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Construção psicopedagógica
versão impressa ISSN 1415-6954
Constr. psicopedag. vol.25 no.26 São Paulo 2017
ARTIGOS
"Era uma vez... um medo que não queria ir embora: o uso do conto na intervenção psicopedagógica infantil"
"Once upon a time... a fear that won't go away: employing storytelling on psychopedagogical intervention"
Marina Lara RodriguesI, 1; Eloisa Quadros FagaliII, 2
IPontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
IIPontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
RESUMO
Este estudo analisou as emoções mobilizadas pelo conto Chapeuzinho Amarelo, uma adaptação de Chico Buarque de Holanda baseada no clássico Chapeuzinho Vermelho. Participaram da pesquisa duas crianças do sexo masculino, com nove anos de idade: um frequenta colégio público estadual e o outro é aluno de colégio particular religioso, ambos localizados na zona oeste da cidade de São Paulo. As crianças foram abordadas individualmente e, após ouvirem o conto, tiveram a oportunidade de expressar suas impressões sobre a narrativa e personagens. A investigação científica e a intervenção pedagógica foram enquadradas de maneira fenomenológica, fundamentadas no desenvolvimento da interação entre a pesquisadora e as crianças. A análise das falas infantis foi baseada nas buscas dos sentidos subjetivos e produções de conhecimentos dos sujeitos; foram isolados os afetos, emoções, valores, estilos, elaboração mental e da linguagem, sob o referencial teórico da Análise de Conteúdo. Foram observados e considerados os fatores afetivos que interagem com os cognitivos, ressignificando e aprimorando as emoções e o desenvolvimento da noção de conservação. Os resultados indicam que os contos facilitam o surgimento de situações de aprendizagem, construção do conhecimento e desenvolvimento da linguagem; na esfera emocional, contribuem para o autoconhecimento, diálogo com o universo interno e diferenciação da personalidade
Palavras-chave: Análise de conteúdo; Contos de fadas; Dificuldades de aprendizagem; Intervenção psicopedagógica; Prática clínica;
ABSTRACT
In this work were analyzed the emotions mobilized by the Little Yellow Riding Hood tale ("Chapeuzinho Amarelo"), a brazilian adaptation made by Chico Buarque de Holanda, based on the classic Little Red Riding Hood. Two male children, nine years old, participated in the research: one attended a state public school and the other was a private religious school student, both located in the western part of the city of São Paulo. The children were individually approached and, after hearing the story, had the opportunity to express their impressions and emotions about the narrative and characters. Scientific research and pedagogical intervention were framed in a phenomenological way, based on interaction development between the researcher and the child. The analysis of children's speeches looked for the subjective senses and knowledge productions of the students; the affections, emotions, values, styles, mental and language elaborations were isolated, under the theoretical reference of Content Analysis. There was some consideration about the affective factors that interact with the cognitive, improving emotions and the development of the notion of conservation. The results indicate that the stories facilitate the emergence of learning situations, knowledge construction and language development; In the emotional sphere, stories contribute to self-knowledge, inner universe access and personality differentiation.
Keywords: Clinical practice; Content analysis; Fairy tales; Learning difficulties; Psychopedagogical intervention.
Introdução
Os contos infantis sempre foram considerados como grandes mobilizadores universais das emoções humanas. Suas narrativas atravessam o cotidiano infantil, adolescente e adulto, utilizando símbolos e alegorias para desvelar buscas existenciais, apreensões e preocupações humanas. Bettelheim faz uso da Psicanálise para abordar a força modeladora dos contos, enquanto Carl Jung2utiliza a Psicologia Analítica para apontar a emergência do inconsciente coletivo presente nas representações simbólicas; as perspectivas destes autores destacam diferentes tendências humanas universais nos contos - hoje caracterizados como infantis, mas que no passado eram narrativas para adultos - revelando projeções humanas dos conflitos, inquietações e buscas de soluções, por meio do protagonismo dos heróis
Diversas pesquisas teóricas e abordagens práticas ressaltam o valor dos contos na educação. Bettelheim diz que eles são motivadores para o aprendiz e facilitam o desenvolvimento do pensamento e da linguagem. Corso e Corso e Souza indicam que na compreensão do conto muitos recursos estratégicos de aprendizagem são ativados, integrando fatores cognitivos e afetivos que impulsionam o desenvolvimento e integração social. Assim, a pesquisa procurou aliar o pensamento psicológico ao educacional e psicopedagógico para entender a convergência entre emoções, mobilizações, sentidos simbólicos das crianças, elaborações cognitivas e a dinâmica afetiva que se revelam na dialógica entre educador, psicopedagogo e aprendiz.
