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Cadernos de psicanálise (Rio de Janeiro)
versão On-line ISSN 1413-6295
Cad. psicanal. vol.43 no.45 Rio de Jeneiro jul.dez. 2021
ARTIGOS
Acolhimento em saúde mental: um recorte psicanalítico
Hospitality in mental health: a psychoanalytic approach
Maurício Lopes da SilvaI*; Diapula Minotto da SilvaII**; Graziela AmboniII***; Carla Sasso SimonII****
IUniversidade Federal de Santa Catarina - UFSC - Brasil
IIUniversidade do Extremo Sul Catarinense - UNESC - Brasil
RESUMO
Esta produção é fruto de uma pesquisa que visou investigar a escuta no acolhimento em um Centro de Atenção Psicossocial. Foi realizada entrevista semiestruturada com os profissionais do serviço, os discursos foram analisados a partir da teoria da análise de discurso de Michel Pêcheux. A clínica da atenção psicossocial se apresenta na relação com o sujeito do inconsciente por meio de uma escuta que considera a palavra, atravessada pelo conceito de transferência, ponto de partida para a constituição do cuidado, sustenta sua ética, viabilizando a reconstrução do laço social.
Palavras-chave: Acolhimento, Saúde Mental, Psicanálise, Reforma Psiquiátrica Brasileira.
ABSTRACT
This production is the result of a research that aimed at investigating listening in the reception in a Psychosocial Care Center. A semi-structured interview was carried out with the professionals of the service, the speeches were disseminated based on Michel Pêcheux theory of discourse analysis. The psychosocial care clinic presents itself in the relationship with the unconscious subject through a listening that considers the word, crossed by the concept of transference, a starting point for the constitution of care that sustains its ethics, enabling a reconstruction of the social bond.
Keywords: Reception, Mental Health, Psychoanalysis, Brazilian Psychiatric Reform.
Introdução
A Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) é um processo que se intensifica a partir da conjuntura de democratização que o Brasil vivenciou após a ditadura militar de 1964 (AMARANTE, 2010). Compreendida como um complexo processo político e social, formado por múltiplos atores e atuando em diversas esferas, a RPB abrange um conjunto de transformações de práticas, saberes e valores socioculturais. Esse processo firmou sua crítica às instituições psiquiátricas clássicas e à violência exercida sobre os sujeitos em sofrimento psíquico na época (BRASIL, 2005). Propõe não só a quebra de um paradigma centrado na doença, mas a transformação do modelo hegemônico nas relações entre a sociedade e loucura. Destaca-se que a desinstitucionalização é marca importante que situa a RPB, propondo uma outra forma de cuidar dos sujeitos acometidos por intensos e persistentes sofrimentos psíquicos (AMARANTE, 2010). Não bastando, somente, retirar os sujeitos em sofrimento grave dos hospitais psiquiátricos, mas sim propor formas de estar no laço social, rompendo com os paradigmas sobre a loucura.
Historicamente a RPB é considerada um movimento fundamental para a criação dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) tensionando a relação dos sujeitos com a loucura, assim como dos profissionais com os modos tradicionais de pensar a ciência e suas intervenções. O CAPS é um dispositivo de saúde mental aberto e comunitário que compõe o Sistema Único de Saúde (SUS). Compreendido como um local de referência e tratamento aos sujeitos que apresentam "transtornos mentais", ou sofrimento psíquico grave e persistente. São considerados dispositivos de cuidado promotores de vida. Seu objetivo visa oferecer atenção psicossocial, viabilizando o acompanhamento clínico; a reinserção social dos usuários por meio do trabalho, lazer, promoção dos direitos civis, assim como a viabilização da promoção dos laços familiares e comunitários, que compõe a rede substitutiva aos hospitais psiquiátricos (BRASIL, 2004). Em pesquisa realizada por Bernardi e Kanan (2015) destaca-se que, em relação aos CAPS do estado de Santa Catarina, apresenta-se um esforço na busca de firmar a RPB e o SUS, trabalhando na lógica da clínica ampliada, território e Projetos Terapêuticos Singulares (PTS). Suas fragilidades giram em torno da realidade da constituição das equipes profissionais, tanto em relação à equipe mínima, quanto ao trabalho exercido por uma equipe que não atinge as recomendações das portarias 336/20021 de 3088/20112, delatando a dificuldade em manter a atuação efetiva nos processos de reestruturação psicossocial dos usuários.
O PTS situa-se por meio de um conjunto de propostas e formas de cuidado que se articulam e necessitam da articulação em equipe. Insere o sujeito nestas formas de cuidado viabilizando a autonomia (BRASIL 2007). A partir de Campos (2012) entende-se a Clínica Ampliada como noção que envolve as formas de cuidado clínico que destoam dos moldes epistemológicos que se consolidaram a partir do espaço do consultório tradicional, abrindo um espaço complexo de atendimentos.
A clínica ampliada pode ser compreendida como uma busca de integrar as diversas abordagens de trabalho visando um manejo eficaz, transdisciplinar e multiprofissional. Coloca em discussão a fragmentação dos processos de trabalho, criando um contexto favorável de fala e escuta sobre determinadas demandas, não restringindo as demandas dos usuários ao mero tratamento de doenças especificas. Em seu exercício há compreensão ampliada dos processos de saúde e doença, construção compartilhada de diagnósticos e formas de cuidado e a ampliação do objeto de trabalho (BRASIL, 2009), constituído a partir da Política Nacional de Humanização (PNH).
