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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. v.8 n.15 São Paulo jun. 2003

 

ARTIGOS

 

Deficiências: um novo olhar. Contribuições a partir da psicanálise winnicottiana

 

Disablity: A new vision. Contributions of the winnicottian psychoanalysis.

 

 

Maria Lucia de Toledo Moraes Amiralian*

*Doutora em Psicologia e docente da USP, coordenadora do Laboratório Interunidades de Estudos sobre Deficiência (LIDE)-IP-USP.

 


RESUMO

A deficiência é uma problemática que tem levado cada vez mais psicólogos a se interessar pela área e contribuído para importantes debates em relação ao tema. Compreender o desenvolvimento dessas pessoas a partir dos pressupostos winnicottianos tem propiciado importantes modificações em seu atendimento. Trabalhos realizados sob esse enfoque mostram elementos fundamentais a serem considerados: a) a compreensão da constituição do ser humano como uma interação recíproca entre um organismo biológico e o ambiente que o sustenta, b) o entendimento da deficiência como uma condição fundamental na constituição dos indivíduos que a têm, e não um acessório a ser corrigido, c) a percepção das vicissitudes a que estão expostas essas pessoas.

Palavras-chave: Deficiência, Desenvolvimento, Psicanálise, Pressupostos winnicottianos.


ABSTRACT

Disability is a problematic issue and has induced many psychologists to be involved in this area and has promoted important debates on this subject. Understanding the development of these persons from the point of view of Winnicottian concepts has brought out important modifications in their attendance. Works already made based on those concepts show fundamental aspects to be carefully considered: a) the understanding of the constitution of human being as a mutual interation between the biological organism and the environment that supports him, b) the understanding of the disability as a basic condition, not a corrigible accessory, c) the understanding of the risk (dangers, or alterations) to which these persons are exposed.

Keywords: Disability, Development, Psychoanalysis, Winnicottian concepts.


 

 

Podem-se observar nos últimos tempos mudanças significativas na área de estudos sobre a deficiência, mudanças no sentido de uma maior valorização e conseqüente aprofundamento e enriquecimento sobre questões a ela relacionadas.

A deficiência é hoje uma problemática que tem levado um número cada vez maior de psicólogos a se interessar por desenvolver e explorar esse campo, o que tem contribuído para importantes debates, tanto em relação ao conceito de deficiência (Amiralian et al., 2000) como sobre outros aspectos relacionados ao desenvolvimento, aprendizagem e outros atendimentos a essas pessoas. Diferentes ocorrências têm mostrado que nas últimas décadas essa questão tem, cada vez mais, saído do âmbito do assistencialismo e entrado para a academia como uma área de importância para estudos e pesquisas.

O estudo "Informando sobre deficiências" (Amiralian, 2001), no qual foi feito um levantamento das pesquisas, dissertações ou teses, dos programas de pós-graduação de faculdades das áreas de humanas da Universidade de São Paulo, mostrou um grande número de trabalhos cujo interesse tem por foco diferentes situações suscitadas pela condição de deficiência. São levantadas as mais diversas questões sobre todos os tipos de deficiência.

As pesquisas realizadas no Instituto de Psicologia revelam, principalmente, preocupações relacionadas ao processo de desenvolvimento e aprendizagem, bem como à busca de uma percepção mais clara e objetiva das vicissitudes a que estão expostas pessoas que foram definidas como aquelas que apresentam:

"perda ou anormalidade de estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica... restrição (resultante com freqüência de uma deficiência) de uma habilidade para desempenhar uma atividade considerada normal para o ser humano... uma desvantagem ... resultante de uma deficiência ou de uma incapacidade que limitaria ou impediria o desempenho dos papéis esperados para este indivíduo na sociedade..." (Amiralian et al., 2000).

Há, também, interesse pelas diversas formas de intervenção utilizadas, tanto aquelas oferecidas às próprias pessoas com deficiência, como as oferecidas a familiares ou à comunidade em geral. Há questionamentos, análises e reflexões sobre os diferentes tipos de intervenção utilizados e sobre as contribuições ao atendimento às necessidades de pessoas com deficiência, possibilitando-lhes ajustamento mais satisfatório e saudável à comunidade.

