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Estilos da Clinica
versão impressa ISSN 1415-7128
Estilos clin. vol.19 no.3 São Paulo dez. 2014
https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v19i3p499-514
FUNDAMENTOS
Os tempos da transmissão segundo a lógica de Lacan
The times of the transmission according to the logic of Lacan
Los tiempos de la transmisión de acuerdo con la lógica de Lacan
André Oliveira Costa
Psicanalista. Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Doutor em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
RESUMO
Este artigo apresenta o processo de transmissão cultural por meio dos três tempos lógicos segundo o psicanalista Jacques Lacan. A transmissão é considerada como efeito da torção moebiana na relação entre sujeito e Cultura. O estilo marca um modo de transmissão e produção do sujeito que depende do recorte do objeto pulsional. A transmissão ocorre no tempo de dessubjetivação, quando o eu torna-se impessoal. Isto é sustentado pela análise do conto "A carta roubada", de Edgar Allan Poe, à luz dos três tempos lógicos segundo Lacan.
Descritores: transmissão; estilo; tempo lógico; cultura.
ABSTRACT
This article presents the cultural transmission process through the three logical times according to the psychoanalyst Jacques Lacan. The transmission is considered an effect of the mobius torsion on the relationship between subject and culture. The style marks a mode of transmission and production of the subject that depends on the cut of the drive object, and the transmission occurs in time of desubjectivation when the I becomes impersonal. This is supported by the analysis of the short story "The Purloined Letter" by Edgar Allan Poe, in the light of the three logical times according to Lacan.
Index terms: transmission; style; logical time; culture.
RESUMEN
El artículo presenta el proceso de transmisión cultural a través de los tres tiempos lógicos de acuerdo con el psicoanalista Jacques Lacan. Se considera a la transmisión como efecto de la torsión moebiana de la relación sujeto y Cultura. El estilo enmarca un modo de transmisión y de producción del sujeto que está pendiente del recorte del objeto pulsional. La transmisión se produce en el tiempo de desubjetivación, cuando el yo se vuelve impersonal. Esto se apoya en el análisis del cuento "La carta robada" de Edgar Allan Poe, a la luz de los tres tiempos lógicos de Lacan.
Palabras clave: transmisión; estilo; tiempo lógico; cultura.
Aquele que recebe uma transmissão deve se responsabilizar pelo que é feito dela. Essa responsabilização implica a apropriação dessa herança, marcando nela algo que é próprio de quem a recebe. Quem transmite deve abdicar da propriedade sobre o objeto transmitido, e quem recebe deve poder operar uma torção sobre o que lhe foi transmitido. O trabalho de perda que se inscreve na relação produz efeitos nos dois: naquele que transmite ao outro, que deixa seu legado, e naquele que rompe os laços com o Outro, que deve poder estabelecer um lugar singular para si.
Este texto apresenta a transmissão cultural por meio da estrutura lógico-temporal. A transmissão de valores culturais está imbricada com a produção de um sujeito. Assim, pensar os modos de transmissão nos leva a questionar os processos que se encontram na produção subjetiva. Para tanto, recorremos primeiramente às formulações de Jacques Lacan sobre o estilo, na medida em que se trata de um modo de transmissão que sustenta a produção de um sujeito por meio do recorte de seu objeto. Em seguida, a transmissão é analisada em sua estrutura lógica, tal como Lacan apresenta no texto "O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada". Uma transmissão, e, por consequência, a produção de um sujeito, ocorre apenas no tempo em que o Eu alcança o tempo de dessubjetivação, ou seja, quando ele se torna impessoal.
A torção na relação sujeito e cultura
Não é possível pensar as condições do processo de transmissão cultural sem nos questionarmos sobre a inscrição do sujeito na cultura. Esta relação não é sustentada na equivalência de seus termos, ou seja, não podemos considerar os termos sujeito e cultura como idênticos, de igual valor. Mas também não podemos tomá-los como termos diferentes, como se fossem opostos um ao outro. Fazer essas duas distinções significa dizer que os processos subjetivos que acontecem no indivíduo não são efeitos diretos das intervenções e dos acontecimentos sociais, assim como os processos e as estruturas sociais não podem ser reduzidos à esfera dos atos singulares.
