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Psicologia: ciência e profissão
versão impressa ISSN 1414-9893
Psicol. cienc. prof. v.9 n.3 Brasília 1989
CONTRAPONTO
A escola e a formação da cidadania ou para além de uma concepção reprodutivista
Sérgio Antônio da Silva Leite
Doutor em Psicologia. Professor do Departamento de Psicologia Educacional da Faculdade de Educação-UNICAMP
O interessante artigo da psicóloga Cecília Maria B. Coimbra, "As funções da instituição escolar: análises e reflexões", publicado nesta edição, sugere uma série de questões bastante polêmicas, a respeito das diferentes concepções sobre o papel da Escola no desenvolvimento da sociedade brasileira. No sentido de colaborar para o debate, apresento algumas reflexões que julgo oportunas.
Para se discutir a questão proposta, gostaria de iniciar colocando a pergunta central: a Escola é uma instituição fundamental para a formação da cidadania?
Obviamente, estamos entendendo cidadania no seu sentido mais amplo possível, ou seja, o exercício pleno dos direitos e deveres de cidadão numa sociedade democrática, incluindo a participação efetiva em todo o processo social como sujeito histórico, de forma crítica e consciente. Além disso, a questão colocada pretende enfocar principalmente a Escola pública atual, com os problemas que todos já conhecem.
Esta questão nos leva a discutir sobre o papel da Escola. Isto porque entendo que a atuação dos profissionais da Educação depende muito da concepção que se tem sobre o papel da Escola em nossa sociedade. Por exemplo: a concepção de que a Escola tem pouca participação no processo de transformações sociais, implicará um engajamento político-social onde a ação transformadora não priorizará o espaço intra-escolar. Por outro lado, entendendo-se que a Escola tem um papel fundamental no desenvolvimento do processo social mais amplo, o espaço intra-escolar será visto como um dos locus prioritários para a ação de grupos e profissionais comprometidos com idéias transformadoras ou revolucionárias.
Ao analisarmos a literatura, tentando indentificar como as várias correntes teóricas ou diferentes autores interpretam o papel da Escola nos diversos momentos históricos, vamos perceber que a concepção de Escola caracteriza-se pela pluralidade ideológica e, mesmo analisando-se uma determinada concepção, percebe-se que ela nunca é estática, sofrendo constantes transformações, em função de dados de pesquisas e aprimoramento de análise que ajudam o desenvolvimento de uma determinada teoria. Uma excelente amostra dessa pluralidade é descrita no capítulo 1 do livro. Escola, Estado e Sociedade, de Bárbara Freitag.
Assim, dentre essas várias teorias ou concepções sobre o papel da Escola, temos, por exemplo, a visão idealista-liberal, em que a Escola é vista como instrumento de democatização e integração, na medida em que, sendo de boa qualdiade, poderia garantir uma condição de igualdade de oportunidades para todos os indivíduos. Tal concepção mostrou-se inviável, pelo menos até hoje, uma vez que não se pode falar em igualdade de oportunidades sem que exista igualdade de condições, o que não caracteriza o nosso sistema capitalista. A própria autora do artigo citado, Cecília Maria Coimbra, aponta alguns mitos que devem ser superados visando a uma melhor compreensão da Escola em nossa sociedade.
Num outro extremo, encontramos uma visão um tanto quanto anárquica, tirando da atual Escola qualquer possibilidade de colaborar no processo de transformação social. Como exemplo, cita-se Ivan IIlich, em sua obra Sociedade sem Escolas.
As teorias, porém, que mais nos interessam agora são as concepções crítico-reprodutivistas, que têm dominado o cenário acadêmico nos últimos anos, representadas por autores como Establet, Baudelot, Passeron e Bourdieu, destacando-se ainda Akhusser e Gramsci, que interpretam a Escola como aparelho ideológico do Estado, através do qual os setores dominantes tentam exercer seu poder hegemônico. Neste sentido, o sistema educacional é visto como um instrumento de transmissão ideológica, ou seja, da ideologia dominante, subjacente ao capitalismo, que tem por função levar os cidadãos a aceitarem passivamente as formas de produção, de organização e de reprodução do sistema. A Escola seria um dos instrumentos que o Estado utiliza para essa tarefa.
Grosso modo, poderíamos identificar dois grandes grupos nesse grande conjunto de teorias crítico-reprodutivistas. Um deles, mais fiel às concepções marxistas, interpreta a Escola como um mero aparelho do Estado, submetida, portanto, ao controle direto dos setores dominantes. Nesta perspectiva, o sistema educacional transformar-se-á somente a partir do momento em que as forças progressistas e/ou revolucionárias assumirem o controle efetivo do Estado. Como conseqüência desta concepção, a possível ação político-transformadora intra-escolar não é priorizada, embora sua importância não seja totalmente negada.
