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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)

versão On-line ISSN 1413-6295

Cad. psicanal. vol.43 no.45 Rio de Jeneiro jul.dez. 2021

 

ARTIGOS

 

A denúncia da violência contra a mulher na arte fotográfica de Sanja Iveković

 

The report of violence against women in Sanja Iveković's photographic art

 

 

Leda Verdiani TfouniI*; Juliana Bartijotto**; Carolina Molena***

IUniversidade de São Paulo - USP - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Analisamos o impacto da obra de Sanja Iveković, Women's House (Sunglasses), sobre o sujeito-espectador, tomando sua arte como denúncia da violência contra a mulher. Partimos do pressuposto de que as peças discursivas apresentadas (fotografia+depoimento) constituem uma unidade, cuja opacidade de sentido reclama interpretação. Apontamos para uma contradição entre duas formações discursivas que requerem do sujeito um movimento de retroação ao já dito a fim de fazer sentido do que vê/lê. Diante da materialidade da imagem fotográfica, dir-se-ia que os óculos fazem parte de um discurso midiático de propaganda. Após a leitura dos depoimentos, porém, pode-se interpretar que a função dos óculos seja ocultar as marcas das agressões relatadas.

Palavras-chave: Sanja Iveković, Arte fotográfica, Discurso, Real, Violência contra a mulher.


ABSTRACT

We aim to analyze the impact of Sanja Iveković's art, Women's House (Sunglasses), upon the subject-spectator, taking the artist's work as a denunciation of the violence towards women. We start from the assumption that the discursive pieces presented compose an opaque unity that claims for interpretation. We point to a contradiction between two discursive formations (the discourse of advertisement and the discourse of denunciation), which demand a movement of returning to the already-said in order to make a sense of what he/she sees/reads. In other words: initially, it could be said that we are facing sunglasses advertisement pieces; after reading the declarations, it is possible to interpret the sunglasses function as a means of hiding the aggressions.

Keywords: Sanja Iveković, Photography, Discourse, Violence against women.


 

 

Introdução1

Brasil registra uma agressão à mulher a cada quatro minutos
(Folha de São Paulo, 09/09/2019).

Sanja Iveković é atuante no cenário mundial, uma artista feminista consagrada, que construiu relevante acervo artístico que toca na questão dos direitos e da posição das mulheres, tal como ilustra a obra Women's House (Sunglasses) (IVEKOVIĆ, 2002/2011), sendo que parte desse acervo será a fonte do nosso corpus de análise. Trata-se de uma sequência de fotos de mulheres posando com óculos de sol de marcas famosas.

A imagem fotográfica é considerada aqui como suporte da inscrição simbólica (função quadro) e como construção de uma unidade ficcional, cerzida por um corte no tempo e no espaço. A fotografia como obra de arte, segundo Arriola (2008), é determinada por aquilo que está fora do enquadre, pelo resíduo que escapa ao visível, visto que a organização imagética opera em uma estrutura de velamento.

Consideramos que a articulação entre psicanálise e arte é uma constante na obra de Freud e de Lacan, por isso os psicanalistas sempre se valeram dela para ilustrar a relação entre sujeito e objeto. Miller (1962-63/1998) assinala que uma obra opera exatamente naquilo que "não pode ser dito", embora possa ser "mostrado" (p. 321) em um produto artístico.

Essa articulação é embasada, principalmente, pela teoria dos três registros, formulada por Lacan (1974-75, 1975-76/2007) em seus seminários (livro 22: R. S. I e livro 23: O sinthoma). O real, crivado pela ordem do impossível, é aquilo que está fora do simbólico e do imaginário, e constitui o que o autor denominou de "ex-sistência", mas que não cessa de produzir efeitos nos outros dois registros. O simbólico está remetido à linguagem, à cadeia de significantes e à divisão do sujeito na sua relação com o Outro. O imaginário, por sua vez, se estabelece no campo da imagem e da ilusão de unicidade.

