é, é evidente que parte do narcisismo individual tem que ser deixado de lado no pertencimento a qualquer tipo de grupo e a afirmação freudiana de que "a massa se constitui como o maior antídoto contra o narcisismo" (FREUD, 1921/1976, p. 135) comprova a assertiva. Nas massas, os indivíduos sofrem uma limitação na realização do amor sensual substituindo-o por identificações e pela eleição de um líder que foi colocado no lugar de ideal ao qual o ego se submete (FREUD, 1921/1976, p. 147). Os investimentos libidinais baseados na colaboração mútua entre os membros do grupo - possibilitam o trabalho em comum, as mais altas realizações humanas, mas também as mais temíveis atrocidades - são alcançados através da limitação de uma parcela do narcisismo individual, realizada com o auxílio da identificação, das instâncias ideais, dos mecanismos sublimatórios e da idealização. Assim, o ideal do ego surge no grupo como o substituto do narcisismo. Aquilo que o indivíduo "projeta diante de si como sendo seu ideal é o substituto do narcisismo perdido de sua infância na qual ele era o seu próprio ideal" (FREUD, 1914/1974, p. 111).
Assim, mesmo que o narcisismo individual pareça ter sido substituído por um narcisismo coletivo, a problemática dos ideais ratifica mais uma vez que a questão é econômica, uma vez que os investimentos libidinais, seja no próprio indivíduo, seja no grupo encontram-se sempre às voltas com a esfera narcísica. Nesse sentido, parece ocorrer apenas uma transformação do narcisismo individual, que na massa se vê comprometido com o coletivo, e é justamente através dessa transformação que os grupos se mantêm coesos e integrados no social. No entanto, o equilíbrio das formações grupais é tênue e envolve tensões internas que buscam neutralizar no interior do grupo a ambivalência de sentimentos, a agressividade e a suspensão do recalque que são ameaças constantes à união grupal. Assim, é possível concluir que a questão das relações indivíduo e grupo está relacionada - não apenas à vinculação libidinal, às identificações ou mesmo à ambivalência emocional - a questões econômicas que concorrem para um equilíbrio de forças, um nível ótimo de investimento libidinal que garante ou não a manutenção do vínculo grupal.
Na discussão sobre a manutenção da estabilidade e da permanência nos grupos artificiais, Figueiredo (1999) aponta para a ideia de que as pulsões sexuais, que usualmente reúnem e cimentam as massas artificiais, podem também gerar efeitos disruptivos e desagregadores, chamando a atenção para questões que foram deixadas de lado por Freud na reflexão de 1921. Nesse sentido, Figueiredo (1999) propõe que seja reconsiderado o papel das pulsões de morte na manutenção dos grupos artificiais, seja na inibição das metas sexuais inerentes e fundamentais para o estabelecimento dos laços sociais entre os membros do grupo, seja pela função que exerce na redução das tensões intragrupais e neutralização de tendências afetivas, fatores indispensáveis para a consolidação da vida dos grupos organizados.
