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Estilos da Clinica

versão impressa ISSN 1415-7128versão On-line ISSN 1981-1624

Estilos clin. vol.23 no.2 São Paulo maio/ago. 2018

https://doi.org/10.11606/issn.1981-1624.v23i2p406-429 

DOI: 10.11606/issn.1981-1624.v23i2p406-429

EXPERIÊNCIA INSTITUCIONAL

 

Algumas notas sobre um trabalho de escuta e experiência em Rodas de Conversa com professores no contexto da inclusão: Da "Rua de Mão única" às "Passagens"

 

Some notes on a work of listening and experience at the Conversation Rounds with teachers in the context of inclusion: From "One-way street" to "Passages"

 

Algunos apuntes acerca del trabajo de escucha y experiencia con ruedas de conversación con docentes en el contexto de la inclusión: De la "Calle de Mano única" a los "Pasajes"

 

 

Liege Bertolini FasoloI; Roselene GurskiII

IMestre em Psicanálise: Clínica e Cultura pelo Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.
IIPsicóloga e psicanalista. Professora do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.

Correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo apresenta o recorte de uma pesquisa de mestrado que teve como ponto de partida a experiência com docentes que recebem crianças consideradas da Educação Especial em duas escolas públicas estaduais de um município localizado no interior do Rio Grande do Sul. O estudo investigou o modo como as Rodas de Conversa podem contribuir para a formação continuada de educadores que recebem alunos ditos de inclusão. O objetivo principal foi interrogar se, ao sublinhar a experiência do sujeito-educador, o dispositivo de escuta/intervenção de docentes, no contexto da inclusão, seria capaz de produzir o deslocamento da queixa ao enigma. A metodologia utilizada para a condução e análise do material foi inspirada na escuta psicanalítica conjugada aos efeitos ético-metodológicos advindos do tema da experiência em Walter Benjamin. O trabalho contribui especialmente para pensar os efeitos que a construção do saber da experiência pode produzir na construção de uma micropolítica de inclusão.

Descritores: psicanálise; formação docente; inclusão; saber da experiência.


ABSTRACT

This article is an excerpt of a Master's thesis based on the experience of teachers who assist schoolchildren with special needs in two public schools located in a country town in the state of Rio Grande do Sul, Brazil. The study investigated the way the Conversation Rounds can contribute to the continuous education of teachers who have students regarded as having special needs. The main purpose of the study was questioning whether the instrument of teachers' listening/intervention would be able to shift from the complaint to the enigma when the experience of the educator is highlighted in the context of inclusive education. The methodology used to conduct and analyze the material at the Rounds was inspired in the psychoanalytic listening, combined with the ethics-methodological effects from Walter Benjamin's theme of experience. The paper especially contributes to thinking about the construction of the knowledge of experience as a way of crossing to a micropolitics of inclusion.

Index terms: psychoanalysis; teacher's continuous education; inclusion; experience.


RESUMEN

El artículo presenta parte de un estudio realizado en la maestría que se basó en la experiencia con docentes que trabajan con niños supuestos de la educación especial de dos escuelas públicas, ubicadas en el interior del Rio Grande do Sul, Brasil. Se estudió cómo las ruedas de conversación pueden contribuir a la formación continuada de educadores que reciben alumnos con necesidades de inclusión en sus clases. El objetivo principal es saber si, al destacar la experiencia del sujeto-educador, el método de escucha/intervención de los docentes, en el contexto de inclusión, sería capaz de producir un movimiento de la queja al enigma. La metodología utilizada en el manejo y análisis del material fue inspirada en la escucha psicoanalítica con los efectos éticos y metodológicos del tema de la experiencia en Walter Benjamin. Especialmente, el trabajo contribuye a pensar la construcción del saber de la experiencia como una vía para establecer una micropolítica de inclusión.

Palabras clave: psicoanálisis; formación docente; inclusión; saber de la experiencia.


 

 

O campo da pesquisa sobre o tema da escuta e da experiência junto a educadores surgiu a partir de uma vivência com a infância de crianças consideradas da Educação Especial1, e seus respectivos docentes, em escolas públicas de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul. Ao longo dos anos de 2007 a 2011, integrávamos uma equipe de psicólogos e assistentes sociais do projeto Escola, Família e Comunidade em Paz2. Naquele momento, anterior ao ingresso no mestrado, observamos que as escolas vinham encaminhando uma demanda significativa de alunos – considerados da Educação Especial – aos profissionais do campo da saúde. Demanda que era, principalmente, redirecionada aos profissionais da psicologia. Essa condição nos remeteu a um paradoxo: se os alunos eram considerados da Educação Especial, por que precisavam ser encaminhados para "fora" da escola, como alternativa de ajuda para suas encruzilhadas na aprendizagem?

Em 2014, os impasses vividos no cotidiano de nosso trabalho junto aos docentes ganhou lugar na universidade por meio de uma pesquisa-intervenção3. Nessa pesquisa, as Rodas de Conversa funcionavam como um dispositivo que permitia realizar uma escuta qualificada de educadores e alunos. Essa experiência pretendeu interrogar o lugar da escola na promoção da saúde mental dos alunos e dos docentes. Situando-se no enlace entre saúde mental e Educação Especial, a pesquisa levou-nos ao desejo de ampliar as reflexões acerca dos impasses que ocorriam nos encontros entre esses dois campos de saber no âmbito da escola.

Tal ampliação ocorreu com o ingresso no Programa de Pós-Graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Foi no desenrolar do mestrado que partimos, então, para outra etapa das investigações com os seguintes interrogantes: quais questões eram levantadas pelas educadoras acerca do acolhimento desses sujeitos tão diferentes e, por vezes, tão comprometidos? Quais as condições desses acolhimentos? Perguntamo-nos se os docentes encontravam espaços nos quais pudessem falar sobre suas experiências com essas crianças de modo a construírem uma forma de acolher e trabalhar com os alunos da Educação Especial. Desejosos por contribuir no processo de responsabilização da escola pelos alunos da Educação Especial, passamos a nos ocupar da construção de um espaço possível para escutar educadores de quatro escolas infantis da rede municipal de ensino desse mesmo município do interior.

