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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.8 n.1 Brasília  1988

 

Uma leitura psicológica das relações institucionais

 

 

As relações humanas dentro de instituições com portas trancadas (como, por exemplo, as FEBEMs) costumam ser referidas como "autoritárias" ou "repressoras" porque a ordem institucional impõe limites cerceadores e regras inflexíveis a todos, sem distinção. Entretanto, o "autoritarismo" ou a "repressão" traduz um único tipo de relação possível entre os sujeitos envolvidos nesta ordem institucional? Este questionamento é formulado por uma análise institucional, enriquecida com leitura psicológica que é apresentada aqui por Marlene Guirado, professora do Instituto de Psicologia da USP, autora das obras A Criança e a Febem (Ed. Perspectiva) e Instituição e Relações Afetivas: o vínculo com o abandono (Ed. Summus), ambas são resultados de mais de 10 anos de estudos e pesquisas sobre os menores abandonados e infratores:

Gostaria de contribuir com um determinado ângulo para pensar a questão do atendimento aos menores: o ângulo das relações mesmas, no interior das práticas de conservação da infância e juventude em abandono e infração; relações que constituem sujeitos. O ângulo das micro-relações, como diriam alguns.

Há mais de uma dezena de anos venho me envolvendo com a tarefa de entender como existe a FEBEM-SP, uma representante das entidades oficiais de atendimento ao menor no País. Como resiste, por muito tempo, no miolo - de um lado - das expectativas de sucesso no controle da marginalidade juvenil (o que livraria a população dos ataques reais e virtuais dos "trombadinhas") e - de outro - da constatação de seu fracasso, acompanhada de críticas ao seu funcionamento e de promessas de renovação ou votos de confiança. Por que insiste em permanecer... O que se passa "lá dentro"? Talvez, na tentativa de resposta a essa pergunta se encontre a justificativa para o lugar que a FEBEM ocupa, articulado ao de outras instituições de "cuidado com o social".

Creio que instituições como estas existem, resistem e insistem porque sua prática constitui relações (de cuidado e opressão) e sujeitos que a confirmam sempre. Por mais que esta explicação possa parecer absurda. Poderíamos nos perguntar: os meninos fariam isto? E os técnicos que não se submetem? E os infratores? E as fugas? Enfim, e as inúmeras "provas" de que o que existe lá é insatisfação?

Alguns extratos das falas de dois funcionários:

"(...) através do trabalho de família a gente, com formação de grupos, pode despertar uma série de coisas. Então, a gente pode despertar, por exemplo, eles desconhecem o trabalho de grupo, eles realmente não conhecem nada; desconhecem uma série de coisas. O que ele é, os direitos e deveres dele, o que está acontecendo na vida deles. Este tipo de esclarecimento eu acho muito importante.

Principalmente o que está acontecendo e mostrar que existem coisas que eles realmente podem fazer" (assistente social).

"Quando entrego o serviço para o assistente social, já entrego mastigado. Eu falo: taí, aconteceu isso e você tem que fazer isso... Ela não se perde... Eu digo: tudo é mentira! O menor mente muito, tem que tomar cuidado (...). É um serviço ingrato (...). São menores de certa periculosidade. Nós levamos de perua Kombi, sem a menor proteção e se o menor meter o pé na porta, a porta abre. Vão seis ou sete menores sozinhos e só nós e o motorista; e ninguém dá condição. Ninguém quer saber se você está conduzindo seis ou sete criminosos" (inspetor).

Estas falas ilustram algumas das imagens que são recorrentes no discurso dos funcionários-agentes das diferentes Unidades a que tive acesso. Em princípio, chama a atenção a relação sendo percebida por este agente (assistente social) como de complementação entre dois lugares institucionais: o lugar do preceptor, educador, conscientizador, informador, mobilizador, conhecedor, interessado (assistente social/instituição).

Pela complementação, torna-se uma relação de preenchimento. E, como a partir de outras falas, pude ainda entrever um preenchimento que não pode preencher de fato, pois, se isto ocorrer, pela oposição como se definem os lugares, o outro desapareceria como aquele a quem falta e aí não se teria mais o que preencher... Sugerindo-se, ao final, que é a instituição que se alimenta de sua clientela.

Na fala do segundo funcionário (inspetor), o interno aparece retratado como infringindo a Verdade e a Lei: mentiroso e criminoso, muito embora este inspetor estivesse, naquele momento, concretamente, trabalhando numa Unidade de Recepção de Abandonados. Ainda, este funcionário retrata, num misto de força e fragilidade, sua ação e condição de poder. De alguma forma, a relação é representada também aqui como complementar entre agressor/agredido, portadora da verdade/mentira, conhecedor/ignorante. Tanto com os internos quanto com os outros grupos institucionais.

Permita-me o leitor que eu prossiga a análise, destacando outras representações que, embora sugeridas nos discursos aqui citados, encontram-se em outros talvez com maior evidência.

A FEBEM surge na representação dos agentes, sem que se dêem conta disso, como o lugar do Certo e do Acerto, como o lugar da Verdade e do Bem. Isto, sem que se denuncie a distância entre a imagem de cada um em seu trabalho e a da FEBEM como instituição. Por sua ação, a FEBEM é Presença, é Sujeito. Por outro lado, a clientela (internos e sua família) é o lugar da Falta, da Ausência. Como vimos, ausência e falta que inventam um suprimento que jamais poderá se completar.