São trabalhos na área da educação, da saúde, e sobre a inserção dessas pessoas no mercado de trabalho e na sociedade de um modo geral. Observou-se que nos últimos tempos houve um aumento de estudos relacionados às diferentes formas de interações sociais, em que se procura identificar aquelas que são propiciadoras de uma verdadeira e real inclusão social.

Esse desenvolvimento científico da área, em nosso meio, foi comprovado no evento promovido em 2000 pelo Laboratório Interunidades de Estudos sobre Deficiências (LIDE) do IP-USP, a I Jornada de Pesquisadores: Ética e Deficiência1, quando foram apresentados mais de 70 trabalhos de pesquisa nas áreas de educação, reabilitação, clínica e cidadania, lazer e esportes, abordando diferentes ângulos de atendimento sob os mais diversos referenciais teóricos.

O crescimento dessa área de estudos tem incentivado e estimulado os pesquisadores a estudos mais aprofundados sobre essa questão e a busca da compreensão dos fenômenos relacionados a esse tema sob diferentes referenciais teóricos dentro da Psicologia. Entre esses, é importante salientar os trabalhos no referencial psicanalítico. Nos últimos anos tem-se observado um constante crescimento de trabalhos nesse referencial, em Psicologia Escolar, do Desenvolvimento e do Trabalho, não estando estes mais restritos à Psicologia Clínica.

I - DEFICIÊNCIA E PSICANÁLISE

Um aspecto importante a ser considerado é o uso da psicanálise como referencial teórico para o estudo das deficiências.

No início dos trabalhos sobre o atendimento às pessoas com deficiência, esse tema era assunto de interesse quase exclusivo do meio médico, que analisava as condições biológicas e estudava suas possibilidades de recuperação, ou a reabilitação física de órgãos ou funções lesados. Os aspectos psicológicos das pessoas com deficiência eram tratados por intermédio da psiquiatria, ou, então, na psicologia, pelas teorias maturacionais do desenvolvimento, cujo foco eram os atrasos causados pelas limitações físicas ou mentais e as técnicas que deveriam ser utilizadas para saná-las.

Posteriormente, como uma reação a essa visão, que trazia em seu bojo a crença em que a deficiência era uma condição inerente ao indivíduo, e apenas dele, surgiram os trabalhos baseados em pressupostos comportamentais. Estes, por outro lado, consideravam a importância do ambiente e das relações sociais, e estudavam as dificuldades das pessoas com deficiência como resposta a um comportamento socialmente determinado.

Estudos que buscavam a compreensão das várias questões relacionadas à deficiência a partir de uma visão interacionista, posteriores a esses, foram os trabalhos que se desenvolveram sob o referencial piagetiano e psicanalítico.

Na literatura são encontrados muitos estudos sobre os diferentes tipos de deficiência, desenvolvidos sob o referencial piagetiano. B. Inhelder (1963) realizou o clássico estudo sobre o raciocínio dos deficientes mentais, e muitas outras pesquisas foram realizadas sob este referencial a respeito do desenvolvimento cognitivo de crianças com vários tipos de deficiência. Sobre os cegos há vários trabalhos sob esse referencial _ os de D. W. Anderson (1981), de A. Hall (1981), de M. Gottesman (1976) e de R. M. Swallow (1976) _, que procuram compreender os diferentes estágios do desenvolvimento cognitivo e seus princípios básicos na ausência da visão2.

Na década de 60 surgiram trabalhos mais específicos no referencial psicanalítico, que buscavam uma melhor compreensão do desenvolvimento psíquico de indivíduos que apresentavam diferentes tipos de deficiência, ou que se preocupavam em apreender os procedimentos terapêuticos mais adequados a essa população. Há os trabalhos desenvolvidos na França por Maud Manonni (1964 e 1967) e Françoise Dolto (1971) com crianças deficientes mentais e apresentando distúrbios globais do desenvolvimento. Na Inglaterra são descritos os trabalhos do grupo de Doroty Burlingham (1961 e 1965), sobre a observação do desenvolvimento de bebês cegos. Também Selma Fraiberg (1971 e 1977) e seu grupo, da Universidade de Ann Harbor, desenvolveram pesquisas sobre a influência da ausência da visão no desenvolvimento psíquico (Fraiberg & Freedman, 1964; Fraiberg & Adelson, 1973). Sob esse referencial teórico também aqui no Brasil se iniciaram estudos, pesquisas e atendimentos junto às pessoas com deficiência.

