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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.23 no.2 São Paulo maio/ago. 2018

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v23i2p381-405 

DOI: 10.11606/issn.1981-1624.v23i2p381-405

FUNDAMENTOS

 

De que se trata ser freudiano pela psicanálise lacaniana? Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise em Freud e Lacan

 

What does it mean to be freudian for lacanian psychoanalysis? The four fundamental concepts of psychoanalysis in Freud and in Lacan

 

¿Qué es ser freudiano desde el psicoanálisis lacaniano? Los cuatro conceptos fundamentales del psicoanálisis en Freud y en Lacan

 

 

Iagor Brum LeitãoI; Flávio Martins de Souza MendesII

IPsicólogo. Mestrando em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGP/Ufes), Vitória, ES, Brasil.
IIPsicanalista. Psicólogo. Mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (PPGP/Ufes). Membro da Escola Lacaniana de Psicanálise de Vitória (ELPV/ES), Vitória, ES, Brasil.

Correspondência

 

 


RESUMO

O artigo versa sobre os quatros conceitos considerados por Lacan como fundamentais da psicanálise: inconsciente, repetição, transferência e pulsão. Privilegia-se um Lacan menos hermético em seu retorno a Freud, comparando e discutindo o estado da arte dos fundamentos de ambos os autores e com o auxílio de alguns comentadores. O estudo propõe apontar por que estes quatro conceitos foram considerados por Lacan como fundamentais da psicanálise, e como eles foram reposicionados para uma leitura no campo da linguagem, apostando que essas discussões evidenciem as implicações da psicanálise lacaniana sobre a freudiana e vice-versa. Considera-se fundamental o retorno de Lacan a Freud, principalmente no que diz respeito à crítica e aos estudos destes quatro conceitos, a partir dos quais se acredita ser possível compreender a lógica da psicanálise e seu modus operandi.

Descritores: Lacan; retorno a Freud; fundamentos.


ABSTRACT

This article deals with the four concepts considered as fundamental of psychoanalysis by Lacan: unconscious, repetition, transference and drive. It is privileged a less airtight Lacan on his return to Freud, comparing and discussing the state of the art of the elements in both authors, with the aid of some commentators. In addition, the study proposes to discuss the implications of Lacanian on the Freudian psychoanalysis, visiting theoretical and technical points repositioned by Lacan for a reading in the field of language. It is considered fundamental his return to Freud, especially with respect to the criticism and the studies of the four fundamental concepts considered by him, from whom it is believed to be possible to understand the knowledge of psychoanalysis and its modus operandi.

Index terms: Lacan; return to Freud; fundamentals.


RESUMEN

El artículo aborda los cuatro conceptos considerados por Lacan como fundamentales al psicoanálisis: el inconsciente, la repetición, la transferencia y la pulsión. Se busca enfocar en un Lacan menos hermético en su retorno a Freud, comparando y discutiendo el estado del arte en ambos autores y con la ayuda de algunos comentaristas. El estudio propone discutir por qué son importantes estos conceptos en Lacan, y cómo los reposicionan para una lectura en el campo del lenguaje, indicando las implicaciones del psicoanálisis lacaniano sobre el freudiano y viceversa. Se considera como importante su retorno a Freud, especialmente con respecto a la crítica y a los estudios de estos conceptos fundamentales, a partir de ellos se habla de una posibilidad de comprender como operar el conocimiento del psicoanálisis y su modus operandi.

Palabras clave: Lacan; regreso a Freud; fundamentos.


 

 

Introdução

A teoria psicanalítica é um saber recheado de conceitos, símbolos, siglas e formulações, nos quais podem se perder tanto o principiante que se aventura em suas literaturas quanto o profissional experiente, que tem algum percurso teórico e experiencia a prática clínica de ambos os lados: psicanalista e psicanalisando. Assim como na psicologia existem "várias psicologias" – as ditas abordagens teóricas, entre as quais o saber psicanalítico vem somar e implicar como +1 –, a psicanálise também é composta por "várias psicanálises". Ela começa a ser construída por Sigmund Freud e a ser consolidada na Sociedade das Quartas-Feiras. Posteriormente, é conduzida adiante em inúmeras direções, por diferentes autores, como Melanie Klein, Donald Winnicott, Wilfred Bion e Jacques Lacan. Alguns desses autores criaram novas correntes, ampliando, transformando e inserindo mais conceitos e formulações, frutos de suas experiências clínicas e reflexões acerca da estrutura e do funcionamento do Inconsciente, assim como da técnica psicanalítica e, portanto, do que trata esse saber, método e ciência chamado psicanálise.

Acompanhando o ensino de Jacques Lacan (2008, p. 27), encontramos a formulação de que "o inconsciente é estruturado como uma linguagem". Seguindo esta lógica, é possível pensar que a psicanálise também é estruturada pela linguagem, ela é – assim como as ciências – uma ficção tecida para fazer reconhecer um objeto, pelo uso da escrita, de imagens, conceitos e formulações. Importante ressaltar, entretanto, que o fato de estes existirem não constitui por si só uma ciência, compreendendo a advertência de Lacan (2008, p. 18) de que "uma falsa ciência, assim como uma verdadeira, pode ser posta em fórmulas". Há de se acrescentar, ainda, que, diferentemente da ciência, o objeto da psicanálise é um objeto perdido, faltoso, causa do desejo – não sendo, portanto, um objeto apreensível objetivamente.

Kant (1781/2007), por sua vez, na elaboração da sua filosofia crítica sobre o conhecimento, afirma que é impossível conhecer o que ele chamou de númeno (do grego νοούμενo, "a coisa em si"), mas apenas o que esse númeno apresenta, ou seja, seus fenômenos. A linguagem seria, então, a forma de tentar apreender a coisa em si, proposta que se diferencia da psicanálise de Lacan, que compreende que não haveria a coisa em si, mas a articulação dos três registros, Real, Simbólico e Imaginário. Enquanto para Kant a coisa em si teria existência própria apesar da linguagem, para Lacan não há existência própria senão enquanto ex-sistência à existência da linguagem, ou seja, é como resto à operação da linguagem que a coisa se articula enquanto Real. Nesse sentido, embora se possa supor que os conceitos psicanalíticos permitem construir um tipo de conhecimento e, portanto, apreensão da coisa em si, eles só adquirem valor se orientados à experiência clínica, quando são mobilizados em função da práxis singular. Isso significa dizer que eles não são dados empíricos, de observação, mas condições para um método do qual decorre uma experiência que, por sua vez, estabelece seu devido valor no caso a caso. Assim, na psicanálise, não se trata de conhecer ou demonstrar o Real com os conceitos, mas mostrá-lo.

