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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.22 no.3 São Paulo dez. 2017

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v22i3p1-15 

ARTIGO

 

O psicanalista na clínica com bebês hospitalizados

 

The psychoanalyst and hospitalized infants

 

El psicoanalista en la clínica con bebés hospitalizados

 

 

Alexandra de Oliveira MartinsI; Guilherme Massara RochaII

IPsicóloga e psicanalista. Coordenadora do Serviço de Psicologia do Biocor Instituto. Membro da equipe multidisciplinar do Núcleo de Assistência Integral a Cardiopatia Congênita e Estrutural. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil
IIPsicanalista. Membro da International Society of Philosophy and Psychoanalysis e da Fèdération Européenne de Psychanalyse. Professor do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, MG, Brasil

Correspondência

 

 


RESUMO

A prática clínica com bebês hospitalizados despertou no analista o interesse pela constituição psíquica e pelas dimensões do enigma infantil. O psicanalista no hospital acolhe o encontro mãe e bebê como "resto" que escapa aos cuidados médicos, para escutar e intervir no que incide de singular nessa relação primordial e fundamental. A contingência da malformação congênita foi considerada, porém não como uma sentença definitiva que anulasse o desejo do bebê e de sua mãe. O incognoscível, esse ponto que escapa à medicina, constata a ligação ativa do corpo e do psiquismo de um ser humano em constituição.

Descritores: psicanálise; bebê; malformação congênita.


ABSTRACT

The clinical practice with hospitalized infants sparks the analyst's interest for their mental constitution and for the dimensions of the enigma of childhood. The hospital's psychoanalyst shelters the encounter between mother and baby as a "rest" that escapes medical care, listening to and intervening in that which involves the singular in this primordial and fundamental relation. The contingency of congenital malformation was considered, although not as a final sentence that would nullify the infant's and his/her mother's desire. The unknowable, this point that escapes medical science, acknowledges the active bond between body and mind in the human being's constitution.

Index terms: psychoanalysis; infant; congenital malformation.


RESUMEN

La práctica clínica con bebés ha despertado el interés del analista por la constitución psíquica y por las dimensiones del enigma infantil. El psicoanalista en el hospital acoge el encuentro entre madre y bebé cómo un "resto" que escapa a los cuidados médicos, para escuchar e intervenir en aquello que incide de singular en esa relación primordial y fundamental. La contingencia de la malformación congénita fue considerada, pero no cómo una sentencia final que anularía el deseo de la madre y del bebé. El incognoscible, el punto que escapa a la ciencia médica, constata el lazo activo entre cuerpo y psiquismo en la constitución del ser humano.

Palabras clave: psicoanálisis; bebé; malformaciones congénitas.


 

 

A teoria analítica e a prática, sempre se disse, não podem se dissociar uma da outra e, a partir do momento em que se concebe a experiência num certo sentido, é inevitável que se a conduza igualmente nesse sentido. Certamente, os resultados práticos só podem ser entrevistos.

Jacques Lacan

No encontro com os bebês nos deparamos, inicialmente, com a estética, a delicadeza, a fragilidade humana em desenvolvimento e a sua constituição psíquica, o que pode tornar-se uma experiência estranha, inquietante. É o mistério da primeira infância, o impacto da própria criança em desenvolvimento que o espectador tem diante dos olhos. Freud (1919/2010) aponta que o psicanalista possui uma predisposição a investigações estéticas, não ligada à teoria do belo, "mas definida como teoria das qualidades de sentir" (p. 329). Ele relaciona, nessa teoria, o estranho1 "ao que é terrível, ao que desperta angústia e horror, e também está claro que o termo não é usado sempre num sentido bem determinado, de modo que geralmente equivale ao angustiante" (p. 329).

Como dizer que um bebezinho pode causar esse mal-estar? Não descreveremos nesse artigo o bebê no conforto do lar, nos braços da mãe, sendo amamentado e acalentado em seu desamparo nato, acontecimento que transmite, na maioria das vezes, ternura e admiração. Nossa experiência clínica se dá com bebês tratados pela medicina, razão de um impacto inicial, resultando nos espectadores uma certa dose de angústia. Naturalmente, porque a doença, o risco de morte, a imperfeição, remetem a nossa própria finitude. Freud (1914/2010), em seu texto "Introdução ao narcisismo", fala sobre o narcisismo dos pais há muito abandonado, quando "verifica uma tendência a suspender, face à criança, todas as conquistas culturais que o seu próprio narcisismo foi obrigado a reconhecer, e a nela renovar as exigências de privilégios há muito renunciados" (p. 37).