Esta é entendida como uma ética que atravessa os múltiplos fazeres em saúde, presente nas formas de cuidado e gestão no SUS. Dentre as orientações gerais desta política, encontra-se a valorização da dimensão subjetiva e coletiva. Tem em suas diretrizes o método de inclusão, a transversalidade, a indissociabilidade entre atenção e gestão e protagonismo, a corresponsabilidade e autonomia dos sujeitos e dos coletivos (BRASIL, 2010).
Localiza-se este sujeito para além do sujeito cartesiano e do discurso psiquiátrico, o inconsciente descoberto por Freud em seus Estudos sobre a histeria (FREUD, 1895/2016), nos diz da relação do sujeito em sua história de vida e na produção de seus sintomas, propondo cuidado, ao que na época se apresentava como sofrimento grave. No campo do tratamento, a psicanálise considera a transferência (FREUD, 1912/2010) ponto importante, pois sem ela não há sustentação do cuidado e das intervenções; sendo assim é pela via transferencial que se pode propor algo ao sujeito, demandar uma questão, fazer laço e iniciar o tratamento.
Nesta articulação entre espaços de cuidado e defesa de direitos a dignidade humana, propõe-se pensar o olhar da psicanálise no cuidado em saúde mental, juntamente com os ideais da RPB. Trabalhando a partir da lógica da clínica ampliada, situa-se o acolhimento como porta de entrada que representa a escuta do sofrimento dos usuários e de seus familiares. Sendo assim, este trabalho dá vazão às relações subjetivas no acolhimento em saúde mental, desvelando um inquietante que nos convoca a pensar: como a clínica da atenção psicossocial se apresenta na relação com o sujeito do inconsciente?
Metodologia
Este artigo é parte de uma pesquisa desenvolvida em 2018 sobre a escuta no acolhimento em saúde mental em um centro de atenção psicossocial.
A pesquisa é caracterizada como qualitativa, exploratória e descritiva. Em sua primeira etapa foi conduzida uma revisão da literatura sobre os referenciais da psicanálise e da saúde coletiva frente aos processos de humanização e da escuta em saúde mental. Em um segundo momento, após aprovação junto ao comitê de ética da Universidade do Extremo Sul Catarinense, nº do parecer 2.450.634, foram realizadas entrevistas individuais no CAPS, permitindo ouvir os discursos dos profissionais sobre suas questões referentes do tema proposto. Foram entrevistados cinco profissionais acolhedores das diversas áreas profissionais, incluindo psicólogo, enfermeiro, assistente social, farmacêutico e técnico de enfermagem. Esses profissionais foram selecionados de acordo com a disponibilidade e o interesse de cada um. Foi realizado contato prévio com o serviço que, em reunião de equipe, selecionou os participantes. As entrevistas tiveram duração média de 20 minutos.
O roteiro de entrevista semiestruturada, elaborado pelos pesquisadores, envolveu as seguintes questões principais "O que se escuta no acolhimento em saúde mental?" e "Como funciona o acolhimento em saúde mental?" As narrativas foram analisadas por meio da análise do discurso (AD) de Michel Pêcheux, um dispositivo que visa analisar a textualização daquilo que é político no discurso, assim como, uma compreensão maior das relações entre o simbólico e as relações de poder. Considera-se também a linguagem como um sistema capaz de ambiguidade, definindo a objetividade como a inserção dos efeitos materiais da língua na história. É incluída a análise do imaginário nas relações do sujeito com a linguagem (ORLANDI, 2005).
Evidencia-se como material de análise o interdiscurso, tudo aquilo que é considerado já dito, e torna de alguma forma, possível o dizer. Desta forma, as pessoas estão ligadas a um saber discursivo que não é aprendido, mas sim produz seus efeitos por meio da ideologia e do inconsciente (ORLANDI, 2005). O interdiscurso abrange os saberes compostos na memória do dizer; daquilo que pode ser dito e está presente na sociedade. Entende-se que existem, antes do sujeito, saberes constituídos pela coletividade. O intradiscurso situa-se a partir da materialidade, é a fala, a formulação do texto, aquilo que é linear do discurso, sendo esta nossa base central de análise, onde o corpus central de análise da AD é constituído pela formulação: ideologia + história + linguagem (CAREGNATO; MUTTI, 2006). A discussão dos dados ocorreu à luz dos princípios da Reforma Psiquiátrica Brasileira e da Política Nacional de Humanização, interpelados por conceitos da Psicanálise.
Resultados e discussão
O funcionamento do acolhimento na Clínica em Saúde Mental
Para compreender a relação do sujeito com o serviço de saúde mental, inicialmente precisa ser entendido de que maneira o sujeito se apresenta na instituição; isto ocorre, a priori, no acolhimento, contato inicial que marca a entrada do sujeito na cena do cuidado para equipe de saúde mental. Entende-se que o primeiro contato com o usuário acontece anteriormente a isto, quando vêm encaminhados de outros dispositivos de saúde, tais como as estratégias de saúde da família (ESF) e hospitais gerais, ou também quando familiares ligam para o serviço com a intenção de saber acerca de seu funcionamento. Porém, aqui tomo os rumos do primeiro contato institucional a partir da chegada do usuário ao serviço, pois é neste momento que o sujeito está como alguém que, de alguma forma se colocou em movimento, procurando contato direto com a equipe e a instituição.