Refletindo sobre esse percurso no campo de estudos sobre pessoas com deficiência, observam-se mudanças que se operaram nos conceitos, e os progressos ocorridos nos vários anos de pesquisa na abordagem deste tema. Os conhecimentos foram se modificando tanto pelas informações adquiridas, pesquisas realizadas e experiências vividas, como pelas próprias transformações que ocorreram nos costumes e valores sociais, e pela evolução tecnológica e das ciências destes últimos anos.

Analisando os diferentes referenciais teóricos usados na compreensão desse grupo de pessoas, observa-se que a psicanálise pode ser considerada uma abordagem teórica que atende plenamente aos objetivos de compreensão do desenvolvimento, aprendizagem e ajustamento das pessoas com deficiência, fornecendo também, como subproduto, o entendimento dos efeitos e vicissitudes que essa condição pode causar ao indivíduo em seu caminho na conquista da maturidade. Além da proposta de intervenções terapêuticas como uma decorrência natural desses conhecimentos.

A psicanálise é um conjunto teórico no qual encontra-se suporte para o entendimento dos seres humanos, até mesmo daqueles com alguma deficiência, seja orgânica ou funcional, como homens totais e integrados. Seus postulados podem ser utilizados, também, em procedimentos educacionais, de orientação e aconselhamento. Hoje é bem aceito esse referencial não apenas como uma técnica de tratamento psicológico, mas também como um corpo de conhecimentos teóricos a respeito da constituição do ser humano, que pressupõe uma postura atitudinal diante da vida e de seus problemas.

A psicanálise é um referencial teórico que procura entender o ser humano na sua totalidade, chamando atenção tanto para seus aspectos físicos como para seus afetos e emoções. Os conceitos elaborados por Freud, Melanie Klein, Anna Freud e outros psicanalistas podem ser empregados para compreender e analisar o desenvolvimento e os procedimentos clínicos e educacionais utilizados nos atendimentos às pessoas com deficiência, procurando-se identificar aqueles que melhor atendem as necessidades dessas pessoas.

Paralelamente deve haver a preocupação com a elaboração de novas formas de intervenção que venham facilitar a conquista de um desenvolvimento pleno pelas pessoas com deficiência.

Embora, de acordo com minha percepção, a psicanálise tivesse trazido muitas contribuições para essa área, várias questões permaneciam ainda sem uma solução que pudesse ser considerada satisfatória. As propostas de Winnicott, sua visão de desenvolvimento e constituição do ser humano, que indicam, segundo Loparic (1996), um "novo paradigma" para a psicanálise, surgiram como a luz no fim do túnel, esclarecendo as dúvidas levantadas, acalmando as insatisfações sentidas e trazendo a solução para inúmeros entraves que se percebiam nas discussões sobre esse tema. Esses conceitos, quando aplicados à compreensão e intervenção dessas pessoas, proporcionam, realmente, um novo olhar sobre elas, considerando-as em relação à deficiência.

Compreender o desenvolvimento das pessoas com deficiência a partir dos pressupostos winnicottianos impõe mudanças atitudinais para com esse grupo e importantes modificações nas diferentes intervenções utilizadas com essa população. Embora Winnicott não tenha se dedicado especificamente à compreensão de crianças com deficiência, faz referências, em sua descrição do desenvolvimento sadio, a alguns aspectos aplicáveis a crianças com deficiência mental e com deformidades físicas, como no caso de Iiro, o menino com sindactilismo3, descrito no livro Consultas terapêuticas (1984), e nas referências às diferentes situações que podem ocorrer no processo de desenvolvimento devido à condição de capacidade intelectual rebaixada, quando se refere à mente como "um caso especial de funcionamento do psique-soma" (1993, p. 410).