Na relação entre sujeito e Cultura, um não recebe maior importância que o outro. Nem um é o fim, nem o outro o meio. A vida em comunidade não se funda apenas em um harmonioso agir sob regras de condutas e os indivíduos não funcionam segundo uma moralidade subjetiva, isolada de seus pares. Essa relação entre sujeito e Cultura não pode ser pensada pela lógica da identidade nem da exclusão indivíduo ou sociedade, indivíduo ou objeto, tal como pressupõe o discurso da ciência moderna. Entre um e outro, a relação que se estabelece é de uma continuidade diferenciada. Assim, frente e verso, direito e avesso, não são lados opostos, mas a mesma face de uma única estrutura.
Uma transmissão se faz como efeito de uma perda, do rompimento da continuidade temporal. Ela se torna efetiva apenas quando aquele que recebe algo consegue inscrever uma torção, uma diferença, naquilo que lhe é passado. Ao contrário do que geralmente se costuma pensar, trata-se de um rompimento como condição de continuidade do tempo passado para que o ontem se reinscreva em um projeto de realização em um tempo futuro. É preciso transformar o passado para que possamos mantê-lo presente.
A fita de Moebius, tal como Lacan apresenta em seus estudos sobre topologia, serve para representar essa torção da relação entre sujeito e Cultura. Esta fita rompe com a estabilidade da representação do espaço comum. Trata-se de uma figura de fácil construção, que pode ser feita através de uma fita de papel. Esta simples fita de superfície euclidiana é composta por duas superfícies frente e verso, direito e avesso, em descontinuidade uma com a outra e quatro lados.
Para construirmos a fita de Moebius, temos que partir dessa fita de dupla face e realizar uma torção de 180º em uma das pontas da fita, de modo que um de seus cantos fique invertido. É precisamente essa ligeira torção que vai gerar o efeito enigmático do espaço moebiano, rompendo com as oposições entre direito e avesso, interno e externo, continuidade e descontinuidade.
Formamos uma figura que é aparentemente composta de duas bordas e duas superfícies. Entretanto, se olharmos mais atentamente, a duplicidade das faces foi subvertida. Frente e verso já não estão mais em oposição, mas em continuidade um com o outro. A primeira vez que a fita de Moebius foi apresentada ao público foi em 1861
Aquele que vê essa figura imediatamente conclui ser formada por duas faces. Basta atravessar a superfície da fita com um lápis que logo verificamos a existência de seu lado avesso. Entretanto, ela é uma superfície unilátera, de uma única face e uma única borda. Para descobrir esse paradoxo, temos que inscrever uma outra dimensão nessa estrutura: a temporalidade.
Com o passar do tempo e somente através dessa dimensão temporal poderemos fazer isso , vamos perceber que, contornando uma vez a trajetória, chegamos no avesso do ponto de partida e, após uma segunda volta completa, alcançamos o ponto de onde partimos. É apenas através do tempo do percurso de sua superfície que a divisão desta figura em duas faces vai se mostrar em continuidade uma com a outra.
O que era antes distinto um do outro passa a estar em continuidade. Este espaço, então, não pode ser percebido senão em sua dimensão temporal. Se pararmos o dedo em um determinado momento do percurso da fita, tomando uma parte isolada dela, poderíamos concluir facilmente a duplicidade desta estrutura. Pontualmente, ela se mostra em sua dimensão binária, com uma face oposta à que nos encontramos. É necessário inscrever um momento temporal para termos o efeito paradoxal da torção, quebrando a continuidade preterida pela visão de sua imagem.
Pensar a relação do sujeito com a Cultura, concebendo-a como organizada entre termos autônomos e independentes nos faz inevitavelmente assumir um dos dois lados como predominante. O que nos leva a colocá-los em oposição, sujeito versus Cultura. Parece-me que a lógica desta relação, ao considerar o sujeito como aquilo que do inconsciente se manifesta como efeito de linguagem, deve seguir a estrutura moebiana, que rompe com o binarismo.
Dessa forma, o que se apresenta é que singular e coletivo não estão separados como estão os lados interno e externo de uma figura. Entre eles não há relação de conteúdo e continente, mas de continuidade diferenciada. Eles fazem parte de uma estrutura torcida, mostrando que frente e verso, direito e avesso, tomados numa medida temporal, acabam sendo um a continuação do outro, em uma estrutura de uma única face.
