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Psicologia: ciência e profissão

versão impressa ISSN 1414-9893

Psicol. cienc. prof. v.9 n.3 Brasília  1989

 

Por uma política que deixe a escola agir livremente

 

 

Moacir Gadotti é professor universitário, pedagogo e, atualmente, é assessor de Paulo Freire na Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. Seu depoimento a seguir baseia- se numa intervenção que fez, recentemente, num debate sobre um projeto de Educação para o Brasil, de acordo com as diretrizes do Partido dos Trabalhadores (PT).

Vive-se falando em crise na educação sem verificar o quanto se caminhou.

Em contrapartida ao otimismo, queria opor um certo pessimismo, para realizar justamente uma dialeticidade na leitura da realidade. De início quero tratar da Constituição e das normas constitucionais que foram apresentadas como avançadas e possíveis de se constituírem em referência para a construção de um programa a ser realizado. Eu gostaria de apontar alguns problemas nestas normas constitucionais, que demonstram, no meu entender, o quanto nossas conquistas foram limitadas. O cumprimento destas normas constitucionais é muito problemático. Neste ano, por exemplo, o próprio Ministro da Educação declarou que não há condições para cumprir o Artigo 60 das "disposições transitórias" que prevê que, no mínimo, 50% do orçamento do MEC seja aplicado no ensino fundamental e na erradicação do analfabetismo. Ele se declarou sem qualquer condição de fazê-lo, pois teria que prejudicar as Universidades, já que 80% do orçamento, segundo o Ministro, é aplicado no ensino superior. Há, portanto, um descumprimento desse artigo que prevê em dez anos a eliminação do analfabetismo e a universalização do ensino fundamental. Então, são normas constitucionais que não são respeitadas. Portanto, nesse aspecto, temos até boas leis, mas não há condições de aplicabilidade. Normas não faltam, o que faltam são programas, planos de ação prática que possam interferir significativamente nessa realidade. Nosso País tem hoje aproximadamente 35 milhões de analfabetos e 8,5 milhões de crianças em idade escolar fora da Escola.

Apesar dessas conquistas, os índices de evasão da primeira para a segunda série continuam os mesmos, nos últimos cinqüenta anos. Fala-se muito em expansão quantitativa da Escola. Afirma-se que a Lei nº 5692/71 representou, no que diz respeito à organização da Escola, um avanço considerável, mas, na verdade, ela não conseguiu transformar a realidade neste aspecto. Os dados mostram que o índice de analfabetismo nacional continua praticamente o mesmo e a última estatística publicada em março, pelo IBGE, fruto da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, aponta uma mudança no índice de analfabetismo. Nos últimos cem anos, é a primeira vez que há acréscimo da porcentagem de analfabetismo: de 25,59% para 25,76%. Houve, portanto, um aumento considerável do contingente de analfabetos no Brasil. Esse é um dado alarmante. As condições da perversidade estão se aprofundando.

Além disso, tivemos derrotas consideráveis na Constituinte, por exemplo, as verbas públicas para as Escolas confessionais. É inadmissível que um país com esses dados destine verbas públicas para Escolas confessionais. Se a Igreja quisesse realmente mudar o quadro da educação, ela se envolveria na defesa da Escola pública. Defendendo verbas públicas para Escolas confessionais ela deu argumentação para o desvio de verbas públicas para empresas educacionais. Esta foi uma derrota que nós não esperávamos.

Uma outra derrota foi a não regulamentação da carreira para o magistério no ensino privado. A carreira do magistério na Escola pública foi uma conquista. A gestão democrática representou outra grande conquista para a Escola pública. Mas na escola privada não, graças a pressões da CNBB. A democracia vai bem para a CNBB quando é fora da Igreja, mas dentro da Igreja ela não defende a democracia.

Estamos fazendo uma crítica a esta dicotomia do ensino público e do ensino privado e à posição da Igreja, porque esta Constituinte assumiu posições retrógradas. Creio que a derrota maior neste capítulo não está representado na quantidade, mas na qualidade, na concepção de educação que expressa. Ê uma concepção ainda burocrática. Ela não resgata a dívida que a educação brasileira tem com a classe trabalhadora. Essa dívida diz respeito a uma educação solidária, uma educação que forme pessoas para a solidariedade. Fala-se em formação da cidadania como um conceito de iluminismo, mas não se fala do direito da pessoa, do direito do sujeito, do indivíduo.