Entre os vários conceitos elaborados e propostos por Winnicott, alguns considero básicos para o entendimento da deficiência no processo de desenvolvimento do ser humano e outros são extremamente esclarecedores sobre as formas de intervenção mais favorecedoras do desenvolvimento sadio e ajustamento social pleno dessas pessoas.

II - A DEFICIÊNCIA NA CONSTITUIÇÃO DO SER HUMANO

Winnicott sempre se preocupou em compreender o ser humano. Como ele se constitui, se desenvolve, e quais os fatores fundamentais propiciadores de um crescimento e um desenvolvimento sadios. "Minha tarefa é o estudo da natureza humana ... A natureza humana é quase tudo o que possuímos", diz Winnicott (1990, p. 21), já nos indicando que para ele a condição humana é a essência do ser e seu maior bem, e à qual devemos dar toda a atenção e que merece todo o nosso cuidado.

Muitos fatores afetam o ser humano: a herança de que é dotado, a cultura em que nasceu, os valores aceitos pela comunidade e a família a que pertence, o momento atual que estão vivendo seus pais, o número de irmãos, a posição na constelação familiar, a organização e a estrutura de sua família, a peculiar constituição orgânica, e inúmeras outras condições importantes na constituição de cada um de nós. Mas, para ele, o fundamental é a interação com outro ser humano capaz de suprir as necessidades daquele organismo em formação, ou seja, exercer a função materna. Todo o processo de desenvolvimento e as falhas e rupturas que porventura venham a ocorrer deverão ser compreendidos e integrados dentro de um conjunto maior de relações que são determinadas pela natureza humana, e que se aplicam de igual maneira a todos os seres humanos.

Winnicott nos diz:

"fundamentalmente todos os indivíduos são semelhantes em sua essência... existem certas características na natureza humana que se podem encontrar em todas as crianças e em todas as pessoas de qualquer idade, há considerações abrangentes a respeito do desenvolvimento da personalidade humana.... que são aplicáveis a todos os seres humanos, independentemente de sexo, raça, cor de pele, credo ou posição social" (Winnicott, 1994, p. 97).

Essa afirmativa pode parecer óbvia, mas, revendo a história das concepções sobre pessoas com deficiência (Amiralian, 1986; Mazzotta, 1996), pode-se dizer que algumas atitudes para com elas revelam descrença em sua condição de igualdade em relação às pessoas consideradas "normais", por exemplo, no uso do conceito demonológico de deficiência ou doença mental. De forma semelhante, as atitudes de eliminação, segregação, assistencialismo e, mesmo, as atuais concepções de modificação e transformação das pessoas com deficiência em seres que possam tornar-se o mais semelhantes possível aos "normais" baseiam-se, e parecem refleti-la, na constatação de que uma condição orgânica imperfeita leva à estranheza, à incompreensão e à negação dos princípios gerais determinados pela natureza humana para a compreensão do mundo psíquico e à exigência de normas próprias e específicas para o atendimento a essas pessoas.

A concepção winnicottiana da constituição do ser humano nos ajuda a integrar as especificidades causadas por diferentes condições orgânicas dentro dos mesmos princípios norteadores do desenvolvimento geral e a compreender as vicissitudes causadas pela condição de deficiência como rupturas no processo de amadurecimento devido a falhas ambientais, o que permite refletir sobre procedimentos que possam vir a minorar ou sanar as dificuldades vivenciadas por esse grupo de pessoas.

Para Winnicott, o ser humano constitui-se na interação com o ambiente, em sua origem há um organismo com o potencial herdado e força vital para um contínuo vir-a-ser:

"O que existe é um conjunto anatômico e fisiológico, e a isto se acrescenta um potencial para o desenvolvimento de uma personalidade humana. Há uma tendência geral ao crescimento físico e ao desenvolvimento da parte psíquica da parceria psicossomática" (Winnicott, 1990, p. 79).

Por essa proposta, a discussão sobre se é a condição orgânica da deficiência que vai determinar o comportamento ou se esse é determinado pelo ambiente torna-se inócua. As bipolarizações salientadas pela eterna discussão entre as noções inatistas ou ambientalistas sempre foram uma questão sem solução. Porque se, de um lado, não se pode aceitar que uma criança, por ter nascido cega, irá desenvolver determinados comportamentos, também não se pode aceitar que seus comportamentos sejam simples reflexos de atitudes socialmente impostas. Entretanto, a aceitação desses conceitos extremistas, do estritamente biológico ao estritamente sociológico, parece ainda proliferar, tanto nos ambientes educacionais como nos terapêuticos e na comunidade em geral.