A opção por apresentar Chapeuzinho Amarelo de Chico Buarque de Holanda (e não Chapeuzinho Vermelho, o conto tradicional) justifica-se pela sua temporalidade: o conto apresenta sentidos em narrativas mais atuais, explorando valores, emoções, conflitos e elaborações contemporâneas, mais próximas das experiências e do cotidiano das crianças. Seu objetivo é oportunizar a análise dos sentidos que a criança aprendiz atribui às emoções das personagens presentes no conto, dando relevo às suas próprias emoções, conflitos e elaborações mentais através de projeções sobre as personagens.
O emprego do conto na atuação psicopedagógica é dirigido por questões iniciais que norteiam o desenvolvimento da relação com a criança, assim como a análise posterior:
• Quais são as emoções ativadas pelo conto, principalmente em relação aos sentidos do medo expressos pela literatura e pela criança?
• Como a criança dialoga com as emoções geradas (principalmente a emoção do medo), quais são os seus sentidos e elaborações mentais?
• Como a criança avalia e incorpora o medo do desconhecido, os riscos simbolizados pelo lobo, e as variações sobre as forças do mal e do bem?
• O medo está ausente ou presente nas respostas das crianças? Ele se apresenta com novos sentidos e desafios?
• Os sentidos do medo estão associados aos diferentes estilos cognitivos afetivos das crianças que escutam?
• O contexto cultural e a dinâmica familiar podem influenciar na constituição da personalidade infantil, ditando a experiência do medo de forma diferente?
• Quais são as possíveis associações entre os sentidos das produções de conhecimento da criança em relação ao medo e às queixas familiares, apresentadas no diagnóstico psicopedagógico?
Com base nestas perguntas iniciais foi desenvolvido o estudo, procurando investigar as questões pontuais, mas também gerar análises mais profundas sobre o comportamento e ideações produzidas pela criança, reflexos de sua construção histórica e posicionamento no mundo, substanciados através de sua análise da história que ouviu.
Esta apresentação de estudo é baseada em uma pesquisa mais extensa, formatada como Monografia de Conclusão de Curso para a Especialização em Psicopedagogia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Serão utilizados dados parciais nesta apresentação; o texto integral do Trabalho original será disponibilizado oportunamente na Biblioteca Online da PUC-SP para consulta pública e gratuita.
Referencial teórico
O uso do conto tem o objetivo de facultar à criança o autoconhecimento em relação às suas emoções, limites e capacidades. Ao mesmo tempo - ao ouvir e falar sobre a narrativa - ocorre desenvolvimento e elaboração do pensamento e da linguagem. A capacidade de expressão a respeito de si mesmo é precursora do desenvolvimento da fala e da escrita, o que evidencia o valor das situações de aprendizagem que permitem o diálogo: na troca comunicativa ocorrem revelações sobre os sentidos das emoções como o medo, valores do mal e do bem, e dos poderes e limites dos heróis, falando a respeito da própria criança que escuta o conto e faz suas autoavaliações.
A interação (mediada pela linguagem e pelo conto) entre o professor e aluno, psicopedagogo e aprendiz, mobiliza as emoções e capacidades da criança, que muitas vezes se encontram latentes, esperando por uma oportunidade para surgir fora do ambiente tradicional e formal da sala de aula. Como já foi definido, esta descrição de estudo é baseada em um Trabalho de Conclusão de Curso, no qual foram aprofundadas as referências e revisão téorica. Serão descritos a seguir, de forma breve, os autores e obras principais que serviram de fundamento à pesquisa.