Perante as formulações deste saber e suas possíveis direções, Lacan (2008, p. 18), logo no início de um de seus seminários, Os quatros conceitos fundamentais da psicanálise, traz valiosos questionamentos: "A que dizem respeito as fórmulas da psicanálise? Existem conceitos analíticos uma vez por todas formulados? . . . Serão conceitos em formação? Serão conceitos em evolução, em movimento, a serem revistos?". é sobre os quatro conceitos considerados por Lacan como fundamentais que este trabalho trata, a saber: Inconsciente, Repetição, Transferência e Pulsão. Mais especificadamente, objetiva-se apontar por que considerar estes quatro conceitos como fundamentais, como pilares – dentre inúmeros outros – que irão sustentar e solidificar uma prática, da qual eles vieram e para a qual eles foram forjados, ao longo da obra de Freud e do ensino de Lacan, na aposta de que a visitação e discussão destes conceitos permitam ao leitor ser introduzido sutilmente no universo dos conceitos e acompanhar sua leitura feita por Lacan.

 

Por que fundamentais? O retorno a Freud, de Lacan

Jacques Lacan (1901-1981), psiquiatra e psicanalista francês, é conhecido por operar o famoso "retorno a Freud". é muito comum ouvir grandes psicanalistas dizendo "se você é lacaniano, antes de tudo você é freudiano". De fato, o próprio Lacan se intitulou como freudiano. Mas do que se trata ser freudiano pela psicanálise lacaniana? Coimbra (2007) argumenta que não se trata de os psicanalistas se tornarem uma encarnação de Lacan, do mesmo modo que este não é a reencarnação de Freud. No entanto, a autora adverte que a construção feita por Lacan, pelos caminhos deixados por Freud, muda o rumo da teoria e da prática psicanalítica sem abandonar o campo freudiano (Coimbra, 2007), diferentemente – não sem causar polêmicas – de outros autores neopsicanalistas. Nas palavras de Lacan,

o que eu tento fazer é restituir aos termos freudianos sua função. Do que se trata nestes termos é de uma perturbação dos próprios princípios de questionamento. Dito de outra forma, o que não quer dizer: dizer a mesma coisa – dito de outra forma, o que aí está penhorado é a exigência mínima de passagem a este questionamento renovado. A exigência mínima é esta: Trata-se de fazer psicanalistas. (Lacan citado por Coimbra, 2007, p. 32)

Nessa perspectiva, é comum encontrarmos na literatura psicanalítica referências do tipo "Obra de Freud" e "Ensino de Lacan". Será por acaso essa distinção? O que daí se pode extrair é que Freud foi quem inaugurou a psicanálise e Lacan, ao operar o famoso "retorno a Freud", propôs ler Freud restaurando a lâmina cortante da sua verdade, pois, para o psicanalista francês, a psicanálise estaria sofrendo desvios e concessões com relação ao que fora legado pela experiência inaugural de Freud. é notório que Lacan designou, em seus primeiros Seminários, intensas críticas ao que nomeou como "psicanálise pós-freudiana", especialmente à Psicologia do Ego – corrente que surgiu em torno de 1920, nos Estados Unidos, e que desenvolveu uma concepção particular da psicanálise. Essa empreitada, nomeada de "retorno a Freud", mostrar-se-ia como uma proposta de restituir/restaurar a verdade que a obra freudiana transmite. Dessa forma, ao distinguirmos "Obra de Freud" e "Ensino de Lacan", de certo modo estamos inferindo e concordando, também, que uma das marcas fundamentais de Lacan seria ler e transmitir a obra de Freud, de extrair a verdade com a qual compactuamos. Lacan, antes de tudo, um freudiano. Será?

Para Lacan (2009), a psicanálise opera evidentemente por uma linha retroativa, em que o passado, historiado na narrativa do paciente no presente, pode ser restituído e, mais, reconstruído via suas elaborações em análise. Afinal, somente as experiências atuais podem dar sentido às do passado. Ademais, se o passado é falado, ele não é tão passado assim, pois é por seus vestígios que ele se faz presente na realidade psíquica, operando qualitativamente sobre seu estado "atual". Ora, é disso que se trata quando Lacan opera o "retorno a Freud"! O psicanalista francês parte de um hiato deixado pelo psicanalista vienense, numa tentativa de reposicioná-lo por meio de seu acesso a outros campos, sobretudo do ponto de vista da linguagem, advertindo do poder das palavras. Ele retorna a Freud em uma posição concomitante de leitor e de autor da psicanálise, na tentativa de limpar os exageros e os desvios imaginários, chegando ao ponto de refinar os quatro conceitos freudianos e nomeá-los como conceitos fundamentais da psicanálise. Nesses termos, entendemos que ao longo de seus 30 anos de seminários Lacan opera muito mais com um bisturi do que com um enxerto.

Em Função e campo da fala e da linguagem, Lacan (1953/1998) observa que a técnica psicanalítica não pode ser corretamente aplicada quando se desconhecem os conceitos que a fundamentam. Ele se refere sobretudo aos conceitos freudianos. Entretanto, o autor vai além ao propor uma leitura destes conceitos no campo da linguagem, afirmando: "Nossa tarefa será demonstrar que esses conceitos só adquirem pleno sentido ao se orientarem num campo de linguagem, ao se ordenarem na função da fala" (Lacan, 1953/1998, p. 247).

Para Nunes (2015, p. 423), a proposta enunciada por Lacan era clara: "renovar na psicanálise seu fundamento linguístico". é notório que Lacan privilegiava, ao longo dos Seminários e dos Escritos, textos freudianos, como A interpretação dos sonhos, Sobre a psicopatologia da vida cotidiana e Os chistes e sua relação com inconsciente, pois permitem estudar como Freud apresenta o inconsciente em sua relação com a linguagem. Embora Lacan também tenha formulado conceitos como Real, Simbólico e Imaginário, objeto a, gozo, entre outros, ele considera como os quatro conceitos fundamentais da teoria psicanalítica os já propostos e demarcados por Freud: Inconsciente, Repetição, Transferência e Pulsão. O que ele vem a fazer, por conseguinte, não é repetir ou sintetizar o que já foi dito, mas avançar com a teoria sem transgredir a psicanálise freudiana – novamente, não sem causar polêmicas –, empreendendo uma leitura crítica, no sentido de diferenciá-la e realçá-la, acrescentando, neste realce, um novo sentido, uma nova formalização. Se recorrermos ao aporte linguístico apropriado por Lacan (1960/1998, p. 833), que inverte e altera a formalização de Ferdinand de Saussure, acrescentando, aí, um sujeito inconsciente, encontramos a máxima sobre a teoria dos significantes: "Um significante é aquilo que representa um sujeito para outro significante". Lacan, ao operar seu retorno a Freud, põe sua teoria dos significantes em prática, sendo inserido e representado nessa cadeia de significantes que compõe o arcabouço da psicanálise.