Derivando desse conceito, temos a célebre questão de saber se as diferenças entre pessoas com deficiência e aquelas sem qualquer imperfeição física ou mental são quantitativas ou qualitativas. Muitos defendem a diferença apenas quantitativa, como se isso fosse garantia da consideração de ser a deficiência uma condição acessória ao ser humano, e não constituinte, e de respeito à condição desse ser humano, igual à de todos os outros. Entendem que a crença em uma diferença qualitativa iria salientar a condição de diversidade e levar à constatação de diferenças inconciliáveis.

Essa é uma questão básica para a compreensão das pessoas com deficiência e a conseqüente atitude para com elas. Creio que, a partir dos conceitos winnicottianos, é possível a integração desses dois aspectos: compreender a diversidade e ao mesmo tempo aceitá-la como condição inerente à natureza humana.

Partindo dos conceitos winnicottianos, pode-se afirmar que a diferença entre as pessoas com deficiência e aquelas sem problemas orgânicos é qualitativa, e não apenas quan titativa (Telford & Sawrey, 1976). A deficiência é uma condição estruturante da pessoa, pois é a partir de seu conjunto orgânico e fisiológico que ela vai constituir-se e tornar-se um indivíduo único e indissolúvel.

"A base da psique é o soma, e, em termos de evolução, o soma foi o primeiro a chegar. A psique começa como uma elaboração imaginativa das funções somáticas, tendo como seu dever mais importante a interligação das experiências passadas, das potencialidades e a consciência do momento presente e das expectativas para o futuro. É desta forma que o self passa a existir. A psique não tem, obviamente, existência alguma a distância do cerebro e do funcionamento cerebral" (Winnicott, 1990, p. 37).

Se pensarmos o psiquismo como a elaboração imaginativa das experiências vividas, o ser com deficiências físicas, por exemplo, o cego congênito, terá experiências somáticas peculiares, ou seja, entrará em contato com o ambiente externo a partir de seu conjunto sensorial, e seu psiquismo terá como base essas vivências. "E esse todo é enriquecido pela elaboração imaginativa de cada função, e pelo crescimento da psique juntamente com o do corpo; e também a especialização da capacidade intelectual, que depende da qualidade dos atributos cerebrais..." (Winnicott, 1990, p. 26). De forma semelhante e talvez com mais razão, aqueles que têm alguma alteração no tecido ou no funcionamento cerebral desde o nascimento terão seu psiquismo construído a partir dessa condição somática.

Ao déficit físico ou funcional, somam-se as vivências advindas das interações permeadas pela condição de deficiência e de seu significado no ambiente que o circunda, o que nos permite afirmar, com mais convicção, que a deficiência é uma condição constituinte e estruturante do ser humano que a tem, e, portanto, tem diferenças qualitativas em relação àqueles com condições orgânicas diferentes. Isto não quer dizer que estejamos entendendo-o como "constituindo categorias ou classes separadas e, em muitos aspectos, distintas de pessoas" (Telford & Sawrey, 1976, p. 24)4, mas sim que a deficiência é parte de sua natureza, e assim ele deve ser aceito.

Essa é uma das razões por que sempre rejeitei o termo "pessoa portadora de deficiência". Creio que os indivíduos com deficiência não podem ser considerados como alguém que carrega uma deficiência como se fosse um fardo, eles são, simplesmente, pessoas que têm uma deficiência, uma condição orgânica diferente, que para eles é o que é, e, portanto, o normal. E desta maneira eles querem e desejam ser aceitos e amados. "Tal como começa, assim tem de ser aceito, e assim tem de ser amado. É uma questão de ser amado sem sanções" (Winnicott, 1993, p. 205).