Para estruturar a pesquisa com os aprendizes alguns grandes temas foram explorados previamente. O primeiro tema consistiu em revisão sobre os contos de fadas como gênero literário e mobilizador de expressões de sentimentos e pensamentos da criança. Foram consultados estudos psicológicos e alguns autores de viés psicanalítico como Bettelheim, Bruder, Corso e Corso, Gutfreind, Hisada, Souza, Galloulckydio os estudos analíticos com base no pensamento de Carl Jung e Marie Louise Von Franz além das elaborações psicopedagógicas com enfoque em Jung de Fagali e Lacava e Fagali Foram estudadas as influências de heróis e mitos, presentes em culturas primitivas e conservados nas culturas contemporâneas. Estilos cognitivos individuais tendem a apresentar identificação com heróis em histórias e contos, projetando também as oposições aos comportamentos de heróis e anti-heróis, expressos na elaboração e compreensão da narrativa. As forças do inconsciente coletivo também estão presentes nas representações simbólicas, destacando tendências universais nos contos, projeções humanas de conflitos e busca de soluções para problemas humanos que se repetem na história da espécie.
Em seguida foram estudadas as expressões do medo nos contos de fadas e identificações ou oposições com as personagens, também por meio dos enfoques psicanalíticos e analíticos. Foram abordados os estudos de Jacques Lacan em Nasio, Pêcheux, Vanier, além dos autores já citados no primeiro tema. Outro assunto bastante importante foi a construção das primeiras relações vinculares com a mãe e constituições dos estilos cognitivo-afetivos projetados sobre tipos de diferentes heróis e suas tarefas, cuja fundamentação teve contribuição dos mesmos autores já citados neste parágrafo.
Notadamente, foram levadas em consideração as noções de conservação em função dos estilos. Fagali indica que crianças, adolescentes e adultos com maior desenvolvimento da inteligência intrapessoal ou interpessoal (estilo subjetivo), apresentam um desenvolvimento maior da função sentimento como apoio de suas elaborações. Captam mais rapidamente o fenômeno em relação às alterações ou constância (noção de conservação), as características das pessoas, motivações, associados à subjetividade, às avaliações das emoções, ao julgamento do bem e do mal. Tais indivíduos podem se fixar apenas na subjetividade, imaturos em relação às outras relações a serem consideradas do ponto de vista do que varia e do que conserva, como as justificativas mentais, reais e concretas, por exemplo. Apresentam um estilo subjetivo introspectivo ou extrospectivo.
Já os sujeitos com predominância de pensamento concreto tendem a assimilar os conceitos sobre objetos, pessoas e avaliar os fenômenos segundo a conservação dos fatos explícitos, aparentes, objetivos, de acordo com utilidade, apoiado apenas no explícito sem implicações e deduções sobre o que está implícito. Mantêm uma noção de conservação, considerando as características objetivas do objeto ou das informações. Podem apresentar rigidez ao se fixar nas relações objetivas do que está explícito, com dificuldades para entender outros aspectos subjetivos que se apresentam nas informações. Ocorre nos estilos perceptivos concretos introspectivos ou extrospectivos.
Sujeitos que respondem mais à noção de conservação, segundo as conceituações de Piaget, apresentam inteligência apoiada no pensamento lógico, com elaborações mentais e justificativas argumentativas racionais, explicações teóricas, e consideram as relações de causa e efeito. No entanto, mostram imaturidade do ponto de vista subjetivo e elaborações de hipóteses, desconsiderando possibilidades que excedam a informação presente. Apresentam falhas nas avaliações dos motivos e relativização na esfera afetiva, dificuldades de autoavaliação e avaliações do outro em relação às emoções e aos sentimentos.
Também foi considerado outro estilo com predominância da capacidade imaginária, lidando com as possibilidades destacadas dos contatos presentes e passados. Considerados como intuitivos, têm grande capacidade imaginativa, captando rapidamente a conservação para além do que está explícito e do que se observa e se explica, lançando hipóteses apoiadas em possibilidades imaginativas. Por outro lado, apresentam dificuldades de lidar com a conservação sobre outros ângulos do percebido e do pensar, com risco de apresentar um excesso de fantasias.