Com efeito, as expectativas com relação ao desenvolvimento saudável dos bebês integram e nutrem a intenção benevolente e as fantasias dos adultos a sua volta. A malformação congênita, que acarreta tratamentos médicos seguidos, gera uma ruptura, como qualquer outra contingência dramática, nessa trajetória natural da vida: nascer, crescer e morrer. Mazet e Stoleru (1990) consideram que:

O nascimento de uma criança malformada é origem de reações psicológicas complexas. As crenças tradicionais mostram a ambivalência marcada destas reações, podendo ser a criança um objeto de terror, de admiração ou de ambos, simultaneamente. . . . Os pais são confortados com o trabalho psíquico de aceitar que a criança fantasmática e imaginária foi substituída por esta criança real. A reação dos pais e sua maior ou menor dificuldade em se apegar à criança variam segundo a malformação e principalmente ao fato de que ela seja ou não visível, que ameace ou não a vida da criança, que outros membros da família sejam ou não afetados e que implique ou não em hospitalizações repetidas. (p. 272)

O trabalho psíquico exigido aos genitores – em especial à mãe – de elaboração do valor afetivo do acontecimento da malformação do filho em suas vidas, ultrapassa o processo de aceitação. A repercussão disso no narcisismo dos pais é motivo de investigação e tratamento clínico. Por isso, a presença do analista nesse contexto.

Na clínica aqui estudada, o bebê com quem nos deparamos sofre com o acometimento de seu corpo por uma malformação congênita, necessitando em sua urgência orgânica de um tratamento médico, muitas vezes invasivo, realizado em hospital geral. O analista lançou seu olhar para a primeira experiência com esse infans2, bebê com tendências ainda prematuras de desenvolvimento, que mantinha, porém, sua presença convincente e inquietante, sendo que "o estranho é aquela espécie de coisa assustadora que remonta ao que é há muito conhecido, ao bastante familiar" (Freud, 1919/2010, p. 331). Esse familiar, Freud (1919/2010) diz que é Unheimlich (estranho), "é apenas a entrada do antigo lar [Heimat] da criatura humana, do local que cada um de nós habitou uma vez, em primeiro lugar. O Amor é nostalgia do lar" (p. 365).

Nota-se que o encontro com o infans se dá em um ambiente inicialmente hostil para um bebê e seus genitores. Esse lugar despertou no analista o interesse pela constituição psíquica e pelas dimensões do enigma infantil nesse contexto.

Na experiência clínica com bebês acometidos por malformação congênita, muitos recém-nascidos, na urgência de um tratamento estético3 e funcional do corpo, têm a necessidade de um ambiente cercado pela tecnologia médica, com aporte para consertar o que não funciona bem; nesse contexto, a pergunta sobre a vida psíquica estabeleceu-se constantemente. Afinal, além do impacto materno sofrido em função do diagnóstico, observamos concomitantemente efeitos desorganizadores da constituição psíquica. Acontecimentos esses evidenciados como inerentes à relação mãe/bebê, atravessada pela contingência da doença e do saber da ciência médica.

Para a psicanálise, a constituição psíquica será marcada pela relação com o Outro primordial, necessária para a subjetivação. Nesse contexto hospitalar, a relação mãe/bebê é visível aos olhos dos espectadores clínicos, porém, ao psicanalista, caberá a função de operar com um discurso que aponta para a particularidade do caso a caso. O risco da desolação de um e de outro (mãe e bebê) parece um ambiente favorável para a intervenção clínica em psicanálise.

 

Interlocução entre teoria e prática

Se a psicanálise é a subversão da ciência, a ideia é reintroduzir o sujeito onde ele é excluído pela ciência, introduzindo a dimensão do indeterminado do sujeito onde, nesse ponto de irredutibilidade, ele terá que se haver com a contingência do seu ser. Portanto, se a psicanálise opera a partir do obstáculo, da verdade como causa, da divisão do sujeito, ela coloca para a ciência uma questão: o sujeito da ciência. E, em nome dessa causa, avança o saber sobre a verdade que está em jogo, subtraída da cena que a própria ciência introduz: o mal-estar do sujeito em sua singularidade.

