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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128
Estilos clin. vol.4 no.6 São Paulo jul. 1999
ARTIGO
E agora? As crianças cresceram...
And now? The children have grown up
Lina Galletti M. de OliveiraI; Gislene do Carmo JardimII
IPsicanalista, diretora clínica da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida. Mestre em Psicologia Escolar na USP
IIPsicanalista, coordenadora de grupo da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida, doutoranda no Instituto de Psicologia da USP
RESUMO
Este artigo aborda a problemática do tratamento de adolescentes psicóticos na instituição Lugar de Vida. Algumas questões são levantadas em torno do dispositivo de tratamento para estes pacientes, bem como é apresentada uma nova proposta de enquadre institucional para o trabalho com adolescentes psicóticos. Um relato ilustra efeitos de tais mudanças no dispositivo clínico.
Adolescência; psicose; tratamento; instituição
ABSTRACT
This paper is about the treatment of psychotic adolescents in Lugar de Vida. We work on some questions about the treatment and we also present a new proposal of the institutional way of working with this public. We relate a case to ilustrate the effect of the changes we have made in the institutional clinic.
Adolescence; psychosis; treatment; institution
REPENSANDO A PRÉ-ESCOLA TERAPÊUTICA LUGAR DE VIDA COMO DISPOSITIVO INSTITUCIONAL PARA O TRATAMENTO DE ADOLESCENTES PSICÓTICOS1
O confronto recente com a problemática do adolescente psicótico produziu na equipe da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida um profundo questionamento acerca do que se passa quando uma criança psicótica cresce, bem como um questionamento a respeito dos eixos fundamentais do dispositivo institucional para o tratamento destes pacientes. Neste texto apresentamos as questões levantadas pela equipe de profissionais2 do Lugar de Vida que trabalham com os adolescentes, pretendendo responder a algumas das questões colocadas e apontando outras para investigações futuras.
A Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida3 é uma instituição que oferece atendimento terapêutico e educacional integrados para crianças autistas, psicóticas e neuróticas graves, funcionando junto ao Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo desde 1991.
O objetivo do Lugar de Vida, como o próprio nome sugere, é criar as condições para uma efetiva inserção social de crianças gravemente comprometidas, crianças que estão fora da escola por apresentarem crises no processo de constituição subjetiva. Considerando a escola como a instituição reconhecida pela cultura como o lugar social da infância, por excelência, o "pré-escola" da instituição Lugar de Vida indica muito mais um momento anterior à entrada escolar que um momento anterior das condições cognitivas do processo de alfabetização.
Para realizar tal objetivo e considerando a posição de sujeito de cada uma das crianças ali tratadas, o Lugar de Vida lança mão de um dispositivo institucional que, do ponto de vista psicanalítico, tenta dar conta das operações necessárias para a subjetivação; dito de outro modo, o Lugar de Vida é um dispositivo institucional que pretende dar contorno ao sujeito. Esta perspectiva do dispositivo clínico faz ampliar a noção da inserção social das crianças tratadas no Lugar de Vida, repondo como seu objetivo a inserção de sujeitos na rede de ensino escolar e contextualizando, assim, as vertentes terapêutica e educacional do tratamento oferecido. Poderíamos questionar, também, o aspecto terapêutico da educação, tal como nos propõe Alfredo Jerusalinsky (1994), mas esta discussão nos desviaria da apresentação e reflexão do trabalho realizado com as crianças que "cresceram" - crono (lógica) e biologicamente - no Lugar de Vida.
COMO É O DISPOSITIVO INSTITUCIONAL DO LUGAR DE VIDA?
De forma breve, podemos dizer que o eixo do trabalho no Lugar de Vida é o atendimento em grupo de crianças como tentativa de promoção do laço social. O atendimento ocorre de segunda a quinta-feira, por duas horas diárias, nas quais estão incluídas a alternância entre atividades e profissionais. As atividades que formam o conjunto integrado do tratamento são os grupos "educacional", do "jogo", os "ateliês de artes" e de "contar histórias" e os de "recreação". Também os pais são atendidos em grupo, bissemanalmente, sendo tal atendimento considerado parte de uma mesma estratégia no tratamento das crianças.