O pensar desafiador se encontra na busca de um modelo de clínica que, amparada pela construção histórica da Reforma Psiquiátrica e na crescente tentativa de encontrar meios de humanização, propicie o rompimento do paradigma da institucionalização da loucura. Seguindo esta perspectiva, foram realizados questionamentos aos profissionais sobre o funcionamento do acolhimento no CAPS. Esta questão buscou compreender o primeiro contato do usuário da rede de saúde com o CAPS, assim como os procedimentos e recursos envolvidos neste processo. Com isto ressaltam-se as falas:
(...) Então, a princípio, aqui ele é agendado, a cada período da semana. Manhã e tarde têm um acolhedor responsável, mas caso não seja agendado e venha por emergência, o CAPS também é a porta aberta; o acolhedor vai estar aqui pra atender. Se o profissional do dia estiver ocupado, estiver com outro, houver gente esperando, é outro profissional que realiza o atendimento. Mas a princípio sempre fica um acolhedor de plantão (...)". (P4)
O acolhimento funciona assim: o paciente vem até nós de várias formas, como demanda espontânea, encaminhado do plantão 24h, de algum posto de saúde, do psicólogo, psiquiatra da rede, em geral... como diz a nossa colega "o universo encaminha para o CAPS". Nós absorvemos esse paciente de forma que se existe uma emergência, um surto, nós atendemos na hora, damos toda a assistência que seja necessária. Caso necessário a gente aciona SAMU, 24 horas ou a polícia. (P5)
Evidencia-se por meio desses discursos o acolhimento como norteador e organizador do primeiro contato do sujeito no serviço, viabilizando uma maior facilidade para a distinção entre as necessidades de urgência e emergência, denotando a centralidade do cuidado em saúde mental referenciado ao CAPS, demonstrando fragilidade de outros serviços em lidar com demandas de intenso sofrimento psíquico.
Compreende-se que o acolhimento pode ser realizado de diversas formas, dependendo da organização do serviço, sendo a partir dele que serão constituídos, em conjunto, meios de intervenções terapêuticas para cada usuário. Todavia, caso não seja viável ou o sujeito não aceite o trabalho proposto pelo CAPS, deverá ser encaminhado a outro serviço de saúde que possibilite esse suporte (BRASIL, 2004).
Outro ponto importante, de acordo com Marques (2005), é a compreensão da realidade complexa e das exigências da vida atual que se relacionam com esses sujeitos. Estes, apresentam-se às instituições trazendo a intensidade de seus traumas e sofrimentos com a ideia de livrar-se daquilo que os faz sofrer. Buscam por meio do serviço um local onde possam ser acolhidos e escutados. Sendo assim, este encontro inicial, que pode ser chamado de acolhimento, triagem ou entrevista inicial, torna-se ponto de continência.
Schmidt e Figueiredo (2009) ressaltam que o acolher é um processo que depende de uma estrutura e de aspectos não somente físicos de acesso, mas sim de recursos clínicos da equipe, que são atravessados pelo escutar, avaliar e reconhecer as demandas de cada sujeito. O acolhimento demanda ação imediata, mediada pela palavra, por um outro, e posteriormente requer um intervalo de tempo para a construção de uma resposta. Este momento leva aos profissionais a construção de um diagnóstico da situação e à reflexão frente ao que é possível propor.
Seguindo esta perspectiva, os caminhos para este fazer requerem atenção e investimento, não só físico, mas também psíquico, pois o discurso da instituição deve ser atravessado pelos fundamentos da RPB e da PNH com a função de constituir o entre sujeitos na busca de proporcionar surgimento da real demanda.
Para isso, evidenciam-se as falas,
(...) o acolhimento é apenas um norteador, no começo realmente tu pega essas questões básicas de dados, mas depois é uma conversa que tu vai tendo com a pessoa que tu vai trazendo e tu acaba encaixando essas questões que são pertinentes pra nossa avaliação. Na reunião de equipe que discutimos o caso e definimos se a pessoa vai pra rede ou se fica no CAPS. (P1)
A gente segue aquele roteiro, nele tem perguntas básicas, desde o histórico da doença até o momento atual da doença, da sintomatologia, o sofrimento que o paciente traz, quais medicações este sujeito usa, se já fez atendimento psicológico em algum lugar. Questões previdenciárias também, porque tem muito paciente que procuram a gente por ganho secundário, as vezes atrás de atestado, então são perguntas importantes também. Então ele está ali pra te guiar, mas tu ficas livre. (P4)
Evidencia-se o acolhimento com dupla função: primeiramente surge a noção de uma escuta que ouve o sujeito e que se propõe a pensar estratégias de cuidado e encaminhamento: concomitante a isto está a função de triagem, compreendendo a história clínica desses usuários, sua relação com os sintomas e o uso de medicamentos. Isto é compartilhado, ampliando-se o quanto possível a estratégia de cuidado, a partir da reunião de equipe. Estas estratégias surgem como momento de diálogo para auxiliar e organizar esses processos, ressaltando a importância do caráter multiprofissional e suas interlocuções nas discussões de casos.