Num segundo grupo, eneontram-se as concepções modernamente influenciadas pelas idéias de Gramsci, que visualiza, de um lado, a existência da Sociedade Política, representada pelo Estado e todos os seus instrumentos legais, persuasivos e repressivos, e de outro, a Sociedade Civil, caracterizada pela pluralidade ideológica, formada pelo conjunto de instituições civis como a Igreja, os partidos, os meios de comunicação, os sindicatos, as entidades, etc..., e a Escola. Nesta concepção, a Sociedade Política, através de ação direta ou indireta dos grupos dominantes, tenta exercer o controle ideológico da Sociedade Civil, buscando o máximo de influência sobre suas instituições. Porém, a consecução dessa tarefa dependerá da existência de contra-ideologias, antepondo-se à dominante, através da ação organizada de setores sociais, atuando dentro dessas instituições. Assim, o confronto ideológico, na visão gramsciana, dar-se-á efetivamente na Sociedade Civil. Como consequência, a ação de grupos progressistas e ou de revolucionários nas instituições civis, como a Escola, passa a ser fundamental para o processo das transformações sociais.
A questão central que gostaria de apresentar e debater é que essas concepções reprodutivas estão começando a ser revistas e ampliadas em função principalmente de novos estudos e pesquisas que estão ajudando a perceber de forma mais clara o papel da Escola, principalmente para os setores mais pobres da população. Tais estudos, se por um lado não negam o papel ideologizante da Escola, têm demonstrado, por outro lado, que a Escola tem funções muito importantes para as populações marginalizadas, representando talvez uma das poucas oportunidades que esses setores teriam para o desenvolvimento de algumas condições fundamentais para a formação da cidadania.
Gostaria de tomar como exemplo desses novos trabalhos, a pesquisa realizada por Bárbara Freitag, publicada no seu livro Sociedade e Consciência- Um Estudo Piagetiano na Favela e na Escola. Essa autora pesquisou as relações entre a escolarização e o desenvolvimento das estruturas lógica, lingüística e moral, tomando como referencial a teoria de Piaget. Em seu procedimento, que não cabe aqui detalhar, avaliou o desenvolvimento dessas três estruturas, em crianças e jovens, com e sem escolarização (oito anos do ensino de primeiro grau), selecionando sujeitos de três níveis sociais (classes A, B e C), em diferentes idades.
Dentre os vários resultados observados, os que nos interessam são os seguintes: a) a escolarização regular (oito anos) favorece plenamente o atingimento dos níveis mais altos nas escalas psicogenéticas de linguagem, moralidade e pensamento lógico; b) os jovens sem escolaridade, comparados com os seus pares no final da oitava série, demonstraram defasagens de 6 a 8 anos, nas três classes sociais; c) os dados indicam que oito anos de escolarização apagam as diferenças de desempenho cognitivo, moral e lingüístico, observadas no início da escolarização, certamente devido às diferenças de origem sócio-econômica. Ou seja, a distribuição dos alunos no final da oitava série é homogênea, independente da classe social a que pertencem.
Um dado interessante, é que não há correlação entre as notas escolares e os níveis de competência, isto é, o fato dos alunos demostrarem desenvolvimento nessas estruturas não implica que obtenham notas melhores, o que sugere que os currículos escolares não estão adaptados aos diferentes níveis de desenvolvimento ou que existem outros fatores intra-escolares que interferem nesse processo.
Diante desses resultados, a autora conclui que a Escola tem um efeito democratizante sobre o desenvolvimento psicogenético e sócio-lingüístico, independente dos conteúdos que desenvolve. As hipóteses que a autora apresenta tentam explicar tal efeito devido provavelmente às relações sociais proporcionadas pela Escola, ou seja, as relações informais que os jovens experienciam dentro da Escola, principalmente com os seus pares, seriam de fundamental importância para o desenvolvimento daquelas estruturas avaliadas.
Uma outra conclusão, esta mais relacionada com o nosso tema, é que tais resultados levam necessariamente à revisão das concepções reprodutivas sobre a Escola: esta, apesar de ser um mecanismo de seletividade e de reprodução de classes sociais, é ao mesmo tempo uma instituição social que funcionaria, ao nível da formação das estruturas da consciência, como instrumento democratizante, como coloca Bárbara Freitag.
Em outras palavras, significa que jovens com oito anos de escolarização, apresentariam, independente da origem social, estruturas cognitivas que os possibilitariam assimilar e processar adequadamente as experiências externas.
A importância disto para a nossa discussão é óbvia: se assumirmos que um dos objetivos da Escola deveria ser a formação do comportamento crítico, tal processo implica necessariamente o desenvolvimento das competências (estruturas, na linguagem piagetiana) lógica, lingüística e moral; colocando a questão de forma inversa, não se desenvolve o comportamento crítico, sem que essas estruturas, investigadas por Freitag, se desenvolvam.
Delineia-se, portanto, uma nova contradição: se por um lado a Escola tem transmitido uma ideologia hegemônica, por outro, a escolarização tem desenvolvido o repertório básico que é fundamental para a formação da cidadania e talvez para a própria superação da condição de alienação. Obviamente, isto não significa que estamos defendendo a Escola tal qual se apresenta hoje, mas reconhecendo uma conseqüência da escolarização que até então não estava claramente colocada. Além disto, poder-se-ia imaginar que o papel da Escola poderia ser muito mais importante se estivesse planejada de acordo com as características e necessidades da população atendida; por exemplo, se os currículos e programas escolares fossem planejados, respeitando-se o repertório inicial da população e direcionados numa perspectiva de formação do comportamento crítico, certamente teria um efeito de grande relevância para a formação da cidadania.