Na década de cinquenta, apoiado no inconsciente estruturado como uma linguagem, Lacan (1953/1998) propõe a obra de arte fundamentada na teoria do significante, ou seja, o simbólico como registro análogo à poesia. O autor aposta na primazia do significante em relação ao significado; em outras palavras: um enunciado não possui um sentido fixo a priori, visto que um enunciado é sempre passível de se deslocar para outros significados, produzindo diversos efeitos de sentido. Pêcheux (1983/2008) toma o discurso não somente como estrutura, mas também, como acontecimento, visto que o autor leva em consideração o deslizamento de sentidos e o real em seu funcionamento. Esse real é uma espécie de jogo metafórico/metonímico que sobre determina um acontecimento ao sublinhar seus equívocos; e a consequência é a desestabilização do sentido anteriormente imposto (ou naturalizado). No Seminário, livro 7: a ética da psicanálise, Lacan (1959-60/1997) avança em sua teoria do significante que, por efeito, passa a descrever a arte numa relação mais próxima ao real, e não somente restrita ao simbólico, o que determina uma virada em sua teoria. A partir dessa virada, o autor formaliza três estéticas para descrever o funcionamento da obra de arte. Interessa-nos mais de perto a segunda estética da qual falaremos a seguir.

 

O discurso da denúncia - entre imagens e dizeres

O corpus que será analisado é constituído de três imagens fotográficas extraídas da criação artística Women's House (Sunglasses) (IVEKOVIĆ, 2002/2011). O escopo é analisar seu impacto sobre o sujeito-espectador, levando em consideração aspectos relacionados à segunda estética lacaniana e ao funcionamento escópico, além de aspectos do referencial teórico da Análise do Discurso pêcheutiana.

 

Figura 1

Fonte: Iveković (2002/2011, p. 170)2

 

Figura 2

Fonte: Iveković (2002/2011, p. 172)3

 

Figura 3

Fonte: Iveković (2002/2011, p. 175)4

 

Tomaremos o objeto a em sua versão escópica, o olhar, como ponto de apoio para a análise que se segue. Afirma Lacan:

Na medida em que o olhar, enquanto objeto a, pode vir a simbolizar a falta central expressa no fenômeno da castração, e que ele é objeto a reduzido, por sua natureza, a uma função punctiforme, evanescente - ele deixa o sujeito na ignorância do que há para além da aparência (...) (LACAN, 1964-65/1998, p. 80).

O objeto olhar regula a relação do sujeito com a arte. Nessa relação, o sujeito é fisgado pela obra e não o contrário: a particularidade da arte é sua exterioridade que captura o sujeito, o que opera uma subversão na ideia corrente de contemplação da produção pelo sujeito-espectador. Nessa lógica, o produto artístico capta o tropeço do espectador diante de um pedaço do real, figurado no minuto inquisidor do encontro entre sujeito e real. O objeto pulsional (ou o objeto a) é esse pedaço do real; por esse motivo, a contemplação de uma obra de arte equivale à satisfação pulsional.

O olhar de contemplação de um objeto de arte não é passivo; ele é sujeito à interpretação, ao filiar-se às formações ideológicas já estabilizadas para compreensão da obra. A ideologia interpela o sujeito ali, onde ele pensa que é autônomo e doador de sentidos, e obriga-o a inserir-se em formações discursivas dominantes. O papel do analista, nesse processo, seria investigar quais os outros sentidos que não emergem nesse processo, promotor de uma ocultação de sentidos indesejáveis que, no entanto, latejam na superfície significante da obra à espera de decifração.

O olhar percorre a figura (pintura, fotografia) partindo do canto superior esquerdo em direção ao canto inferior direito. Nesse primeiro momento, tudo o que estiver fora desse percurso fica à margem, como elemento negligenciável. As pinturas clássicas ressaltavam o centro da obra como o lugar dominante, para onde o olhar do espectador/contemplador deveria dirigir-se. De acordo com Bergo (2008):

Cada objeto aparece com inequívoca solidez, corpóreo, tangível. É como se a obra possuísse um texto, algo que nos conduzisse a sua interpretação já programada, explicitando o seu verdadeiro valor. Por isso, pode-se dizer que essas obras apresentavam valor simbólico e alegórico muito fortes. A representação de deuses, como, por exemplo, em O nascimento de Vênus (Boticcelli, ca. 1483), comprova essa organização permeada por valores simbólicos, que impede a variabilidade de interpretações. Quando os pré-impressionistas surgiram, houve uma mudança na função inteira do olhar, pois a obra passou a existir, artisticamente, fora de seus valores alegóricos, tendo assim o objetivo de ser contemplada (p. 03).