Nessa perspectiva, compreendemos como fundamental o seu retorno a Freud, principalmente no que diz respeito à crítica e aos estudos dos quatro conceitos por ele considerados fundamentais, a partir dos quais acreditamos ser possível entender como opera o saber da psicanálise e como se dá o seu modus operandi.

 

Inconsciente

Julgamos interessante destacar três definições de Lacan sobre o que é o inconsciente: (1) "O inconsciente é o capítulo de minha história que é marcado por um branco ou ocupado por uma mentira: é o capítulo censurado" (Lacan, 1953/1998, p. 260); (2) "O inconsciente, a partir de Freud, é uma cadeia de significantes que em algum lugar se repete e insiste" (Lacan, 1960/1998, p. 813); e (3) "O inconsciente é a soma dos efeitos da fala, sobre um sujeito, nesse nível que o sujeito se constitui pelos efeitos do significante" (Lacan, 2008, p. 122). A partir destas três definições é possível afirmar que o inconsciente é sobretudo um lugar. O que ambos os autores, Freud e Lacan, têm em comum é a perspectiva de um inconsciente não como um lugar físico, mas sim como um lugar de um sistema dinâmico. Como todo sistema, ele possui formações, estruturas e conteúdos, embora cada autor tenha um entendimento particular de como funcionam. Para Freud é, grosseiramente, o lugar onde "estão" os representantes ideativos recalcados, um lugar psíquico. Para Lacan, é um lugar de uma linguagem, um lugar que advém da cadeia de significantes: o que ele chama de grande Outro.

O grande Outro é em suma um lugar de alteridade, simbólico, é o lugar do inconsciente, sendo formado por todos os "outros" que ocuparam um lugar importante na infância, que marcaram o sujeito com suas palavras e seus significantes (Quinet, 2012). Com a noção de Outro como um ponto de origem, Lacan aponta que a linguagem é determinante na constituição do sujeito, pois o sujeito é falado antes mesmo de seu nascimento, ocupando um lugar simbólico antes mesmo de nascer. Dito de outro modo, pré-existe algum sujeito, enquanto elemento de uma linguagem, e advém um sujeito ao ser cortado por ela. é disso que se trata quando ele diz que um significante é aquilo que representa um sujeito para outro significante, o que, em termos freudianos, significaria que um aparelho psíquico é constituído na relação com outro aparelho psíquico, uma relação de alteridade. No entanto, diferentemente de Freud, que pensava o inconsciente como "intrapsíquico", isto é, como parte tópica do aparelho psíquico, Lacan pensava o inconsciente como um discurso, não estando ele dentro ou fora de alguém, e sim como efeito do significante.

No que se refere ao inconsciente freudiano, é importante destacar como ele opera: pela condensação e pelo deslocamento – conforme apresentado em A interpretação dos sonhos. Nesse texto, o inconsciente é apresentado como uma instância, com certa ressonância jurídica quando se refere à censura, ou seja, uma instância que regula os pensamentos e desejos recalcados que buscam uma via de acesso à consciência (Garcia-Roza, 1995). Não é à toa que Freud discute estes elementos justamente na "ciência dos sonhos", pois é esta formação, o sonho, que permite "driblar" a ação da censura por meio dos mecanismos da condensação e do deslocamento. O primeiro, como o próprio nome diz, produz uma síntese do conteúdo latente do sonho, "sacrificando" e omitindo outros elementos ao se sobreporem. O segundo, por sua vez, age de duas formas: substituindo um elemento do conteúdo latente por outro, mantendo certa relação de contiguidade, e modificando um elemento importante por algo aparentemente indiferente e sem importância (Freud, 1900/1996). Lacan (1957/1998, p. 515) entende que este último mecanismo, o deslocamento, é o "meio mais adequado do inconsciente para despistar a censura".

Neste ponto, torna-se pertinente destacar como o inconsciente se expressa do ponto de vista freudiano, para, em seguida, retornarmos às questões referentes à condensação e ao deslocamento a partir da leitura feita por Lacan.

O Inconsciente, por mais que não esteja localizado em espaço físico – a neurociência nunca o achou e nem deverá achar, pois, de fato, não é disso que se trata –, aparece e se faz presente ou, como o próprio Freud entende, insiste e não resiste. é em Sobre a psicopatologia da vida cotidiana que Freud (1901/2006) se aprofunda nos mecanismos pelos quais essa instância se manifesta, a saber: o ato falho, os chistes, o próprio sintoma, os lapsos, os devaneios e os sonhos. Estes mecanismos são privilegiados na escuta psicanalítica, na qual o analista, ao se valer da atenção flutuante, irá, sob a autorização da transferência, tomá-los como fenômenos inconscientes. Ao apostar que há um saber que aí se pode perseguir, fazendo disso uma questão para o paciente, o analista permite que o sujeito retome um sentido ao discursar sobre sua história. Cabe lembrar que a pontuação analítica, como adverte Lacan (1953/1998, p. 253), é em suma "uma pontuação oportuna que dá sentido ao discurso do sujeito". Entre o significante e significado há a interpretação.

Sobre a função da análise, é necessária aqui uma ressalva: não se trata de simplesmente apontar para o analisando os aspectos latentes ou, em outras palavras, tornar consciente o inconsciente, pois esta premissa seria uma manifestação de uma ambição terapêutica por parte do analista (Freud, 1912/2006b). Nesse aspecto, a interpretação é desinteressada, posto que ela é pertencente ao próprio analisando que, afinal, fez todo o percurso associativo até ali, mas que apelou para a boca do analista; caso contrário, trata-se do que Freud nomeou como psicanálise selvagem. Baratto (2009, p. 85) afirma que ao proceder desse modo selvagem "o analista não estará fazendo nada mais do que inculcar no paciente as suas próprias concepções e desejos, fazendo um uso abusivo do laço transferencial ao colocá-lo a serviço da sugestão". Nas palavras de Freud,

não é difícil para um analista treinado ler claramente os desejos secretos do paciente nas entrelinhas de suas queixas e da história de sua doença; mas quanta vaidade e falta de reflexão deve possuir aquele que, com o mais breve conhecimento, pode informar a um estranho inteiramente ignorante de todos os princípios de análise, que ele se acha ligado à mãe por laços incestuosos, que abriga desejos de morte da esposa, a quem parece amar, que oculta uma intenção de trair seu superior, e assim por diante! (Freud, 1913/2006, p.155)