O estilo como operador de transmissão
Lacan é reconhecido por ter contribuído com uma importante invenção para a psicanálise. Assim ele se expressa na lição do dia 9 de abril de 1974, do Seminário Les non-dupes errent: "O que Lacan, aqui presente, inventou?... O quê? Eu responderia... uma vez que se entende que eu já tenho a resposta... eu responderia... assim, para colocar as coisas em movimento... o objeto (a)" (1973-74). A escrita da letra a não é nova em seu ensino, recebendo diferentes significações ao longo de seus seminários. Entretanto, a letra a se torna uma invenção na medida em que ela alcança o estatuto de significante, cujo referente é a própria falta do sujeito.
Lacan, ao inscrever o objeto a na psicanálise, apresenta um estilo de transmissão que escreve o conteúdo da mensagem na própria forma de transmiti-la. Começamos com a ideia de estilo. Segundo Lacan, o estilo é um operador de transmissão da verdade do sujeito. Assim afirma no parágrafo final de seu texto "A psicanálise e seu ensino":
Qualquer retorno a Freud que dê ensejo a um ensino digno desse nome só se produzirá pela via mediante a qual a verdade mais oculta manifesta-se nas revoluções da cultura. Essa via é a única formação que podemos pretender transmitir àqueles que nos seguem. Ela se chama: um estilo. (1998d, p. 460)
Na perspectiva de pensar a transmissão de seu ensino, Lacan organiza uma coletânea de seus textos intitulada Escritos. Sua publicação ocorre em 1966, período no qual lançava ao público a invenção do objeto a. No texto "Abertura desta coletânea" (Lacan, 1998e), ele faz mais do que nos preparar para as dificuldades de seu estilo de transmitir a psicanálise. Ali, Lacan adverte o leitor que, para se aventurar em seus escritos, ele deve se implicar em seu estilo enquanto sujeito: "Queremos, com o percurso de que estes textos são os marcos e com o estilo que seu endereçamento impõe, levar o leitor a uma consequência em que ele precise colocar algo de si" (1998e, p. 11). Com sua escrita, Lacan nos convoca a compartilharmos uma certa perda.
A escrita de Lacan provoca um rompimento na adequação das palavras com as coisas, de modo que aquele a quem ele endereça sua transmissão nunca está plenamente familiarizado com ela. Seus leitores e ouvintes ficam em uma certa posição de exílio. Seu estilo convoca a nos colocarmos na posição de sujeito, na medida em que devemos abdicar de uma certa condição de gozo, abrindo mão da certeza da propriedade do objeto.
Lacan dá aos conceitos o estatuto de significantes, de forma que ele pode trabalhá-los por meio das regras da linguagem. Assim, entre um significante e outro se criam intervalos que convocam o leitor a ter que colocar algo de si. Em alguns momentos, o estilo de Lacan leva o significante ao seu limite, chegando a reduzi-lo a uma escrita puramente real. Como efeito da leitura desta escrita, por vezes nos encontramos com um certo mal-estar que revela o impossível do encontro com o objeto, reatualizando uma certa dimensão de gozo perdido.
Vejamos, nesta longa, mas preciosa citação, como ele se refere a seu próprio estilo em O seminário, livro 5: as formações do inconsciente:
Lamento, não há nada que eu possa fazer meu estilo é o que é. Quanto a este ponto, peço a eles que façam um esforço. E acrescento simplesmente que, sejam quais forem as deficiências de minha lavra que possam aí intervir, há também, nas dificuldades desse estilo talvez eles o possam vislumbrar algo que corresponde ao próprio objeto que está em questão. Uma vez que se trata, com efeito, de falar de maneira válida das funções criadoras que o significante exerce sobre o significado, ou seja, não simplesmente de falar da fala, mas de falar no fio da fala, por assim dizer, para evocar suas próprias funções, talvez haja necessidades internas de estilo que se impõem. (1999, p. 33)
No próprio estilo de Lacan vemos o objeto que ele deseja transmitir. A verdade de sua transmissão se sustenta, como ele mesmo diz, "no fio da fala", na linha onde o significante toca o objeto. É uma verdade que se revela por meio de lapsos, chistes, formações do inconsciente, quer dizer, formas que fazem furo no saber constituído. Nesse sentido Lacan afirma, no encerramento do Congresso sobre a transmissão da Escola Freudiana de Paris: "Tal como agora eu chego a pensar, a psicanálise é intransmissível" (1978). Intransmissível na medida em que deve transmitir o objeto na dimensão daquilo que não se inscreve simbolicamente. O estilo de Lacan, então, aponta para um certo impossível próprio do transmitir.