A parte teórica foi complementada com referências à psicologia cognitiva, e foram estudados dois temas relacionados: a importância da conservação e o desenvolvimento da moral na criança e ampliações sobre a noção de conservação, segundo as diferentes inteligências. Estes temas foram fundamentados com as obras de Piaget, Fagali e Gardner.
Finalmente, para basear a questão do pensamento e linguagem (identificadas como fundamentais na prática psicopedagógica com a criança) foi estabelecida uma comparação entre os conceitos propostos por Piaget e Vygotsky a respeito do desenvolvimento cognitivo. Ao ouvir uma história, a criança estabelece juízos morais a respeito do comportamento dos protagonistas e das personagens, classificando-os em um espectro com extremos de bem e mal. No desenvolvimento cognitivo, o espectro mostra uma avaliação menos polarizada, e a criança começa a identificar comportamentos bons e maus no mesmo protagonistas; ela demonstra estar em fase de transição, notando a ambiguidade possível na moral, possibilidades e visão de todo, considerando os comportamentos sob diferentes contextos e situações.
Com base nos autores citados e conceitos explorados, foi feita a entrevista e posterior análise das falas infantis, cujas metodologias serão apresentadas na sequência.
Seleção dos Sujeitos
Foram selecionadas duas crianças do sexo masculino, com nove anos de idade; ambas foram diagnosticadas como portadoras de dificuldades de aprendizagem, segundo avaliações psicopedagógicas realizados no contexto escolar. A psicopedagoga destas crianças foi também a pesquisadora. O critério de escolha considerou a disponibilidade e os diferentes perfis das crianças, identificados previamente no diagnóstico inicial psicopedagógico. As intervenções psicopedagógicas, assim como a própria pesquisa, foram desenvolvidas no ambiente da escola e no centro de formação frequentados pelos sujeitos.
Na aplicação da pesquisa os aprendizes se situam no nível escolar do Fundamental I. Foram consideradas as possíveis diferenças de natureza cognitiva e afetiva provenientes dos diferentes tipos de instituições escolares, já que um dos aprendizes frequenta colégio público estadual e o outro é aluno de colégio particular religioso, ambos situados na zona oeste da cidade de São Paulo. Estas diferenciações de escola tinham o propósito de verificar as possíveis influências do contexto e dinâmica de ensino, associados aos fatores culturais próprios da escola pública e particular.
As conversas referentes aos contos foram gravadas para posterior análise do discurso, com base no conteúdo transcrito. Foi solicitada a autorização dos pais e consentimento dos alunos para se efetivar a pesquisa.
Metodologia aplicada à análise
A pesquisa teórica inicial revelou o valor dos contos segundo referências analíticas e psicanalíticas. Foi complementada pelos estudos de Piaget, destacando a noção de conservação e o desenvolvimento moral da criança, que emergem no seu discurso sobre o conto e valores percebidos. Na análise também foram utilizados conceitos de Vygotski em relação ao desenvolvimento da linguagem, ampliando as concepções de Jean Piaget. Nas trocas subsequentes entre o psicopedagogo\pesquisador, a criança\aprendiz e a orientadora da monografia foram ampliadas as elaborações sobre as diferenças dos estilos cognitivo-afetivos, o desenvolvimento do pensamento e da linguagem, e as mensagens do conto contemporâneo em comparação com o conto tradicional e as respostas das crianças.
A parte prática do estudo teve foco na análise qualitativa, buscando captar núcleos de sentidos de acordo com a Análise de Conteúdo de Bardin. Esta técnica consiste atualmente em um conjunto de instrumentos metodológicos sutis e em constante aperfeiçoamento; são aplicados a discursos (conteúdos e continentes) extremamente diversificados. A Análise de Conteúdo permite a emergência dos sentidos em trechos de fala ou escrita, diferenciações icônicas que acontecem individualmente, em grupos restritos e até na comunicação de massa. Bardin indica que a Análise de Conteúdo busca aquilo que está por trás das palavras, desmembrando o texto em unidades e subsequentemente em categorias, de acordo com reagrupamentos analógicos.