Do que se trata então? A resposta é muito bem elaborada por Baratto (2009) ao analisar os conceitos de representação de coisa (Sachvorstellung) e representação de palavra (Wortvorstellung) em Freud. A autora adverte que o psicanalista vienense, ao introduzir a distinção entre estes dois conceitos, esclarecendo que no inconsciente subsistem as representações de coisa sem as representações de palavra correspondentes, já marcaria uma importante função da linguagem e sua estrutura como o caminho da análise (Baratto, 2009), que Lacan, como supracitado, vem percorrer. Nas palavras de Freud,

agora já sabemos qual a diferença entre uma representação consciente e uma inconsciente. A representação consciente abrange a representação da coisa mais a representação da palavra que pertence a ela, ao passo que a representação inconsciente é a representação da coisa apenas. (Freud, 1915/2006a, p. 206)

O caminho seria, portanto, abrir espaço para as representações inconscientes, através da regra fundamental, a associação livre, fazendo emergir as palavras vazias e inscrevê-las em uma representação da palavra, em um significado. Como sujeitos inscritos numa linguagem, é por meio dela que expressamos nossas dores, desamparos e angústias, e elas surgem a priori como não-sabido, não representado, como um excesso do Real, e o pa-la-vre-ar permitiria bem-dizer1 o sintoma, formulado por Lacan (2008, p. 19) como "o mutismo do sujeito suposto falante".

Nesses termos, entende-se o significado da perspectiva da posterioridade – denominada por Freud de Nachträglichkeit – da psicanálise: somente as experiências posteriores podem fazer com que as passadas ganhem sentido, ganhem significado (Coelho Junior, 2001). Além disso, é da forma como as experiências e representações se ligam, condensam e se deslocam que a psicanálise se serve. A escuta clínica abre espaço para que apareçam significantes com novos significados – apontados pelo corte, pela pontuação e pela interpretação, por exemplo –, efetuando o movimento dos sentidos inconscientes que sustentam o sintoma (Ramos, 2003). Com Lacan, o fazer analítico passa a se sustentar na aposta, por meio do sintoma, que há uma relação entre sentido e Real. é nesses termos que se entende que as representações e os sentidos variam, mas o sintoma, enquanto Real, permanece. Contudo, o fato é que operar sobre os sentidos inconscientes que sustentam o sintoma leva algum tempo, e somente a transferência pode autorizar as interpretações do analista sobre a linguagem do paciente.

Como o analista lacaniano opera a linguagem do paciente? A resposta, como dito anteriormente, vem da Die traumdeutung de Freud, por meio dos conceitos de condensação e deslocamento. No vocabulário lacaniano, o primeiro está para a metáfora como o segundo está para a metonímia. Para Costa (1989, p. 153), "através da assimilação do deslocamento e condensações freudianas às figuras retóricas da metáfora e metonímia, Lacan criou2 o célebre aforismo do 'inconsciente estruturado como uma linguagem'. O salto estava dado; a virada linguística na psicanálise tinha acontecido".

Para clarearmos melhor, em termos psicanalíticos, a metáfora consistiria em designar uma coisa por meio de outra, ou seja, substituir uma palavra por outra, numa relação de similaridade, a qual é manifestada unicamente pela posição: uma substituição de significante. A metonímia, como a etimologia do termo aponta, significa mudança de nome. Trata-se da transferência de uma denominação efetuada por um deslizamento de palavras: quando uma parte é tomada pelo todo em uma conexão de significantes ou por contiguidade, havendo, entretanto, de fato uma substituição.

Aqui, é importante realizar algumas ressalvas: a metáfora também constitui uma mudança de nome. O próprio Lacan (1999, p. 78), em uma passagem de Sobre as formações do inconsciente, adverte sobre a dificuldade de distinguir a metáfora da metonímia:

Já faz algum tempo que venho sabendo, periodicamente, que um certo número de vocês, nos meandros de sua vida cotidiana, de repente é surpreendido pelo encontro com alguma coisa que já não sabem de jeito nenhum como classificar, se na metáfora ou na metonímia.

Acompanhando o ensino de Lacan, é possível entender que o desejo é o trabalho metonímico do significante, que, no ato da fala, estaria em um constante deslocamento das palavras que representam parcialmente o todo, o desejo – sempre há algo de resto, nas entrelinhas, a mais ou a menos. Quer dizer, o desejo, no campo da palavra, jamais pode ser dito. Se o inconsciente é estruturado como uma linguagem, o desejo se faz presente por meio de seus significantes. A palavra sempre tem mais a dizer, ela é fundamentalmente sintomática pois sempre há um hiato entre o que se diz e o que se quer (o que se quer naquilo que se pede?), e a significação se produz, em última instância, no Outro. Essa característica marca a autonomia e supremacia do significante em relação ao significado, conforme a subversão da linguística de Saussure operada por Lacan (1957/1998). Falar de metáfora e metonímia em psicanálise é falar das leis da linguagem e, portanto, das leis do inconsciente: material de trabalho para o psicanalista. Contudo, o fato é que nem tudo é possível ser posto em palavras, pelo menos não no primeiro momento.

 

Repetição

A repetição é considerada por Lacan (2008) como um dos Quatro conceitos fundamentais da psicanálise, mostrando-se crucial na clínica psicanalítica. A repetição pode ser entendida como um ato que abre caminho à atuação (acting out), e que, de modo geral, se apresenta na análise como uma força que atualiza componentes psíquicos, quando o analisando repete ou atua – daí o termo acting out – o que "não pode" ser recordado.

Em um dos artigos sobre a técnica da psicanálise, Freud (1914/2006a) discute o movimento do paciente em uma análise: Recordar, repetir e elaborar. Freud observa, no cotidiano de sua prática, que muitas vezes o mecanismo de recordar é atravessado pelo elemento da repetição, de forma que o paciente expressa o elemento reprimido por meio da atuação. é desenvolvida, nesse texto, uma primeira formulação a respeito da repetição, estando ela relacionada aos fenômenos da transferência e resistência. Essa primeira formulação pode ser resumida assim: (1) a transferência é entendida como um fragmento de uma repetição; (2) a repetição seria a transferência de um passado esquecido; (3) esse passado esquecido aparece como ato (repetição) devido à magnitude da resistência. Desse modo, a tarefa da psicanálise seria a de atravessar o elemento da repetição, portanto, a resistência, e ir à elaboração.

Na Conferência XXIII, em Os caminhos da formação dos sintomas, Freud (1917/2006, p. 361) afirma que os sintomas neuróticos são resultado de um conflito, "e que este [o sintoma] surge em virtude de um novo método de satisfazer a libido". Esses textos abrem caminho para Lacan introduzir e discutir o conceito de gozo, ao dizer que este é uma satisfação inconsciente que exprime uma relação na transição entre prazer e desprazer, efeito do prazer e dor. Em síntese, a repetição é o mecanismo pelo qual Lacan articula a noção de gozo ao prazer de outra ordem, de forma que até o próprio conceito de satisfação possa ser colocado em xeque, quer dizer, uma "satisfação desprazerosa"?