De acordo com Rinaldi e Bursztyn (2008) a existência dos CAPS como atuais dispositivos de atenção à saúde mental, ainda traz consigo o antigo paradigma manicomial, centrado nos hospitais psiquiátricos, constituindo grande desafio na construção de uma assistência psicossocial que compartilhe de uma prática clínica desenvolvida por vários profissionais, que por fim envolve a comunicação entre os vários saberes e práticas que se encontram presentes na atenção psicossocial.
Traços do paradigma manicomial ainda se evidenciam por meio de aspectos concisos de padronização do contato inicial com o sujeito, onde é ressaltada primeiramente a necessidade de reconhecimento dos aspectos voltados à doença. Sinaliza-se a necessidade de organização desses processos que, mesmo interligados, podem dificultar o contato inicial com o sujeito. Deve-se proporcionar um espaço para que o sujeito seja amparado e acolhido, proporcionando posteriormente um momento para a coleta de dados essenciais para o serviço (RINALDI; BURSZTYN, 2008).
Nas últimas décadas a mudança dos modelos institucionais, jurídicos e sociais, proporcionou a reinvenção dos modos de fazer clínica, por meio de práticas que vão além dos espaços tradicionais, dentre eles, os consultórios. Novos dispositivos de tratamento no campo da atenção psicossocial foram criados, dentre eles encontram-se os Residenciais Terapêuticos; isto se deu pela potência que a Reforma Psiquiátrica e a desinstitucionalização no país provocaram. Este processo gerou a descentralização do saber e da clínica psiquiátrica nas práticas de cuidado em saúde mental, dando espaço para as contribuições teóricas e técnicas de diversas áreas (BUENO, 2016).
Bueno (2016) ressalta que a RPB foi proposta com dupla referência às dimensões política e clínica. De um lado é apresentada às noções da desinstitucionalização, visando pôr o sujeito em cena no cotidiano da vida. Do outro, a tentativa de encontrar a forma que vá ao encontro dos ideais políticos da cidadania. Nesse cenário, criou-se importante conceito: o de clínica ampliada.
A clínica ampliada envolve a complexidade dos sujeitos que utilizam os serviços públicos de saúde, demarcando os limites que a prática clínica tradicional implica. Autoriza ir além do diagnóstico universalizante que não viabiliza compreender a real verdade que envolve o sujeito. Compreende-se por clínica ampliada o compromisso com o sujeito em sofrimento, concebendo-o a partir de sua singularidade; a responsabilidade sobre os usuários dos serviços de saúde; a concepção de intersetorialidade; a concepção de limites relacionada aos conhecimentos. A Clínica Ampliada busca desenvolver e reconhecer a autonomia do usuário, colaborando para o equilíbrio entre o combate à doença e a produção de vida (BRASIL, 2008).
Sendo assim, pontua-se que há possibilidade de amparar a prática do acolhimento a partir da prática da entrevista clínica por meio da psicanálise. Esta consiste em um momento privilegiado que proporciona o acesso ao outro, constituindo por meio da palavra um instrumento que viabiliza a construção de uma relação de ajuda, possibilitando um caminho para a subjetividade em forma de discurso. O discurso vai além daquilo que é dito, expressa a comunicação de algo a partir da condição daquele que fala. É neste sentido que o direcionamento das questões do roteiro de entrevista no acolhimento pode ser considerado desviante, pois pode gerar a possibilidade de impedir a real demanda do sujeito (MACEDO; CARRASCO, 2005), criando uma divisão entre aquele que ouve e aquele que fala.
Macedo e Carrasco (2005) ressaltam que a complexidade da entrevista, nesse caso a entrevista inicial do acolhimento, a expectativa de um roteiro pronto a ser seguido, que por sua vez, pode desconsiderar os aspectos subjetivos dos envolvidos nessa situação inicial. Importante ressaltar que o entrevistador deve amparar-se a partir de uma teoria, havendo a comunicação entre o campo do teórico e o campo da prática, proporcionando a sustentação do caráter investigativo que o ato de entrevistar possui. Mesmo a entrevista clínica não pertencendo a um fazer único, se vincula a partir da forma pela qual o entrevistador percebe os fenômenos humanos. A escuta em uma entrevista inicial deve estar desprovida de preconceitos e de concepções prévias sobre aquele que fala. Será a partir da construção das relações que o enigmático será reconhecido, sinalizando o caminho para os encaminhamentos.
Ao pensar este local da clínica da atenção psicossocial, pensa-se o papel da psicanálise nos espaços públicos. De acordo com Stevens (2007) a psicanálise na instituição tem o papel, dentre outros, de interpretar as experiências deste local, sendo necessário um reinventar constante do seu modo de operar, existindo eixos centrais que servem como guia à instituição: desespecialização, a formação, a invenção e a transmissão.
A desespecialização vai em direção à desidentificação, proporcionando um rompimento entre o sujeito e seu próprio sintoma, ou seja, mesmo sendo importante ouvir do que se trata no sintoma, o sujeito, nesta direção, não é colado ao seu sintoma (STEVENS, 2007). Quando há no discurso científico a nomeação do sujeito, caminha-se em direção à alienação, ou seja, não se fala em clínica da depressão, da ansiedade ou dos transtornos que ali se apresentam; o que deve ser promovido efetivamente é a possibilidade da produção do corte que irá viabilizar uma representação melhor da história falada pelo sujeito. No discurso o sujeito tende a seguir a direção da repetição, romper com isto proporciona possibilidades de (re)invenção (ABREU, 2008).