Esta pesquisa utiliza especificamente a análise categorial, na qual a organização ocorre em torno de três polos cronológicos: a pré-análise, a exploração do material; e o tratamento dos resultados com inferências e interpretação27. Sob tais consideraçãoes, a análise qualitativa percorreu os seguintes passos:
a. Análises preliminares (em conjunto com a orientadora da pesquisa) sobre a dinâmica da estrutura da narrativa do conto contemporâneo comparado ao conto tradicional. Foram levantadas hipóteses a respeito dos sentidos subjetivos da própria psicopedagoga pesquisadora sobre as personagens do conto, suas emoções e conflitos;
b. Identificação e análise dos núcleos de sentido subjetivos das produções de conhecimento das crianças, revelados nas suas expressões verbais orais na interação com a psicopedagoga pesquisadora;
c. Comparação dos conjuntos de núcleos de sentidos subjetivos elencados para cada criança, considerando diferenças em relação aos perfis da criança, estilos cognitivo-afetivos, níveis de elaboração mental, dinâmica afetiva que se apresentava nos contextos familiares, escolares e na dialógica entre psicopedagoga e aprendiz,
d. Descoberta de eixos de sentidos (núcleos de sentido mais abrangentes), em torno dos quais giravam as diferentes percepções das crianças sobre suas próprias emoções e avaliações cognitivas.
Às duas crianças foram atribuídos os nomes fictícios de "Pedro" e "João". Com base nos passos e metodologia descritos anteriormente foi possível delimitar algum as associações temáticas a partir dos sentidos subjetivos expressos pelos aprendizes. Estas delimitações surgem a partir da leitura reiterada das transcrições das entrevistas. Os temas decorrentes destas delimitações são elencados no quadro a seguir.
Quadro 1 - Clique para ampliar
De posse das categorias de análise, produzidas a partir das falas dos sujeitos, procede-se então à análise e comparação, buscando identificar os sentidos peculiares e produção histórica de cada um dos indivíduos.
Análise das produções infantis
A análise subsequente gera uma série de dados e reflexões, que constam integralmente do trabalho original. A seguir são sumarizadas algumas das observações que foram levantadas a partir do estudo, bem como os trechos de fala associados. Estes trechos representam uma parcela da análise total, com o objetivo de exemplificar o trabalho realizado e os tipos de conclusões que podem emergir.
João fala de duas Chapeuzinhos utilizando o imaginário (mas correndo o risco de se perder nas fantasias) criando a ideia de que as Chapeuzinhos - Vermelho e Amarelo - são irmãs; revela através do simbólico a busca do apoio do pai quando diz que a mãe chama a polícia e que o lança "numa aventura do lobo perdido". Expressa solidão e desejo de ter um irmão, situando a mãe como alguém que cuida e protege. Pedro, por outro lado, mostra um pensamento mais apoiado na realidade, o que gerou relativo interesse no conto apresentado por representar o medo para crianças pequenas. Ao contrário de João, tem mais dificuldades de acessar o imaginário, apresentando atitude introvertida e mais inibida em relação à expressão de suas emoções, de medos que revela não ter.
Pedro gosta do lobo porque ele é "mau", identificando-se com esta condição de agressão que atribui à figura masculina. Mas apresenta conflitos em relação a identidades de gênero, ao trazer insistentemente nas suas elaborações as questões de gêneros masculino, feminino e do homossexual. Apresenta introversão, distanciamento e passividade; a agressão latente pode oferecer a oportunidade de fortalecimento do ego na relação com o outro, mobilizando a extroversão. João, ao contrário, identifica-se com o lobo "bom", buscando essas condições, já que na escola é aluno que muitas vezes agride verbalmente os colegas.