Em psicologia das massas, Freud (1921/1976) discutiu a inibição dos objetivos sexuais nas relações grupais e nas diferentes formas de investimento objetal e vinculação libidinal. Nesse sentido, Figueiredo (1999) recorda que toda ligação libidinal é, em sua origem, sexual e que metas sexuais são inibidas nas formações grupais visando prioritariamente a estabilização e a manutenção dos vínculos sociais. Apoiando-se em Freud, afirma que, quando as metas sexuais são atingidas e as pulsões libidinais satisfeitas no grupo, o desinvestimento libidinal se torna inevitável e as ligações ficam provisoriamente enfraquecidas levando a um período de repouso, refratário a novas excitações. No entanto, chama atenção para um outro efeito sobre os vínculos libidinais - que pode ser antagônico, mas igualmente prejudicial para a vida em sociedade - quando as metas sexuais não são inibidas. Nessa situação, a não inibição das metas sexuais no grupo pode ser observada através de um excesso de ligação erótica entre seus componentes seja na formação de casais no interior do grupo - descrito posteriormente por Bion (1961/1970) através no pressuposto básico de acasalamento seja no grupo em sua totalidade, quando seus componentes investem maciçamente a libido uns nos outros. Assim, fortemente identificados, afastam-se do mundo externo e da vida coletiva para se concentrarem na satisfação libidinal alcançada unicamente através do vínculo grupal. Esse tipo de formação grupal pode ser observado na vida das tribos (MAFFESOLI, 2000) e em grupos baseados em identidades sociais tão presentes no mundo contemporâneo (PENNA, no prelo). Nesse sentido, o conflito entre o narcisismo individual e o narcisismo coletivo parece atualizar-se no grupo:
É preciso, portanto, inibir as metas sexuais ao mesmo tempo dar livre curso à circulação libidinal nos dois eixos (horizontal e vertical) acima referidos para que haja na massa energia suficiente para mantê-la unida e organizada, mas não tanta energia que produza, ao contrário, sua desagregação, seja pela via do erotismo desenfreado, seja pela via da agressividade incrementada (FIGUEIREDO, 1999, p. 39).
A discussão de Figueiredo (1999) ratifica a importância da questão econômica presente nas vinculações grupais, bem como a necessidade de uma circulação libidinal ótima nas relações intragrupais. De fato, através de uma excessiva vinculação erótica nos grupos e de um investimento elevado no narcisismo coletivo, a energia libidinal deixa de circular, concentrando-se unicamente nas realizações narcísicas obtidas através do vínculo grupal, revelando ainda uma tendência ao desligamento do mundo externo, condição prejudicial às realizações em sociedade. Entretanto, esta parece ser uma tendência significativa em processos grupais. Anzieu (1993) e Kaës (1997) descreveram-na em termos de "ilusão grupal" quando os indivíduos colocam o grupo no lugar do ideal de ego, protegendo-se assim de angústias primitivas e avassaladoras. O equilíbrio ótimo de um grupo exige o investimento de um quantum de energia que seja suficiente para a manutenção dos vínculos horizontais e verticais e, ao mesmo tempo, essa energia tem de ser estável de forma a não comprometer sua vitalidade, nem tampouco promover sua desagregação (FIGUEIREDO, 1999).
Em termos econômicos as vinculações eróticas excessivas no grupo garantem a preservação de seu narcisismo coletivo via identificação. Nesse sentido, a inibição das metas sexuais torna-se mais fácil em grupos intensamente identificados, o que facilita a criação de um ambiente mais homogêneo (COSTA, 1989; FIGUEIREDO, 1999). Entretanto, se por um lado o investimento libidinal erótico dá lugar às identificações no grupo e estas, por sua vez, são responsáveis pela manutenção do laço grupal, por outro, favorecem a construção de um ambiente propício à instalação da ilusão de igualdade entre seus membros acarretando um processo de homogeneização que poderá trazer consequências desastrosas. A homogeneidade garante, por um lado, a inibição das metas sexuais via identificação, sobrevivência e atração mútua entre os membros do grupo, já por outro, aumenta a tendência projetando, no mundo externo ou em outro grupo estranho, os maus sentimentos, o ressentimento, o ódio e a ambivalência produzidos em seu interior (RICKMAN,1938/2003; PENNA, 2014). Isto é "violência e a agressividade serão descarregadas no vizinho, no estranho, que não é como nós" (COSTA, 1989, p. 67). Assim, é para fora do grupo que são enviados os mais intensos e não sublimáveis impulsos eróticos. Tal mecanismo concorre para o equilíbrio das energias libidinais no interior do grupo garantindo ainda sua coesão interna.