Estilo, segundo Porge, vem do latim stilus, nome de uma punção, um bastão de ferro ou osso, que serve para escrever em tábuas de cera e que passa a designar a própria escrita. Sua raiz sti- está ligada à stimulus, picar e à punctiare, punção. A punção é um instrumento pontiagudo que serve para perfurar e marcar. "O estilo é aquilo por meio de que se punciona a relação do sujeito ao objeto" (2010, p. 69). Assim, o estilo tem a mesma função de uma punção, de um instrumento para picar, escrever, marcar um objeto. É justamente com o termo punção que Lacan nomeia o operador lógico (<>) do fantasma, que representa a relação pulsional do sujeito com seu objeto ($ <> a). Assim, ao fazer referência na abertura dos Escritos ao estilo com o qual transmite a psicanálise, Lacan está apontando para o objeto ao qual se endereça.
Na relação do sujeito com o Outro, um estilo marca o endereçamento. Por isso, Lacan retoma a famosa frase do pensador naturalista George-Louis Buffon: "o estilo é o próprio homem". Mas nesta máxima, insere a torção que a psicanálise operou no autocentramento do eu: "o estilo é o homem, vamos aderir a essa fórmula, somente ao estendê-la: o homem a quem nos endereçamos?" (1998e, p. 9).
Na medida em que o estilo se mostra como um efeito de transmissão, poderíamos acrescentar a isso uma referência à famosa definição de amor, que, ao longo do Seminário A transferência, ele lança como um refrão: transmitir é dar o que não se tem. Mas o estribilho de Lacan continua: a quem não o quer, pois no amor e na transmissão há também um impossível que aponta para a recusa em receber, na totalidade, esse objeto que falta.
A transmissão tem o mesmo efeito do que propõe Lacan em relação ao amor, a saber, o ultrapassamento do impossível da relação sexual. Ela permite a construção de algo comum entre dois registros heterogêneos. No endereçamento do sujeito ao Outro, um laço é produzido ao se transmitir uma falta. A transmissão não se dá, portanto, de forma direta, imediata, como se uma mensagem circulasse em continuidade entre o remetente e o destinatário. Ela opera somente se aquele que recebe provoca uma torção, construindo ou desconstruindo esse transmitido.
Continuamos no texto de Lacan: "na linguagem nossa mensagem nos vem do Outro e para enunciá-lo até o fim: de forma invertida" (1998e, p. 9). Esta frase nos apresenta uma temporalidade própria do percurso que realizamos sobre a superfície da fita de Moebius. A mensagem do inconsciente se mostra de forma invertida na medida em que ela diz de nossa intimidade nos assaltando desde fora.
A relação do sujeito com o Outro é mediada pelos objetos pulsionais que atravessam o corpo em um movimento reflexivo, de modo que o que vem de fora se mostra como dentro e o que está dentro parece vir de fora. Para compreender isso, basta nos remetermos aos objetos pulsionais da voz e do olhar e como em certas situações, por exemplo, no ciúmes ou em algumas crises psicóticas, eles se produzem como se viessem de fora.
A transmissão passa necessariamente pelo corpo. E, por seguir nesse caminho, ela sofre os efeitos de torção próprios de uma relação sustentada em buracos, em orifícios pulsionais. Assim, a perda do objeto, que circunscreve a dimensão moebiana do sujeito produz um "redobramento invertido" da mensagem que lhe é transmitida via o Outro. No final desse movimento reflexivo mediado pela ausência do objeto , não podemos mais dizer, com Buffon, que é ao homem a quem nos endereçamos. São os objetos pulsionais que possibilitam a formação dos laços sociais e somente por meio deles é que a transmissão se torna possível.