Para pensarmos nos efeitos dessa pergunta, analisemos o texto Além do princípio do prazer, em que Freud (1920/2006) retoma a questão da repetição. Após tomar para análise as brincadeiras das crianças, as neuroses traumáticas de guerra, entre outros fenômenos, Freud passa a entender que o aparelho psíquico é regido por forças de vida (pulsão de vida) e forças de morte (pulsão de morte). Nesse raciocínio, o autor acrescenta que ambas as pulsões exigem satisfação, o que faz com que o sujeito fique entre o engajamento e a sabotagem, entre o prazer e o desprazer. Nasio (2014) sustenta essa leitura, na medida que entende que o mesmo inconsciente que impele a repetir com serenidade comportamentos bem-sucedidos leva também a repetir, compulsivamente, atitudes que conduzem ao fracasso. Logo, entende-se que o reposicionamento do conceito de repetição, antes associado apenas à resistência em recordar (Freud, 1914/2006a), conduz ao entendimento de que a repetição é, sobretudo, um mecanismo que remonta à pulsão de morte. Não se trata mais de uma repetição, mas de uma (com)pulsão à repetição (Freud, 1920/2006).

Nesse texto, o brincar das crianças aparece como uma via privilegiada para acesso ao entendimento dessa questão. é sabido que Freud, ao analisar a brincadeira do seu neto (o jogo do Fort-Da), conclui que as crianças repetem experiências desagradáveis, subvertendo-as de um modo muito mais ativo do que poderiam experimentar passivamente, isto é, tornam-se senhoras da experiência (Freud, 1920/2006). Por que será, então, que a repetição é relacionada com a noção de gozo por Lacan? Ora, aquilo que foi perdido enquanto prazer é recuperado e sustentado pelo gozo, ou também pelo caminho inverso, aquilo que foi experimentado como desprazer em uma forma passiva pode ser experimentado como prazer em uma forma ativa, por meio do acting out, que, em outras palavras, para Freud, seria um rearranjo da satisfação pulsional.

No primeiro caso, um exemplo simples recorre aos chistes: a piada que ouvimos de um outro e com a qual obtemos prazer através do riso; recontá-la seria um modo de tentar retornar a este prazer uma vez conhecido, porém perdido, e ao provocarmos o olhar do outro e o fazermos rir nos identificamos com ele e recuperamos uma parte deste prazer perdido. Já no que se refere à segunda possibilidade, temos, na clínica, o exemplo do paciente que repete e atua uma satisfação antes desprazerosa, subvertendo-a de um modo passivo para um modo ativo. é o caso do paciente que se queixa que sua mãe não lhe dá ouvidos, é devoradora, nunca considera a sua opinião e o interrompe a todas as horas. Diante da transferência com o analista, ele faz de forma idêntica: não ouve e ironiza suas interpretações, interrompe o analista e o devora. Cabe ao analista, portanto, manejar o acting out pela interpretação, para que se possa atualizar os componentes psíquicos, dar-se conta e elaborá-los. Curiosamente, é pela repetição que surge o novo.

Quanto ao manejo do analista perante o sintoma e o acting out, no seminário sobre A angústia Lacan (2005, p. 140) adverte:

O sintoma não está, como o acting-out, pedindo a interpretação . . . o que descobrimos no sintoma, em sua essência, não é um apelo ao Outro, não é o que mostra o Outro; o sintoma em sua natureza é gozo . . . gozo encoberto sem dúvida . . . O sintoma não precisa de vocês como o acting-out, ele se basta. é da ordem do que lhes ensinei a distinguir do desejo, como sendo o gozo, quer dizer, algo que vai em direção à Coisa, tendo passado a barreira do Bem . . . quer dizer, do princípio do prazer, e é por isto que este gozo pode se traduzir por um desprazer.

Lacan (1966/2001), em sua palestra sobre O lugar da psicanálise na medicina, afirma, entre outras palavras, que o corpo é feito de gozo e o que ele quer é gozar. Com esse entendimento, Lacan sublinha a força da pulsão de morte na tentativa de aliviar o desconforto da concepção do médico preocupado com o bem-estar do paciente e implicado em conceber um corpo harmonioso e concebido para vida. Como efeito, Lacan, ao afirmar que há gozo no corpo, aponta que há algo no corpo que quer morrer: um caos pulsional. Dessa forma, é possível entender o caminho lacaniano para um novo entendimento sobre o sintoma.

Importante lembrar que no caso Dora, por exemplo, Freud já abrira espaço sobre a questão simbólica do sintoma (como sendo uma metáfora a ser decifrada), em que ele corresponderia simultaneamente a diversos significados e que ele "também pode expressar diversos significados sucessivamente" (Freud, 1905/2006a, p. 58). Entretanto, a partir da discussão sobre os conceitos de gozo e sintoma, Lacan reposiciona sua teoria, dizendo que neste último há algo que escapa ao Simbólico; há um resto, e a este resto Lacan dará o nome de gozo, passando a entender o sintoma não apenas como uma metáfora a ser decifrada mas como uma forma de o sujeito reorganizar o seu gozo (Dias, 2006). Em outras palavras, o sintoma seria o efeito do simbólico sobre o Real, seria "o trabalho de todo sujeito para dar conta do Real" (Maia, Medeiros & Fontes, 2012 p. 57), questão que, de certa forma, já era abordada por Freud, também durante o caso Dora, em suas primeiras formulações a respeito do sintoma:

A princípio, o sintoma é para a vida psíquica um hóspede indesejável . . . . No início, não tem nenhum emprego útil na economia doméstica psíquica, porém com muita frequência encontra serventia secundariamente. Uma ou outra corrente psíquica acha cômodo servir-se do sintoma, que assim adquire uma função secundária e fica como que ancorado na vida anímica. (Freud, 1905/2006a, p. 50, grifos nossos)

Com o intuito de contextualizar as discussões sobre o conceito de repetição, tomemos mais um exemplo: trata-se de um analista que repete as questões de seu analisando – que também repete na análise as suas questões com seu pai – diante da transferência com sua supervisora (Aisenstein, 2016). Em outras palavras, tratar-se-ia de um entrelaçamento das questões entre o analista e analisando, ambos sustentadas pela via do gozo em um acting out.