A homogeneização é condição indispensável para a coesão dos grupos artificiais, pois contribui tanto para a inibição das ligações eróticas quanto garante a ilusão de uma estabilidade no circuito libidinal das formações grupais (FIGUEIREDO, 1999). O equilíbrio é complicado, pois envolve o circuito pulsional. Se, como Freud afirmou, Eros é responsável pela criação dos laços libidinais existentes no grupo, a pulsão de vida se encontra presente tanto na coesão grupal quanto nas realizações e intervenções grupais no mundo externo. Contudo, se por um lado as pulsões de vida mantêm as identificações e o grupo unido, por outro, na coesão excessiva, pode ocorrer um desinvestimento no ambiente e uma estagnação do grupo, que permanece voltado para interesses egoístas, mais afeitos à pulsão de morte. Nesse sentido, como Freud pontuou, em Além do princípio do prazer (1920), o encontro com a diferença promove excitações capazes de gerar tensões e que, nesse caso, a ligação erótica iria contra a redução de tensão, as tendências de repouso, opondo-se ao retorno ao inorgânico, à morte (FIGUEIREDO, 1999). Desta forma, a tendência à homogeneização procura, através das identificações, eliminar as diferenças e, se a igualdade se instala, a ligação dá lugar ao desligamento e a pulsão de morte predomina.
A influência das pulsões de morte na manutenção dos vínculos grupais é vital para a análise dos fenômenos de massa contemporâneos, onde a coesão grupal, a horizontalidade de laços, a projeção da hostilidade para fora e a relação idealizada com o líder ou como o ideal almejado torna-se novamente fonte de preocupação mundial. Nesse sentido, as relações entre os membros e dos membros com o líder são marcadas pela regressão, por idealizações e por identificações do tipo adesivas, adictas ou imitativas não deixando espaço para a diferenciação entre os membros (ZIMERMAN, 1993, p. 82). O desejo de pertencimento e fusão indiferenciada ao grupo homogeneizado parece tornar-se então um ideal almejado (ANZIEU, 1993). Nestas formações grupais, a presença da pulsão de morte é indelével e silenciosa na incansável tarefa de fazer a libido retornar ao estado de narcisismo primário absoluto em que o encontro com a diferença e a alteridade acaba sendo abolido (FIGUEIREDO, 1999, p. 41). A compreensão psicanalítica dessas questões deveria levar em consideração o narcisismo de morte postulado por Green (1988) ao se referir à tendência ao "um indiferenciado" que revela a busca por um narcisismo absoluto que persegue o zero, o neutro. Nesse sentido, o repouso na unidade do neutro é procurado de todas as maneiras, inclusive através do amor, e envolve não mais um Eros que promove ligação e movimento, "um Eros que busca e promove diferenças, mas do Eros platônico, que procura uma unidade perdida" (FIGUEIREDO, 1999, p. 41).
A tendência à homogeneização nos grupos leva não só a reflexões sobre a pulsão de morte, mas também envolve indagações sobre as tendências regressivas e os fenômenos psicóticos presentes nas formações grupais. A análise freudiana atribuiu a regressão, tanto na massa quanto no grupo organizado, ao tipo de investimento libidinal que acontece nos grupos quando as metas sexuais e a libido objetal são substituídas, graças à identificação, por uma regressão da libido a investimentos de caráter narcísico (FREUD, 1921/1976). É possível então afirmar que a regressão a formas de funcionamento características do processo primário são inegáveis nas formações grupais. Chasseguet-Smirgel (1975) foi uma das autoras que observou a presença nos grupos ideológicos de desejos inconscientes de retorno ao útero materno representados, no grupo regredido e homogeneizado, por um "útero branco". De fato, a regressão no grupo facilita a homogeneização seja pela ilusão de fusão indiferenciada entre seus membros, seja através da necessidade de, para se manterem livres do perigo externo, projetarem maciçamente sua própria destrutividade através do emprego da força ou da violência.