O principal suporte teórico da análise aqui realizada é a postulação de Recalcati (2005) sobre a estética lacaniana. O autor, a partir da obra de Lacan, estabelece três estéticas, ou seja, três perspectivas que colocam a arte numa relação determinante com o impossível. Trata-se de modalidades de implicação do real pulsional. A primeira se refere à estética do vazio, a arte como algo que organiza esse vazio numa tentativa simbólica de acessar o real que eleva o objeto à dignidade de Coisa. Na segunda estética, a arte é vista como o encontro do sujeito com o vazio de sentido. Na terceira, baseado no texto Lituraterra (LACAN, 1971/2003), Recalcati (2005) situa a arte como letra de gozo, algo que escapa a toda significação e também ao significante. Como veremos, é a segunda estética que fundamenta a análise.

No Seminário, livro 11, Lacan (1964-65/1998) descreve a segunda estética, na qual define arte, além da sublimação, como aquilo que estabelece o encontro do sujeito com o real. O foco passa a ser um objeto que rompe com a estabilidade simbólico-imaginária do sujeito-espectador, causando um efeito-surpresa. Isso significa que, por intermédio de sua prática simbólica, a obra expõe uma parcela do real ao produzir a tiquê5 (LACAN, 1964-65/1998, p. 56). Não se trata de reproduzir uma representação de sujeito, mas, sim, da marca de uma impossibilidade de sua representação. É o momento em que, através da função-quadro, o sujeito é capturado pelo olhar do Outro, ocorrendo aí uma inversão: não é o sujeito que olha o quadro, mas o quadro que olha o sujeito.

Para Recalcati (2005), a aliança com o indizível se constitui num instante de ruptura da série de significantes, cuja função seria estabilizar um sentido. Essa ruptura assinala um ponto flagrante do real da obra na relação com o sujeito, declarando o "excluído da representação" (p. 102) como descontinuidade real. Nesse sentido, a segunda estética desconstrói o marco da representação do sujeito e rompe com a cadeia de significantes, demarcando, assim, o furo na imagem.

Vejamos como esse processo se dá no corpus composto pelas fotos de Iveković (2002/2011). Observando as peças discursivas que apresentamos acima, percebemos que o olhar detém-se inicialmente nas figuras das mulheres retratadas6, no centro da peça, ostentando modernos e sofisticados óculos escuros, cabelos penteados com capricho e maquiagem, deste modo, o sentido inicial que é atribuído é o de que se trata de fotos artísticas. Esse seria o sentido dominante, estabilizado, determinado por formações ideológicas que visam manter a ordem, um mundo logicamente estabilizado (PÊCHEUX, 1983/2007).

O impulso do ato de olhar, no entanto, faz com que o olho se desloque pela superfície das peças artísticas. Outros indícios, pistas, detalhes aparentemente desprezíveis (GINZBURG, 1989) se apresentam nesse percurso. E essas novidades, ou rupturas, vêm desestabilizar o sentido inicialmente construído e, consequentemente outra interpretação se impõe, produzindo novos sentidos. O sujeito-espectador passivo é convocado a participar ativamente do ato: não mais contemplação; agora, interpretação. Comenta Bergo (2008):

O olhar é instigado a penetrar na obra, já que deve buscar apreendê-la, o que exige maior acuidade e interesse pela investigação e descoberta. Nada é certo e definido, o que dá à visão uma função mais importante: passa a ser, mais do que nunca, instrumento de conhecimento (p. 03).

Três indícios geram novos modos de olhar as peças, e, ao mesmo tempo, mudam as condições de produção das mesmas. São eles: as faixas vermelhas que aparecem no alto e no centro das três fotos; os depoimentos dados pelas mulheres retratadas e as marcas dos óculos (grifes famosas), quase ocultadas pelos depoimentos, mas evidentes o suficiente para ser capturadas pelo olhar.