Os resultados de estudos como este permitem ainda outras conclusões que levariam à revisão de certas concepções. Assim, se a origem social é um dos co-determinantes do desenvolvimento cognitivo, pode-se supor que tal processo não é irreversível, ou seja, a escolarização pode atuar, principalmente para as classes socialmente marginalizadas, como mecanismo de reequilibração dessa defasagem.
Outra conclusão geral possível é que o processo de reprodução de classes, atribuído ao sistema escolar, ocorre concretamente pelas relações de acesso / não acesso e permanência / não permanência. Daí, as conclusões práticas que podem ser tiradas desses trabalhos: tão importante quanto a oferta de escolas, é a necessidade de se assegurar a permanência das crianças durante oito anos básicos, ou seja, não basta que exista Escola, é preciso que os alunos possam freqüentá-la durante esse período. Tal necessidade é maior quanto mais pobre é a origem social do aluno, assumindo-se que o desenvolvimento global é, em grande parte, função das condições concretas de vida.
Diante desse quadro, resta questionar o seguinte: se a Escola tem um papel fundamental, mesmo na situação em que se encontra, por que não se tem garantido a permanência da maioria da população durante o primeiro grau? O que tem determinado o fracasso escolar (repetência e evasão) dos quase 80% das crianças que iniciam a primeira série e não terminam o primeiro grau?
Muito já se escreveu e pesquisou sobre o assunto. Em outro trabalho síntese (Alfabetização e Fracasso Escolar-EDION, 1988), tivemos a oportunidade de agrupar todos os fatores identificados pela pesquisa em dois grupos: os fatores extra e intra-escolares. No primeiro, situam-se as variáveis relacionadas com as condições de vida, determinadas pela situação sócio-econômica, que constituem condições concretas que impedem uma criança de freqüentar regularmente uma Escola. No segundo grupo, há uma série de determinantes conhecidos, desde currículos e programas inadequados, até formação do professor, passando pelas condições internas como organização e a burocratização escolar.
A questão que se coloca é: essa situação tem solução? É possível alterar certas condições e diminuir ou erradicar o fracasso escolar?
Entendo que a resposta a esta pergunta é afirmativa, mas qualquer proposta apresenta implicações de ordem política. Assim, vejamos: o enfrentamento dos fatores extra-escolares depende da superação dos principais problemas sócio-econômicos que afetam nossa população e isto dependerá fundamentalmente da capacidade de organização dos setores sociais comprometidos com mudanças que atendam os interesses da maioria da população, principalmente as parcelas historicamente marginalizadas.
Por outro lado, a superação dos fatores intra-escolares também implica a questão política. Por exemplo: as decisões que são tomadas nos diversos níveis das secretarias de Educação, dependem de quem ocupa os postos-chave, seja nos órgãos centrais, seja dentro da Escola. Dependem também do nível de organização dos educadores e do tipo de compromisso que eles assumam. Vejamos uma questão concreta: um dos grandes problemas que nossa Escola apresenta diz respeito à falta de continuidade curricular observada nas diversas disciplinas, entre as diversas séries. Este é um problema cuja solução implicará necessariamente a transformação da estrutura e funcionamento concreto da Escola, pois implica a participação dos professores nos níveis de decisão com relação às questões dos conteúdos e das práticas escolares. Em outras palavras, implica a busca de novas formas de organização dos educadores na Escola, o que exigirá uma divisão de poder, atualmente centrado nas mãos do diretor. Sem que se tenha clareza desse processo, dificilmente conseguir-se-á resolver a questão da continuidade curricular, independente das propostas de funcionamento que os níveis centrais das secretarias de Educação venham sugerir. Da mesma forma, a análise de cada fator intra-escolar responsável pelo fracasso escolar exigirá, para sua solução, decisões de cunho basicamente político-pedagógico, discutidas e assumidas pelos educadores, no interior das instituições escolares.
Finalmente, retomando-se a questão inicial apresentada neste trabalho, podemos concluir que a escolarização tem um papel decisivo no processo de formação da cidadania, principalmente para os alunos oriundos dos setores mais pobres da sociedade. Além disso, a ação escolar poderia ser muito mais eficiente e relevante neste sentido. Isto vai depender da clareza política dos setores sociais e de seu poder de organização para atuar como grupo de pressão visando à alteração dos fatores extra e intra-escolares responsáveis pelo fracasso escolar. O mesmo vale para os profissionais que atuam diretamente na área educacional, incluindo os psicólogos, que aqui é nossa audiência majoritária.
Para estes profissionais, apresento uma questão para discussão: estarão os psicólogos preparados e conscientes para participar desse processo político que visa transformar a realidade de nossa Escola pública?