Esse conceito, derivado da proposta teórica de Winnicott, nos diz que o desenvolvimento saudável é aquele que possibilita ao indivíduo crescer e amadurecer de acordo com suas condições herdadas e congêni tas. A função do ambiente é oferecer as condições necessárias de interação que permitirão que "surja um emergente, indivíduo que procura fazer valer seus direitos, tornando-se capaz de existir..." (Winnicott, 1990, p. 26). Considera sadios aqueles "que estão (por definição) mais próximos de ser aquilo que permitiria o equipamento com que vieram ao mundo" (p. 37).

Essa compreensão da deficiência impõe uma atitude e uma decorrente proposta de intervenção. Um dos princípios básicos no atendimento às pessoas com deficiência implica a aceitação de suas condições peculiares, que não devem ser analisadas com conotações valorativas. Dizendo de outra forma, não são mais reais e verdadeiras as imagens mentais, construídas pelos videntes, dos objetos percebidos visualmente do que aquelas organizadas pelos cegos, usando a percepção tátil-cinestésica e auditiva. São apenas diferentes.

III - AS VICISSITUDES CAUSADAS PELA DEFICIÊNCIA NO DESENVOLVIMENTO

Essas formulações não significam que acreditemos ser o caminho dessas pessoas, em seu processo de integração e amadurecimento, algo fácil, ou que suas interações com o mundo não sejam permeadas de problemas e dificuldades. Pelo contrario, temos certeza de que seu per curso em direção à conquista do desenvolvimento pleno é muito mais árduo, complexo e cheio de percalços.

Nessa linha de pensamento, uma condição orgânica prejudicada não constitui, de forma direta, uma perturbação psíquica, mas é um dos elementos com que o indivíduo tem de se haver em sua interação com o ambiente. Para se considerar que o indivíduo com deficiência tenha uma perturbação psíquica deve-se levar em conta tanto as condições intrínsecas a seu modo peculiar de ser e, portanto, de perceber e elaborar a experiência, como as reações ambientais a sua condição. É de fundamental importância a condição de deficiência nas relações interpessoais, seja pelas implicações práticas que determina, seja pelo significado que imprime em todos nós.

Dois fatores são essenciais para a constituição e desenvolvimento do ser humano: a tendência inata do indivíduo para a integração e amadurecimento e a existência de um ambiente facilitador. Deste princípio pode-se inferir uma constante: qualquer que seja o potencial herdado, ele só se realizará pelos cuidados de um outro ser humano, preferencialmente a mãe. E, pode-se acrescentar, um desenvolvimento saudável significa a realização plena de si mesmo, de suas possibilidades.

Vemos assim a importância das relações mãe-bebê com deficiência. Essas têm sido exaustivamente estudadas e analisadas, e muito se tem discutido com o intuito de ajudar as mães nesse importante momento, mas creio que a proposta winnicottiana, que privilegia essa interação como a base sobre a qual se assentam a constituição e o desenvolvimento do ser humano, mostra como ela deve ser compreendida e possibilita a indicação de formas e procedimentos de intervenção necessários ao desenvolvimento pleno e satisfatório do bebê que tenha uma deficiência orgânica, desde seu início. Por outro lado, as relações interpessoais posteriores devem ser cuidadosamente analisadas por todos os que convivem, atendem e tratam de pessoas com deficiência.

A - AS RELAÇÕES MÃE-BEBÊ

A relação mãe-bebê, sendo a base sobre a qual se constitui o ser humano, é o elemento fundamental para se compreender as dificuldades a que estão expostos os indivíduos com deficiência.

Para Winnicott, no inicio há a unidade mãe-bebê, a partir da qual vai emergindo o indivíduo apoiado pela mãe ambiente no exercício da função materna. Após a identificação primária com a mãe, que possibilita que o bebê seja, instaurando o si-mesmo, este passa a cumprir as tarefas básicas do desenvolvimento: "A integração, a personalização e depois destas a apreciação do tempo e do espaço e de outras propriedades da realidade, em suma, a realização" (Winnicott, 1993, p. 274). Essas, todavia, só podem ocorrer pari passu às funções maternas de "holding", "handling"5 e apresentação de objetos, condições indispensáveis para que o bebê possa sentir-se um todo, habitar um corpo e relacionar-se com o ambiente externo.