As faixas atraem o olhar inicialmente pela cor - vermelho, numa peça em preto e branco. Não visamos aqui fazer um ensaio semiológico, porém chamamos a atenção para o significado do vermelho na sociedade. Paixão, virilidade, entusiasmo, mas também perigo. No trânsito, o sinal vermelho indica ordem para parar. Podemos fazer a aposta de que as faixas vermelhas estão ali por dois motivos: primeiro, para desestabilizar o olhar condescendente do sujeito-espectador e, segundo, para indicar que o olhar deve deter-se ali; para sinalizar um acidente de percurso.

A aparição da tiquê, gestora do automatismo simbólico, provoca surpresa, ou seja, interrompe o funcionamento do automaton7 (LACAN, 1964-65/1998,

p. 56), o que desloca a serialização significante e, por efeito, desestabiliza a unidade imaginária. O choque produz algo fora de qualquer representação, trata-se de uma súbita reunião com o não sentido que faz nascer uma hiância e/ou algo novo no encadeamento significante. Trata-se, portanto, não do contorno do vazio, através de significantes, mas, sobretudo, de seu encontro.

Vamos deter-nos, então, apresentando antes um anteparo teórico necessário.

Na construção do "ato de olhar" (LAZNIK-PENOT, 1997; NASIO, 1995), o impulso relacionado à pulsão se caracteriza como uma força constante que parte de uma "estrutura de borda", a fim de estabelecer uma costura, retornando à sua origem. Como mostra a figura 4, o circuito da pulsão:

 

Figura 4

Fonte: Lacan, 1964-65/1998

 

A pulsão sai de seu alvo, ultrapassa a borda, contorna o objeto a e retorna, em circuito, ao seu ponto, supostamente, de origem, por meio do movimento de retroação, do qual falaremos em detalhes abaixo durante a análise. Esse percurso firma um invólucro em torno do objeto a, como um envoltório. A conclusão do itinerário é o ponto de ser olhado, último tempo pulsional no qual o sujeito subtrai-se, tornando-se mancha ou se confundindo com o próprio objeto: no surgimento do olhar, o desvanecimento subjetivo é materializado na função quadro, ou seja, o sujeito desaparece onde o objeto o captura (LACAN, 1964-65/1998).

Nesse movimento de contorno, o sujeito se dá conta de que há inscrições nas faixas vermelhas. São nomes de instituições que abrigam mulheres que foram vítimas de violência doméstica por parte de seus companheiros: na figura 1, Autonomus Women's House, Zagreb; na figura 2, Transitionalle Living Centre against violence, Genoa; na figura 3, Mor Çati8 Women's Shelter, Istambul. A violência contra as mulheres ocorre no mundo (no caso Croácia, Itália e Turquia); não é localizada. Ou seja, fatores geográficos não explicam por que ocorre. São três abrigos diferentes em três países, isto é, não são apenas mulheres de determinados lugares que sofrem violência; isso ocorre com qualquer mulher, em qualquer lugar do mundo.

Como Ginzburg (1989) afirma, os indícios (as faixas vermelhas, ver figuras 1, 2 e 3) são detalhes que desempenham papel substancial, promovendo deslocamentos que possibilitam retificações na interpretação inicial. Os deslocamentos são feitos através da retroação.

Deslocando-se em linha reta a partir das faixas vermelhas, o olhar encontra "caixas" contendo depoimentos das mulheres retratadas. Trata-se de material linguístico-discursivo; verbal, portanto, oposto ao material não verbal que parece dominar as fotos. A análise dos indícios linguístico-discursivos desses depoimentos aponta para um funcionamento interessante. Vejamos.