Segundo Piaget, os pensamentos lógicos de ambos os sujeitos, bem como sua estrutura emocional, diferem. Isto também é notado a partir da perspectiva psicanalítica. Ambos apresentam defesas associadas ao medo, em função das dificuldades das relações maternas e paternas; Pedro nega estas emoções, projetando sobre o outro, associando ao gênero e às questões sexuais, reprimindo emoções de medo e suas fragilidades. João, diferentemente, assume e expressa seu incômodo, racionalizando ao dizer que o que sente é próprio da criança, incluindo-se na totalidade delas: "todas as crianças têm medo de zumbis", medo que tende a passar com o decorrer do tempo e com o crescimento. João gosta muito de falar de si mesmo; mas se expõe e se coloca como vítima, expressando dependência, devido ao seu estilo com predominância de atitude extrovertida ou talvez por ter uma vida mais confortável e estar em tratamento psicoterápico, além do psicopedagógico. As crianças em tratamento psicoterápico aprendem a falar de si, muitas vezes com propriedade das suas fraquezas e fortalezas, mas colocam pouco em prática. Acabam desenvolvendo um certo prazer na fala, mas sem uma atitude real relacionada.
João inventa que as Chapeuzinhos são irmãs gêmeas, utilizando a fantasia, ao invés de ater-se ao que de fato ocorre na história. Pedro apresenta reações diferentes de João e tende a se enrijecer, não assumindo o que sente. É possível questionar se sua fragilidade surge devido à família com traços machistas, com visões rígidas de masculinidade: não há possibilidade para o homem sentir medo, falar de suas dificuldades. Não tem a oportunidade de estar em processo psicoterápico (como João). Ambos, João e Pedro, transitam entre a fase pré-operatória e operatória concreta, possivelmente em função das questões afetivas. Supõe-se que estas dificuldades no desenvolvimento do pensamento e da linguagem estejam vinculadas aos afetos negativos com figuras maternas e paternas.
Pedro é mais comunicativo e autônomo, relaciona-se com vizinhos, anda sozinho pela rua para fazer pequenos favores para a mãe, acompanha a mãe nas novelas e não assiste a muitos desenhos infantis. Também não tem acesso frequente a canais de tv a cabo ou mídias eletrônicas, nos quais surgem os "vampiros" e "monstros" contemporâneos. Seus medos são mais baseados na realidade observável e concreta: ladrão e escuro. No caso de João, ele fica muito solitário em casa, é tenso e não se relaciona facilmente com crianças da vizinhança. O trânsito fora da residência é feito no carro dirigido pelos pais. Assiste a filmes e desenhos infantis com "monstros", "vampiros" e "zumbis", e lê livros de terror e de heróis. Seus medos são mais voltados para o fantástico e imaginado. Em alguns momentos revela capacidade de relativização, conservação e reversibilidade, como quando diz que o autor reconta a mesma história de forma diferente, que a Chapeuzinho Amarelo é a mesma menina chamada em outro conto de Chapeuzinho Vermelho e que Lobo e Chapeuzinho apresentam características positivas e negativas ao mesmo tempo. Julga possível ser "bom e mau ao mesmo tempo" e também reconhece a transformação dos indivíduos ao identificar que o lobo era mau e torna-se bonzinho. Desqualifica características que considera femininas para criar identificação com o gênero masculino, o que pode estar relacionado com a admiração e medo de perder o pai.
Ainda, no escopo da análise, é importante considerar possíveis interferências do contexto de ensino diferenciado (escola particular e pública) aspecto que não foi possível aprofundar. No entanto, nos diagnósticos psicopedagógicos, percebe-se dificuldades de ambos os sujeitos associadas à escrita das palavras e à construção sintática, aspectos que precisam ainda de desenvolvimento nas intervenções psicopedagógicas. Também é importante notar que, devido ao limite do tempo, não foi possível desdobrar a linguagem falada para a escrita, algo que deve ser igualmente valorizado nos trabalhos psicopedagógicos e mediações dos contos.
A realização da pesquisa aponta que, apesar das dificuldades de ambos os aprendizes, eles demonstraram maior facilidade em relação às suas elaborações mentais e expressão de linguagem ao expressar comportamentos e atitudes utilizando os contos.