É o objeto que responde à pergunta sobre o estilo que formulamos logo de saída. A esse lugar que, para Buffon, era marcado pelo homem, chamamos de queda desse objeto, reveladora por isolá-lo, ao mesmo tempo, como causa do desejo em que o sujeito se eclipsa e como suporte do sujeito entre verdade e saber. (Lacan, 1998e, p. 11)
Quando Lacan fala à sua audiência que ele inventou o objeto a, ele não faz mais do que colocá-lo em circulação pública. Com isso, ele mostra que a transmissão se dá pela desapropriação do objeto, ou, utilizando um de seus neologismos, ele transmite a ex-sistência do objeto. Ex-sistir é um modo de existir dentro e fora ao mesmo tempo. A transmissão, ao colocar em circulação no laço social uma certa dimensão de gozo, abdica da propriedade do objeto e torna-se um saber sobre o gozo.
A partir disso, podemos pensar em uma certa mobilidade do sujeito, cujas posições de circulação têm suas fronteiras marcadas pela aproximação ou pelo afastamento do objeto. Não é por acaso que Lacan escolhe para abrir sua coletânea o texto "O seminário sobre 'a carta roubada'", de 1955. E na "Abertura desta coletânea" (1998e), faz uma importante recomendação de transmissão àquele que se arrisca a embarcar em sua leitura: "Cabe a esse leitor devolver à carta/letra em questão, para além daqueles que um dia foram seu endereçados, aquilo mesmo que ele nela encontrará como palavra final: sua destinação" (1998e, p. 10).
Vamos ver a seguir como Lacan pensa essa relação entre carta e letra, termos que em francês são traduzidos pela mesma palavra lettre. A nosso ver, o psicanalista pensa a transmissão enquanto circulação social desse objeto, que produz diferentes formas de aparecimento do sujeito de acordo com as posições que eles assumem em relação a ele.
O tempo lógico da dessubjetivação no processo de transmissão cultural.
A análise de Lacan do conto de Edgar Allan Poe, "O seminário sobre 'a carta roubada'"(The purloined letter), é um texto do qual por muitas vezes nos servimos para ilustrar sua teoria do significante. Entretanto, também encontramos na leitura desse conto um importante estudo sobre o modo como se opera a transmissão da Cultura. A carta (lettre), em correspondência à letra (lettre) do significante, é o principal personagem do conto. Ela recebe o estatuto de uma mensagem endereçada a um destinatário que, na circulação entre os personagens, situa-os em diferentes posições.
Retomemos o enredo brevemente. Trata-se do roubo de uma carta destinada à Rainha, que acontece dentro dos aposentos reais. Como o remetente da carta mantinha relações com a Rainha, seu conteúdo deveria ser escondido dos olhos do Rei. Mas ela, em um lance de olhar, deixa que o Ministro perceba a importância da carta recém chegada. Para não chamar a atenção do Rei, a carta é deixada em evidência sobre a mesa. O Ministro, percebendo o poder que ele teria ao se apossar deste segredo, rouba a carta debaixo dos olhos da Rainha que não pode fazer nada, uma vez que o Rei se encontra em sua presença e a troca por outra, semelhante.
O segundo tempo da narrativa é o da tentativa de reencontrar esse objeto extraviado, que foi escondido pelo Ministro. Para tanto, a polícia é posta em ação. Mas nada acontece, pois os policiais se limitam a uma relação especular com o Ministro, pressupondo que ele a teria escondido conforme eles mesmos a ocultariam. Como a polícia não consegue encontrar a carta por seus próprios métodos, entra em cena o detetive Auguste Dupin, que é chamado para solucionar o problema.
A metodologia de investigação de Dupin subverte esse raciocínio imaginário que vê o outro desde a perspectiva de si próprio. Em um dado momento da busca, Dupin propõe apagar as luzes para pensar melhor, ele opera uma torção nesta relação. Assim, Dupin conclui que, nessa situação, não se trata de procurar um objeto nos lugares mais profundos. Ao contrário, a carta deveria ter sido escondida de maneira mais visível. O Ministro havia feito algumas pequenas transformações na carta. Mas Dupin reconhece a letra feminina escrita sobre ela. O Ministro, repetindo o que havia feito a Rainha, deixa a carta em total evidência, sobre a lareira, mas virada ao avesso, cegando aquele que a procura. Assim, ele consegue substituí-la por outra, idêntica, para que o Ministro não percebesse que seu furto havia sido revelado.
