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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128

Estilos clin. vol.4 no.7 São Paulo  1999

 

RESENHA

 

De Lajonquière, L. Infância e ilusão (psico)pedagógica: escritos de psicanálise e educação. São Paulo, Vozes, 1999

 

 

Renata Petri

Psicanalista. Membro da equipe da Pré-Escola Terapêutica Lugar de Vida, do IPUSR Mestranda, bolsista da FAPESR

 

 

"A educação é impossível!" É assim que se inicia esse livro de Leandro de Lajonquière, resultado de um longo trabalho como professor, pesquisador e psicanalista. O autor dedica-se à tentativa de recuperar a impossibilidade intrínseca da educação da qual falava Freud, e livrá-la da impotência que a torna uma empreitada impossível no mundo moderno. Para tanto, realiza uma leitura, a partir da utilização de conceitos psicanalíticos, do sintoma social que nomeia como discurso (psico)pedagógico hegemônico, que é sustentado por uma ilusão e que desvirtua tão gravemente a educação, sendo o responsável pelo fracasso da mesma nos dias de hoje.

O impossível a que se referia Freud é inerente a toda relação, ao fato de não se poder controlar o futuro, à impossibilidade de cumprir com um ideal. Hoje assistimos a uma impossibilidade às avessas, derivada exatamente do recalcamento desse impossível estrutural, para o qual chama a atenção Maud Mannoni no livro Educação impossível. A pedagogia moderna pretende provar que é possível prever o futuro e construir um ideal, no entanto, não cessa de fracassar. Por quê?

O autor, no decorrer desses escritos, vai demonstrar como, ao se rechaçar essa impossibilidade inerente ao ato de educar, e se acreditar na possibilidade de se chegar a um ideal definido a priori, faz-se com que essa impossibilidade retorne no real e impeça a educação de acontecer.

Lajonquière não pretende esgotar o assunto nem trazer soluções mágicas para os impasses da educação existentes nos dias de hoje. O que faz é denunciar alguns mal-entendidos, engodos e equívocos, que fazem do ato educativo um empreendimento de rara ocorrência, destacando as conseqüências que isso traz para nossa sociedade, e abrindo alguns caminhos de reflexão que podem levar a uma mudança nesse quadro negro que diagnostica. Para tanto, o autor fará incursões em vários assuntos, tentando desconstruir alguns dos sintomas sociais mais gritantes no campo da educação, quais sejam, a violência nas escolas, o fracasso escolar, a indisciplina e mesmo o cinismo, que transcende os muros das escolas. O que vai nortear as construções, ou desconstruções, é a distância que o autor denuncia existir entre agir em nome da Natureza e em nome do desejo.

Esse estado de coisas impele Lajonquière a focalizar uma disjunção que se revela entre educação e pedagogia. A primeira entendida como uma filiação simbólica, efeito da produção de um lugar numa história para um sujeito, em virtude da transmissão de marcas simbólicas advindas do passado; e a segunda, como a adequação natural entre a intervenção educativa e as capacidades maturacionais existentes no indivíduo.

A (psico)pedagogia, calcada, então, nos saberes psicológicos, traz como efeito a psicologização do cotidiano escolar. Os problemas de aprendiza gem ou a indisciplina são tomados como "epifenômenos da realidade psicológica individual", e encaminhados para avaliação; espera-se, desta forma, saber as causas que levam a criança a não responder como era esperado.

A (psico)pedagogia está sustentada numa ilusão, da Natureza, que como toda ilusão é uma crença animada por um desejo. Mas, para o autor, o desejo que sustenta essa crença é exatamente o desejo de não haver desejo, de não haver falta, diferença ou imprevisto, e que tudo possa ser controlado e previsível. No entanto, essa recusa produz angústia, o que podemos verificar no discurso de uma grande parte dos professores e educadores. Talvez seja exatamente esse sofrimento, esse mal-estar que poderá trazer mudanças nesse cenário, caso os educadores que padecem desse mal possam perguntar-se sobre a origem do mesmo. Percorrer esses escritos pode ser de grande proveito para fomentar uma reflexão a esse respeito.