Assim, é possível concluir que as formações grupais apresentam diferentes conformações que variam de acordo com o maior ou menor equilíbrio na balança dos investimentos libidinais e pulsionais dos componentes no grupo. Novamente a metáfora do porco-espinho de Schopenhauer (FREUD, 1921/1976) pode ser utilizada, desta vez para afirmar que a distância intermediária obtida através do equilíbrio no circuito pulsional é fundamental para o destino do grupo. Se seus membros estiverem próximos demais, serão levados à fusão, à indiferenciação; entretanto, se mantiverem uma distância ótima, podem preservar sua individualidade e ser levados à atividade engajada.
A natureza ilusória das formações grupais
Nos textos em que se dedicou à cultura, Freud (1921/1976, 1927/1976, 1930/1976) destacou o conflito entre a necessidade de satisfação narcísica dos desejos individuais e a vida civilizada que exigia a renúncia de satisfações pulsionais na garantia de uma vida segura e protegida dos perigos da civilização. De fato, a satisfação imediata das pulsões foi sempre um obstáculo para a criação de vínculos sociais duradouros já que as formações grupais estáveis esperavam a substituição das demandas individuais pelo ideal do grupo (FREUD, 1921/1976, p. 164). Entretanto, para que os indivíduos renunciassem à plena realização pulsional e internalizassem as regras culturais, a civilização deveria prover algum consolo narcísico (COSTA, 1989). Foi assim que, em O futuro de uma ilusão (1927/1976, p. 1973), Freud apresentou três espécies de compensações para a vida dos indivíduos em civilização, retomando o tema do narcisismo das pequenas diferenças e explicitando a função da religião e da arte. De fato, a satisfação narcísica oferecida pela realização dos ideais culturais funcionava como antídoto para a hostilidade dirigida contra a civilização ou mesmo para dentro do próprio grupo cultural, contudo eram saídas que considerava neuróticas, preços inevitáveis para a vida em civilização. Apenas a arte e o trabalho intelectual eram vistos por Freud como compensações satisfatórias para o homem, embora não os visse como uma saída possível para as massas. Com sua conhecida intolerância e atitudes ambivalentes, fascinadas e submetidas às lideranças, as massas, embora fossem peças fundamentais para a constituição dos laços sociais, eram também - devido a seu caráter regressivo e narcísico - o berço da vida de fantasia e da ilusão.
Dessa forma, a reflexão sobre a relação entre as formações grupais e a ilusão torna-se essencial. Garcia (2007) descreve um longo percurso para as formações ilusórias na obra freudiana, presentes desde a Interpretação dos sonhos (1900/1972), passando por uma série de outros trabalhos, marcadamente aqueles relacionados à cultura, sempre apontando para o aspecto de realização de desejo. Em Sobre o narcisismo: uma introdução (1914/1974) a ideia de satisfação de desejo foi apresentada na relação com a formação do ideal, pois o ideal do ego representava uma tentativa de reencontro com a experiência mítica de completude característica do narcisismo primário, funcionando ainda como defesa contra o reconhecimento por parte do sujeito de sua condição de desamparo e dependência. Assim, como Garcia (2007, p. 169) aponta, a realização de desejo que caracteriza o que viria a ser conceituado como ilusão surgiu para Freud associada a uma manobra defensiva e a uma proteção compensatória contra a inevitabilidade da dependência e do desamparo. Nesse aspecto, é possível depreender que, dentro de um registro essencialmente narcísico, a primeira formação de um ideal representou uma defesa, uma proteção contra o desamparo.