No dispositivo institucional existe ainda uma modalidade de escuta, mas não de intervenção analítica, com cada uma das famílias que chega ao Lugar de Vida. Neste trabalho, o profissional, na posição de "referência", tem dupla função: a de ser referência da instituição para a criança e a família e a de ser referência para a instituição da criança e da família. Podemos dizer que nesta posição o profissional recupera e promove a re-historização da criança, favorecendo o giro discursivo dos pais em relação à problemática de seus filhos.
Para a efetivação e manutenção da criança inserida na escola contamos com alguns profissionais da equipe - grupo "Ponte" - que acompanham a entrada destas crianças na escola e promovem discussões sobre a problemática das crianças com os professores e coordenadores de escolas que receberam tais crianças do Lugar de Vida.
UMA NOVA PROBLEMÁTICA...
Como é sabido, o Lugar de Vida foi concebido para o tratamento de crianças com transtornos graves. Muito recentemente deparamo-nos com a realidade do crescimento de algumas crianças atendidas na instituição (tanto aquelas que cresceram na instituição como aquelas que chegaram em idade cronológica mais avançada), fato que nos pôs diante de novas indagações teórico-clínicas, considerando os diferentes momentos lógicos da constituição subjetiva. Para algumas das crianças, a entrada na puberdade fez aparecer uma outra realidade para o estatuto do real do corpo, provocando cenas disruptivas comumente ligadas à agressividade ou à excitação física.
Como tratar, então, deste grupo de pacientes - ainda pouco caracterizado na instituição -, já que alguns não vêm demonstrando tanto interesse pelas atividades propostas e que, entre os integrantes do grupo, existem aqueles que ainda não foram inseridos na escola e muito dificilmente o serão (seja pelo limite superior de idade para a inserção escolar, que na cidade de São Paulo é de 14 anos, seja pela ausência de condições mínimas de inserção)? Como compreender, a partir da clínica, o cruzamento entre o desenvolvimento e a estruturação psíquica destes pré-adolescentes? Estão eles na condição de pré-adolescentes, já que seus conflitos não são aqueles reconhecidos socialmente, como a rebeldia ou a procura por semelhantes? Qual o melhor significante para abordá-los? Enfim, como tratá-los?
Tarefa árdua e difícil para uma instituição que, durante anos, preocupou-se com estudos sobre a infância. Diante de tal situação, nosso ponto de partida foi exatamente o debruçarmo-nos sobre o dispositivo de tratamento para as crianças e a partir daí pensarmos uma montagem de atendimento que abordasse a realidade daqueles pacientes que cresceram. É importante dizer que questionar e modificar o dispositivo institucional constituiu, para nós, uma intervenção terapêutica, não só com os pré-adolescentes como também para os seus pais, provocando, ainda, reconhecidos efeitos nas crianças e nos profissionais da instituição.
INSTITUIÇÃO DE UM NOVO GRUPO: O "GRUPO DOS GRANDES"
O "grupo dos grandes" foi instituído no Lugar de Vida no primeiro semestre de 1997 como tentativa de dar contorno a uma nova demanda de atendimento que surgia: prosseguir o tratamento de algumas crianças que, tendo crescido, adentravam a puberdade. A montagem institucional com alternâncias entre várias atividades e profissionais e a ênfase no semblante escolar pareciam não ser mais adequados. Se antes, diante da descontinuidade presente na alternância, as crianças podiam, de modo ortopédico, ampliar as relações com o outro, agora, muito ao contrário, a oferta desta mesma descontinuidade vinha produzindo efeitos disruptivos. No entanto, a leitura que fizemos de tais disrupções foi a de crescimento, a de que a entrada na puberdade e a emergência de uma nova dimensão para o gozo pediam um outro contorno. Assim, as freqüentes manifestações de agressividade e a emergência da sexualidade impunham-nos que marcássemos, na própria proposta de atendimento institucional, uma diferença em relação ao tratamento das crianças.