Para o exercício adequado dessa função, a mãe precisa ser "suficientemente boa", na medida certa para atender, no tempo e da maneira adequada, as necessidades daquele bebê. Diz Winnicott:

"Existe o meio ambiente que não é suficientemente bom e que distorce o desenvolvimento do bebê, da mesma forma que pode haver um meio ambiente suficientemente bom, aquele que permite ao bebê alcançar, em cada estádio, as satisfações, ansiedades e conflitos inatos apropriados" (Winnicott, 1993, p. 491).

A maternagem compreende no início o desenvolvimento de um estado por ele denominado "preocupação materna primária" (Winnicott, 1993, p. 491), um estado de sensibilidade aumentada, no qual a mãe volta-se inteiramente para seu bebê, um adoecer do qual se recuperará progressivamente quando o desenvolvimento do filho a for dispensando. Para viver esse momento, todavia, a mãe necessita ter um desen volvimento sadio e um ambiente protetor que a sustente.

Muitas são as dificuldades da mãe de um bebê com deficiência congênita no exercício dessa função, entre elas é importante assinalar o possível estado depressivo que muito freqüentemente se instala nas mães, e suas conseqüências.

A descoberta de uma deficiência no filho, com todas as perdas que envolve, é uma situação propiciadora ao desenvolvimento de um estado depressivo na mãe, que a levará ao afastamento de seu bebê, impedindo-a de alcançar o estado de preocupação materna primária, necessário a uma boa acolhida deste. E nesse momento inicial, quando o bebê necessita que lhe seja fornecida uma total adaptação a suas necessidades, ele, muitas vezes, é posto em um lugar de estranheza e desconhecimento, com a mãe sofrendo suas próprias dores, que a tornam incapacitada para assumir seu papel.

Nas diferentes funções da mãe podem ser detectadas inúmeras dificuldades, algumas facilmente observáveis, outras sendo apenas sinais sutis. Verifica-se, entretanto, muitas vezes o desencontro com o bebê não reconhecido e as dificuldades para a compreensão dos sinais que expressam as necessidades daquele bebê.

Há a dificuldade de aproximação do bebê deficiente, o medo de segurá-lo, de machucá-lo, a ausência das brincadeiras, das trocas de olhares e de palavras acariciantes. O banho deixa de ser prazeroso, para ser um momento da confirmação da perda do bebê imaginado; não há as brincadeiras com seus pés e mãos, impedindo-os de sentir e experimentar as diferentes partes de seu corpo e muitas vezes de entender seus limites.

Na apresentação de objetos, condição básica para o estabelecimento das relações objetais, e, como diz Winnicott, momento do eterno dilema do ser humano em relacionar seu mundo interno e o mundo compartilhado, vemos a dificuldade da mãe em encontrar a maneira certa de apresentar o mundo a seu bebê cego, surdo, com deficiências neurológicas ou mentais. Ela não sabe o que é ser cego, surdo ou ter paralisia cerebral, ela não sabe como esses bebês percebem o mundo e os objetos. Provavelmente, nunca teve experiências anteriores com crianças tendo essas limitações.

Vemos, portanto, facilmente, as vicissitudes a que estão expostas essas crianças em seu processo de desenvolvimento. Muitos outros aspectos poderiam ser apontados, mas acreditamos que esses se salientam no trabalho com crianças tendo deficiência.

B - AS RELAÇÕES INTERPESSOAIS

Para além da condição básica da constituição do "si mesmo", muitas dificuldades são vividas pelas pessoas com deficiências em diferentes momentos de suas vidas.

Pela criança, nos contatos com a família, vizinhos, amigos e, principalmente, colegas e professores na escola.

Pelo adolescente, em seu conflito entre crescer ou permanecer criança, que se expressa pela busca da independência, pelo desabrochar da sexualidade genital plena, pela difícil definição do papel profissional que escolherá, além das experiências da sexualidade e escolha de parceiros.

E pelos adultos, em sua luta pela conquista de um lugar na sociedade e no mercado de trabalho.

Dos inúmeros aspectos que podem ser assinalados, alguns se salientam, observados nas inúmeras formas de relações interpessoais quando essas incluem pessoas com deficiências e sem deficiências.