Mais ainda, enquanto agentes da Correção, da Contenção e do Suprimento representam-se sempre na indiferenciação. O administrador se indiscrimina na instituição quando fala da solução que o nós (ele/FEBEM) procura dar aos problemas sociais. As crianças indiferenciam-se entre si para os que cuidam delas. O administrador identifica, no desvio e na marginalidade, a criança, a família e o inspetor. Este é, quase que invariavelmente, percebido pelos outros grupos institucionais como extensão do menino, do infrator e, portanto, enquanto grupo, constitui-se naquele que se coloca na categoria de participação/exclusão da ordem institucional; enquanto "ovelha negra" é e não é instituição. O atendente e o professor confundem "(no cotidiano que se repete e repete e que anula efeitos) seu corpo, seu ritmo, sua preguiça, imaginação, com os da criança. Esta, como o lugar do sujeito passivo ou do objeto (direto ou indireto) da ação institucional, indistintamente é concebido como transitório, carente, delinqüente.

Agora, citemos alguns extratos das falas de internos classificados como abandonados:

Pergunta: "Me fale sobre sua vida".

W: " Como assim, dona?"

Pergunta: "O que você faz de sua vida?"

W: "O que faço aqui,aqui na...Unidade eu... eu... estudo, mas só que estou de férias... eu... eu... eu... eu... faço artesanato de manhã, mas só que acabou. Tenho um amigo que trabalha. Sabe, a ala que você entrou lá... Era diferente das outras, né? Porque lá não é dormitório, lá tem quarto. Ele é de lá... (...) Eu ajudo o 'seu' lá da ala".

Pergunta: "Quem eram os seus pais de criação?"

G: "Tão aí no Ipiranga".

Como se pode notar a partir destas falas, a relação imaginária dos internos com a instituição é marcada pela identificação do que é vida com o espaço e o tempo da Unidade; como se a Unidade possível para eles, enquanto sujeitos, fosse esta. As pessoas se definem pelo espaço que ocupam ou pela atividade que desempenham. O onde e o quando substituem o quem e o que.

Pode-se afirmar ainda que, quanto à dimensão-tempo, para esses meninos, o presente é a instituição, é o que lá fazem, numa indiferenciação recorrente entre o eu e o nós, entre o ele e o eu. No passado, situam-se as histórias (fantasias?) com a família (imaginária?) para as quais reservam-se lembranças fragmentadas, apagadas ou totalmente apartadas do presente ("Você tem irmãos? W: Eu tinha um").0 futuro,o projeto de vida parece impensável. São inúmeras as tentativas de "mudar de assunto" quando se faz a pergunta sobre o que farão quando saírem de lá.

Parece, então, que agentes e abandonados, apesar de se constituírem em posições diferentes nas relações instituídas, acabam por se aproximar quando se trata da relação que mantêm com a imagem da FEBEM, ou da Unidade. Parece não existir nem sujeitos que marcam um lugar e um desejo, mas parece existir o sujeito-FEBEM, no qual todos se encontram mergulhados. Não são sujeitos marcados pela ordem, mas são essa ordem e, assim, reconhecem-se como sujeitos.

É o discurso da infração que parece romper este ciclo, driblando o instituído e criando uma outra ordem que não deixa de se instituir: a ordem e a transgressão. Este é um rompimento ambíguo, uma vez que tal transgressão não deixa de reconhecer a Lei; e o faz na mais completa indiscriminação: nega e justifica aquilo que ataca.

"Se invadir meu terreno e eu tiver uma arma de fogo, mato ".

Pergunta: - "Quer dizer que se alguém der um tiro em você pelas costas se você estiver roubando, está certo?"

'Tá certo! Catou roubando dele, tá certo. Não tiro a razão dele, não".

Para estes meninos classificados como infratores, a FEBEM é invariavelmente referida como um lugar de passagem. Alguma fuga entre o habitual e o "mirabolante", ou a intervenção da mãe, é o horizonte mais próximo em termos de futuro.

Depois de horas, dias e meses debruçada sobre estes discursos, fui levada a afirmar em 1985 que, se para o abandonado a instituição é a vida e as relações ali vividas, a(s) ocasião(ões) únicas de relação de desejo para o infrator só existe(m) para ser (em) transgredidas.

Falas como as de Paulo Collen e outros (poucos) de que temos notícia, que não se inscrevem necessariamente na ordem do discurso da infração, parecem contradizer tudo o que acabo de afirmar. Se nos desviássemos um pouco do caminho das regularidades, daquilo que acontece predominantemente (e foi isto o que privilegiei neste momento, aqui), poderíamos entender que por uma articulação de inúmeros fatores e contingências de vida ("acidentes de percurso" na "carreira institucional de um menino abandonado"), alguns desses internos, ainda que na "categoria" de abandonados, garantem uma distância de todo esse ciclo de relações complementares. É que ninguém é perfeito, nenhuma instituição consegue, sem lacunas e contradições, configurar uma estratégia...