Outro ponto importante relacionado a desespecialização, é o plano do trabalho técnico, quando é proposto pensar o trabalho não a partir de cada especialidade, compreendendo os múltiplos profissionais, não desvalidando nem individualizando seus saberes e práticas específicos. As práticas são amparadas por meio dos estudos de casos, conhecidas como reunião de equipe, que atravessam e envolvem todos os pontos de vista. Essas reuniões devem direcionar os profissionais rumo à invenção do tratamento dos usuários e não em uma síntese sobre o caso. Considera-se também que cada profissional tem um local próprio quando relacionado à dinâmica da transferência (ABREU, 2008). Este processo torna-se visível a partir das falas,
Não temos capacitação, (...) O profissional é contratado, ele entra e quem capacita são os profissionais mais antigos, (...), a gente tem um roteiro que seguimos, que desenvolvemos junto com a equipe, volta e meia a gente está mudando o roteiro. Claro que é uma coisa muito pessoal, tem gente que segue o roteiro, tem gente que não segue (...) por isso, tu tem que fazer um roteiro, por isso tu tem que seguir, porque muitas coisas são esquecidas. O paciente leva pra um lado que as vezes tu te envolve naquilo e acaba esquecendo de perguntar algumas coisas, por isso é importante seguir um roteiro. E a gente sempre foca. Por isso que dali a gente esquece o diagnóstico, tu foca no sofrimento e no que a pessoa está trazendo. Quais são os problemas? A gente não tem capacitação, a gente não tem aquele preparo, a gente não tem aquele estudo, simplesmente acompanhamos alguns usuários sendo atendidos e vamos embora. Porque a agenda está ali, tem que acolher, tem que receber. Então, isso deixa o pessoal um pouco inseguro (...). (P4)
A reunião de equipe em si, pra mim já é uma capacitação, porque quando a gente apresenta um caso, por exemplo, os psicólogos veem com um caso pra apresentar, então eles já vêm com um olhar diferenciado (...) quando levo um caso pra reunião de equipe e é o psicólogo que traz, ele (este caso) já apresenta de uma forma diferente, (...). E ali tu vai aprendendo (...)". (P5)
A partir disto, ressalta-se o roteiro enquanto norte para os profissionais, servindo como amparo a falta de capacitação no acolhimento. Evidencia-se a insegurança a esse não saber capacitado, que coloca o profissional frente as dificuldades de compreensão de uma escuta do sofrimento psíquico. Todavia, mesmo não havendo recursos, a equipe constrói um caminho para um saber que os direcione ao acolhimento. Nesse sentido, de acordo com Stevens (2007) concebe-se a noção de um segundo eixo, a formação, onde o autor aponta para os aspectos que envolvem o saber psicanalítico, ressaltando que,
Pensar a psicanálise como um norte na formação, conduz-nos a uma posição de suposição de saber, que permite ao sujeito produzir seu próprio saber. A psicanálise é um saber que busca não saber, para assim permitir que o outro saiba de si mesmo, pela via do manejo da transferência (ABREU, 2008, p. 77).
Com isto, considera-se necessária uma política comum entre todos da equipe, uma que viabilize um rumo quando pensada a prática institucional; neste caso se reconhece a psicanálise como amparo possível para esta realização, por isto ressalta-se a necessidade da busca pelos estudos teóricos. Porém, entende-se que essa decisão é fator que surge pelo reconhecimento dos profissionais com a teoria em que lhes é mais efetiva a transferência (ABREU, 2008).
O Terceiro eixo, a invenção, consiste na não interpretação, mas sim na escuta à surpresa, sendo necessária a invenção de um ponto de ancoragem para o sujeito. Por um lado, há a invenção própria desse sujeito; por outro o inventar na intervenção do profissional (STEVENS, 2007), direcionando por meio de seus cortes o amparo necessário. "A instituição deve caber ao paciente e não este caber na instituição. Portanto, é preciso inventar uma instituição que acolha as invenções do sujeito" (ABREU, 2008, p. 78). Stevens (2007), afirma que há necessidade de o sujeito constituir uma instituição dentro da própria instituição para que consiga deixá-la, levando consigo aquilo que foi produzido e criado por si, dando uma nova apreensão daquilo que o ocupa. Nesse sentido o acolhimento, a escuta e toda a relação transferência que se constrói no início dos primeiros contatos tornam-se fundamentais para que haja amparo, cuidado e formar de remodelar as relações entre os sujeitos, os profissionais e a instituição.