A observação dessas relações sustentada pelos conceitos de Winnicott, seja em situações cotidianas de interações pessoais, seja naquelas propostas pelos especialistas, com objetivo terapêutico, para esse grupo, nos indica a existência de alguns comportamentos interpessoais que, ao invés de favorecer, são prejudiciais ao desenvolvimento e ajustamento dessas pessoas. São os comportamentos intrusivos e de introjeção extrativa desenvolvidos por Winnicott (1990) e Bollas (1992)6, encontrados em diferentes situações nas relações interpessoais com as pessoas tendo deficiência.

A relação intrusiva é descrita por Winnicott como uma das múltiplas falhas abrangidas pelo termo "deficiências ambientais". É uma falha que se manifesta pela imposição de outrem ao gesto próprio do indivíduo.

É freqüente observar nas interações com pessoas tendo deficiên cia a crença em que a maneira certa de se compreender e fazer alguma coisa é aquela aprendida pela maioria das pessoas que não têm qualquer deficiência, seja orgânica ou funcional. Desta forma persiste a crença em que, para aqueles que têm uma forma diferente de compreender a realidade externa, o melhor é tentar adquirir, mesmo que seja de uma forma não criativa e não elaborada a partir de sua própria experiência, os conceitos impostos por aqueles considerados normais.

Nas intervenções dirigidas às pessoas com deficiência pode-se observar a imposição de valores e padrões considerados "normais", que devem ser apreendidos por elas, que se constituíram a partir de uma condição orgânica diferente.

A introjeção extrativa, descrita por Bollas (1992) como um procedimento intersubjetivo, na qual alguém rouba de outro a possibilidade de enriquecimento de sua vida psíquica pela interferência no processo de elaboração dos mecanismos psíquicos, é também muitas vezes observada em situações vividas por pessoas com deficiência, quando nos interpomos e resolvemos em lugar delas alguma dificuldade por considerá-las incapazes de realizar aquela solução, e não porque seu tempo e forma de realização fossem diferentes. São também observados comportamentos que se referem à descrença em que as pessoas tendo deficiência possam desenvolver seu próprio processo psíquico e enriquecer sua vida interna com suas próprias experiências vividas e mesmo sofridas.

Para finalizar, gostaria de esclarecer que esses são alguns pontos que considerei básicos para transmitir a maneira pela qual a proposta winnicottiana de desenvolvimento pode ser utilizada na compreensão das pessoas com deficiência. Muitos outros aspectos podem e devem ser explorados, estudados e analisados. Acredito que, levando em conta esses conceitos, a intervenção no trabalho com pessoas tendo deficiência se modificará, assim como a postura em relação a elas e a aceitação plena de sua maneira peculiar de ser, em um mundo capaz não só de aceitar as diferenças, mas de valorizá-las.

 

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NOTAS

1 O Boletim de Psicologia lançou um número especial sobre essa Jornada, o nº 115 (Vol. LI), de jul./dez. de 2001.

2 No livro Compreendendo o cego (Amiralian, 1997b) há uma descrição e análise desses trabalhos.

3 Sindactilismo, problema sofrido por aquele que tem os dedos grudados, os chamados "pés de pato".

4 C. W. Telford, C. e J. M. Sawrey, no clássico O indivíduo excepcional, propõem um contraponto entre as concepções qualitativas e quantitativas a respeito das diferenças apresentadas pelos indivíduos com deficiência, em comparação aos normais. Salientam as vantagens dessas últimas. Consideram que a aceitação de diferenças qualitativas implica considerá-los como espécies à parte de seres humanos.

5 "Holding" e "handling" são termos usados por Winnicott para descrever o "segurar" e o "manipular" do bebê pela mãe. Esses termos são usados em inglês porque sua tradução não expressa com propriedade o significado dado pelo autor.

6 Esses conceitos foram mais bem desenvolvidos no texto "O psicólogo e a pessoa com deficiência" do livro Deficiência: Alternativas de intervenção, uma publicação do Laboratório Interunidades de Estudos sobre Deficiência (LIDE) do IP-USP.

 

Recebido em setembro/2002
Aceito em janeiro/2003

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