Inicialmente, sem muito teorizar, intitulamos o espaço de escuta de Rodas de Conversa. A intenção foi acompanhar a circulação da palavra entre as educadoras na construção de saber acerca do acolhimento de crianças ditas de inclusão. Observamos que, quando oferecíamos uma escuta atenta às vivências de sala de aula e incentivávamos a circulação da palavra, eram recorrentes algumas falas paralisadoras da prática das educadoras diante da Educação Especial. Elas relatavam a falta de preparo, do medo, de não saber o que fazer, da grande importância em saber o diagnóstico do aluno e da falta de alguém que as escutasse e dissesse "como" fazer.

Falas que se repetiam nas primeiras Rodas, mas que logo se deslocavam da queixa – quando não encontravam respostas totalizantes – para outros modos de enunciar perguntas diante dos alunos. Esse deslocamento, num segundo tempo, numa inusitada temporalidade do "só-depois" (o nachträglich freudiano)4, levou-nos a pensar nos efeitos de um espaço de escuta e fala para o trabalho do educador no contexto da inclusão. à medida que as educadoras foram qualificando as reflexões acerca do seu lugar de responsabilidade sobre o educar, fomos percebendo que a construção de um saber singular poderia ocorrer de forma bastante potente num espaço de compartilhamento de vivências. Espaço este nem sempre possível de se armar no cotidiano da escola, devido a constantes queixas sobre a falta de condições práticas e formativas.

 

Um primeiro movimento da experiência: a escuta e as escolas

Sabe, a expectativa de uma professora na sua formação é que ela vai ensinar e que o aluno vai aprender! Ela não aprende, lá na formação, a lidar com crianças que não aprendem!(Professora Informação)5

Quando a diretora falou para virmos nesses encontros com a psicóloga, pensei que era mais um daqueles cursos que fazem a gente dormir, que ficam repetindo, repetindo, e não nos ajudam em nada! (Professora Descoberta)

Recolhemos, aqui, alguns enunciados das professoras participantes das Rodas de Conversa que nos inquietaram, levando-nos a interrogações a respeito dos modelos formativos existentes no contexto da inclusão.

Presentemente, a vivência nas escolas tem se dirigido aos esforços de escuta de seus impasses. Escuta muitas vezes apressada, sem o tempo necessário em direção às singularidades e discursividades locais. Escutar a escola, seus ruídos, seus impasses, suas impaciências. Como fazê-lo? Com que lentes de leitura?

No coração da experiência nas escolas, verificamos a importância em promover uma escuta aos educadores que se ocupam cotidianamente da difícil tarefa de transmissão dos elementos culturais aos pequenos. Escuta que temos como aposta e que poderia contribuir no modo como as formações dirigidas a educadores se organizam na escola. Escuta que temos pensado ser fundamental para colocar o educador como protagonista de um saber-fazer6 acerca da transmissão. A busca incessante dos educadores por um diagnóstico que "defina" e "nomeie" determinada criança "diferente" a coloca em posição de objeto, produzindo, como efeito, certo apagamento desse outro como sujeito. Pensamos que, na atualidade, os modos de capacitar profissionais pela via da informação, em detrimento de uma ênfase na experiência que cada professor traz consigo, têm contribuído pouco na formação de educadores que se dedicam à Educação Especial.

Talvez Walter Benjamin (1933/1987a) – mesmo que tenha escrito sobre o panorama cultural da década de 1930 – nomeasse essa situação, na atualidade, como empobrecimento da dimensão da experiência e da sua possibilidade de transmissão. O saber movido pela instrumentalização técnica parece não dar conta do que acontece na sala de aula e tem mostrado que, no campo da inclusão, será preciso que outros elementos sejam articulados. Benjamin nos ajuda a pensar nesses outros elementos para as ligações eu-outro quando convida à discussão sobre as consequências do declínio da experiência. "Na ótica de Benjamin, a nova barbárie revelava-se, sobretudo, como o retraimento na possibilidade da transmissão de experiência, especialmente pela força impessoal da técnica" (Gurski & Pereira, 2016, p. 433). Nesse sentido, ponderamos que, apesar de todo o esforço rumo ao progresso técnico, tecnológico, estamos pobres de experiências, de histórias que balizem um saber-fazer diante da criança "diferente", não mapeada pelas "ilusões psicopedagógicas" de nosso tempo. Desse modo, Lajonquière (2000) refere que "a criança vira objeto de saberes psicológicos especializados e . . . é formatada pelo império de uma 'ilusão psicopedagógica', isto é, pela crença na possibilidade de se fundamentar a intervenção numa suposta adequação psicológica à realidade infantil" (pp. 20-21). é nesse viés que a filosofia de Walter Benjamin e a psicanálise parecem se aproximar, pois, para ambas, compartilhar a fala possibilita criar um espaço de simbolização para os sujeitos.

Desde Freud e Lacan, a palavra tomou uma dimensão que não é de mão única, unívoca. A polissemia da palavra, dimensão que tem efeito de abertura, de múltiplas possibilidades de sentido, propicia a criação de espaços simbólicos para os sujeitos. A palavra, potência maior de ressignificação e de geração de múltiplas versões do real, pode funcionar como oferta de recursos simbólicos, criando condições para que os educadores possam inventar, arriscar, produzir seu saber-fazer no acolhimento e no trabalho com as crianças da Educação Especial.

Na relação professor-aluno, algo é construído com fios invisíveis, quase frágeis, um saber que dificilmente se sabe a priori, e que só é possível que se erga pela escuta de si e do outro, espaço igualmente difícil de ver a olho nu, mas no qual as palavras fazem suas travessias entre o eu e o outro, lugar de intercâmbio de histórias. Como dar voz às construções diárias realizadas pelos educadores, pautadas em suas vivências, no modo como pensam suas transmissões?

O declínio das narrativas e da experiência, denunciado por Benjamin (1933/1987a, 1936/1987b), também é observado nas formações dirigidas a professores. Temos presenciado, cada vez mais, a multiplicação de formações de professores baseadas no ensino de técnicas e informações de como o professor deve ensinar e trabalhar com seu aluno. Nesse sentido, uma professora, em um momento das Rodas, denuncia certo incômodo, dizendo: Sabe, a expectativa de uma professora na sua formação é que ela vai ensinar e que o aluno vai aprender! Ela não aprende, lá na formação, a lidar com crianças que não aprendem!