Podemos dividir o conto de Poe em duas partes, onde se verifica a repetição da mesma estrutura narrativa. A carta é o elemento comum a ambas as cenas. Na primeira, temos três personagens: a Rainha, o Rei e o Ministro. Na segunda, outros personagens assumem os mesmos lugares em relação à carta: o Ministro, os policiais e Dupin. Os personagens mudam, mas se mantém as mesmas três posições em função da relação com o objeto desaparecido. Assim esclarece Lacan: "Três tempos, portanto, ordenando três olhares, sustentados por três sujeitos, alternadamente encarnados por pessoas diferentes" (1998b, p. 17).
Lacan se refere à primeira cena do roubo da carta, que se passa nos aposentos reais, como a cena primitiva, enquanto a segunda cena é sua repetição, no gabinete do Ministro. A leitura do psicanalista sobre os dois momentos da história aponta a mesma estrutura de posições. Na relação entre os três lugares ocupados por diferentes personagens, a referência estrutural que podemos seguir é aquela dos três tempos lógicos propostos por Lacan no texto "O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada" (1945). Trata-se de um jogo de posições de olhares, cuja solução se precipita em um tempo impessoal, dessubjetivado:
1. instante de ver (l'instant du regard)
2. tempo de compreender (le temps pour comprendre)
3. momento de concluir (le moment de conclure).
Trata-se de uma distinção de tempos lógicos e não cronológicos, que Lacan apresenta por meio de um enigma, denominado por Lacan de sofisma dos três prisioneiros. Nesse texto, Lacan descreve o seguinte problema: o diretor de uma prisão diz a três prisioneiros que apenas um deles pode ganhar a liberdade, mas para tanto ele deve ser o primeiro a conseguir resolver um jogo de adivinhação. O diretor explica o jogo: dos 5 discos (3 de cor branca e 2 de cor preta) que ele mostra aos prisioneiros, 3 deles são escolhidos aleatoriamente para serem colados nas costas de cada prisioneiro.
As combinações possíveis dos discos escolhidos são as seguintes: 2 pretos e 1 branco; 1 preto e 2 brancos; 3 brancos. Nenhum dos prisioneiros é capaz de saber qual a cor do disco colado em suas costas, mas lhes é permitido ver o disco dos outros dois concorrentes. O desafio é o seguinte: aquele que primeiro adivinhar qual a cor do seu próprio disco e justificar logicamente sua escolha poderá alcançar a liberdade. De fato, o diretor da prisão cola três discos brancos nas costas dos prisioneiros. Sabe-se, então, que cada prisioneiro (independentemente de qual seja ele: A, B ou C) vê dois discos brancos. Está excluída a primeira combinação (dois pretos e um branco) e, assim, ou seu disco é branco ou é preto. Lacan apresenta o sofisma em três raciocínios, três tempos lógicos diferentes.
Primeiro raciocínio lógico: se o prisioneiro estivesse diante de dois discos pretos, ele poderia deduzir imediatamente que seu disco era branco. A resposta teria sido dada de maneira direta, e o prisioneiro não precisaria esperar para ter certeza de sua conclusão. É um raciocínio lógico de exclusão. Como não é essa a situação que acontece, segue-se o:
Segundo raciocínio lógico: neste tempo, deve-se criar uma hipótese. Como o prisioneiros vê 2 discos brancos, ele deve pensar o seguinte: "se eu fosse preto, os dois brancos que estou vendo não tardariam a se reconhecer como sendo brancos" (1998b, p. 205). Neste tempo de meditação, o prisioneiro deve tentar se colocar no raciocínio do outro. É o tempo de compreender o tempo do outro. Diante deste tempo, deve-se tirar uma conclusão:
Terceiro raciocínio lógico: este é um tempo de pressa, no qual o prisioneiro deve se antecipar aos outros dois. Também é o tempo da atividade, mas não como a do primeiro tempo, que se limitava à fulguração do olhar. "Apresso-me a me afirmar como branco, para que esses brancos, assim considerados por mim, não me precedam, reconhecendo-se pelo que são" (1998b, p. 206). Apenas após ter percebido esse tempo de demora dos outros dois prisioneiros em responder que ele pôde antecipar sua resposta.