No desafio inicial da prática clínica em hospital geral com bebês, mostrou-se essencial a interlocução entre a teoria analítica e a prática, porém, como fazer valer essa condição necessária em ambientes em que o discurso operante é o da medicina? Lacan (2009) enuncia que "um discurso se sustenta de quatro lugares privilegiados, dentre os quais um, precisamente, ficou sem ser nomeado – justamente aquele que, pela função de seu ocupante, fornece o título de cada um desses discursos" (p. 24). Nesse momento, Lacan (2009) destaca os seguintes discursos: discurso do mestre, discurso da universidade, discurso da histérica e discurso do analista. A medicina, definida como o discurso do mestre, operante do discurso da ciência, e a psicanálise, um discurso sobre a investigação dos processos mentais, inacessíveis até a introdução do método descoberto por Freud, são muito distintas. Entretanto, no início do Seminário 18: de um discurso que não fosse semblante, Lacan (2009) aponta que "o discurso do mestre não é o avesso da psicanálise, é o lugar em que se demonstra a torção própria, eu diria, do discurso da psicanálise" (p. 9). Esse lugar, que o autor exemplifica a partir da estrutura da banda de Moebius, mostra o sujeito dividido em seu dizer, que os discursos podem representar, mas não definir. No hospital geral, lugar da medicina, há sempre algo que escapa à condição do saber médico: responder ao enigma da subjetividade. Isso que escapa é o "resto" exposto ao analista, que percebe, por sua formação teórica, a existência do determinismo psíquico e costuma ter a pretensão de não o ignorar.

O psicanalista escuta caso a caso os sujeitos que falam, o que é possível verificar e considerar dos dizeres já constituídos e determinados em seu sofrimento, evidenciando "o significado inconsciente das palavras, das ações, das produções imaginárias (sonhos, fantasias, delírios)" (Laplanche & Pontalis, 2001/2016, p. 384). Mas quando se trata da clínica com bebês, essa lógica não segue o mesmo sentido. Obrigatoriamente foi preciso estudar conceitos teóricos sobre a constituição psíquica para compreender uma prática possível, respeitando a ética do inconsciente, definida pela teoria de escolha: a psicanálise. Lacan (1985), no seminário O Eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, aponta o aspecto importante de "tomar distância", destacando perigos que tangem o campo clínico:

O primeiro é não ser suficientemente curioso. Ensina-se às crianças que a curiosidade é um defeito feio, e, em geral, é verdade, não somos curiosos, e não é fácil provocar este sentimento de maneira automática. O segundo é compreender. Compreendemos sempre demais, especialmente na análise. Na maioria das vezes, nos enganamos. Pensa-se poder fazer uma boa terapêutica analítica quando se é bem-dotado, intuitivo, quando se tem o contato, quando se faz funcionar este gênio que cada qual ostenta na relação interpessoal. E a partir do momento em que não se exige de si um extremo rigor conceitual, acha-se sempre um jeito de compreender. Mas fica-se sem bússola, não se sabe nem de onde se parte, nem para onde se está tentando ir. (p. 135)

A escolha dessa citação foi oportuna para destacar alguns pontos importantes da clínica com bebês nesse contexto: a curiosidade e o tempo para compreender. A prática do psicanalista no hospital geral, com bebês em tratamento médico de alta complexidade, necessitando em sua urgência biológica do cuidado à saúde do corpo malformado, com consequências vitais no desenvolvimento, não parecia ser, a princípio, sem motivos. Qual a necessidade do psicanalista na formação da equipe multiprofissional? Inicialmente sua presença coincidia com a de outros profissionais de apoio, haja vista que a necessidade era a de um psicólogo na equipe. Porém, a formação desse profissional seguia também com outra referência: a psicanálise. Os profissionais da equipe multiprofissional mantinham seus protocolos estabelecidos, uma prática na condução técnica em acordo com uma tecnologia avançada. Para o analista, havia sempre uma surpresa, uma curiosidade. O que fazer nesse lugar onde bebês e familiares expressam sua subjetividade em um contexto de urgência médica e alta complexidade e, principalmente, como extrair a particularidade do caso a caso e a trama do inconsciente?