Aisenstein (2016) conta-nos de uma supervisão de um analista em formação que relata que seu analisando costumava "queixar-se, durante várias sessões, de ter-se apaixonado por um pequeno tapete turco de orações, peça rara" (p. 49). O analista relata, na supervisão, que seu analisando disse que infelizmente não pode adquiri-lo devido às suas condições financeiras, dizendo a ele: "Não sou como você, que tem Pollock e Malevitch na parede" (p. 49). Contudo, o mesmo analista "se explica" à sua supervisora: "No meu consultório, são pôsteres emoldurados, não é como aqui no seu, onde estamos em meio a telas de mestres" (p. 49).

O exemplo nos serve para mostrar como todos estão suscetíveis à repetição, e quando há um entrelaçamento de questões entre o analista e o analisando a supervisão se apresenta como um dispositivo fundamental para pô-las em cena e superá-las. Lacan (2008) já relatava que o inconsciente não pode ser separado da presença do analista. Miller (1987/1994, p. 60) também caminha neste sentido, formulando que "o analista, na medida que opera com a cura psicanalítica, não é exterior ao inconsciente do paciente". é nesse sentido que entendemos que o psicanalista faz parte do conceito de inconsciente, na medida em que constitui seu endereçamento. Adentramos, portanto, nas implicações do conceito de transferência.

 

Transferência

O conceito de transferência é um dos pilares do campo psicanalítico. De forma simples, mas não simplória, Lacan apresenta algumas reflexões sobre esse conceito-fenômeno. O paciente chega na clínica sofrendo de algo que ainda é não-sabido, e sua demanda de tratamento parte do princípio que o outro, o analista, sabe. Em outras palavras, o paciente supõe que o analista sabe sobre seu sofrimento. Esse é o Sujeito Suposto Saber, noção lacaniana sobre a transferência. Para o autor, o Sujeito Suposto Saber não é a pessoa do analista, mas é antes de tudo um lugar de um efeito do discurso, um lugar inconsciente que o analista é convocado a ocupar, o lugar de um Outro. Quer dizer, ao procurar uma análise, supõe-se que o saber há em algum lugar. Esta possibilidade de um saber antecipado permite ao analista ser passível de ser colocado neste lugar e dele direcionar o tratamento. Como no exemplo do paciente que atua para com o analista a hostilidade de sua mãe, percebe-se que o que está em jogo é o lugar que este vem a ocupar para o paciente, cabendo ao analista manejar este lugar, sustentando-o ou não. Este é o manejo da transferência, chave do dispositivo analítico.

No Seminário, livro 11, sobre os conceitos fundamentais, Lacan (2008) afirma que cada vez que para o sujeito essa função do Sujeito Suposto Saber é encarnada por quem quer que seja, analista ou não, a transferência já está estabelecida. Daí, portanto, o entendimento de que a transferência, como lugar do saber, marca o início de uma análise. No entanto, para que se faça da transferência motor da análise é preciso fazer algo com ela, manejá-la: tarefa do psicanalista.

Em uma leitura freudiana, Blinder, Knobel e Siquier (2011, p. 67) afirmam que a transferência é um processo que corresponde aos desejos inconscientes que se atualizam e se apresentam sobre certos objetos (e/ou pessoas, tomadas como objetos) "com os quais se repetem as matrizes infantis". Nesse entendimento, transferência seria ela mesma uma repetição – no presente, com o analista, das experiências sexuais infantis vividas no passado. Para Freud (1914/2006b), a repetição das matrizes infantis produziria um efeito de deslocamento de afeto de uma representação para outra, não somente para a figura do analista mas para todas as relações em geral. Em outras palavras, se as matrizes infantis são elementos fantasmáticos, é pela fantasia que o sujeito pode montar um cenário que é, afinal, repetido, e nele incluir o psicanalista em uma das dinâmicas psíquicas já formadas.

Segundo Nasio (1999, p. 40), é preciso compreender a noção de transferência como "uma atividade pulsional, como um traçado pulsional que sulca uma terra deserta, uma terra que se tornará progressivamente um lugar, um vínculo: o vínculo da análise . . . a transferência é, afinal, a história fragmentária de uma pulsão particular". Na transferência, advertem Blinder et al. (2011, p. 67), "se manifesta o mais íntimo do sujeito: suas pulsões, sua infância, seu narcisismo e seu édipo". Portanto, depreende-se que o que se faz numa análise é, sobretudo, uma análise na e da transferência: como ela inclui e envolve o analista. Uma análise só é possível com a presença do analista e dependerá de qual lugar ele irá ocupar e, portanto, o que será demandado dele.

Em A dinâmica da transferência, Freud (1912/2006a) afirma que a transferência é ocasionada principalmente no tratamento analítico. No entanto, ele também mostra que a transferência pode aparecer na análise como uma forma de resistência (Freud, 1912/2006a). Nesse sentido, entendemos que, de fato, a transferência deve aparecer como forma de resistência, pois é disso que se trata uma análise: vencer as resistências. Para vencê-las, é preciso conhecê-las. Se a transferência funcionasse só como um facilitador em que o paciente pudesse dizer "na sua frente, não sinto vergonha: posso dizer-lhe qualquer coisa" e "confessasse" seus desejos e angústias, não ficaria claro o porquê de ser difícil dizê-las, e não haveria análise.

Como saída, Freud (1912/2006a, p. 116) adverte que "temos de nos resolver a distinguir uma transferência 'positiva' de uma 'negativa'". O autor nos mostra outra maneira de entendermos a transferência, através do conceito de identificação e dos caminhos pelos quais uma pessoa pode amar pela via de seu narcisismo (Freud, 1914/2006b). Diferentemente de Freud, que considerava a transferência como uma transferência de amor, Lacan (2008, p. 123) sustenta que, na verdade, seria "uma espécie de falso amor, de sobra de amor".

Acompanhando o ensino de Lacan, vemos que o amor da transferência tem como fundamento a própria transferência. Contudo, ele considera vago representar a transferência como um afeto, qualificando-a como positiva ou negativa, além de ser possível tender a correlação de "positiva está para transferência de amor", "negativa está para transferência de ódio". Nas palavras dele, "diremos, com mais justeza, que a transferência positiva é quando aquele de quem se trata, o analista no caso, pois bem, a gente o tem em boa consideração – negativo, está-se de olho nele" (Lacan, 2008, p. 124).

Nesse tema, Miller (1987/1994, p. 62) revela um truque freudiano para os psicanalistas quando as associações do paciente se interrompem, revelando que o analista pode dizer "você está pensando em mim", em que, nas palavras supracitadas de Lacan, o paciente "está de olho nele", no analista. Portanto, se trata da ambiguidade da transferência, apontada já por Freud como forma de resistência, e de Lacan (2008) assimilar a transferência a um tempo de fechamento do inconsciente, não somente a um tempo de abertura.