Somente no après-coup pudemos perceber que a antecipação do tempo da adolescência já estava formulada na teoria psicanalítica, teoria orientadora das nossas intervenções clínicas. Encontramos dificuldades até em nomear estes pacientes que cresceram: seriam pré-adolescentes, púberes ou simplesmente adolescentes, já que se encontram diante de dilemas entre a infância e a vida adulta? Se por um lado ainda não avançamos o suficiente para defendermos uma posição teórica sobre tal conceituaçâo, por outro lado avançamos o suficiente para elegermos uma nomeação - "grupo dos grandes" - que nos orientou nas modificações do dispositivo clínico. Somente no depois reconhecemos que tal nomeação, com a força de um significante, provocou efeitos na instituição.
O primeiro ponto revisto no Lugar de Vida foi exatamente o seu objetivo central - o da inserção escolar -, agora considerado como algo secundário, sobretudo porque três integrantes deste grupo haviam entrado na escola e outros três não apresentavam condições de inserção, estando dois destes últimos impedidos, por limite superior de idade, de iniciarem a vida escolar. O objetivo central do Lugar de Vida com este grupo passou a ser, então, a inserção social de uma maneira ampla, voltada para as questões e interesses da vida adulta.
O segundo ponto revisto, como conseqüência do primeiro, foi a alteração da proposta de atividades, o que resultou numa montagem particular e diferenciada para este grupo de pacientes em relação aos outros grupos de crianças da instituição. Nesta nova montagem, partimos de uma parceria com docentes do curso de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, parceria iniciada no segundo semestre de 1996. Dado o resultado positivo de tal atividade, iniciamos a discussão sobre uma nova montagem a partir da oferta de atividades que estariam referidas muito mais ao universo dos adultos do que ao universo das crianças. Desta forma, trocamos o significante "escola" pelo significante "trabalho".
Junto destes dois pontos, seguimos nossa discussão no sentido de estabelecer se a instituição Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida é uma instituição que pode e quer tratar adolescentes. Diante desta importantíssima questão, pensamos que as alterações propostas no dispositivo institucional deveriam conter uma referência à possível finalização do tratamento no Lugar de Vida para alguns dos integrantes deste grupo.
As alterações no enquadre de trabalho ocorreram em três sentidos: diminuição na freqüência do atendimento, mudanças das atividades oferecidas e diminuição da equipe de profissionais. O tratamento passou à freqüência de duas vezes por semana e com as seguintes atividades: "ofícios", "terapia ocupacional", "educacional" e "passeio". A ênfase do trabalho com este grupo passou a ser posta no fazer, com a produção de objetos compartilháveis na cultura (exemplos: cadernos, porta-retratos, álbum de fotografia, grafitagem, maquete da cidade, etc), objetos reconhecidos e feitos para o outro. Neste sentido, o eixo do trabalho institucional tornou-se o vir-a-ser adulto. O enfoque no fazer pode ser entendido, também, em referência ao fazer remetido para o Outro.
Somente depois de propormos e realizarmos as alterações é que pudemos reconhecer os efeitos clínicos. O mais importante deles é que, com as alterações, instituímos o momento da adolescência para cada integrante deste grupo. Ao introduzirmos no discurso institucional os significantes "grupo dos grandes", "sexualidade", "adolescência", acenamos com uma antecipação da adolescência e com a suposição de um novo lugar no discurso parental para estas crianças que cresceram. Ainda foi possível perceber - pelos efeitos nos pais, nos adolescentes e na própria equipe - que a suposição de algo que não estava lá funcionou como discurso social, capaz de nomear e de dar lugar à puberdade, à emergência do real do corpo.