Ser um psicanalista na clínica com bebês inicialmente exigiu tomar distância, não sem especificações. Essa distância era necessária, após o tempo da curiosidade e o tempo de compreensão, estabelecido através do desejo do analista em manter sua prática clínica mesmo diante da presença ou ausência de demandas. Afinal, o bebê não demanda o analista, mas sua presença intrigante expressa outras demandas, sua potencialidade e sua necessidade de satisfação e amparo – movimento necessário para a constituição psíquica:

No início da vida, toda experiência somática se impõe e se metaboliza em uma experiência psíquica e, portanto, todo sofrimento orgânico é um sofrimento psíquico, sendo ambos indistinguíveis. Assim é que o sofrimento orgânico é representado como sendo autoengendrado. Se o sofrimento não ultrapassar certo limite ou certa duração, a palavra materna pode e deve intervir, a fim de impedir o movimento de desinvestimento no corpo e na atividade de pensar. (Violante, 2001, p. 62)

As experiências dos bebês são evidentes aos olhos do examinador atento, seus sinais são frequentemente emitidos, da sua forma o bebê expressa suas mensagens. Lacan (2016), no Seminário 6: o desejo e sua interpretação, diz que o estímulo tem a função de um código, impondo sua ordem para a necessidade e, por isso, sendo traduzido: "diremos que o estímulo é um sinal que o meio externo dá ao organismo de que tem de responder, de que tem de defender, e que ele, por sua vez, emite um sinal" (pp. 19-20). Os estímulos externos e os sinais do bebê, de acordo com sua capacidade de resposta, foram reconhecidos pelo analista como vias que apontam para a constituição psíquica e seu desenvolvimento. É possível também conhecer os bebês através do que enunciam suas mães – elas dizem muito sobre seus filhos. Porém, em muitas circunstâncias, como a situação que levou a este artigo, a interferência da malformação congênita e seus entraves, como dissemos, prejudicam as expressões ditas naturais e espontâneas – com isso, o sofrimento das mães também foi motivo de investigação. Saber o que fazer com o que vem dos sujeitos, mesmo que bebês, ainda na fusão da relação alienada ao outro parental, foi fundamental para a construção de uma prática. Lacan (1995), no Seminário, livro 4: a relação de objeto, emite que "só podemos nos referir ao real teorizando" (p. 31). Teorizar, para o psicanalista, foi fundamental como desfecho nesse contexto clínico; depois de tanto experimentar e clinicar usando a teoria, a análise pessoal e a supervisão como pilares, era preciso escrever. Sobre a clínica com bebês, Golse (2003), em seu livro Sobre a psicoterapia pais-bebê: narrativa, filiação e transmissão, esclarece que:

Eu me detenho aqui no tema das promessas, dizendo apenas que tudo isto nos conduz a uma clínica do bebê absolutamente fascinante, que deve ser descritiva, muito finamente descritiva, e que deve ser muito interativa. É preciso entrar em contato com o bebê, mas fazê-lo com tato (no contato há o tato) para não forçar, não ser intrusivo. A clínica com bebê nos obriga a levar em conta o que nós sentimos, e isso é muito interessante porque não se escreveu tudo sobre o bebê, não se escreveu tudo sobre seu corpo e seu comportamento. Uma grande parte da clínica com o bebê está inscrita em nós, sobre o que sentimos, sobre o que o bebê reativa em nós, o bebê que fomos. . . . Enfim o bebê nos obriga a ter uma clínica historicizante, quer dizer que remete os distúrbios que observamos hoje a uma história que é sempre atacada por todas as formas de ditadura, e compreendida por todas as formas de ditadura do pensamento. (p. 21)

Uma clínica, como afirma Golse (2003), fascinante, mas que também podemos considerar como enigmática e necessária. No início da prática clínica, a escolha pela psicanálise como teoria sem dúvida auxiliou muito a construção do trabalho. No contato com o bebê e seus representantes primordiais – que optamos em considerar nesse espaço de escrita, em especial a mãe –, construímos uma prática a partir de um desejo: a psicanálise. Como aponta Laurent (1995/1999), em seu texto "O analista cidadão": "o analista útil, cidadão, é alguém que avalia as práticas e também aceita ser avaliado, mas ser avaliado sem temor, sem um respeito temeroso, cauteloso, diante dos pré-julgamentos da Ciência" (p. 12). E continua com afirmações relevantes sobre o analista no campo da medicina:

Quando se vem dizer-lhes, com arrogância, que a prática analítica não é útil ou não é eficaz, porque tal tipo de terapia cognitiva é supostamente mais útil, os analistas têm que demonstrar o contrário com sua experiência, e isso não é muito difícil. Não se deve pensar que são coisas extravagantes e do outro mundo. Cada vez que há ataques desse tipo com a Psicanálise, é perfeitamente possível mostrar uma experiência que demonstra o contrário. (p. 12)

A experiência com bebês apontou a necessidade de descobrir um saber fazer nessa clínica. Teóricos contemporâneos dos estudos sobre bebês, bem como o trabalho psicanalítico com bebês introduzido na França por Françoise Dolto (2004), auxiliaram muito o início dessa prática. No artigo "Sobre a interface entre a subjetividade materna e as malformações do neonato", Vorcaro e Martins (2016) apontam como contribuição de Dolto:

que a sensibilidade e o sofrimento humano podem começar desde o nascimento, que é preciso reconhecer sistemática e pacientemente o desejo irredutível do recém-nascido em direção à vida. O neonato vem ao mundo banhado numa cultura, tem sua origem, uma herança parental com suas histórias e seus traumas. (p. 159)

Conceitos como clínica precoce, prevenção e estimulação precoce são frequentemente utilizados por alguns autores na clínica com bebês na tentativa de intervir antes que o "mal aconteça". Daniela Teperman (2005) refere-se à prevenção da seguinte forma:

Não temos como garantir os resultados de uma intervenção em psicanálise, mas temos como apostar: na existência do inconsciente ou, ainda, no advento de um sujeito. . . . tornar a prevenção uma questão, interrogar sobre os seus ideais, o poder e a tentativa de controle evocada na prevenção, pois há um caráter de "toda poderosa" embutido na noção de prevenção. A dimensão do real aí situada opera na direção de destituí-la desta perspectiva de apresentar-se como "toda". (p. 83)

Sabemos que prevenção e estimulação precoce não são conceitos psicanalíticos, mas possuem lugar na clínica com bebês e foram estudados no início da nossa prática. Entretanto, percebemos que é preciso um estudo estrutural sobre o que se passa na organização do psiquismo. Dessa forma, a psicanálise, em Freud e com sua metapsicologia, apresenta a possibilidade da compreensão sobre o funcionamento do aparelho psíquico, sobre sua condição enigmática, mas manifesta, como vestígio de investigação para apoio nessa clínica. O psicanalista atribuiu ao aparelho psíquico uma organização, um modelo ligado a diferentes funções, acessível não pela anatomia, mas como um sistema reflexo, considerado por Freud (1895/1988) como protótipo de todas as funções psíquicas. Laplanche e Pontalis (2001/2016), sobre o aparelho psíquico, resumem: "expressão que ressalta certas características que a teoria freudiana atribui ao psiquismo: a sua capacidade de transmitir e de transformar uma energia determinada e a sua diferenciação em sistemas ou instâncias" (p. 29). Seguindo as pistas da metapsicologia freudiana, seus princípios, conceitos fundamentais e modelos teóricos, foi possível observar na clínica com bebês a existência da constituição psíquica, não mais obscura, certamente sensível, definida e principalmente acessível para a fundamentação de uma prática.

No leito de terapia intensiva ou no colo da mãe, foi preciso reconhecer a potencialidade do bebê, tanto quanto os discursos que circulavam em torno de sua condição de tratamentos médicos em decorrência da malformação congênita. Na condição de sobrevivente do acometimento orgânico, para alguns casos apenas possível através da técnica médica, a competência do recém-nascido e a subjetividade em seu entorno mostrava-se viva e instigante para o analista. Sobre como se constitui o sujeito, no livro O conceito de sujeito, Elia (2004/2010) contribui:

A psicanálise pensa o sujeito, portanto, em sua raiz mesma, como social, como tendo sua constituição articulada ao plano social. Resta saber como ela o faz, e ela o faz de modo positivo, ou seja, de modo a manter a positividade de sua concepção de sujeito do inconsciente, sem o quê deixaria de ser psicanálise e se diluiria em meio à polifonia da orquestra das concepções culturalistas de uma construção social do sujeito, que o destitui precisamente de sua positividade como sujeito do inconsciente. (p. 34)