"Crianças que não aprendem!" E será que é possível uma formação que ensine, a princípio, como acolher e trabalhar com os alunos ditos de inclusão? Talvez possamos pensar no quanto essas formações prescritivas e massificadas levam o educador a imaginar um aluno ideal, aquele que aprende tudo o que lhe é ensinado.

Walter Benjamin afirma que o tempo e o espaço são companheiros inestimáveis da experiência. Gurski e Pereira (2016) comentam: "O filósofo da aura7, como era chamado, preocupava-se em elaborar um conceito de experiência articulado à construção de novas categorias de temporalidade, relacionadas à valorização do presente e à crítica da concepção de um passado imobilizado" (p. 433).

Desse modo, Benjamin alerta sobre a impossibilidade das experiências ocorrerem no contexto atual, devido à pressa e à falta de tempo da humanidade. Para ele, nossa sociedade, em nome da produtividade, tem sintetizado a vida. No dia a dia, vivenciamos diversos acontecimentos, muitas vezes, de forma automática. Segundo Larrosa (2002), nesse cotidiano acelerado, cronometrado pela lógica temporal do relógio, poucas situações realmente nos passam, nos tocam, nos atravessam, nos marcam sensivelmente ou nos possibilitam viver experiências.

Preocupados com essa dimensão instrumentalizadora das formações docentes, os pesquisadores reunidos no XI Colóquio Internacional do Laboratório de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas e Educacionais Sobre Infância (Lepsi), realizado em outubro de 2016, em Belo Horizonte, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), compuseram um documento – a Carta de Belo Horizonte – e, no que se refere à formação docente, defendem uma formação artesanal, não pautada em uma visão "solucionista" da educação e que tampouco se baseie em práticas homogeneizantes. Trata-se de uma formação calcada na alteridade, no entusiasmo e na curiosidade, que seja pautada na transmissão enquanto exercício do desejo que opera sobre a falta, sobre o insabido. Dito de outro modo: na transmissão, trata-se de transmitir o que não se sabe.

O tema da inclusão – e a chegada dos alunos da Educação Especial, antes segregados às classes especiais, nas classes regulares das escolas –, somado ao conjunto de leis que se organizaram nos últimos dez anos para promover a inclusão na escola regular, interroga radicalmente os espaços/tempos escolares, desestabiliza algumas certezas construídas historicamente no campo da educação escolar e tem possibilitado o laço entre psicanálise e Educação Especial. Apostamos na potência do dispositivo das Rodas de Conversa como uma modalidade de formação docente centrada na escuta como propulsora do saber da experiência. Mas não se trata de qualquer escuta. A escuta possível nas Rodas é aquela que oferece, em ato, um modo de ouvir o outro atento à singularidade e aos paradoxos dos laços. Escuta que passa por aprender a ler, a ver, a duvidar e concordar com a(s) lei(s) simultaneamente. Escuta que se abre para o colega e que, nesse exercício, faz passar à escuta de nós próprios. Escuta que aponta para a necessidade de refletir sobre as estratégias de inclusão que, até o momento, já tiveram êxito. A partir, então, do dispositivo-intervenção Rodas de Conversa, tais questões ganharam outro estatuto. Em meio a essa trajetória, percebemos que esse modo de abordar a formação docente merecia um cuidado mais conceitual, que tomou corpo no escrito de mestrado.

 

Um segundo movimento da experiência: a construção e a reflexão sobre o dispositivo das Rodas de Conversa

Afastadas desse tempo primeiro em que a vivência no campo empírico deixou marcas na experiência de trabalho e de pesquisa, além de estabelecer a transferência com as escolas da rede, passamos a pensar/armar uma nova proposta de investigação. Uma proposta que pudesse considerar a implementação de dispositivos que permitissem a circulação da palavra por meio de espaços de escuta dentro do contexto escolar. Esse trabalho anterior mostrou-se potente como modalidade de formação de professores centrada na escuta como propulsora do saber da experiência, e nos levou ao desejo de trabalhar teoricamente de forma mais consistente o dispositivo-intervenção das Rodas de Conversa que já utilizávamos na prática.

Escolher realizar a pesquisa pela via da psicanálise – tendo o conceito de escuta como central – remete-nos à regra fundamental proposta por Freud (1912/1969):

Ver-se-á que a regra de prestar igual reparo a tudo constitui a contrapartida necessária da exigência feita ao paciente, de que comunique tudo o que lhe ocorre sem crítica ou seleção. Se o médico se comportar de outro modo estará jogando fora a maior parte da vantagem que resulta de o escutar e não se preocupar se está lembrando de alguma coisa (p. 150).

Nesse texto, Freud propõe que, se há uma regra na análise/tratamento, ela se dá para ambos os lados, tanto para o paciente quanto para o analista, em um jogo de fala/escuta constantes. Do lado do paciente, temos a associação livre (convite feito pelo analista ao paciente à circulação da palavra) e, do lado do analista, a atenção flutuante – modo de escuta singular que não se orienta por nenhum conceito anterior à fala do paciente. Nesse jogo de escuta, referimo-nos ao analista e ao paciente, mas é o próprio Freud quem nos autoriza a pensar essa relação em termos de pesquisador e pesquisado, desde que sustentada pela relação transferencial. Para ele, a intervenção e o tratamento ocorrem ao mesmo tempo: "Uma das reivindicações da psicanálise em seu favor é, indubitavelmente, o fato de que, em sua execução, pesquisa e tratamento coincidem" (Freud, 1912/1969, p. 152).

Centramos nosso esforço de pesquisa na escuta enunciada por Freud, em um modo de o pesquisador ir a campo e se colocar, primeiro, apenas a escutar livremente, sem deixar de escutar as pausas, as excitações, as repetições, os silêncios... Modo de escuta que é estranho à escola, tão acostumada que está a ouvir um punhado de especialistas carregados de conhecimentos sobre a infância, quase sempre em uma verticalidade de saber.

A partir dessa perspectiva, apostamos que os efeitos advindos do encontro proposto, nesta pesquisa, entre Freud e Walter Benjamin podem nos auxiliar no adensamento de dispositivos de escuta fora da clínica padrão, na medida em que dialogamos com outros cenários além da experiência analítica tradicional.