Como o prisioneiro justifica sua escolha? Se ele está vendo 2 discos brancos, então em suas costas podem estar colados apenas 1 disco branco ou 1 disco preto. O prisioneiro não tem certeza sobre qual o disco que lhe pertence. Mas a pressa faz com que ele se antecipe: se ele demora em responder, corre o risco de o outro prisioneiro responder antes, e assim ele continua preso e não alcança a liberdade. É o vacilo do outro prisioneiro em responder que ele pode se antecipar. Mas a certeza sobre si surge apenas no momento em que o prisioneiro se enuncia: "eu sou o disco branco".
Retornando ao conto de Poe, acompanhamos as posições dos personagens a partir do tríptico das sentenças de cada tempo lógico, que Lacan sustenta na seguinte asserção do eu: "Eu sou homem" (1998a, p. 213):
1. Um homem sabe o que não é um homem;
2. Os homens se reconhecem entre si como sendo homens;
3. Eu afirmo ser homem por medo de ser convencido pelos homens de não ser homem.
Na primeira asserção, temos o instante de ver, no qual um saber se produz por meio de uma exclusão lógica, cuja base é uma percepção imediata. Neste tempo, a alienação marca a posição de engodo de uma relação de prematuridade especular entre o eu e o outro. Qualquer conclusão feita agora se sustenta em uma impessoalidade. É o tempo de atividade do olhar que se direciona ao outro.
Segundo a psicanalista Ana Costa, no instante de ver, "a dedução consta do próprio enunciado do problema, sem que seja necessário um 'eu' que trabalhe para sua dedução" (1998, p. 55). É uma estrutura impessoal, de um código absoluto. Neste tempo, a posição de indeterminação do sujeito, expressa na partícula "-se", é tirada de uma consequência lógica: "Estando..., só então se sabe que se é..." (1998, p. 204). No conto de Poe, o instante de ver é ocupado pelo Rei e pelos policiais. Porém, estes nada podem concluir sobre si a partir daquilo que eles olham.
Na segunda asserção, temos o tempo de compreender. É o tempo no qual o eu constrói um lugar para si além da aparência instantânea do primeiro tempo. Nele se "supõe a duração de um tempo de meditação" (Lacan, 1998b, p. 205), de mediação e de passividade. Hipóteses são construídas, por meio da reciprocidade do outro, sobre o que se ignora de si. Entretanto, não se pode dar garantias sobre as pressuposições, pois não existe um significante que consiga fixar o sujeito em seu ser. Esse tempo de meditação sobre a posição do olhar do outro se mostra na Rainha e no Ministro, que tentam esconder o objeto que poderia entregá-los.
Lacan afirma que o tempo de compreender é incomensurável e que pode se reduzir novamente ao instante de ver. O sujeito é efeito de uma certeza antecipada, da posição de atividade do momento de concluir. Trata-se de um tempo reflexivo, de retorno à estrutura impessoal. Por meio dessa tensão temporal, o eu pode fazer uma asserção sobre si. O Ministro e o detetive Dupin se apressam em apostar pela posse de um objeto que está velado a todos. Mas somente a torção do olhar feita pelo detetive Dupin que se dessubjetiva do centramento egoico ao mesmo tempo em que se singulariza , é que vai desvelar o lugar em que se encontra o objeto.
Temos nesses três tempos lógicos a correspondência das três posições subjetivas das cenas do roubo da carta do conto de Poe. São as seguintes posições de olhar, que se determinam em relação a esse objeto-carta, tal como Lacan apresenta no texto "O seminário sobre 'a carta roubada'" (1998b, p. 17):
1. um olhar que nada vê: o Rei e depois a polícia;
2. um olhar que vê que o primeiro nada vê e se engana por ver encoberto o que ele oculta: a Rainha e depois o Ministro;
3. o que vê, desses dois olhares, que eles deixam a descoberto o que é para esconder, para que disso se apodere quem quiser: o Ministro e depois Dupin.
A emergência de um sujeito se dá na saída da relação binária para uma estrutura ternária. É para o Outro, e não para o outro semelhante, que o sujeito se endereça. Assim, rompe-se com a lógica ou... ou e se cria um espaço de circulação comum. Instaura-se o lugar de um terceiro excluído (do Outro), que vem reconstituir um laço perdido. Por meio dele o eu tem sua inscrição social reconhecida. O que vai comandá-lo, então, passa a ser esse elemento terceiro, que se faz através de uma perda, mas que nunca se separa efetivamente.