Fazer psicologia, ao invés de psicanálise, nesse campo clínico do hospital geral, poderia ser mais simples a princípio, pela técnica adquirida na graduação e consagrada já em muitas instituições. Mas a psicanálise indicou um outro caminho, o da sua ética: o sujeito do inconsciente. Moretto (2002), em seu livro O que pode um analista no hospital?, argumenta que, "diante da variedade de propostas psicológicas, me deparei com a inconsistência das mesmas. Jamais acreditei que fosse possível um caminho psicanalítico reversível, muito menos que fosse possível um desvio da estrada psicanalítica" (p. 19). Apostar na psicanálise como consistência de uma prática possível tornou-se um belo desafio desde o começo, persistindo ao longo de toda prática clínica. Lacan (1998b) ressalta que "a presença do analista é ela própria uma manifestação do inconsciente" (p. 121). Mannoni (1985/1989), em seu livro Um saber que não se sabe: a experiência analítica, diz:

Freud tinha evitado ligar a transmissão da análise a regras técnicas. A radicalização de sua posição visava subtrair a análise de toda aplicação da psicologia. É a esta radicalização que Lacan, por seu turno, reconduziu os analistas, para que compreendessem o que deveriam questionar na condução de um tratamento, de forma que se manifestassem à escuta da singularidade de uma palavra e uma linguagem, assim como das estruturas simbólicas às quais um sujeito se prende, levando-se em conta a participação ou não do paciente no drama neurótico (ou psicótico), e cuja origem às vezes retoma à terceira geração. (p. 51)

Na clínica com bebês, a singularidade da palavra, da linguagem e das estruturas simbólicas é constatada. O bebê permanece totalmente à mercê do seu entorno. Para Freud (1895/1988), o recém-nascido é um ser em estado de desamparo (Hilflosigkeit), necessitando de um adulto próximo (Nebenmensch), que fará a ação específica fundamental para sua constituição subjetiva. Freud (1905/2016), sobre a descoberta do objeto, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, assegura que "talvez haja relutância em identificar com o amor sexual os sentimentos de afeição e estima que a criança tem por aqueles que dela cuidam, mas penso que uma investigação psicológica mais precisa poderá estabelecer essa identidade além de qualquer dúvida" (p. 144). Na investigação de horas de trabalho, dia a dia, do analista em hospital geral, notava-se que havia algo a ser revelado, reconstruído só depois (a posteriori), mas acolhido no instante de ver. O desejo de escutar o que estava além da rotina da unidade de cuidados médicos intensivos possibilitou uma prática que autorizava legitimar as expressões e comportamentos dos bebês e a fala materna, considerando com isso a existência da subjetividade, das marcas simbólicas da profunda experiência humana e seu psiquismo.

Elia (2004/2010) indica que, "muito antes do bebê nascer, ou seja, de um ser humano surgir na cena do mundo com a possibilidade de se tornar um sujeito, o campo em que ele aparecerá já se encontra estruturado, constituído, ordenado" (p. 38). Recapitulando que o sujeito também é constituído pela linguagem, o autor contribui: "há um conjunto de demandas, desejos e desígnios que é dirigido àquele que vai nascer muito antes do nascimento, e que inclusive determina o fato do nascimento" (p. 38). Na escuta e acolhimento dos dizeres maternos, consideramos essa ordenação já definida pela cultura e as relações estabelecidas em sua própria experiência de vida, expressas e determinantes para o caminho da constituição do sujeito recém-chegado ao mundo: o bebê. A cena de tratamento médico, como qualquer outra contingência dramática, estremece a relação de cuidados e o ideal no jogo da mãe direcionado ao bebê, deixando marcas, como a vida, inevitáveis. Porém, como afirma claramente Ansermet (2003):

Trabalhar como analista em pediatria supõe levar em conta não somente a realidade física da doença, mas também o lugar ocupado por ela na realidade psíquica do sujeito. Essa distinção entre realidade física e realidade psíquica é um pré-requisito essencial para qualquer colaboração entre um psicanalista e um pediatra junto à criança doente. Para isso, o psicanalista deve, contrariamente ao médico, preservar na sua relação com o paciente o que poderíamos designar como o lugar da ignorância: deixar aberta a escuta do corpo tal qual ele aparece na dimensão subjetiva, o corpo falante que apenas o paciente pode revelar. (p. 15)