Acompanhemos alguns efeitos das mudanças no dispositivo institucional do Lugar de Vida através do recorte clínico de um caso. Tomemos as alterações no dispositivo de tratamento como uma manobra transferenciai no relato que se segue:
Pedrinho tem 12 anos e freqüenta a Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida há quatro anos. Foi encaminhado ao Lugar de Vida com o diagnóstico psiquiátrico de síndrome de Asperger. Trabalhamos com a hipótese de psicose infantil para essa criança. Esse tempo de tratamento no Lugar de Vida propiciou-lhe alguma evolução e a inserção na escola. Porém, há cerca de um ano, antes da instalação do grupo dos grandes, Pedrinho começou a ficar muito agitado e agressivo com seus colegas e mesmo com alguns profissionais da equipe. Sua produção nas atividades da montagem havia diminuído muito, bem como sua atenção e concentração.
Com o novo enquadre, instituindo-se o grupo dos grandes, instalou-se um contexto mais propício para que se lidasse com essas questões. A diminuição no número de atividades e de profissionais, assim como a oferta de propostas de trabalho diferentes daquelas já conhecidas da pré-escola, favoreceu a essa criança um efeito tranqüilizador, possibilitando-lhe a retomada da produção e da fala, que voltou a ser fluente. O que antes parecia ter lugar junto à violência e agressividade em relação aos seus colegas, agora pode ser vivenciado como uma pesquisa da sexualidade: Pedrinho pede para ver a 'barriga do outro' e quer medir quem é 'maior ou menor'.
Por outro lado, o discurso de sua mãe no grupo de pais evidenciou que os significantes 'sexualidade', 'vida de adulto' e 'trabalho' introduzidos no trabalho institucional produziram efeitos, possibilitando algumas mudanças nela e conseqüentemente no lugar em que põe seu filho.
A mãe relatou no grupo de pais algumas dessas mudanças. Se antes protegia muito o filho, poupando-o dos fatos da realidade, agora, muito ao contrário, o tem chamado 'à responsabilidade', como diz ela. Acredita que ele não é mais criança e por esta razão tem lhe dito que não vai mais tolerar que não leve a sério os estudos, pois: '...se mata de trabalhar para pagar a mensalidade da escola e que não é justo ele não fazer as lições e não se comportar como gente no ambiente escolar'. Chega a fazer ameaças de tirá-lo da escola e pô-lo para trabalhar.
No grupo de pais, a mãe dá a sua versão para as mudanças que estão ocorrendo. Acha que essa história de a gente (refere-se a nós, profissionais do Lugar de Vida) insistir que eles são grandes, que não são mais crianças, deu certo'. Em relação a isso conta que seu filho tem mostrado interesses diferentes. Antes só queria colecionar carrinhos. Hoje, segundo ela, ele brinca de ser 'pintor de carros', que é a profissão do pai, e ora demonstra interesse pela costura, que é a profissão da mãe.
Na continuidade de suas reflexões, a mãe tem se perguntado: o que será que ele vai ser?
Parece-nos que as suposições dessa mãe, antecipando a vida adulta para o filho, juntamente com todo o trabalho realizado com ele, tem possibilitado a Pedrinho o vislumbre de um lugar social. Recentemente, ele tem respondido à pergunta da mãe dizendo que quando crescer vai ser 'estilista de moda íntima'.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Jerusalinsky, A. (1994), La educación es terapêutica? - Acerca de tres juegos constituyentes dei sujeto. Escritos de la Infancia, n° 4, 11-8. [ Links ]
Recebido em 06/99
NOTAS
1 Trabalho apresentado no I Congresso Internacional sobre Autismo e Psicoses Infantis, realizado nos dias 8, 9 e 10 de agosto de 1997, no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
2 Equipe responsável pelo trabalho com os adolescentes na Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida: Edson Cardoso de Almeida, Gislene do Carmo Jardim, Lina Galletti Martins de Oliveira, Madelise Varallo, Mariana de Mello Beisiegel, Renata Petri e Rogério Lerner.
3 Sobre a Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida, ver, ainda, os artigos de Maria Cristina M. Kupfer, "Apresentação da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida" e "A presença da psicanálise nos dispositivos institucionais de tratamento da psicose", ambos publicados em Estilos da Clínica: Revista sobre a Infância com Problemas, São Paulo, ano I, n° 1, 2º semestre de 1996.