Entendemos como um desafio articular a escuta psicanalítica e o tema da experiência em Walter Benjamin, considerando a heterogeneidade dos campos conceituais aos quais pertencem. O fio comum, que talvez possa enlaçar as diferentes questões metodológicas encontradas em Freud e Benjamin, parece ser aquele que trata das condições necessárias para o surgimento de uma outra temporalidade, tanto do sujeito como da vivência, um tempo mais livre, um tempo mais distendido, um tempo da experiência, que não tem relação, necessariamente, com o tempo do relógio.

De acordo com Jorge Larrosa (2002), o saber da experiência é uma construção que tem relação com o páthei máthos, uma aprendizagem que se dá no e pelo padecer, e por aquilo que nos passa, nos atravessa, nos acontece. é uma construção que se faz ao passo que o sujeito vai dando sentido àquilo que lhe acontece, à medida que vai reescrevendo, ressignificando o que lhe passa. O saber da experiência é o que permite nos apropriarmos de nossa vida.

Na atualidade, há uma espécie de excesso. Excesso de vivência, de acontecimentos, de informações. Entretanto, a experiência parece cada vez mais rara, no sentido de que muito pouco nos marca. Larrosa e Benjamin nos ajudaram a circunscrever certos traços característicos da modernidade e da contemporaneidade, sobretudo no que se refere ao declínio da tradição e da experiência narrativa. O paradoxo é que o conhecimento, hoje, parece estar totalmente separado, destacado do sujeito e situado num exterior radical, sem mais levar em conta o saber da experiência.

é necessário que o educador aceite, acolha e reconheça a falta inerente a qualquer saber de si, do outro. O saber como algo que se tece com o outro, a muitas mãos, é algo que vaza, é não todo, não há uma captura total, nos escapa. A informação não é saber, ela só faz semblante de saber. O discurso da ciência, carregado de informações, sugere um campo sem intervalo, sem possibilidade de o sujeito se inscrever justamente pela falta, pela ausência. Há o sujeito da ciência, mas não há o sujeito na ciência. Na ótica da psicanálise, o campo científico está fora da referência da falta, fundadora do desejo, da enunciação. Nesse sentido, as Rodas de Conversa se configuram como espaços que podem oportunizar discussões acerca da letra da lei, dos desencontros dessas discussões com os alunos da Educação Especial e os efeitos sobre a construção do saber no cotidiano da escola.

Desse modo, apostamos nas Rodas de Conversa como um dispositivo que convida a um gesto de escuta. Parar e tomar tempo para escutar o outro, sua vivência, sua narrativa, sua angústia, seu fracasso. Mas como se insere esse convite? Talvez pelo próprio gesto do pesquisador que, em ato, opera uma escuta singular, que incita a falar mais, abrir as cenas para que narrem o cotidiano da escola. Também pode ser um dispositivo-intervenção produtor de saberes, a partir das próprias narrativas das educadoras, possibilitando que, a partir da transmissão de suas experiências, seja possível erguer o saber da experiência, justamente nos meandros do abismo e na impossibilidade da comunicação.

 

Um terceiro movimento da experiência: operacionalizando a pesquisa e o dispositivo Rodas de Conversa

A psicanálise realiza sua investigação científica por um método que não é diverso daquele pelo qual ela põe em curso um tratamento. Ambos respondem ao critério da transferência. Segundo Elia (1999), qualquer que seja a metodologia de pesquisa em psicanálise, ela deve incluir a transferência entre as condições estruturantes (e estruturais) do estudo. A psicanálise, pelo dispositivo da transferência, subverte o "homem" da ciência, reinserindo a experiência do inconsciente na pesquisa. Além disso, ressaltamos que toda pesquisa em psicanálise é clínica, no sentido de utilizar o espaço do setting, mas por considerar a premissa de que as produções do inconsciente – estejam em um espaço terapêutico ou não – são passíveis de investigação (Gurski, 2010).

A pesquisa em psicanálise tem os mesmos norteadores postulados para o exercício clínico, pois trata-se da construção de um campo de experiência no qual os fundamentos epistêmicos e metodológicos não são diversos daqueles que sustentam a ética em questão – a ética da psicanálise. Ou seja, quando se fala em método de pesquisa em psicanálise, não se fala do uso de determinada técnica ou instrumento, pois tratar da teoria é, simultaneamente, referir-se a uma operação metodológica. Em se tratando de uma investigação como esta, que não abordará casos e análise, podemos considerar que a ética da psicanálise nunca nos abandona, uma vez que a ética de investigação que ancora o trabalho do analista-pesquisador está para além da prática clínica no consultório (Gurski, 2010).

A partir dessas primeiras marcas, deixadas naquele primeiro tempo da pesquisa, produziram-se novos interrogantes acerca dos impasses que ocorrem no acolhimento e no trabalho com os sujeitos que apresentam alguma deficiência na escola regular. Assim, em 2016, em um período de quatro meses, trabalhamos com dez professoras de duas escolas públicas estaduais do mesmo município, a fim de investigar o modo como as Rodas de Conversa podem contribuir para a formação continuada de educadores que recebem alunos de inclusão. As Rodas tiveram periodicidade quinzenal, com oito encontros em cada escola, e ocorreram no espaço escolar por uma hora e meia a cada vez. Nesse percurso não houve evasões, o grupo se manteve durante todos os encontros. O objetivo principal foi questionar se, ao sublinhar a experiência do sujeito-educador, o dispositivo de escuta/intervenção de docentes, no contexto da inclusão, teria potência de produzir o deslocamento da queixa ao enigma. Dessa forma, este estudo se propôs a discutir o movimento das narrativas das professoras que participaram das Rodas de Conversa a partir da escuta da singularidade das experiências cotidianas com os alunos da Educação Especial. As interrogações norteadoras foram: é possível que se produzam movimentos nas narrativas e, quiçá, nas posições discursivas das educadoras através das Rodas de Conversa? As Rodas seriam potentes como dispositivo de formação dirigida a educadores que recebem alunos de inclusão? Como questão disparadora para colocar a palavra a circular, perguntávamos como cada educadora se sentia e que questões se produziam ao acolherem os alunos considerados da Educação Especial. Mirávamos uma formação pautada na construção do saber da experiência cujo tempo podia ser distendido e cadenciado de modo a ter muitos encontros ao longo do ano.