Em Além do princípio do prazer (1920/1976), o antagonismo entre indivíduo e cultura foi descrito como da ordem do pulsional, sendo o recalcamento o agente responsável pela inserção dos indivíduos no social. A hostilidade e a oposição diziam respeito a um conflito entre as questões narcísicas individuais e as exigências impostas pela vida em sociedade. Garcia (2007) ressalta que o caráter defensivo da ilusão passou, a partir desse texto, a ocupar lugar central na teorização freudiana sobre o conceito, já que, com o advento da segunda tópica e o interjogo entre as pulsões de vida e de morte, a dialética entre o recalque e as pulsões ganhou corpo. Nesse sentido, Freud (1920) apresentou o aspecto benévolo da ilusão que, como defesa, protegia os indivíduos da inevitabilidade da morte e da tendência de retorno ao inanimado própria da pulsão de morte (FREUD, 1920/1976, p. 60). Assim, para Garcia (2007, p. 170), a ilusão passou a funcionar em 1920 como uma tentativa de negação da ordem pulsional, principalmente no que se refere à compulsão à repetição e à pulsão de morte, descrita como ilusão benévola, diferenciando-se do que Freud havia apresentado no trabalho sobre narcisismo de 1914, em que o desejo era da ordem de um retorno a um estado de completude narcísica.
Em Psicologia dos grupos e análise do ego (1921), Garcia (2007) discute como a realização de desejo e a necessidade de proteção se articularam na elaboração do conceito de ilusão na medida em que, no funcionamento grupal, prevaleciam tanto a tentativa de preservação do princípio do prazer quanto a crença no amor do líder. Em 1921, a ilusão representou não apenas a "tentativa de resistir à instauração do princípio de realidade e, consequentemente, o desejo narcísico de manutenção do princípio do prazer, mas também a possibilidade de sustentação do laço social através da ilusão do amor do chefe" (GARCIA, 2007, p. 170). Dessa forma, a autora propõe que a ilusão, através de seu aspecto protetor e defensivo, pode ser vista como lócus de origem das formações culturais. Em psicologia das massas, é possível intuir a natureza ilusória das formações grupais, pois, se por um lado os grupos demandam limitações no narcisismo individual, propondo uma vida no coletivo, por outro garantem através do laço social e do pretenso amor do líder uma proteção ilusória para o indivíduo.
Em O futuro de uma ilusão (1927/1976), a ilusão pôde ser vista como uma defesa contra o reconhecimento da efemeridade da vida assim como o lugar onde as formações culturais se originavam, através dos ideais, da arte e da religião. Nesse sentido, a discussão sobre a ilusão avançou e Freud definiu que o que era característico da ilusão era o fato de ela derivar "dos mais antigos, fortes e prementes desejos humanos, provenientes de uma necessidade de proteção contra o desamparo da infância" (FREUD, 1927/1976, p. 43). Em 1927, Freud afirmou que, enquanto os ideais e a arte representavam a preservação das mais sublimes aquisições humanas na vida em cultura, promovendo uma reconciliação com as imposições civilizatórias, as religiões eram compensações que protegiam os indivíduos do desamparo, promovendo e alimentando gratificações ilusórias através da preservação de uma vida psicológica infantil e de uma neurose coletiva. A ilusão religiosa era para Freud uma ameaça para a humanidade embora apontasse para seu componente de realização de desejo e para a inevitabilidade do que denominou de rochedo das ilusões. Assim, em O futuro de uma ilusão (1927), Freud refletiu sobre a natureza da civilização ratificando a inevitabilidade das crenças e das ilusões na manutenção do laço social, afirmando que as ilusões ofereciam uma proteção aos indivíduos contra o adoecer psíquico.
Da mesma forma que Garcia (2007), Enriquez (1990) alerta para o novo lugar concedido à noção de ilusão em O futuro de uma ilusão (1927). Enquanto em 1921 a importância e a crença, carregada de desejo no amor do chefe, foram fundamentais para a instauração do grupal, sendo elementos necessários à teoria de objeto, do ego e do ideal do ego; em 1927, a ilusão foi o elemento essencial para a instauração do processo civilizador, já que ofereceu proteção aos indivíduos contra o desamparo estrutural para os seres humanos dentro da acepção freudiana (ENRIQUEZ, 1990, p. 94). Dessa maneira, as formações coletivas adquiriam um papel preponderante na luta contra a neurose individual embora, em alguns casos, a substituíssem pela neurose coletiva, participando ainda ativamente na construção da própria civilização (p. 81). Assim, tanto para Garcia (2007) quanto para Enriquez (1990) a ilusão e seu corolário, a crença, puderam assim ser vistos como conceitos-chave para a compreensão e a interpretação da psicologia coletiva e do psiquismo individual.