O corpo falante do bebê e o discurso materno estão entrelaçados, porém embaçados pela cena de cuidados médicos. No desassossego do mal-estar de um e de outro, do bebê e de sua mãe, a experiência clínica apresentou o enigma do psiquismo, possível de decifrar quando sustentamos que a psicanálise seria o caminho para a compreensão e tratamento. Na experiência do encontro do analista com a subjetividade materna e com as fantasias de algumas crianças e jovens adultos que a posteriori expressavam o mal-estar vivido ao longo dos tratamentos médicos – resquícios da primeira infância –, uma clínica foi estabelecida. De acordo com Moretto e Priszkulnik (2014), há uma distância entre a experiência original e sua transmissão. Descrever e transmitir a experiência particular do caso a caso vivida pelo analista no hospital geral não é sem faltas. Algo escapa desse conteúdo da clínica, impossível de apreender.

O bebê, sem recitar palavras, expressa com o corpo sua dor, seu mal-estar, seu desamparo diante da ausência do outro primordial, respostas particulares que demarcam sua condição de prematuridade psíquica e física. Foi necessário considerar que o corpo doente portava um psiquismo em constituição; a subjetividade à sua volta, histórias contadas por seus pais, expressavam o bebê idealizado, investimentos afetivos ligados à vida, apesar da doença. Brun (1996), em A criança dada por morta, sobre o sentido da narração no que tangue ao corpo doente da criança, ressalta:

O corpo doente da criança se oferece, é verdade, como habitáculo privilegiado das reminiscências do adulto, talvez porque a doença, principalmente muito grave, confere à criança uma posição ambígua. A ambiguidade da posição, contudo, tem-se relacionado menos com a pessoa da criança do que com o modo que ela é investida, e sobretudo na função de anteparo que implicitamente lhe pedem que ocupe. Assim, o olhar que recai sobre ela, suas atividades, suas declarações, mesmo depois de crescida, é, no mais das vezes, um olhar de preocupação. (p. 207)

Um olhar de preocupação que obstrui outras possibilidades de reconhecimento além da malformação congênita. No encontro do analista com o bebê e sua mãe na cena de cuidados médicos, abre-se a possibilidade do encontro com algo além da necessidade fisiológica, com um sujeito em constituição e sua história. Elia (2004/2010) aponta que:

Se nascemos com necessidade, nunca a experimentamos pura ou diretamente, ou seja, sem a mediação da linguagem. A vida biológica é, como tal, excluída da experiência do sujeito, que só se relacionará com ela por intermédio da linguagem, o que evidentemente a modifica, a pulveriza, a fragmenta. (p. 40)

É enigmático e encantador descrever, partindo da psicanálise, uma clínica que registra a realidade de bebês e seus infortúnios, além do despertar das suas mães para a maternidade diferente do ideal, do bebê como veio ao mundo. A experiência trazendo seus conteúdos inexoráveis e legitimados pelo olhar da psicanálise. Para explicar sobre o caráter da psicanálise como ciência empírica, Freud (1923/2011) apresenta sua diferença do sistema filosófico – que possui parte dos conceitos fundamentais claramente definidos – e afirma que a psicanálise "se atém aos fatos do seu âmbito de trabalho, busca solucionar os problemas imediatos trazidos pela observação, segue tateando com base na experiência, esta sempre incompleta, sempre disposta a ajustar ou modificar suas teorias" (p. 301). Na observação do caso a caso dos pacientes em tratamento médico no hospital geral, a possibilidade do trabalho clínico com bebês foi sem dúvida uma surpresa e um acontecimento que instigou a busca de conhecimento dirigido aos primórdios da primeira infância. Ribeiro (2010), na apresentação do seu livro sobre Imitação: seu lugar na psicanálise, tece contribuições relevantes sobre as perspectivas da prática na clínica com bebês:

Essa busca de apreensão do originário não representa apenas uma exigência teórica, como parece o caso do conceito de recalcamento originário em Freud, apresentado como conceito necessário para se conceber o recalcamento secundário. À medida que a clínica psicanalítica alcança uma amplitude cada vez maior, dirigindo-se aos primórdios da infância e, inclusive, à díade mãe-bebê, torna-se necessário que as intervenções do analista possam apoiar-se em uma compreensão metapsicológica dos processos envolvidos nesses momentos inaugurais do psiquismo. Na clínica do adulto, tal compreensão tem também sua importância na elucidação dos movimentos transferenciais que conservam o caráter arcaico dos momentos precoces da constituição psíquica. (p. 13)

Para a compreensão das contribuições da metapsicologia freudiana, vale lembrar que os conceitos teóricos sobre a constituição psíquica sustentam a prática com bebês, respeitando a ética do inconsciente, definida pela psicanálise. Abordar a noção de aparelho psíquico, sua estrutura, seu funcionamento e seu desenvolvimento mostra-se essencial para o trabalho clínico. A decisão pela teoria psicanalítica como referencial fundamental para realização da pesquisa se estabeleceu com a finalidade de extrair da experiência clínica o que a psicanálise revela com sua descoberta: o inconsciente.

É interessante sublinhar que, na clínica em questão, o ponto que escapa à medicina, o incognoscível, esse "resto" de interesse do analista, constata a ligação ativa do corpo e do psiquismo de um ser humano em constituição. Essa ligação evidentemente é o que estabelece, constantemente, a necessidade do conhecimento teórico, de modo que a análise da infância não seja negligenciada e abra espaço para o caso a caso e suas particularidades.

 

Considerações finais

Conclui-se que a clínica com bebês apresenta seus enigmas sobre as produções do psiquismo, que foram atenciosamente observados, legitimados e cuidadosamente estudados pela analista presente. O impacto causado pela contingência da malformação congênita foi considerado, porém, não como única razão, como uma sentença que anulasse o desejo do bebê e de sua mãe. Os sujeitos dessa clínica puderam existir subjetivamente quando acolhidos, sem negar suas manifestações de vida psíquica e suas produções subjetivas constituídas ou em constituição.

 

REFERÊNCIAS

Ansermet, F. (2003). Clínica da origem: a criança entre a medicina e a psicanálise (D. Á. Seidl, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa.         [ Links ]

Brun, D. (1996). A criança dada por morta: riscos psíquicos da cura (J. Pereira Neto, J. Souza e M. Werneck, trads.). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

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Endereço para correspondência
Rua Stella Hanriot, 85/501
30575-120 – Belo Horizonte – MG – Brasil.
aleclara@ig.com.br

Av. Celso Porfírio Machado, 418
30320-400 – Belo Horizonte – MG – Brasil.
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Recebido em agosto/2017.
Aceito em dezembro/2017.

 

 

NOTAS

1. Das Unheimliche, "título original do artigo O Estranho, de 1919, traduzido habitualmente por: o estranho, o sinistro, inquietante, macabro, assustador, esquisito, misterioso" (Hanns, 1996). O texto consultado para as citações traduz Das Unheimliche por O Inquietante (Freud, 1919/2010). Porém, conservaremos ao longo do texto o nome já consagrado O Estranho.
2. Infans: aquele que ainda não fala. "Numerosos autores (Melaine Klein, Donald Woods Winnicott, em particular) utilizaram o termo, designando assim que o modo de comunicação do bebê se situa em nível pré-verbal. O termo infans adquiriu outra dimensão em Jacques Lacan, com a referência à linguagem e a sua função face do inconsciente. Com Piera Aulagnier, consiste numa teoria da relação mãe-infans em função do discurso (mãe porta-voz) que se elabora" (Mijolla, 2005, p. 957).
3. Por exemplo, nas cranioestenoses sindrômicas, que incluem as craniofaciossinostoeses, ou seja, as cranioestenoses de origem genética (as síndromes de Crouzon, Apert e Pfeiffer são as mais frequentes), os pacientes portadores dessa anomalia apresentam retrusão do terço médio, oclusão classe II e exoftalmia (olhos saltados). Adicionalmente, sempre apresentam a fusão de uma ou mais suturas cranianas. A craniotomia descompressiva (abertura das suturas) deve ser realizada antes de um ano de idade (Cf. Associação Brasileira de Fissuras Lábio Palatinas, disponível em www.abflp.com.br/cranioestenose). No tratamento dessas anomalias, além do tratamento funcional com comprometimento no nível neurológico (estruturas do sistema nervoso central), há o estético.

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