Nossa aposta era de que essa modalidade formativa de educadores – inspirada no referencial psicanalítico de escuta e nas construções de Walter Benjamin sobre as narrativas e o tema da experiência – pudesse se inserir na Educação Especial, marcando uma diferença em relação às formações massificadas que se mostram pouco efetivas para balizar o trabalho docente. Interessante que, no movimento das Rodas, algumas professoras começaram a se questionar. Em um primeiro momento, a aposta na certeza do diagnóstico como a verdade, a priori, sobre o sujeito; e, a posteriori, começavam a se perguntar o que faz um aluno ser considerado de inclusão. Vejamos esses enunciados:

A criança inclusa é aquela que tem problema, só? Que tem diagnosticado um problema? Quem é a criança inclusa? (Professora Informação)

Essa é uma questão. . . (Pesquisadora)

Eu acho que a criança inclusa é aquela que te desperta um olhar diferente. Independentemente se só se joga no chão, se não aprende. Eu acho que já é incluso.(Professora Descoberta)

Eu acho que tu acaba desconfiando. Tu vê que a turma vai num ritmo e um se atrasa. Porque se tem um que boia, só tá lá de corpo presente e não vai. Muitas vezes pode ser contigo, que tu não consiga. São casos e casos. Tem crianças que atormentam e não fazem nada. Mas com outra professora faz! (Professora Travessia)

É triste tu precisar dizer que aquela criança é diferente pra ela ter ajuda, pra ela ter um monitoramento, pra ela ter um auxílio, né? é preciso rotulá-la antes pra, depois, ajudar? (Professora Interrogação)

Saber um diagnóstico a priori acaba desimplicando o professor na sua relação com seu aluno e, com o dispositivo-intervenção das Rodas de Conversa, ofertávamos espaços nos quais a palavra do educador tinha condição de circular livremente, compartilhando suas experiências no encontro com os alunos da Educação Especial. Apostávamos que essa intervenção pudesse, talvez, transformar-se em uma micropolítica com possibilidades de armar a construção de saberes sempre parciais. Apostávamos, também, que esses espaços pudessem ser erguidos e mantidos pelo desejo e pela implicação de cada educador, numa ética que visasse o sujeito, e não algum tipo de princípio, fosse médico ou pedagógico.

 

As Rodas e seus diferentes ritmos

As escolas tiveram processos diferentes no modo como a palavra podia circular entre os pares e deixar marcas ou não. Em uma delas, que denominamos Escola Rua de Mão única9, as falas eram mais tímidas e contidas, e as educadoras pareciam estar perdidas com uma modalidade formativa tão aberta, que não oferecia conteúdo formal para ensinar, mas uma possibilidade de desacelerarem no tempo e contarem suas vivências, escutando as das colegas. Nessa escola, era como se o caminho do conhecimento fosse construído por seus participantes numa via única. As educadoras ficavam na expectativa de apenas receberem informação, numa posição passiva, sem se sentirem convidadas a acrescentar suas palavras, sem girar a Roda e sem fazer a palavra circular.

Na outra escola, que denominamos Escola Passagens10, a palavra rapidamente circulava e as educadoras erguiam perguntas sobre seu fazer docente, a partir do convite para narrarem os encontros com seus alunos da Educação Especial. As docentes dessa escola pareciam conseguir, inclusive, compartilhar experiências e ter curiosidade sobre o fazer dos colegas. Nessa escola, as educadoras transitavam entre suas narrativas e as das colegas realizando uma passagem, sem conclusões, problematizando seu fazer docente.

Essa nomeação das escolas, Rua de Mão única e Passagens, foi efeito do trabalho nas Rodas com as leituras feitas para a construção da dissertação, e os conceitos de Walter Benjamin foram organicamente aparecendo ao longo da pesquisa.

Assim, em ambas as instituições, a construção do saber se dava em velocidades e modos diferentes, marcando a transferência com a pesquisadora também com diferentes nuances. Essa construção foi compondo o desenho de cada lugar, de cada sujeito participante das Rodas, com seus olhares, risos, palavras, silêncios. . . Silêncio que muito bem pode ser fundante, estruturante, sugestivo da falta que nos constitui, do buraco da significação. Silêncio que pode ser produtor de polissemia, de novos sentidos ao fazer docente.

Nessa direção , uma professora participante das Rodas de Conversa expressa seu incômodo em relação ao sistema educacional que visa à eficiência do aluno a qualquer custo:

Cada vez que o aluno vai adiante sem saber, fica mais difícil pra ele alcançar os objetivos que a gente espera, porque ele fica mais distante. (Professora Travessia)

Fica mais distante? (Pesquisadora)

Sim, vai abrindo um buraco gigante. (Professora Travessia)

Entre o sujeito e o outro, quando a palavra é dada a circular, é um abismo que se abre. "Buraco gigante". Talvez, justamente, essa dimensão da falta, da ausência, esse buraco, esse furo no imaginário da professora acerca de seu aluno "esperado", ideal, é que pode possibilitar que se erga o sujeito de desejo. A dimensão do sujeito em psicanálise nasce justamente do furo que permeia a trama dos enunciados constituídos pelo discurso científico, não cabendo nos modelos hegemônicos das capacitações "pautadas em verdades e saberes absolutos, com objetivos de preencher todos os 'buracos', informações repetidas à exaustão, que jamais serão capazes de elevar um signo à altura de uma palavra" (Lajonquière, 2011, p. 859). Portanto, não basta capacitar/informar, pois os saberes são sempre temporários, não são universais, transformam-se continuamente.

 

Da "sede" do saber ao espaço para a experiência

A palavra "experiência" (Larrosa, 2002) vem do latim experiri, que denota provar, experimentar. O radical periri está também em periculum – perigo. A raiz per se relaciona a travessia, passar através, e denota passagem, percorrido. O radical per, de travessia, também está em peiratés, que é pirata em grego. Desse modo, o sujeito da experiência parece ter um tanto de pirata, que desbrava caminhos desconhecidos, arriscando-se na travessia de espaços indeterminados. Assim, essa expressão, experiência, parece lembrar o trabalho dos professores, que também pode ser pensado como "um tanto" de pirata, que se arrisca na construção de modos singulares de acolher e trabalhar com as crianças da Educação Especial, lançando-se na aventura de novos sentidos para essa relação, navegando em espaços inventados (e não já prontos, formatados) e reconhecendo a alteridade e a experiência. O delicado e sutil movimento do espaço constituindo-se como um lugar. Adentramos, então, no sensível movimento das Rodas, na tessitura de saberes construídos como verdades singulares, a partir da travessia artesanal no oceano das palavras.