Como entender, então, o que o autor chama de inevitável renúncia ao ato educativo que acontece como decorrência da tal educação calcada na (psico)pedagogia hegemônica? Acreditando na conespondência entre a intervenção de um adulto e as capacidades maturacionais da criança, a pedagogia moderna tem a ilusão de poder controlar o processo educativo. Cada ato realizado por um adulto é pensado nesses termos, recorrendo a manuais de instrução de como funciona. Desta forma, a criança ocupa um lugar de objeto desse discurso, perdendo a possibilidade de vir a se constituir como sujeito de um desejo.

O educador que acredita nessa ilusão sustenta seus atos nessa necessidade de responder às crianças, no sentido de que nada lhes falte, de que elas possam representar a esperança de felicidade e complementaridade narcísica. Neste sentido, tiram sua responsabilidade pelo ato, em vez de operar a partir de uma certa arbitrariedade própria ao exercício de um desejo. Esta arbitrariedade, sempre recheada de contradições e ambigüidades, deixa aberta uma brecha para a criança se perguntar o que será que esses adultos querem dela, podendo assim dar lugar ao surgimento do desejo. Guarda esta arbitrariedade íntima relação com uma tradição, um savoir vivre próprio a cada família, comunidade, etc, pois é a partir de uma filiação simbólica, de uma inscrição numa história, que a criança pode encontrar um lugar para falar e para projetar seu futuro. Os adultos de hoje, descontentes com seu passado, no qual localizam uma impotência imaginária, recalcam este passado e oferecem à criança um futuro no qual elas são a esperança de potência e plenitude. Daí o slogan repetido aos quatro ventos nos nossos dias: Criança-Esperança.

O ato do adulto não aparece sustentado por um desejo em nome próprio, o que seria indispensável para a constituição de um sujeito do desejo. O adulto opera no sentido de pôr seu ato na conta de um saber dado por um manual, desvestindo-se da responsabilidade por suas palavras. Neste jeito moderno de "educar", a criança não encontra brecha para a pergunta o que querem de mim, o que a deixa paradoxalmente sem referências para sua entrada no discurso.

Sem querer fazer uma apologia da educação à moda antiga, Lajonquière chama a atenção para uma obviedade que não tem sido contemplada nos dias de hoje: criança é criança, adulto é adulto! Ou seja, existe uma diferença aí, pelo simples fato de uns nascerem antes dos outros. A infância é um tempo de espera, de promessa para o futuro, a criança aprende porque quando crescer vai poder desfrutar do lugar dos adultos. O adulto de mal com sua infância, que imagina não ter sido ideal, quer que a criança realize no presente a esperança de uma potência sem faltas. Vivemos no "imediatismo da satisfação", salienta o autor, isto cheira mais a gozo do que a desejo. Antes pedia-se às crianças que fossem educadas, hoje, que sejam felizes, ou melhor, que gozem!

Diante desse panorama, o autor faz um convite aos educadores, para renunciarem às certezas decorrentes do saber (psico)pedagógico, à tentativa sempre fracassada de realizar seu ideal por meio da criança. Desta forma, tenta-se abrir a possibilidade de a criança ter acesso a seu futuro, responsabilizando adulto e criança nesse processo, recuperando a arbitrariedade do desejo que precisa estar presente nessa empreitada.

Lajonquière também faz referência ao que poderíamos chamar de fracasso da educação primordial, distinguindo-a do fracasso escolar, ao qual se dedica mais longamente. O fracasso da educação primordial estaria mais ligado à educação na família, às primeiras inscrições simbólicas às quais as crianças se submetem para poder se representar no discurso. Essa educação primordial teria como objetivo inscrever a criança no campo do Outro, possibilitando a construção de um lugar de enunciação. O que opera aí é o saber inconsciente daqueles que exercem a função de Outro primordial, que ofertam um emaranhado de significantes, dos quais a criança extrairá aqueles que possam representá-la, construindo sua história. Os adultos apresentam-se como desejantes e, conseqüentemente, como faltosos; é esse desejo que vai vetorizar a construção do fantasma da própria criança. Quando o fracasso se dá nesse âmbito, vemos a constituição psíquica dessa criança entrar em colapso, e a psicose ou o autismo vêm comprometer a entrada dessa criança no discurso. Nesses casos, é preciso olhar mais de perto a fantasmática parental se se quiser intervir nessa situação. No entanto, a importância desse autor está, exatamente, em falar da educação de maneira ampla, trazendo à tona o dispositivo mínimo necessário para que ela ocorra, seja no âmbito familiar ou escolar.