Lacan (2008, p. 258), ao falar da transferência e da pulsão, diz: "Se a transferência é o que da pulsão afasta a demanda, o desejo do analista é o que a reconduz a ela". O que Lacan diz com esta afirmativa é que a transferência tende a se manifestar como uma pulsão, consequentemente expressar-se-ia como atos, repetição. Todavia, o desejo do analista – que de maneira nenhuma se trata da pessoa do analista, e sim da função do analista, como suporte para o desejo, o fazer desejar – é o que irá conduzir a transferência a uma demanda passível de ser posta em palavras. é o desejo do analista que permite efetuar um giro no discurso do sujeito, remetendo-o ao trabalho psicanalítico, que é, afinal, o amor ao saber: "Faz com que os sintomas se dirijam a um interlocutor privilegiado", afirma Nasio (1999, p. 48); quer dizer, o grande Outro.

é possível notar que o retorno que Lacan faz ao conceito de transferência nos conduz a pensá-lo como uma via de acesso ao lugar inconsciente, de um discurso de uma linguagem. Como Miller (1987/1994, p. 60) nos lembra, "o engatamento da transferência se dá muito mais com um significante do que com uma pessoa", posto que se dá com o campo do Outro. A definição de Outro dada por Lacan (2008, p. 200) nos auxilia a entender este campo como "o lugar em que se situa a cadeia do significante que comanda tudo que vai poder se presentificar do sujeito", um lugar de marcação que, na perspectiva freudiana, seria o lugar da "economia psíquica" que o analista vem ocupar (Freud, 1914/2006b).

A transferência tem seu valor porque permite ver o funcionamento de um mecanismo inconsciente na própria atualidade da sessão. Por isso Freud pode aconselhar, a todo terapeuta que esteja começando, que interprete somente quando a transferência já teve início, pois a emergência da transferência assinala que os processos inconscientes foram ativados. (Miller, 1987/1994, p. 62)

Mais uma vez, é nesses termos que é possível entender que o estabelecimento da transferência marca o início da análise. Apesar de a transferência constituir o dispositivo analítico, ela não é para ser interpretada. Ela implica no analisando "esperar" a interpretação do analista. Isso significa que o analisando já sabe, inconscientemente, que o analista irá interpretar. Logo, ele só fala porque supõe que isso o levará para algum lugar ainda não-sabido. Acompanhando o ensino de Lacan (2008), encontramos a formulação de que o inconsciente é o discurso do Outro. O discurso do Outro, a saber, do inconsciente, está do lado de fora, pois "é ele que, pela boca do analista, apela à reabertura do postigo" (p. 130). Daí remetemos à noção apresentada no início deste texto, de que, para Lacan, o inconsciente não pertence a alguém. Se o inconsciente é estruturado como uma linguagem, a ela ele pertence, por ela ele é (e)feito. é disso que se trata quando Lacan (1964/1998, p. 868) afirma que é "o desejo do analista que, em última instância, opera na psicanálise". O desejo do analista não vem dele mesmo, "mas é a interpretação, por parte do analisando, do que disse o analista; é o que o analisando interpreta daquilo que ouviu do analista" (Miller, 1997, p. 450). é desejo do analista que faz surgir a dimensão do inconsciente. Logo, é o analista que completa o inconsciente.

 

Pulsão

No primeiro capítulo do Seminário, livro 11, Lacan (2008, p. 27) avisa que deixará o conceito de pulsão por último, por ser o mais difícil de se compreender, "de acesso ainda tão difícil". Pulsão, do alemão Trieb, como já é sabido, foi traduzido erroneamente – beirando um ato falho – por Instinto. No entanto, como o próprio Lacan nos mostra, o ato falho na verdade é um ato bem-sucedido. Quer dizer, a tradução errada permitiu uma crítica ao conceito, e ele justamente ganha melhor contorno a partir da explicação do porquê não é o mesmo que o instinto. A diferença entre os dois estaria justamente no primeiro capítulo dos Três ensaios, em que Freud (1905/2006b) apresenta a tese de que a sexualidade humana seria essencialmente polimorfa, aberrante. Freud já apontava o caráter polimorfo da sexualidade, nos mostrando que ela se manifesta e se inscreve por inúmeras formas e vias, não somente pela genitalidade e não somente pela junção do macho com a fêmea, não sendo regida, portanto, pela meta da reprodução – instinto –, mas sim pelo princípio do prazer – pulsão (Freud, 1905/2006b).

Pela via da sexualidade humana, polimorfa, vemos que, diferentemente da sexualidade dos animais, a nossa não tem objeto fixo nem pré-determinado. Ela se satisfaz (parcialmente) pelo objeto da pulsão, como bem dito, por inúmeras vias.

O objeto é o que há de mais variável numa pulsão e, originalmente, não está ligado a ela, só lhe sendo destinada por ser peculiarmente adequado a tornar possível a satisfação. O objeto não é necessariamente algo estranho: poderá igualmente ser uma parte do próprio corpo do indivíduo. Pode ser modificado quantas vezes for necessário no decorrer das vicissitudes que a pulsão sofre durante sua existência, sendo que esse deslocamento da pulsão desempenha papéis altamente importantes. (Freud, 1915/2006b, p. 128, grifos nossos)

No intuito de melhor entender a diferença entre as duas noções, pulsão e instinto, tomemos como exemplo a necessidade no animal e o desejo no humano: a necessidade no animal é objeto natural e da ordem do instinto, se falta a ele, ele o encontra, satisfazendo por inteiro sua necessidade. Por exemplo, se o animal tem sede, tem-se a água. Já para o desejo no homem, o objeto é não-natural e da ordem da pulsão – logo, da ordem do vazio –, além de nunca ser encontrado em sua plenitude, apenas parcialmente, nunca fornecendo a satisfação completa das pulsões. A sede pode vir a ser de água, de refrigerante, de cerveja, de conhecimento, de vingança: uma sede sem fim. Essa infinita possibilidade de variação de objetos se deve ao fato de que todo objeto é passível de ser substituto do objeto perdido – de uma primeira e suposta satisfação completa: o objeto que move e causa o desejo, o que Lacan intitulou de objeto a. Por isso pode-se dizer que o desejo é metonímico, pois ele desliza de forma ininterrupta e incessante sob a cadeia de significante, nunca sendo capturado pela necessidade.

Avancemos, agora, nas considerações sobre o objeto da pulsão feitas por Lacan (2008, p. 180):

O objeto da pulsão deve ser situado no nível do que chamei de metaforicamente uma subjetivação acéfala, uma subjetivação sem sujeito, um osso, uma estrutura, um traçado que representa uma face da topologia. A outra face é que se faz com que um sujeito, por suas relações com o significante, seja um sujeito furado. Esses furos, bem que eles vêm de alguma parte.