Considerações finais
O trabalho desenvolvido nesta pesquisa indagou sobre a importância do conto para o desenvolvimento psicoeducacional e para a aprendizagem das crianças. As experiências, análises e discussão do presente trabalho demonstraram que o conto possibilita o autoconhecimento do aprendiz, tornando-lhe mais visíveis suas emoções, limites e poderes, projetados nos heróis e anti-heróis. Também foi possível notar o desenvolvimento da linguagem e o pensamento das crianças; os contos possibilitam o desenvolvimento da autopercepção, quando esta se identifica com aspectos associados ao poder, como a relativização do poder do anti-herói, o Lobo. No conto da Chapeuzinho Amarelo, o Lobo aparece também como frágil, o que leva o aprendiz a avaliar a relatividade dos poderes e do próprio medo.
A abertura para o diálogo e escuta mútua entre o psicopedagogo e os aprendizes revelou os sentidos de produções do conhecimento, a partir das projeções de suas emoções e poderes sobre Lobo e Chapeuzinho Amarelo. Ocorreram expressões das crianças sobre emoções do medo e dos poderes, projetados no Lobo, considerando os significados do mal e do bem. Houve um deslocamento destes valores atribuídos ao Lobo e à Chapeuzinho para as situações existenciais e de aprendizagem das crianças, quando estas expressavam e elaboravam seus próprios medos, limites e poderes. Observou-se pelas respostas das crianças como é possível relativizar o poder do anti-herói, no caso o lobo, em relação aos seus efeitos malignos e aos medos que ele poderia provocar, captando a mensagem do conto de Chico Buarque de Holanda sobre a Chapeuzinho Amarelo, que destaca a relativização dos poderes associados aos medos.
Vygotsky concebeu a Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), que fala especificamente sobre as trocas comunicativas como formas de superação e de desenvolvimento da estrutura de pensamento, facilitando a aquisição de habilidades cognitivas. A ZDP é algo "em suspense", potencial, uma condição de aprendizagem e da linguagem que necessitam da estimulação do meio. Piaget22,23,24 também valoriza a condição do aprender por meio das interações verbais, estimulando a transição da fase pré-operatória para as operações concretas e abstratas, e o desenvolvimento da noção de conservação que possibilitam o desenvolvimento do juízo moral, relativização e as compensações que se expressam na linguagem.
O valor dos contos como ferramenta psicopedagógica ressalta os cuidados que o educador e psicopedagogo precisam ter, não reduzindo o uso do conto apenas às estratégias para a expressão do não verbal (como desenhos, por exemplo). As elaborações verbais orais e escritas da criança devem ser colocadas em primeiro plano, com atenção ao poder simbólico dos contos. Eles possibilitam as projeções das emoções, conflitos e valores dos aprendizes. As análises das respostas das crianças revelaram a importância das intervenções psicopedagógicas, valorizando as expressões das crianças sobre os sentimentos projetados no conto, interagindo com os aspectos afetivos e cognitivos necessários à aprendizagem.
Há necessidade de apresentar o conto e descobrir novos valores, inspirados pela escuta e expressões não verbais e verbais. Os resultados das análises ressaltam que a mediação - respeitando as singularidades e estilos de cada criança - potencializa o desenvolvimento do pensamento e da linguagem integrada ao emocional, possibilitando a constituição do sujeito aprendiz. Não se deve perder de vista o foco sobre o desenvolvimento do autoconhecimento.
Os sentimentos do medo são básicos e acompanham a existência humana desde o início do desenvolvimento psíquico até o fim da vida. Mas o medo é passível de alteração se bem administrado, para que não seja obstáculo à aprendizagem e desenvolvimento da pessoa. Sob o ponto de vista da conservação, ele sempre emerge em momentos de conflitos, mas com diferentes sentidos, e vai se transformando, revelando suas diferentes faces, em função dos momentos de vida de cada um. O exercício de retomada do medo em torno do conto, em busca dos diferentes sentidos dos medos infantis, contribuiu para que o medo tomasse outras formas, principalmente como ferramenta de autoconhecimento e desenvolvimento.
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1 Mestranda no Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: Psicologia da Educação, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).
2 Doutora em psicologia, orientadora do Programa de Estudos de Pós-Graduação em Educação: Psicologia da Educação, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Psicopedagoga