Neste sentido, não é à toa, então, que Lajonquière elege Bonneuil para ilustrar sua tese. Bonneuil é uma escola experimental, fundada por Maud Mannoni em 1969, nos arredores de Paris. Mannoni, a partir de suas denúncias e críticas a respeito da educação como uma máquina de produzir excluídos, pois calcada numa pedagogia que impõe desde o início os ideais a serem alcançados, cria um espaço de acolhimento, um lugar para viver, para crianças marcadas pela exclusão social, autistas, psicóticas, neuróticas gravemente perturbadas e crianças com "desvios" de comportamento. Pode-se pensar então que se trata de uma escola especial, se tivermos como referência o discurso (psico)pedagógico. No entanto, é justamente na contramão deste discurso que Bonneuil vai, resgatando a educação como a possibilidade de a criança vir no futuro a "usufruir como um adulto do desejo que nos humaniza". Na verdade, se quisermos falar em alguma especialidade dessas crianças, teríamos de nos remeter à educação primordial, que em alguma medida falhou. Este é mais um ponto que torna interessante a análise dessa escola para pensarmos a questão da educação. Embora as crianças que freqüentam Bonneuil sejam um pouco "especiais", diferentes, a escola em si não tem nenhum método especial para educar suas crianças. É interessante como, a partir de uma situação extrema, com crianças gravemente perturbadas, o autor, na sua análise, demonstra de que maneira essa escola pode sustentar atos educativos. O que estaria em jogo em Bonneuil, ou em qualquer outro espaço que se pretenda educativo? Nas palavras do autor:

"Quando ensinamos algo a uma criança pomos, por um lado, em ato nossa fantasmática, isto é, a iniciativa do ato cai na conta do desejo do adulto em função educativa. Por outro lado, transmitimos uma lógica operativa que transcende o campo fantasmático no interior do qual estamos singularmente tomados como sujeitos desejantes, uma vez que trata-se de um pedaço da cultura, um universal, um fragmento de liame social. Em suma, à medida que a criança 'apre(e)nde' a amostra de laço transmitida, faz um laço que sujeita a criança" (p.123).

Uma vez inseridas no laço social, operando um encenamento simbólico, as crianças podem circular livremente; caso contrário, muitas vezes são encerradas concretamente.

Talvez pudéssemos dizer ainda que Bonneuil tem de especial uma clareagem psicanalítica, ou seja, não a presença da psicanálise enquanto especialidade, mas como a subversão de um saber, abrindo espaço para uma escuta do desejo do sujeito (seja criança ou adulto). Esta presença em negativo da psicanálise possibilita o desdobramento do processo educativo. Isso põe essa experiência no âmbito da conexão psicanálise e educação.

A partir da análise minuciosa da educação em Bonneuil, podemos dizer que o autor deixa nas entrelinhas seu desejo, de analista talvez, de que as diferenças sejam contempladas, e mais do que isso, operativas, reguladas pela Lei do desejo, que interdita o gozo, lembrando como isso é metaforizado para as crianças de Bonneuil: o homem não pode ser o lobo do homem.

Para concluir, gostaria de ressaltar que, embora muitos professores e pedagogos possam sentir-se aguilhoados nas suas práticas profissionais por essa caça às bruxas que o autor faz no universo da pedagogia, convidaria a todos, educadores em geral, psicanalistas e demais adultos que realizam alguma prática com crianças a acompanhar as reflexões existentes nesse livro. Acredito que esses escritos possam contribuir para uma mudança de posição que permita a passagem não só da obediência cega a uma cartilha em direção à responsabilidade dos adultos e crianças pelo processo educativo e pelos rumos a serem dados ao futuro, como também da submissão a uma moral em direção ao comprometimento com uma ética, ética do desejo, que faz barreira ao gozo, desta forma, contribuindo para a recuperação da legalidade do ato educativo.