Por último, ressalta-se a transmissão. Não basta acolher a produção do outro de qualquer forma, mas sim é preciso saber reconhecer os pontos necessários que irão propiciar a constituição deste sujeito. Isto, por sua vez se instaura a partir das reuniões semanais de equipe, servindo como meio para regular a precisão da ação interventiva do profissional (STEVENS, 2007), ou seja, é local de construção, onde se reconhece o possível, necessário e efetivo no cuidado do outro. Torna-se um local de esvaziamento do gozo, troca de angústias, proporcionando a reinvenção (ABREU, 2008), com isto evidencia-se na fala:
(...) porque dentro do acolhimento tu já consegue direcionar as perguntas que tu vai fazer na entrevista: o que o paciente gosta de fazer? O que vai fazer o paciente se sentir bem? Sendo assim, o acolhimento é fundamental. Até quando tu pega um acolhimento de usuário marcado ou quanto o acolhimento é emergencial (...) tu já vai ver se precisa de médico, se este usuário vai para o leito, ou não é pra este serviço, enfim (...) o acolhimento aqui é a porta de entrada pra tudo, então é bem importante. (P4)
Nesse sentido evidenciam-se as características de uma clínica e de um fazer em saúde mental que coloca o sujeito como alguém principal, frente ao seu próprio desejo, onde o profissional permanece em posição de auxílio deste processo. De acordo com Sousa (2010), a saúde mental baseada nos princípios da reforma psiquiátrica, ao romper com os paradigmas manicomiais, cria condições para a construção de espaços de interlocução com variados saberes, possibilita um outro pensar em relação a sua orientação e direcionamento. A psicanálise, nesse sentido, vem construindo seu fazer frente à diversidade do novo modelo de clínica no SUS, em especial nos CAPS. Sendo assim, ressalta-se no discurso dos profissionais a noção de clínica ampliada, que tem em seu fazer a criação do projeto terapêutico singular, que posteriormente será discutido como relação construída por meio da transferência entre usuário e profissional, mas que é fundamental ao reconhecer a singularidade e a subjetividade de cada sujeito.
Com isto, torna-se necessário pensar os processos envolvidos no desenvolvimento da escuta no acolhimento, bem como compreender, a partir da psicanálise e da Política Nacional de Humanização, caminhos para que o escutar se torne garantia de direito, reconhecendo o sujeito do inconsciente e sua real demanda, sua história, sua geografia social e psíquica. Sobre isto, questionam-se os profissionais do serviço sobre como é a escuta dentro do acolhimento em saúde mental, evidenciando as seguintes falas:
(...) algumas pessoas são extremamente fechadas, algumas que não se sentem à vontade (no acolhimento). Às vezes, quando (o paciente) é um homem mais velho sendo atendido por uma mulher mais nova (é difícil), para falar de certas situações, mas em geral as pessoas vão se abrindo. Eu tenho muita dificuldade (...) e tu pergunta, e tu tem que fazer questões pontuais e a pessoa é bem monossilábica, respondendo "sim, não, ok", esse é o mais difícil. Agora, em geral, as pessoas vêm com bastante abertura pra conversa, e pra trazer as questões mesmo. (P1)
(...) Tem acolhimento que tu consegue perguntar tudo aquilo, tem acolhimento que não, tem muito paciente que vem e não fala nada, por isso é fundamental a presença de um acompanhante, porque se ele tiver risco de suicídio vai ter que ter vigilância 24 horas e ficar aos cuidados de alguém. E se ele estiver psicótico vai ter que ter alguém pra confrontar as informações dele (...). (P4)
(...) mas não é igual ao atendimento regular não, é muito diferente, as sensações são mais fortes, tanto a transferência dele com você quanto a de você com ele, que é a contratransferência, porque às vezes você se sensibiliza e isso é normal é importante, mas saber distanciar um pouco é importante também. Mas as vezes não dá, (...) tem pacientes que ainda quando os acolho, me sensibilizo muito com a história deles, às vezes dá até raiva do que aconteceu, dá vontade de sair junto com ele e pegar a pessoa pelo pescoço, mas acontece, aí você senta e pensa bem. (P2)
Emergem em meio às falas as noções de transferência, de resistência e de abstinência. Outro fator importante é a presença do familiar, ora como aquele que aprova tudo que o usuário apresenta - de que verdade se trata? -, ora como aquele que se apresenta como suporte responsável pelo sujeito. As mudanças que ocorreram a partir da Reforma Psiquiátrica, com a ampliação e reconfiguração da clínica, contribuíram para a formação de novas possibilidades de construção de vínculo na relação dos usuários de saúde mental para com seus familiares.
Ao considerar o Inconsciente, entende-se que a diversidade do trabalho no cotidiano não garante uma mudança na estrutura das relações possíveis de um sujeito. Ressaltando a importância do campo transferencial, onde haverá estrutura para as relações que possibilitam o trabalho clínico (BEZERRA; RINALDI, 2009).
Neste caso a psicanálise ocupa um lugar de escuta e representação, que situa o sujeito em sua fala. Contudo, não cabe ao processo de acolhimento em saúde mental iniciar um processo analítico, mas sim conduzir este usuário em seu primeiro contato com o serviço a uma relação que o oriente e o acolha, viabilizando o manejo em relação ao desejo de recuperação.
O acolhimento é o acontecimento primeiro que facilita esse processo de inserção no serviço, e que com todo o cuidado deve ser manejado por aquele que recebe e escuta esse sujeito. Isso é demarcado pela ocorrência dos interesses desenvolvidos pelo sujeito em relação à pessoa do médico, neste caso dos profissionais de saúde, onde uma transferência de afeição, seja positiva ou negativa (hostil) surge na relação, sendo esta não explicada ou compreendida por ações intencionais. O modo como essa transferência se expressa e caminha depende da direção da relação entre profissional e usuário (FREUD, 1912/2010). Não cabe aqui ressaltar profundamente o funcionamento psíquico da transferência como seu percurso no psiquismo do sujeito, mas sim ressaltar sua função nos processos do serviço de saúde mental.