De fato, observando as formações grupais, sejam multidões efêmeras ou grupos organizados, reunidos ou não em torno de um líder, tanto umas quanto as outras não diferem entre si na relação que estabelecem com a ilusão. Isto é, a despeito de maior ou menor compromisso com a vida em civilização e as limitações impostas ao narcisismo individual, verifica-se nas massas a mesma necessidade de crença no amor do líder (ou numa ideologia), colocado no lugar do ideal do ego. A importância da ilusão é central na discussão sobre as massas e na formação e na manutenção grupal. A ilusão funciona como uma defesa contra o desamparo original, encontrando-se na base das formações coletivas e culturais (GARCIA, 2007). Assim, apesar de a libido ser o principal elemento agregador nas massas e de as identificações serem as formas mais remotas de laço social, sem a presença da ilusão, nenhum grupo se mantém: "As massas nunca tiveram sede de verdade. Elas querem ilusões e não vivem sem elas" (FREUD, 1921/1976, p. 135).
Herança da psicologia das massas
Se no século XIX Le Bon se utilizava de um arcabouço teórico que trabalhava com a sugestão, o contágio e a hipnose e fazia uso de uma visão ainda incipiente de inconsciente para explicar o comportamento das multidões; após Freud, foi possível pensar as multidões através de uma nova perspectiva. Nesse sentido, o inconsciente, as instâncias ideais, o narcisismo, os processos identificatórios, a importância do desamparo e da ilusão, bem como a regressão e a projeção foram fundamentais para o avanço das reflexões sobre o assunto. A teoria que Freud desenvolveu sobre as massas não representou apenas uma de suas contribuições para a teoria da cultura, mas foi uma verdadeira revolução no interior da teoria psicanalítica. Para Costa (1989, p. 66) a análise que Freud fez sobre as massas permitiu o surgimento de novas ideias sobre a questão dos totalitarismos no século XX, lançando ainda uma luz sobre o problema do amor, da opressão e sobre a servidão voluntária numa alusão à La Boétie (1577). Entretanto, a psicologia das massas freudiana foi, no fundo, um prolongamento das preocupações de Freud na defesa dos princípios que havia enunciado sobre o conflito psíquico. Seu principal objetivo era demonstrar que "uma vez destituído de seu papel de agente da razão ou embaixador do princípio da realidade e dos processos secundários, o ego já não poderia mais ser o primum movens do recalque" (COSTA, 1989, p. 71). Assim, a psicologia das massas fazia parte do esforço freudiano de solucionar a questão do ego, bem como a da problemática da origem e funcionamento dos ideais. Embora o trabalho sobre as massas envolvesse as mais significativas observações freudianas feitas sobre o social, as descrições sobre seu funcionamento tinham como principal objetivo favorecer investigações metapsicológicas.
Semprún (2002) aponta para a importância da psicologia das massas freudiana na construção do pensamento sobre o século XX. Teses defendidas por Arendt, Broch, Cannetti, Adorno e Sartre nunca poderiam ter sido postuladas sem a existência do trabalho freudiano sobre as massas. No entanto, foi preciso que o século XX prosseguisse em seu curso, para que Psicologia de grupo e análise do ego adquirisse seu verdadeiro status dentro da obra freudiana. Assim, através de um olhar contemporâneo e que de certa forma aposta na ampliação da pesquisa psicanalítica sobre formações coletivas no século XXI, Enriquez (1990) afirma:
(...) a mensagem desse livro só poderia ser negada ou ocultada. Foi necessário que o tempo da desilusão chegasse para que esse texto lúcido pudesse enfim ser lido sem tomar partido e ser considerado pelo que ele é: o texto inaugural (fascinante, obscuro e incerto) de uma disciplina nova: a psicossociologia, ciência dos grupos, das organizações e das instituições (ENRIQUEZ, 1990, p. 78).