Todos os personagens do conto assumem uma posição específica determinada pelo objeto, como se essa carta/letra indicasse mais do que uma mensagem endereçada a alguém, mas o próprio inconsciente, por meio da qual cada um assume uma posição específica. conto de Poe em O seminário, livro 2: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, 1954-1955, Lacan (1985) aponta para a possibilidade de transformação quando se está inserido em diferentes circulações simbólicas. É como se a mudança do objeto produzisse também uma mudança no Outro.
Nesse sentido, Lacan se pergunta: "O que é, afinal, uma carta? Como é que uma carta pode ser roubada? Ela pertence a quem? A quem a enviou, ou a quem é destinada?" (1954-55/1985, p. 249). Essa carta/letra é o significante que incide sobre o corpo e inscreve uma diferença na história de cada um. Por isso ela recebe diversas significações segundo a quem ela se endereça: uma declaração de amor, uma traição, uma chantagem, um complô, um poder etc. Dessa forma, não apenas os personagens mudam conforme sua relação com a carta, mas o sentido deste objeto também se modifica.
A transmissão é uma forma de reenlaçar o sujeito com o Outro tomando como suporte a condição de presença e ausência dos objetos pulsionais. Ela ultrapassa a separação entre as fronteiras do dentro/fora, público/privado, eu/outro inscrevendo na circulação social a dimensão de uma perda. Uma transmissão, no final das contas, tem como motor a perda de um gozo. Aquele que transmite deve ser capaz de abdicar da propriedade do objeto, transformando o gozo de sua posse em saber sobre o gozo. Por outro lado, aquele que recebe, para se apropriar do transmitido, deve inscrever sua marca, uma torção na história da transmissão. Portanto, se "uma carta sempre chega a seu destino" (1985, p. 258), como afirma Lacan, nunca é da mesma forma como foi endereçada.
Retomando a famosa frase de Freud, da 31ª das Novas Conferências de psicanálise, de 1932: Wo Es war, Soll Ich werden, um tipo de aforismo que, pelas diferentes traduções, marca diferentes leituras da psicanálise e diferentes formas de situar o sujeito. A tradução inglesa das obras de Freud, where the id was, there the ego shall be, dá destaque para o aparecimento do eu no lugar do Isso. Podemos nos guiar pela interpretação que nos fornece Lacan, no texto A coisa freudiana, de 1955:
evidencia-se aqui que é no lugar, Wo, onde Es, sujeito desprovido de qualquer das ou de qualquer outro artigo objetivante (é do lugar de ser que se trata), era, war, é nesse lugar que soll, devo... Ich, [eu], ali devo [eu]... werden, tornar-me, isto é, não sobrevir, nem tampouco advir, mas vir à luz, desse lugar mesmo como lugar de ser. (1998c, p. 418)
Esta leitura de Lacan nos permite recuperarmos a frase do filósofo Schelling, citada por Freud no texto O estranho: "unheimelich é tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto mas veio à luz" (1919/2003, p. 2487). Tomando a liberdade de fazer uma releitura desse princípio freudiano, diríamos que a transmissão ocorre ali onde o eu estava, ou seja, ali onde o eu ganha uma dimensão impessoal. A transmissão produz um estranhamento: aquilo que era familiar torna-se alheio.
A temporalidade que dá ritmo à transmissão deve considerar uma certa pressa antecipada, mostrando que tempo e saber estão interligados conforme os tempos lógicos. É o tempo da produção de sujeito, pois ele não está fixado em nenhum dos gozos, mas pode circular entre eles. É o tempo que possibilita a saída da relação especular com o outro e a formação das identificações. É nesse momento que o sujeito produz uma marca singular na tradição cultural que o antecede.
Os laços entre os sujeitos produzem efeitos de transmissão, quando se sustentam em perdas e se formam por meio de torções. O que é transmitido de mãe para filho, ou de um professor para seu aluno se reduzirmos a relação do sujeito com o Outro a esses dois microcosmos , se sustenta em saber como uma falta se inscreve na relação. Aquele que transmite deve considerar os efeitos de torção provocados por aquele que recebe o conteúdo transmitido.
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Recebido em março/2014.
Aceito em maio/2014.