Destacamos alguns trechos das falas das professoras contando suas experiências anteriores e de como elas aparecem na construção das suas verdades, sempre ficcionais e, muitas vezes, advindas das memórias de um tempo em que elas estavam na posição de alunas.

Tem alunos que a gente tem uma afinidade maior. Tem alunos que a gente nem quer chegar perto. Acho que aqueles que são muito parecidos com a gente. (Professora Experiência)

É... nossos espelhos. (Professora Semblante)

Na verdade, a gente deveria ter vínculo com todos. Porque nós, enquanto alunas. . . Eu sei como era importante não ser observada ou ser observada pelo professor. (Professora Experiência)

Ser observada ou não ser observada? (Pesquisadora)

É que, às vezes, eu tava lá, e a professora nem cumprimentava, sabe? Nem sabia que eu tava na sala. Entrava e despejava o conteúdo dela e não sabia que nome eu tinha, nunca chegou perto pra dizer: "ó, tua mãe tá bem?" Sabe, perguntinhas bobas, mas pra te dizer, "ó, tô te vendo! Tô te observando! Tu existe pra mim!". Porque isso vai se refletir na aprendizagem, né? [Olham para a pesquisadora, que se mantém calada]. (Professora Experiência)

Pois é. Pensando nisso, às vezes eu me questiono o quanto a gente faz bem em botar um aluno com dificuldades no meio dos que sabem mais. (Professora Semblante)

Se, em um primeiro momento, as professoras chegavam se queixando do trabalho com esses alunos da Educação Especial, depois, esse ideal acabava se dispersando. Em vez de respostas que obturavam e fechavam as interrogações, convidávamos a professora a colocar na Roda sua vivência com a Educação Especial e, no momento em que esta aparecia no coletivo, decantava em experiência. Produziam-se outros sentidos ao fazer pedagógico, a cada giro, a cada encontro – ou seja, a possibilidade de que o saber da experiência se fizesse presente.

Em vários momentos das Rodas, as participantes pediam respostas técnicas, informações sobre as deficiências ou ainda muitas queixas pela falta de laudos e diagnósticos que as "orientassem" em como fazer. Pensamos que tais modos de capacitar pela via da informação e do discurso científico, em detrimento do saber da experiência, têm contribuído pouco na formação de educadores para a Educação Especial.

Retomaremos, então, alguns fragmentos das falas das educadoras no movimento das Rodas. Em dado momento, uma professora conta que recebeu uma criança com o diagnóstico de autismo e que já estava pensando nas atividades que iria realizar. Logo conta que se surpreendeu com a menina.

A gente acreditava que ela ia ter dificuldade nessa área da socialização. Fomos num teatro semana passada, de manhã com os alunos daqui e de tarde com os alunos da outra escola que trabalho. Tinha um cara no teatro, com uma gaita e era de enlouquecer o som alto daquela gaita. Quando eu ouvi eu disse: meu Deus, a Sophia11 vai pirar aqui! De tarde falei para a monitora dela: tu senta com a Sophia na ponta, tu e ela nas primeiras cadeiras, porque se ela se sentir desconfortável, tu consegue sair com ela, se precisar respirar, tu pega e vai. Eu pensei, vamos nos prevenir, vai que ela começa a se sentir mal, a se sentir incomodada, e ela tá no meio daquelas cadeiras. (Professora Descoberta)

Se ela se sentir incomodada? (Pesquisadora)

A gente já rotula, né? Eu me surpreendi com ela! (Professora Descoberta)


Eu acho que vai depender do olhar do professor. Vão ter professores que, a partir do diagnóstico, são capazes de nem olhar para a criança. Outros vão começar a avaliar, a perceber, vão ver bem: "não é bem como eu estava pensando". (Professora Viagem)

Acho que tudo são apostas! (Professora Experiência)

E como saber sobre aquela criança? (Pesquisadora)

Observando o que ela faz, olhando para aquela criança todos os dias, conversando com ela, procurando entender os sinais, o que ela tá dizendo e o que ela não tá, investigando com a família, tem que conhecer aquele sujeito que tá ali, na tua frente, e não largar ele na mesa e nunca mais olhar pra ele. (Professora Descoberta)

É acolher, né? É acolher. (Professora Experiência)

É que tem coisas que a gente não consegue. . . E eu me questiono: meu Deus, será que até o fim do ano eu vou conseguir? (Professora Interrogação)

Segue a professora tecendo sua experiência no encontro com essa aluna:

A primeira coisa que pensei foi: eu tenho que investir na socialização dessa criança. Eu tenho que fazer ela se integrar com os outros. O mais importante é isso. Ela tá vindo de outra escola, não conhece ninguém aqui, vai ficar longe da mãe, não conhece nenhum professor. Então meu principal foco, nesse momento, é socializar essa criança. Eu já tinha pensado numa rotina, aquelas coisas que a gente já sabe, até porque eu fui professora do Kelvin [criança com diagnóstico de autismo], então, mais ou menos, eu sabia dele e fui me preparando pra aplicar isso. Mas tinham coisas bem diferentes! Ela tá ótima na socialização. Brinca com todos, conversa, abraça e beija todos o tempo todo. Então, às vezes, a gente espera uma coisa que não é, e aí, lá pelas tantas, tava todo mundo se perguntando: "mas porque ela é tão diferente do que a gente tava esperando?". (Professora Descoberta)

Enquanto pesquisadora, eu também faço intervenções e, naquele momento, perguntei o que faz um aluno ser considerado de inclusão. Disse a professora:

O laudo! Pra ser atendido na sala de recursos precisa de um CID! Eu tenho um aluno que, fico pensando. . . ele não tem nada! Só esquece as ordens dadas. Mas daí, se a gente precisa de um laudo pra ir pra sala de recursos, o que um laudo vai dizer? é preciso rotulá-lo antes pra, depois, ajudar? Eu não sei se manter um aluno em sala de aula só por incluir ele no meio de um monte, é incluir. Essa é uma pergunta que martela. é triste tu dizer que aquela criança é diferente pra ela ter ajuda, pra ela ter um monitoramento, pra ela ter um auxílio. (Professora Descoberta)

Dessa forma, não se trata de um saber-fazer homogêneo, mas uma construção singular de cada educador, em cada situação, com cada aluno da Educação Especial. Pensamos que os saberes a priori sobre a criança podem impossibilitar uma abertura para a surpresa do encontro com cada aluno. Assim, saber de antemão o que, muitas vezes, as formações e capacitações anunciam sobre o que são, como agem as crianças "diferentes" ou o que elas precisam para ficar bem, nada diz sobre o sujeito que ali se apresenta. Ou seja, "a experiência não é o caminho até um objetivo previsto, até uma meta que se conhece de antemão, mas é uma abertura para o desconhecido, para o que não se pode antecipar nem 'pré-ver' nem 'pré-dizer'" (Larrosa, 2002, p. 28).