Assim, ao longo do século XX, a psicologia das massas freudiana apresentou desdobramentos importantes não apenas na teoria psicanalítica, mas também na filosofia, na psicologia social, na literatura, na política e nas grupoterapias. Estudos realizados pela Escola de Frankfurt (JAY, 1973/2008) permitiram ainda a criação de novos instrumentos de análise para a compreensão de comportamentos coletivos e para uma visão crítica da vida em sociedade, constituindo-se principalmente como um freio à revolução e às formas de opressão e dominação demagógica.
A pesquisa com grupos
Durante a Segunda Guerra Mundial, no Hospital Northfield, na Inglaterra, foram realizados de 1942 a 1946, dois experimentos com grupos que se tornaram a base para o surgimento de diferentes abordagens psicodinâmicas no trabalho com grupos. O primeiro experimento envolveu as investigações de Rickman e Bion (1961/1970) sobre grupos sem líder levando à conceitualização de grupos de supostos básicos e grupo de trabalho, fundamentais para o estudo de processos primitivos e angústias psicóticas nos grupos. Já o segundo experimento, deu origem ao trabalho com comunidades terapêuticas e a grupanálise de S. H. Foulkes. Após a guerra, esses experimentos permitiram a criação do Tavistock Institute of Human Relations, em 1946, responsável pelos estudos sobre lideranças e organizações dentro de uma perspectiva psicanalítica (PENNA, 2014).
A década de 70 foi um período de grandes transformações não só no mundo contemporâneo como também na psicanálise através da atenção dirigida à clínica dos pacientes difíceis e no trabalho com grupos. Assim, a partir de Pierre Turquet (1975) e Lionel Kreeger (1975) na Inglaterra, de Anzieu (1993), Kaës (1997) e Chasseguet-Smirgel (1975) na França a pesquisa com grupos voltou seu interesse para a investigação de angústias primitivas e aspectos agressivos, regressivos e pré-edípicos, presentes nos pacientes difíceis e também encontrados na psicodinâmica dos grupos. Neste sentido as pesquisas caminharam para além das considerações enunciadas por Freud sobre o funcionamento grupal, ao se debruçarem não apenas sobre a ideia do líder como pai edipiano simbólico, conduzindo a reflexão para momentos pré-edípicos das formações grupais. Nessa conjuntura, focalizada na observação dos aspectos primitivos presentes nos grupos, a pesquisa se encaminhou para a investigação da psicodinâmica de grandes grupos (KREEGER, 1975). Em settings grupais, que reúnem de 80 a 500 participantes, é possível observar a presença de relações objetais, operações defensivas e agressividade muito primitivas. Contudo, através da criação destes espaços coletivos de experimentação e autorreflexão, tem sido possível avançar na pesquisa com aspectos regressivos atuantes na interação de um grande número de pessoas. Além disso, experiências em grandes grupos têm propiciado tentativas de conceitualização de novos pressupostos básicos que se somariam àqueles postulados por Bion para a vida inconsciente dos grupos (TURQUET, 1975; LAWRENCE; BAIN; GOULD, 2000; HOPPER, 2003). Tais iniciativas, ainda pouco conhecidas no Brasil têm sido fundamentais para a exploração contemporânea da questão das multidões e das massas, trazendo insights sobre os processos de homogeneização/fusão, coesão/incoesão nos grupos, bem como investigações sobre massificação, fundamentalismo e fenômenos de bode expiatório. Todas essas linhas de trabalho, são tributárias ao trabalho freudiano sobre as massas (PENNA, no prelo).