"Eu fui submetida a vários tipos de violência, dependendo do estado de espírito do meu marido... Eu adorava ser mulher, apesar de todas as humilhações" (Fig. 3), enuncia o sujeito. Trabalhando com a materialidade significante dessa sequência, temos o recorte "fui submetida a vários tipos de violência" que, sintaticamente, coloca o sujeito como passivo. Ora, sabe-se que toda voz passiva tem uma ativa correspondente. Então, pode-se questionar: Quem submeteu o sujeito à violência (ou: Qual é o agente do ato violento?). O sujeito, na sequência declara "dependendo do estado de espírito do meu marido". Nota-se que o marido não é apontado diretamente como autor das violências. É o seu "estado de espírito", (talvez algo inefável, indescritível, indizível?) que é agente da violência. Não se pode incriminar um "estado de espírito". Esse gesto de nomeação por parte do sujeito agredido protege, inconscientemente, o agressor. Pergunta-se: quem é esta mulher agredida? Examinando mais adiante a sequência metonímica, vemos que ela era alguém que "adorava ser mulher". Adorava, no passado imperfeito. Então, há um antes, e um depois. Há uma linha de corte na memória discursiva desse sujeito, que marca duas mulheres: a que adorava ser mulher, e... O que vem depois desse corte? Outra mulher (outra posição-sujeito), que já não preza tanto sua feminilidade, depois das humilhações sofridas. Assim, no desdobramento imprevisto da discursividade, o sujeito migra do termo "adorava" que tem valoração positiva para "humilhações" de juízo negativo. Consideramos significativo também que no depoimento Fairuze grafa "marido" ora como "husbund", ora como "husband". Vemos aí um ato falho, visto que a grafia correta é usada. Nesse caso, a tarefa é interpretar. Chegou ao nosso conhecimento que "bund" é sinônimo de "embankment" e pode ser traduzido por dique, aterro ou (muro de) contenção da água. Já "band" significa bando, turma. O sujeito tropeça no real e é traído pelo inconsciente. A alternância entre "bund" e "band" indicia a divisão do sujeito, sitiado por duas interpretações possíveis, entre um dique que reprime ("hus-bund") e o desejo de "formar turma", unir-se a um grupo com o qual tenha afinidades ("hus-band").

Um parêntese: o enunciado concessivo (...apesar de todas...) gera o efeito de que se espera que algo ocasione determinada consequência no encadeamento, todavia, o enunciado se materializa numa oposição inesperada. Seu emprego aqui se faz oportuno para o resgate de um "já dito" (PÊCHEUX, 1975/1997), momento em que o sujeito recorre a uma memória discursiva (juízo positivo do que é ser mulher) a fim de acessar redes de sentido que já significam no contexto social. Melhor dizendo, o sintagma "eu adorava ser mulher" cria uma expectativa no outro, de que o sujeito dirá, através do fluxo do discurso, o motivo pelo qual alimenta a adoração remetida ao "ser mulher". Porém, o enunciado é interrompido pela frase concessiva "apesar de" que introduz uma consequência contrária àquela esperada: "todas as humilhações".

Seguindo o fio intradiscursivo - "uma interioridade determinada do exterior" (PÊCHEUX, 1975/1997, p. 167) - colhemos uma contiguidade entre os significantes "ser mulher" e "humilhações", o que naturaliza um elo causal entre ser mulher e sofrer humilhações. Trata-se do imaginário social encarnado na memória discursiva e impondo um sentido dominante que comanda a interpretação do sujeito de maneira inconsciente.

Ao compararmos as ligações significantes estabelecidas em nossa análise, frisamos um efeito de contradição devido ao rompimento da linearidade discursiva que revela a dispersão subjetiva. Nessa dispersão, o sujeito do inconsciente emerge através do equívoco, desnivelando a homogeneidade representativa (GUIMARÃES; ORLANDI, 1988; MILNER, 1978/2012).

As formações ideológicas relativas à mulher submissa ao marido (LIPOVETSKY, 1997) e sujeita às "humilhações", conforme o "estado de espírito", sobrevivem intercaladas às outras sequências discursivas "adorava ser mulher". Essas vozes incidem na própria divisão do sujeito (pois emerge entre significantes) que pescamos na vacilação discursiva, por meio do choque entre o dizer de julgamento positivo sobre a mulher ("adorava ser mulher") e seu discurso opositor ("ser mulher-humilhações"). Essa colisão de dizeres não deve ser reduzida à diversidade de posições, mas, sobretudo, remetida a algo irredutível ao discurso: uma fratura como condição estrutural da linguagem (MILNER, 1978/2012).