Freud ressalta que a transferência se encontra em todos os sujeitos por meio das experiências vividas na infância, e daquilo que já é posto de acordo com as condições inatas de sua existência e que por fim acabam por constituir um modo singular de condução da vida amorosa (afetiva), ou seja, "as condições que estabelece para o amor, as pulsões que satisfaz então, os objetivos que se coloca" (FREUD, 1912/2010, p. 134).
Contudo, considera-se que somente uma parte dos impulsos que estão presentes no processo que determina a vida amorosa do sujeito permanece no desenvolvimento psíquico. Considera-se também que esta é uma parte posta em direção à realidade, ficando à disposição da personalidade que é consciente. Outra parte deste impulso libidinal é retida de seu desenvolvimento, considerando-se separada dessas duas instâncias, realidade e personalidade, podendo estar inteiramente no inconsciente ou manifesta por meio da fantasia, sendo assim desconhecida para a verdade da consciência e da realidade (FREUD, 1912/2010).
Freud ainda ressalta neste texto que todo esse investimento libidinal que se encontra em prontidão pode se direcionar à figura do médico, ou seja, volta-se à figura do profissional de saúde, assim como aos familiares, vizinhos etc. (FREUD, 1912/2010). Este endereçamento carregado de impressões mnêmicas e de afetos constitutivos do sujeito articula-se a partir de uma reatualização ao outro, e possibilita a intervenção.
Um questionamento que Freud lança sobre a transferência gira em torno de sua intensidade no âmbito analítico, bem como coloca a transferência como resistência ao tratamento. A busca da resposta de por que a transferência é tida também como resistência ao processo analítico se dá pela via da compreensão de que, uma vez que há um maior investimento da libido na porção psíquica afastada da realidade da ordem do inconsciente, alimentando as fantasias do sujeito, a via da regressão retorna às imagos infantis (FREUD, 1912/2010).
Contudo, em meio à compreensão da transferência como resistência, sabe-se que a confissão do desejo proibido em seu acesso à consciência é dificultada, levando à noção de que pela contramão deste processo de resistência, quando a relação afetiva é estabelecida pode haver um auxílio na tentativa de realização da expressão da verdade guardada. Com isto a transferência auxilia na realização da confissão daquilo que está resistindo à realidade (FREUD, 1912/2010). Nesse sentido Freud propõe pensar que estes fenômenos não são comuns somente ao tratamento em psicanálise, incidindo no laço social do sujeito frente às instituições.
Levanta-se a reflexão de como os processos de transferência emergem e são manejados no acolhimento nos serviços de saúde mental como fenômeno que ocorre em meio à escuta do acolhedor, bem como a sua relevância frente ao processo de atenção psicossocial que pode ser instaurado a partir do acolhimento. Pensa-se qual a condição que dá suporte aos profissionais para que tenham noção do funcionamento dessa história psíquica que se repete na construção e na criação dos vínculos afetivos; qual o manejo correto ou mais possível para que haja um amparo ao sofrimento dos neuróticos e psicóticos que ali se encontram?
Na tentativa de viabilizar um esclarecimento em relação a transferência nos serviços de saúde mental, Bezerra e Rinaldi (2009) ressaltam que a transferência deve ser vista como efeito do inconsciente, tendo sua conformidade relacional própria. Pensando assim, surge um impasse entre o que é realmente conhecido pelo serviço e o que é conteúdo e efeito do inconsciente que geralmente não é reconhecido pela equipe. A transferência se dá por meio da importância dada à singularidade de cada caso, opondo-se à concepção de generalização e burocratização dos serviços.
A consideração e o reconhecimento pela singularidade do usuário, bem como a possível autonomia e protagonismo referentes à escolha, mesmo que inconsciente, de seu próprio profissional de referência vão ao encontro, mesmo que não diretamente com as características da PNH. Nesse sentido considera-se a transferência como proposta do inconsciente para a construção de vínculos entre o usuário e o profissional, considerando que tanto o profissional como o usuário transferem esses afetos. Sendo assim, pode o usuário criar uma associação do profissional em relação a uma parte, tanto quando o profissional criar isso em relação ao usuário. Esta transferência, quando bem percebida, pode auxiliar a pessoa em sofrimento a construir e criar autonomia e lidar com sua doença de modo mais favorável (BRASIL, 2008).
Nesta direção, Freud (1912/2017) no texto Recomendações ao médico para o tratamento psicanalítico ressalta o conceito de atenção flutuante frente à fala livre do paciente, não havendo uma seleção específica de conteúdos, atém-se ao discurso daquilo que é da ordem do inconsciente. Esta técnica, fundamental em psicanálise, propõe-se a tensionar as barreiras do que é pragmaticamente enrijecido, que por meio de arranjos estruturados, tais como as entrevistas fechadas, impedem que o sujeito fale de si em uma cadeia associativa que revele suas reais questões.
Em um segundo momento, Freud ressalta a abstinência e a neutralidade como fatores importantes na escuta do paciente, relaciona metaforicamente o fazer da psicanálise com o fazer de um cirurgião, onde este deixa de lado todos seus afetos e compaixões em virtude de um único objetivo, realizar seu feito o mais perfeitamente possível. Sendo que, para um psicanalista estas aspirações de afeto são mais perigosas, existindo assim a ambição terapêutica, que no fazer do profissional se encontra por meio da realização de algo que venha a ser convincente para o outro (FREUD, 1912/2017).