Muitas vezes, o discurso médico profere palavras como sentenças, como uma única verdade sobre aquele sujeito. Sem desvios de rota, sem volta. Pela lente da ordem médica, o sujeito é lido pelo que o diagnóstico diz dele. Discursividades tomadas como verdades absolutas, "comprovadas cientificamente", que fecham as portas para as possibilidades escolares dos sujeitos da Educação Especial.

Nesse sentido, refere Bastos (2003):

Vemos aqui a importância de o professor poder resgatar e se apropriar do trabalho que constrói com a criança desde o seu acolhimento, pois retomar o relato sobre o caminho trilhado é poder ressignificar para si mesmo o percurso do seu fazer pedagógico (p. 62).

Para ver e armar uma estratégia pedagógica, é preciso tramitar certo tempo de olhar. Tempo que não é mais que o elemento que também permite a construção de uma verdade (no campo da ficção) sobre o encontro de um professor, um aluno e seus impasses. Larrosa (2002) afirma, sobre a questão do tempo e da experiência, que a experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça e nos toque, requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm. Isso porque essa interrupção requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar.

 

Rodas de Conversa: um dispositivo de micropolítica da inclusão?

Percebemos, em um tempo só-depois, que as Rodas de Conversa poderiam ser um dispositivo-intervenção bem-vindo para a formação de professores. Nossa intenção, então, foi nos valermos do dispositivo citado como uma proposta diferente, que não estivesse veiculada pelas diretrizes governamentais e nem mesmo dentro da educação como um todo. Tal proposta criou um espaço no qual as narrativas das educadoras puderam dar abrigo à construção de um saber singular, não formatado, que se deu de modo coletivo.

Ao longo da trajetória do estudo e considerando a inclusão como um movimento diário de cada educador com seu aluno, as Rodas nos pareceram um disparador para os movimentos necessários. Movimentos que pensam e repensam a inclusão, de modo que encontram a interlocução com outros caminhos para pautar o saber docente. O que está em jogo é sempre a singularidade do saber-fazer de cada professor.

A psicanálise não tem uma "verdade" a oferecer à educação. Pelo menos não uma verdade como aquela do conhecimento acabado, estruturado pela ciência psicológica. A demanda das educadoras por um diagnóstico e pelo estabelecimento de um saber-fazer a priori é uma demanda por um aluno ideal, que fixa o sujeito em um sentido dado, colocando-o em uma posição de objeto ou, ainda, uma demanda de prescrição de "como fazer". Apostamos – e verificamos – que as Rodas de Conversa podem se tornar uma condição que facilite a queda desse ideal. Propusemos, assim, por meio desse dispositivo de pesquisa-intervenção, legitimar o saber da experiência dos professores a partir da transferência e na transmissão da experiência nas Rodas.

O educador, ao se contar, ao se dizer, ao dizer do outro que o atravessa, pode assumir uma posição discursiva a partir da qual ele poderá se implicar. Uma posição a partir do seu próprio desejo inconsciente. A narrativa das educadoras no giro das Rodas disparou uma experiência processual, na qual, aos poucos, elas foram se tornando autoras dos seus próprios modos de acolher e trabalhar com as crianças da Educação Especial. Na sequência das Rodas, uma professora narra sua experiência com uma aluna, quando, em uma aula, estava retomando as famílias silábicas. Conta que, no segundo ano do ensino fundamental, somente dois dos seus alunos estavam alfabetizados. Ajudando a menina Sophia, que chegou à escola com diagnóstico de deficiência mental, repara que no caderno da aluna havia vários adesivos enfeitando as páginas. Esses adesivos eram da Dora, a Aventureira, desenho infantil que passa na televisão. Segue a narrativa da professora na Roda:

Eu passo as palavrinhas simples para eles lerem e escrevo no quadro, e cada dia faço de uma forma diferente. Hoje, fui chamando um por um e ditava as sílabas que eles iam ter que circular lá nas palavras escritas no quadro. Eles batem palmas, acham a coisa mais linda. E a Sophia queria fazer também! Daí eu disse: a Sophia vai circular a sílaba "do" (lembrei do adesivo da Dora Aventureira). Ela foi lá para o quadro e começou a procurar. Ela imita a forma como os outros começam a procurar. Nesse momento eu disse: "do", é o mesmo "d" da Dora, a Aventureira mais o "o". Ela foi procurando e circulou a sílaba certa! Os colegas não se aguentaram, era gente de pé na sala, batendo palmas! Tipo, ela conseguiu fazer! Como é que pode? Eu fiquei assim. . . (Professora Experiência)

Assim como? (Pesquisadora)

É porque. . . ela não sabe. Se tu pedir o alfabeto, ela não sabe. Ela tá recém-decorando as letras do dia. Sabe? Como é que ela se deu conta? Não sei como ela se deu conta! (Professora Experiência)

"Não sei como ela se deu conta". . . Talvez, nunca iremos saber como uma criança "se deu conta", porque, nesse trâmite "antes/depois", opera-se um processo em que a experiência e o saber do sujeito estão se construindo. Pensamos que a escuta analítica tem condições de promover um deslocamento do professor do lugar de quem ensina para o de quem aprende. O professor nota que os conhecidos caminhos pedagógicos não elucidam tudo no processo da aprendizagem, e que é necessário escutar seu aluno e se interrogar sobre o seu dizer. Desse modo, é possível que o professor se confronte com seu estilo de ensinar e seu desejo de aprender, possibilitando que sua verdade se evidencie. Então, se a verdade, com a introdução da noção do inconsciente, perde a garantia de um pensamento que a posiciona de modo que não pode ser "vista", o que se apresenta como questão é a apropriação pelo sujeito daquilo que é seu. E, para que isso aconteça, o espaço das Rodas pode ser potente, no sentido de privilegiar as narrativas das professoras para que suas verdades singulares a respeito do acolhimento e do trabalho com os alunos da Educação Especial possam se erguer.