Fala-se em participação, mas se retira a alma da Escola. Por exemplo, não se coloca a Escola como centro gerador da própria política educacional, não se coloca o professor como o iniciador da própria educação. Não se valorizou o professor, não se valorizou a sala de aula de forma decisiva nesta Constituição e nem no atual anteprojeto de LDB que é pior que a Lei anterior. Esse projeto do deputado Otávio Elisio é pior do que o que Clemente Mariano, em 1947, mandou para a Câmara. Porque foi elaborado ao nível dessas entidades da pós-graduação, mas não chegou na base. Não se ouviu a base, mas alguns intelectuais dessas entidades, que apenas, trabalham, que militam ao nível de pós-graduação. Eu creio que é pior ainda, porque mantém a mesma estrutura de Conselho Federal de Educação, de Conselho Estadual de Educação. É ainda o Presidente da República quem nomeia os Conselheiros. Que conquista é essa? Eu entendo que nós devemos questionar profundamente a forma deste projeto.

É preciso questionar essa autonomia da burocracia. A burocracia se autonomizou a tal ponto que, se hoje se fechasse o MEC durante um ano, as escolas não saberiam. Não é que nós não precisamos de burocracia; precisamos de uma burocracia emancipadora como diria Weber, de uma "racionalidade emancipadora". Este projeto de lei não questiona a forma de escolha dos dirigentes do MEC, que é feita hoje pelo apadrinhamento, fisiologismo, favoritismo. Esses são os critérios de escolha. É preciso questionar profundamente essa Constituição e o seu prolongamento: Lei de Diretrizes e Bases.

Creio que o atual projeto de LDB não enfrenta o problema do empobrecimento da Escola; um novo projeto pedagógico que deve inserir-se neste grande "Projeto Para o Brasil" precisa conter dispositivos no sentido da retomada da capacidade da Escola, de resolver os seus problemas, de experimentar pedagogicamente, como propunha Florestan Fernandes. É necessário experimentar, errar, "chutar", quer dizer, possibilitar à Escola fazer o seu projeto. E fundamental que nesse "Programa Alternativo de Governo", conste isso como uma concepção alternativa. Nosso objetivo é conquistar na LDB aquilo que o Florestan propôs: um Conselho de Desenvolvimento Educacional para gerar planos, o que justamente está faltando. Não faltam leis, faltam planos concretos de intervenção. Faltam iniciativas. E isso poderia ser feito através desse "Plano Nacional de Educação" elaborado através desse Conselho de Desenvolvimento Educacional, superando-se a concepção privatizante e autoritária, gerada pelos Conselhos Federal e Estaduais, os quais até hoje foram tomados de assalto pela empresa privada.

E preciso que a LDB saia da pós-graduação e ganhe as ruas e as escolas.

Um segundo ponto: um Plano Alternativo de Governo deve ter um pouco mais de ousadia, do que apenas legitimar as conquistas atingidas até agora. É preciso, também, não ficar a reboque do Estado. É necessário tomar iniciativa. Tenho defendido uma idéia para superar essa dicotomia entre ensino público e ensino privado e essa perversidade que é a de reservar o ensino superior apenas àqueles que se formam (ou, pelo menos, a maior parte daqueles que se formam) nas escolas privadas de elite.

Não basta priorizar o ensino fundamental para as classes trabalhadoras e deixar o ensino superior apenas para as elites que se formam na escola privada. Insisto na idéia da criação de um "Sistema Nacional Unificado de Educação". Que os alunos das Escolas públicas tenham prioridade na Universidade pública. Que as Universidades públicas privilegiem a entrada de quem está na Escola pública, que é a classe trabalhadora.

Eu defendi isso na Comissão de Educação, Cultura, Esporte e Lazer. Não houve condições de incluir isso, evidentemente, nesta nova Constituição, pela pressão das escolas privadas, cujo objetivo é formar a elite para colocar na Universidade. Acho que nós temos que colocar a sério esta questão. No dia em que a Escola fundamental for estendida para todos, intensificará o conflito entre o ensino público e ensino privado. Defendo a idéia de unificação do ensino público. Muitos defendem, simplesmente, a extinção do ensino privado. Acho que não se tem de extinguir, tem-se de asfixiá-lo, o que é diferente. É o Estado que assegura hoje a política privatizante. No projeto da Constituição enviado pelo PT ao Congresso, previa-se a extinção em dez anos do ensino privado. Foi uma posição tomada pelo Diretório Nacional. A imediata suspensão da concessão do direito à abertura de escolas para o ensino privado e depois, em dez anos, a sua extinção. Creio que náo é por aí. Temos de definir uma tática concreta de articulação de todo o sistema de ensino público para valorizá-lo como um todo. Por outro lado, engajar a Universidade pública no resgate do ensino público de primeiro e segundo graus, eliminando-se o vestibular para quem segue a Escola pública.

O teste da administração municipal de São Paulo nos oferece outros dados. Um partido que tem uma proposta como o PT, quando chega a uma Prefeitura como a de São Paulo e começa a colocar em ação suas propostas, em cem dias, de que o Jânio fez em três anos. Não triplicamos apenas o salário (de dezembro para o mês de abril) para todos os funcionários, mas implantamos Colegiados em vários níveis.