Sendo essas recomendações de abstinência fundantes para, no campo da transferência, não corresponder às expectativas do profissional e dos familiares em relação à produção de bem-estar, assim como não caberia ao profissional corresponder à agressividade e à insatisfação direcionadas pelos usuários e familiares, tanto quanto o julgamento do possível desinteresse destes em relação ao serviço (BEZERRA; RINADI, 2009).
Entende-se que o a função do acolhimento é de ouvir e interpretar o sofrimento do paciente, não sendo o profissional possuidor da verdade, seja ela filosófica, científica ou médica. Possibilitando e construindo intervenções que compreendam e superem as resistências. Escutar as demandas encontra respaldo no princípio da associação livre e da neutralidade, dispondo-se a um fazer ético (SOUZA; COELHO, 2012).
O acolhimento inicial aos usuários e seus familiares torna-se fundamental na construção do vínculo transferencial, onde já em seu início é apresentada uma demanda que necessita ser interpretada. Assim, o silêncio e a dificuldade de fala podem vir a evidenciar que o sujeito não encontra palavras para seus sintomas. A interlocução entre a possibilidade de abertura a um outro no discurso do usuário e o lugar da instituição no amparo a este se mediatiza na relação sustentada pela transferência. Sendo assim, o sujeito do inconsciente não espera permissão para existir: ele está, mesmo que os familiares e a instituição ou a sociedade o neguem.
Conclusão
Por fim, entende-se que os profissionais, mesmo que indiretamente, utilizam, ou mostram-se na direção dos processos de realização de uma escuta, que quando realizada como ferramenta que reconhece o sujeito do inconsciente, assim como os processos psicossociais envolvidos, se torna um fazer que contribui para formação de vínculos (transferenciais) entre os profissionais e os usuários, servindo como delimitadora no direcionamento do tratamento e do cuidado tanto no CAPS, quanto em rede. Sendo assim, esse reconhecimento do outro, como alguém atuante em seu próprio processo se faz necessário para que esses direcionamentos não se percam e fiquem enquadrados a partir do saber do profissional.
Foram evidenciados os aspectos que remetem às práticas do serviço no antigo paradigma manicomial que colocam impossibilidades entre profissionais e usuários, criando uma distância simbólica e física. Porém, nota-se o caminhar dos acolheres em direção ao cuidado em liberdade, reconhecendo o lugar do sujeito dentro da escuta de uma clínica do CAPS, viabilizando e efetuando assim um fazer humanizado que está de acordo com a PNH. Entende-se que o desenrolar histórico da reforma psiquiátrica, bem como os avanços da PNH e sua disseminação na rede de saúde, são recentes e que as práticas ainda se encontram em transformação.
Isto se evidencia por meio dos discursos dos profissionais que, mesmo efetuando a escuta, amparam-se em um fazer pautado em um protocolo que, mesmo não sendo necessariamente específico, serve como modelo de direcionamento às supostas questões necessárias dos usuários.
Nesta direção a clínica da atenção psicossocial se apresenta na relação com o sujeito do inconsciente por meio de um fazer de uma escuta que considera a palavra, não dependendo do que seja dito. Considerando o sujeito em seu discurso, sua verdade e seu sintoma, possibilitando a reconstrução de um outro lugar. Sendo assim, a noção de clínica ampliada que se mostra no discurso dos profissionais, tendo entre um de seus afazeres a criação do projeto terapêutico singular, evidencia os conceitos principais da psicanálise, assim como esta escuta que cria e transforma possibilidades nos sujeitos, direções e caminhos, amparada nos vínculos transferenciais estabelece um sentido para dor, sofrimento e para a desmistificação da loucura.
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Artigo recebido em: 14/06/2021
Aprovado para publicação em: 04/10/2021
Endereço para correspondência
Maurício Lopes da Silva
E-mail: lopesmauricio92@gmail.com
Diapula Minotto da Silva
E-mail: dms@unesc.net
Graziela Amboni
E-mail: gam@unesc.net
Carla Sasso Simon
E-mail: carlasassosimon@gmail.com
*Graduado em Psicologia pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Especialista em Saúde Mental e Atenção Psicossocial pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Mestrando em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Criciúma, SC, Brasil.
**Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Docente do Curso de Psicologia da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Tutora da Residência Multiprofissional em Saúde Mental e Atenção Psicossocial da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Criciúma, SC, Brasil.
***Mestre em Ciência da Saúde pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Coordenadora adjunta do curso de Psicologia da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Tutora da Residência Multiprofissional em Saúde Coletiva/Atenção Básica e Saúde da Família da Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Criciúma, SC, Brasil.
****Graduada em Psicologia pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Especialista em Saúde coletiva pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Doutoranda em Ciências da Sáude pela Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC). Criciúma, SC, Brasil.
1Portaria GM/MS nº 336/2002, instituída em 19 de Fevereiro de 2002 que regulamente o Centros de Atenção Psicossociais (CAPS), estipulando normativas ao seu funcionamento.
2Portaria que instituiu a Rede de Atenção Psicossocial para sujeito em sofrimento psíquico/transtornos mental grave e persistente e suas necessidades decorrentes do uso de crack, álcool e outras drogas.