Temos aí um além interdiscursivo, que, embora estruture o processo de subjetivação, justamente, o desestabiliza (PÊCHEUX, 1975/1997). Essa evidência é coletada no rastro da insuficiência significante sobre "ser mulher", ou seja, não há palavras que definam de forma precisa o que é ser mulher. Essa insuficiência da linguagem é contornada pelo recurso da conjunção concessiva que permitiu ao sujeito dizer o que é imaginariamente ser mulher.

Tratemos a seguir da inserção das marcas dos óculos e sua função nas fotos.

Atrás dos depoimentos, vemos parte dos nomes dos óculos das grandes marcas, grifes de luxo. Qual a função dessas marcas? Pensamos tratar-se de um jogo de velamento/adivinhação: o que está por trás daquilo que se olha? Assim como os depoimentos escondem/ocultam/velam os nomes das marcas de óculos, também os óculos escondem/ocultam/velam as marcas da violência.

O efeito-propaganda, nesse ponto, se desfaz com o depoimento dos sujeitos retratados, no qual as três mulheres revelam que sofreram violência da parte dos companheiros. Assim, emerge um efeito de estranhamento no sujeito-espectador, que ocasiona nele uma mudança de posição: ele sai de uma posição de quem apenas contempla o objeto-arte e muda para uma posição mais ativa, onde procura estabelecer relações de causa e efeito. Surge daí a dúvida sobre a verdadeira função dos óculos de grife (e da obra de arte): propaganda ou denúncia? Trataremos desse tópico no decorrer do artigo.

O sujeito-espectador, ao olhar para a obra de Iveković, é atraído pelas belas mulheres portando elegantes óculos e, em outro momento, provocado pela comoção daquilo que está materializado nos seus discursos. De acordo com a segunda estética proposta por Lacan, a consequência é que a violência inscrita nesses testemunhos realiza uma mancha na coesão simbólico-imaginária das imagens, desestabilizando a consonância entre dizeres e fotografias. O sujeito se depara com uma contradição entre as fotos de belas mulheres usando óculos de grifes internacionais, sugerindo fotos de propaganda, e os relatos sobre terem sido vítimas de violência por parte de seus companheiros. Trata-se de duas formações discursivas antagônicas, que colocam o sujeito-intérprete diante de duas formações ideológicas contraditórias, dividido entre a leitura do sucesso representado pela sugestão de que se trata de modelos de propaganda de óculos e outra leitura, contrária, dos depoimentos, leitura que desestabiliza a primeira, pois leva a interpretar as "modelos" como vítimas de atos de agressão, violência e humilhação. Assim, é necessária uma retificação da leitura linear inicial. A composição da obra (fotografias e testemunhos) como materialidade discursiva é enganosamente homogênea.

Trata-se do rompimento da unidade representacional que aciona a função quadro, fazendo surgir o olhar, elisão do sujeito-espectador, que soçobra sem representação. O choque produz o fora da representação, através de uma surpresa súbita diante do discurso desses sujeitos. Desse modo, o impacto da emergência de um equívoco gera a deriva de sentidos, um corte que assinala uma descontinuidade entre simbólico, imaginário e real. Podemos dizer que houve a incorporação de uma inquietação ou um desenlace nos três registros, momento em que o espectador não pode mais continuar na mesma posição após ser tocado pela arte de Iveković.

Observamos que o sujeito-espectador é capturado no instante em que é desequilibrado e precisa sair do lugar acomodado de uma leitura imposta pela ideologia dominante, que reclama pela estabilização dos sentidos. Essa estranheza (provocada pela contradição entre a fotografia, o relato e a ocultação das marcas dos óculos) faz emergir o objeto escópico, o supressor da representação subjetiva; é o momento em que se instala algo da ordem do real, ou seja, o impossível de significar.