A mudança estrutural que estamos fazendo é uma mudança de espírito do caráter burocrático da Secretaria. Queremos fazer com que os órgãos da Secretaria pensem a educação. Nós transferimos a merenda escolar para a Secretaria do Abastecimento e a Saúde Escolar para a Secretaria de Higiene e Saúde. Ninguém, anteriormente, conseguiu tirar essas duas atividades da Secretaria da Educação, porque havia interesses político - econômicos.

Eu sou otimista. Se o PT, junto com uma coligação ampla, ganhar a Presidência da República, nós temos quadros e concepção na área de educação suficientes para mudar esse País. Temos de ser ambiciosos para ultrapassar o que está aí.

Quanto ao caráter do Plano Alternativo de Governo: alguns insistem — isso foi colocado em reuniões anteriores — que não vai ser um programa socialista, porque não dá para colocar o socialismo como bandeira de luta neste momento. Mas eu acho que não devemos ter medo do socialismo e mostrar, pedagogicamente, que avanços em direção ao socialismo são possíveis hoje. Não adianta, taticamente, renunciar ao referencial que nós temos que é o socialismo. Porque o povo vai dizer: "eles estão fazendo a mesma coisa que o Brizola fez", isto é, vão, taticamente, se aliar a esses grupos de empresários. Não adianta renunciar. Nossa cara é essa mesma, nossa cara é socialista. Agora, não precisamos de um socialismo rançoso, daquela coisa que afastaria o voto. Mas nós temos de nos apresentar como socialistas.

Só que neste momento o nosso programa não precisa ser estritamente socialista, mas um programa popular e democrático em direção ao socialismo. Ele tem de ter a cara do PT que é socialista. Acho que isso dá a tônica do programa, porque não adianta só um programa tecnicamente perfeito se ele não tiver uma cara nova que alimente a esperança. Eu acho que foi isso que o PT soube fazer nas últimas eleições. Essa coerência do PT fez com que ele ganhasse as eleições. Não foi porque fez concessões em relação ao seu programa. A Erundina, aqui em São Paulo, jamais fez concessões. Temos de nos apresentar com clareza e objetividade. Na educação, sobretudo, acho que nós podemos continuar ousando. Temos de carregar esse programa de uma alternativa na área de alafabetização. Nós temos de dar uma resposta a esses 35 milhões de brasileiros que náo conseguem, por falta de instrumental que a alfabetização dá, participar decisivamente dos destinos desse País. Eu acho, portanto, que temos de insistir nesse programa de alfabetização, temos de insistir na educação ambiental, que é uma questão fundamental. E também na educação extra-formal: a escola não é o único espaço onde há educação.

Para terminar, eu queria tocar em dois pontos polêmicos que são a questão de tempo integral e a da municipalização. Acho que o Programa também tem de se pronunciar sobre isso. Há posições divergentes, inclusive dentro do PT, com relação à municipalização. Mas eu aqui queria distinguir duas coisas: uma é a educação municipal que, hoje já conta com mais de 350 mil professores; e outra é a transferência das escolas do Estado para o Município e isso é o que poderia ser questionável, o que se chama de municipalização. Por outro lado, o combate à municipalização feito por algumas entidades não deve supor que o Município deixe de pensar na educação. Seria realmente castrar a capacidade de organização popular, inclusive, de participação, de poder popular, se disséssemos que a educação tem de ser pensada somente ao nível Federal e Estadual. Parece-me que este combate à municipalização está virando um grande tigre de papel. E com isso está se perdendo a capacidade de intervenção nos municípios. A verba que os municípios têm, está sendo desviada para outras atividades porque não há nem projetos de educação em muitos municípios brasileiros. A verba vai para cultura, para alimentação, etc. Acho que tem de ser levada a sério a questão da educação municipal.

Quanto ao período integral, há divergências no PT. Um dos argumentos contrários a essa idéia é o seguinte: enquanto não houver escola para todos, não se deve lutar pelo tempo integral, há quem considere este um projeto quercista ou brizolista. Na minha visão, o tempo integral é ideal. E uma conquista necessária. A permanência da criança na escola por quatro horas e mais três ou quatro onde for possível, obviamente, com orientação pedagógica adequada, é uma necessidade social que responde às necessidades dos trabalhadores.

Nossas propostas educacionais no "Plano Alternativo do Governo" devem conter um programa de resgate de austeridade, de valorização da sala de aula e do professor. Temos de fazer isso se quisermos inverter a prioridade da política educacional da ditadura. Por que há tanta falta de professores? Náo é só porque ele é mal pago, mas porque náo existe um projeto que garanta sua permanência na Escola em tempo integral, para orientação de alunos, correção de avaliações, preparação de aulas. Precisamos lutar contra o burocratismo, o legalismo, para deixar a Escola funcionar livremente.