O objeto a de Lacan é definido como objeto causa de desejo, que se aloja em outro objeto e vem a ser formado pelo trajeto e pelas vicissitudes do desejo, diferentemente do instinto, cujo objeto é fixo e tende a ser capturado pela necessidade. Dito de outro modo, o objeto a é um objeto faltoso, sendo passível de ser representado por qualquer objeto.

Em Freud (1915/2006b, p. 142), a pulsão é definida como "um conceito limítrofe, entre o psíquico e o somático". Já em Lacan, como defende Laznik-Penot (1997, p. 214), a pulsão não é mais um conceito limítrofe entre o biológico e o psíquico, "mas sobretudo um conceito que articula o significante e o corpo". Para Lacan (1960/1998, p. 831), a pulsão tem um importante papel no funcionamento do inconsciente, sendo considerado por ele como "tesouro dos significantes". Ele isolará a própria ação do significante sobre o organismo biológico, tendo no decorrer de sua teoria colocado a pulsão no registro do Real, pois há algo nela que não pode ser apreendido pelo simbólico; há algo na sua natureza que a impede de uma satisfação plena. Afinal, para satisfazer a pulsão é necessário gozo, e este é um resto.

Freud (1905/2006b) apresenta a tese de que a sexualidade está também presente nas crianças, uma sexualidade pulsional que pode ser observada, por exemplo, no olhar da criança, nos gestos e na boca. é aquilo que entra e sai da boca, o que ela escuta, o que ela vê, ou seja, é uma sexualidade que diz respeito às trocas que esse corpo realiza com o mundo, o que entra e o que sai. São todos esses elementos sensoriais que escorrem pelo corpo, que penetram por todos os furos e buracos. Esses "furos e buracos" abrem precedentes para Lacan discutir sobre os "pontos cegos" do corpo como passagem para um gozo absoluto. é neste ponto que Lacan articula as pulsões parciais (sexuais) às quatro modalidades de objeto a, relativas às pulsões oral, anal, escópica e invocante (os dois últimos foram acrescentados por Lacan), nas quais se repartem de forma diferente em relação à demanda e ao desejo.

Na língua portuguesa as vozes do verbo são classificadas em ativa, passiva e reflexiva. A atividade da pulsão reside na voz reflexiva do verbo – está no fazer-se, que indica o gozo do sujeito na posição de objeto do Outro. Neste caso, Lacan (1992, p. 62) articulará o conceito de fantasia, no seminário 17, O avesso da psicanálise, com a noção de mais-de-gozar do objeto a, daí sua formulação que "o sujeito recebe o seu próprio gozo sob a forma de gozo do Outro". O sujeito se encontra em relação com o objeto a nos dois polos da fantasia: ora como sujeito, tendo o outro como seu objeto; ora como objeto do Outro, que aparece então no lugar do sujeito (Quinet, 2012). Resumo: a fantasia mostra que todos somos "bipolares", questões mais específicas e que ultrapassam a proposta deste texto, mas que evidenciam a construção e significação do conceito de pulsão e objeto a em Lacan.

 

Considerações finais

Abordar os quatro conceitos fundamentais da psicanálise para Lacan, em seu retorno a Freud, mostra-se como uma via para a transmissão da psicanálise, posto que, ao discorrer sobre estes quatro conceitos, consequentemente esbarramos nas questões técnicas, do ato analítico, e nas implicações da psicanálise lacaniana sobre a psicanálise freudiana e vice-versa.

Implicado em traduzir a experiência psicanalítica, Lacan buscou novas referências, construindo um novo campo na psicanálise, à sua maneira singular. Em I Congresso, o autor afirma: "Recorramos, pois, para compreender nossa experiência, aos conceitos que nela se formaram . . . e, se tivermos que buscar apoio noutra ciência, que seja na linguística" (Lacan, 1950/2003, p. 133). Isso significa dizer que a forma em que Lacan conseguiu se aproximar da psicanálise, pelo menos da psicanálise por ele concebida, foi retornar a Freud a partir de leituras externas. Quando falamos que Lacan reposicionou a teoria, significa dizer que ele operou uma leitura da psicanálise freudiana com outros campos, sobretudo com o campo da linguagem, porém sem transgredi-la. Manteve o fundamento de que o sujeito é concebido como sujeito do inconsciente, formalizando, entretanto, seu surgimento a partir do efeito do significante, ou seja, da linguagem, sendo que é também por esta via que o sujeito pode se fazer presente – nos sonhos, atos falhos, sintomas, chistes –, advindo algo sobre si, e a que o analista estará atento para escutar e interpretar.

"Do que se trata ser lacaniano pela psicanálise freudiana?" tem a ver com transmissão, com técnica, estudo, percurso e estilo. Trata-se de colocar algo de si, o traço unário; inserir-se nesta cadeia, porém sem quebrá-la. é retornar ao ponto de partida, mesmo sabendo que este ponto também veio de um outro ponto, e assim subsequentemente, e seguir adiante, numa espécie de operação metonímica do saber. Nas interpretações de Quinet (2006, p. 180) sobre a frase paradoxal de Lacan ("Façam como eu, não me imitem"): "Façam como eu, saibam lidar com seu sintoma . . . Ponham algo de si na Psicanálise, não se identifiquem comigo . . . Tenham seu estilo próprio, pois tenho o meu". Estilo este, acrescentamos, que aparece como não-sabido, mas que, enquanto Real, pode ser demonstrado, na medida em que se busca fazer-se ouvir na impossibilidade de dizer.

 

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Endereço para correspondência
leitao.iagor@hotmail.com
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flaviomsmendes@gmail.com
Rua Desembargador Ferreira Coelho, 330/701.
29052-901 – Vitória – ES – Brasil.

Recebido em maio/2017.
Aceito em outubro/2018.

 

 

NOTAS

1. Segundo Miller (1997), Lacan propôs, em uma de suas conferências no Brasil, que no final da análise seria possível conseguir o bem-dizer. No entanto, não se trataria de dizer o desejo, pois isso não é possível. "é dizer, levando em conta que o desejo não pode ser dito diretamente, mas que é dito sempre entre as palavras . . . o bem-dizer é saber fazer-ser responsável, de maneira segundo a qual, o outro vai entender o que é dito. Esse é o desejo do analista" (p. 450).
2. Cabe lembrar que essa assimilação só fora possível a partir dos recursos à antropologia estruturalista de Lévi-Strauss, à linguística de Saussure revisitada, além dos recursos aos conceitos de metáfora e metonímia de Roman Jakobson. Lacan, portanto, não criou esse aforismo necessariamente dessa assimilação, mas de um conjunto de referências.

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