A psicologia das massas hoje
Nas últimas três décadas, principalmente após o fim da Guerra Fria, assistimos a uma efervescência no mundo político-social. A vida em sociedade enfrenta a escalada das políticas neoliberais, conflitos étnicos, racismo, processos de exclusão, ameaças à democracia em um mundo social fragmentado, polarizado e controlado pelo poder das mídias sociais e das fake news. A contemporaneidade aponta para novas dimensões de desamparo e sofrimento psicossocial para pessoas, grupos e sociedades. Sem dúvida, são situações traumáticas que Hopper (2003), inspirando-se em Winnicott, discute em termos de falhas na dependência básica e na dependência/confiança no ambiente, na família, no líder, nas instituições. Nesse sentido, o texto freudiano sobre as massas permanece atualíssimo, seja pelo viés que discute o interjogo pulsional, seja por aportes que valorizam suas dimensões relacionadas às relações de objeto.
Hoje parecemos experimentar situações de dependência e desamparo semelhantes àqueles vivenciados por Freud em 1921. Diante de um laço social esgarçado, nos mantemos capturados pela sedução da psicologia das massas e pelo poder ilusório de seus líderes. Embalados no berço da "ilusão benigna" propiciada pelos fenômenos de massa, seus processos identificatórios, encontramos refúgio e abrigo contra os desafios e as incertezas do mundo contemporâneo. Regredidos, mas suportados pelo caráter defensivo da ilusão, aderimos a lideranças, que tanto à direita quanto à esquerda, prometem amparo, pertencimento a um grupo ou ideal. Não sabemos ao certo para onde a psicologia das massas nos conduzirá no século XXI, especialmente no mundo pós-pandêmico. Contudo, a esperança da construção de espaços compartilhados de reconhecimento, baseados nas necessárias diferenças entre os pares, e não na homogeneidade de crenças e ideais, nutrem pessoas e grupos nos ainda desconhecidos caminhos da psicologia das massas atuais. Este é um século que apenas começou, mas que revela profundos desafios na ininterrupta construção do laço social civilizado.
Referências
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Artigo recebido em: 21/09/2021
Aprovado para publicação em: 26/09/2021
Endereço para correspondência
Carla Penna
E-mail: drcarlapenna@gmail.com
*Psicanalista. Membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro (CPRJ). Membro efetivo da Group Analytic Society London/International. Doutora em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
1A edição brasileira das Obras Psicológicas completas de Sigmund Freud apresenta em Psicologia de grupo e análise do ego a palavra grupo como equivalente à palavra alemã masse. Para Peter Gay (1989, p. 362), essa é uma tradução infeliz. O título da obra em alemão é Massenpsychologie und Ich-Analyse e, portanto, a palavra grupo escolhida pela Standard Edition para massen foi inadequada. Entretanto, Freud utilizou a palavra massen para se referir e traduzir tanto o group de McDougall quanto a foule de Le Bon (FREUD, NT ESB, v. XVIII, 1921/1976, p. 91) o que provavelmente inspirou a tradução brasileira a empregar o termo grupo tanto para a massa quanto para o grupo organizado. Por outro lado, Roudinesco e Plon (1997, p. 613) afirmam que James Strachey, ao traduzir o termo alemão Massen por group em lugar de mass, optou por uma tradução que envolvia uma concepção reducionista do social, característica da psicologia social norte-americana. As traduções francesas também não foram mais precisas, já que Freud escolhera o termo Massen em vez da palavra Menge para traduzir o termo francês foule, empregado por Le Bon em sua obra, privilegiando a conotação política que o primeiro termo em alemão carregava. No entanto, os tradutores franceses, preocupados em manter a ligação com a obra de Le Bon optaram pela palavra foule para traduzir Massen. Somente nas últimas versões francesas é possível observar o retorno à opção freudiana pela palavra massa.