A obra de Iveković (2002/2011) aqui apresentada faz uma crítica ao discurso midiático, especialmente o discurso da propaganda, que convida o sujeito ao consumo irrefreável de produtos que carregam um sinal de status superior, materializados aqui nos óculos de marcas de prestígio social. O foco nas imagens revela uma racionalidade típica do discurso da mídia, uma qualidade da sociedade espetacular que reflete o espelho de uma ordem social pautada na fundição entre imagens e mídia. Essa integração se destina à vedação daquilo que não representa ao negligenciar suas possíveis consequências sociais (ARRIOLA, 2008). Vejamos do que se trata essa vedação, representada pelos grandes óculos.

Um dos elementos dos retratos são os luxuosos óculos de sol, objetos de consumo (e de desejo) referidos às logomarcas inscritas na parte inferior dos arranjos: Blumarine, Hugo Boss e Dolce & Gabbana. Trata-se de grifes de moda que materializam uma "memória social"9 (PÊCHEUX, 1983/2007, p. 50), sedimentada em "pré-construídos"10 (Id., ibid., p. 52) que operam na cena social. Em outras palavras: as marcas conhecidas, através da mídia, convocam o sujeito a interpretar, num primeiro olhar, a obra como algo da ordem do marketing e do consumo; no entanto, configura-se como uma forma de denúncia do funcionamento capitalista do discurso (LACAN, 1972) na atualidade.

 

Considerações finais

Interpretamos que há um efeito de estranhamento radical sobre o sujeito-espectador, construído pela obra de Iveković (2002/2011). Inserimos sua obra Women's House (Sunglasses) na segunda estética lacaniana, pois consideramos a sua criação como algo da ordem do encontro com o real, onde o objeto a, em sua versão escópica, surge em detrimento do apagamento do sujeito.

Tomamos as imagens presentes na obra como índice da contemporaneidade e do discurso capitalista que, por sua vez, inscreve o sujeito às avessas, como objeto consumido na formação social. O comando desse discurso, em que os sujeitos contemporâneos experimentam o fracasso do simbólico - ao privilegiar o imaginário, necessário para estabelecer as bordas do real - pode funcionar como um chamado à agressividade, isso não quer dizer que antes não havia esse modo de violência.

Vimos que as imagens se filiam ao discurso da mídia, com o propósito de denunciar tanto a ilusão que o discurso capitalista promove, quanto a violência dirigida às mulheres. Revelamos, ainda, a organização imagética (registro imaginário) da obra que opera em uma estrutura de velamento daquilo que não é possível ser representado e/ou materializado. Por fim, juntamente com a arte da Iveković, denunciamos a violência contra as mulheres que ocupam o lugar de objeto dos homens numa perspectiva das formações sociais ou imaginárias. Esse lugar, a artista convoca em sua arte na forma de denúncia à violação dos direitos das mulheres. Ao delimitarmos a posição subjetiva do sujeito depoente nessa arte, notamos a afetação por uma memória social, regente da legibilidade do registro simbólico. Nesse sentido, a divisão do sujeito emerge na vacilação subjetiva materializada no choque entre um dizer positivo sobre a mulher e seu discurso contrário que está associado aos valores negativos atribuídos às mulheres. Convém, também, anotar que a autora das obras analisadas fornece boas pistas de suas filiações ideológicas e dos sentidos que atribui à relação entre homem e mulher.

 

 

Referências

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Artigo recebido em: 28/03/2021
Aprovado para publicação em: 16/06/2021

Endereço para correspondência
Leda Verdiani Tfouni
E-mail: lvtfouni@usp.br
Juliana Bartijotto
E-mail: jubartijotto@gmail.com
Carolina Molena
E-mail: carolinamolena64@gmail.com

 

 

*Professora titular da Universidade de São Paulo (USP). Pesquisadora do CNPq, psicanalista. Pesquisadora Associada da Rede Nacional de Ciência para Educação. Ribeirão Preto, SP, Brasil.
**Doutora em psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto/Universidade de São Paulo (USP) em dupla titulação pela Université Paris 8 - França. (Financiada pela CAPES). Psicanalista. Ribeirão Preto, SP, Brasil.
***Doutora em psicologia pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto/Universidade de São Paulo (USP). Psicanalista. Porto Ferreira, SP, Brasil.
1Trabalho financiado pela CAPES e pelo CNPq.
2Mihaela, 34, sérvia, casada, dois filhos. No começo eu pensei que o ciúme dele era um sinal de amor, então, eu ignorei a violência. Eu o amava e acreditava que a violência eventualmente terminaria. Durante a guerra, no entanto, a situação piorou. Eu sou sérvia e ele é muçulmano; minha nacionalidade tornou-se uma nova razão para ele abusar de mim. Eu passei pelo inferno. Ele trouxe para casa seus companheiros de guerra e me forçou a beijar suas botas, enquanto eles me chamavam de puta sérvia. Depois de passar 12 dias no hospital, decidi fugir com meus filhos. Agora, estou em um abrigo, e espero mudar minha vida. (Tradução nossa).
3Sonia, 32, russa, casada, um filho. Eu era uma pessoa alegre. Quando jovem, morei em Moscou e minha paixão era a dança. Durante uma turnê com minha companhia de dança em Roma, conheci o meu futuro marido e pai de meu filho. No início, eu estava feliz; ele era generoso, bem-educado, até que nos casamos. Depois, ele tornou-se ciumento, possessivo e, finalmente, violento. Eu desisti de tudo só para evitar lutar com ele. Eu existia apenas para a minha família. Aprendi a costurar; trabalhei como costureira. Ficava em casa o tempo todo, mas mesmo assim isso não foi suficiente para fazer o seu ciúme suportável. Enquanto isso, eu tinha engravidado e dado à luz, esperando que eu um dia pudesse voltar a dançar. Encontrei um emprego como instrutora de dança em uma escola. Foi muito doloroso me divorciar e separar meu filho de seu pai. Gostaria de deixar para trás tudo que fosse negativo, e começar de novo, como alguém que tenha acabado de chegar à Itália. (Tradução nossa).
4Firuze, 45, turca, divorciada, dois filhos. Eu nasci em um casamento infeliz. O amor instável dos meus pais e o relacionamento de altos e baixos deles tornaram meus irmãos e a mim infelizes. Minha mãe morreu ao dar à luz outro bebê. Quando meu pai casou de novo, eu não consegui conviver com a minha madrasta. Deixei a escola e me casei. Esse casamento de fuga arruinou a minha vida. Fui submetida a vários tipos de violência, dependendo do estado de espírito do meu marido. Eu tinha dois filhos e me dedicava a criá-los. Adorava ser mulher, apesar de todas as humilhações. Adorava deixar o meu cabelo comprido, mas durante meu casamento eu sempre o mantive curto para reduzir os danos que meu marido poderia causar. Um dia, eu decidi que era o suficiente para mim. Eu não tinha que viver esta vida dura. Eu queria a minha liberdade. Abandonei o meu marido. Por acaso me deparei com a Mor Çati, onde tive minha primeira experiência de solidariedade feminina e apoio psicológico. Divorciei-me e ganhei a minha liberdade. Agora nós, mulheres, apoiamos umas às outras, e eu quero ter certeza de que a Mor Çati estará sempre lá para as outras. (Tradução nossa).
5A tiquê refere-se ao encontro com o real e com o não sentido da fala, um além da cadeia dos significantes (ALMEIDA; ATALLAH, 2008).
6Talvez as mulheres das fotos sejam modelos em poses arranjadas pela autora para produzir um efeito de sentido. Esse detalhe não altera nossa análise, como é evidente pelo texto acima apresentado. Trata-se de todas independente de características individuais.
7O autômaton se caracteriza pelo automatismo inconsciente (ou repetição) da cadeia de significantes (ALMEIDA; ATALLAH, 2008).
8Uma busca no Google translate forneceu como tradução "Telhado Roxo". Acreditamos que se trata de uma metonímia.
9"A memória é um espaço móvel de divisões, de disjunções, de deslocamentos e retomada, de conflitos de regularização" (PÊCHEUX, 1983/2007, p. 56).
10O "pré-construído" funciona como um "elemento [que] já se encontra ali, [o que remete] às evidências pelas quais o sujeito se vê atribuir os objetos de seu discurso: 'o que cada um sabe' e simultaneamente 'o que cada um pode ver' em uma dada situação" (COURTINE, 1981/2009, p. 74).

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