Nessas narrativas emergiram o olhar e a experiência singular das educadoras. As Rodas de Conversa não pretendem ser um dispositivo-intervenção "modelo" de formação de professores, mas, talvez, um espaço/lugar no qual seja possível interrogar as proposições formativas existentes. Não é um "modelo" a ser aplicado, mas algo a ser sustentado pelo desejo tanto do educador quanto do pesquisador. Uma proposição formativa não-toda que, portanto, necessita de reformulação permanente, a partir das experiências compartilhadas. Um espaço/lugar no qual não há um "todo-poderoso" que "tudo sabe" e "tudo ensina" a alguém que "não sabe". Talvez, pela via das Rodas, o educador possa escutar aquilo que o diagnóstico não diz – e jamais irá dizer – sobre seu aluno. Talvez a diferença mais importante das Rodas de Conversa seja a possibilidade de cada educador se implicar com sua palavra e com seus alunos.

A partir da experiência que tivemos na implementação das Rodas de Conversa, propomos que esse dispositivo de pesquisa-intervenção bem poderia ter o estatuto de uma possível micropolítica da inclusão, na qual a transmissão das experiências possa contar como elemento fundamental para as verdades singulares de cada educador no encontro com cada aluno. Desse modo, as palavras podem ser fios que ficam soltos, convidando a novas tramas, abrindo oportunidades polissêmicas no fazer pedagógico. Viver a experiência de forma única e irrepetível. Na aventura da palavra, esta toma corpo materializado, uma palavra-corpo materializada nas narrativas. No (des)encontro entre educador e aluno da Educação Especial, o vivido é experimentado, (re)inventado. Nesse sentido, associamos a formação à imagem das Passagens, àquilo que se movimenta, que vai de um lugar a outro. Como passagem, está em permanente processo de construção, de transformação, jamais estará pronta, concluída. Passagem em que sempre resta algo em movimento.

 

REFERÊNCIAS

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Endereço para correspondência
liegebfasolo@hotmail.com
Rua Ramiro Barcelos, 2600
90035-003 – Porto Alegre – RS – Brasil

rosegurski@ufrgs.br
Rua Ramiro Barcelos, 2600
90035-003 – Porto Alegre – RS – Brasil

Recebido em julho/2017.
Aceito em julho/2018.

 

 

NOTAS

1. Iremos nos referir, ao longo do texto, a "alunos considerados da Educação Especial", compreendendo que estes são recortados pelo universo da política atual. Na perspectiva da educação inclusiva, a Educação Especial tem como público-alvo os alunos com deficiência de natureza física, intelectual, mental ou sensorial, Transtornos Globais de Desenvolvimento (TGD) e altas habilidades/superdotação. As definições do público devem ser contextualizadas e não se esgotam nas meras categorizações e especificações atribuídas a quadros de deficiências, transtornos, distúrbios e aptidões. Para outros detalhes, ver a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (Brasil, 2008).
2. Este trabalho ocorreu no ano de 2011, antes da especialização e antes do mestrado.
3. Nessa ocasião, a pesquisa foi realizada para a construção da Monografia de Conclusão do Curso de Especialização em Intervenção Psicanalítica na Clínica com Crianças e Adolescentes (2012-2013), do Programa de Pós-Graduação em Psicanálise da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob a orientação da professora Rose Gurski. O trabalho foi intitulado A escuta de educadores como dispositivo para a inclusão escolar: diálogos entre psicanálise, saúde mental e Educação Especial.
4. A expressão nachträglich (a posteriori, em latim, ou après-coup, em francês) é encontrada no Vocabulário da psicanálise, de Laplanche e Pontalis (1986), traduzida para o português como posteridade, posterior, posteriormente. Segundo os autores, é uma "palavra utilizada frequentemente por Freud em relação a sua concepção de temporalidade e da causalidade psíquica; experiências, impressões e traços mnêmicos são ulteriormente modificados em função de novas experiências ou do acesso a um novo grau de desenvolvimento. Então, podem adquirir, além de um novo sentido, uma eficácia psíquica" (p. 441).
5. Sublinhamos que as narrativas das professoras fazem parte de um recorte da pesquisa de mestrado em psicanálise (2015-2017) realizado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob orientação da professora Rose Gurski. Todas as nomeações atribuídas às professoras representavam seu discurso no percurso das Rodas. Por meio das suas narrativas, fomos construindo relações acerca do modo como pensavam, como se posicionavam e como se sentiam em face da inclusão. Procuramos nomeá-las a partir desses discursos.
6. Optamos por nos referirmos ao conceito de saber-fazer no sentido do saber da experiência, no dizer de Larrosa (2002). O saber-fazer da experiência é uma construção que se faz na medida em que o sujeito vai dando sentido às coisas que lhe acontecem, que vai ressignificando o que lhe passa. Não se trata de um saber-fazer formatado, homogêneo, mas uma construção singular de cada educador em cada situação, com cada aluno da Educação Especial.
7. Walter Benjamin define a aura como uma figura singular composta de elementos espaciais e temporais: aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja. "Observar em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho que proteja sua sombra sobre nós, significa respirar a aura dessas montanhas, desse galho" (Benjamin, 1936/1987c, p. 170). Assim, somos dirigidos pelas materialidades e pobres em experiências.
8. Conforme relatam Marshall e Scribner (1991), na esfera da educação, o conceito de micropolítica passou a ser utilizado depois que Laurence Iannaccone, no final de 1960, cunhou o termo "a micropolítica da educação". Micropolítica entendida como o plano molecular em que se efetuam os processos de subjetivação a partir das relações de poder dentro e em torno das escolas, grupos e famílias. Pereira (2016, p. 173) refere "uma micropolítica que estimularia gestos que façam vacilar o sintoma e propiciar desidentificações, dessubstancializações e deslocamentos subjetivos".
9. Chamamos de Escola Rua de Mão única evocando o livro de Walter Benjamin, Rua de mão única (1928/2013). O livro contém uma coletânea de aforismos e fragmentos em que Benjamin parte de temas pouco convencionais, como sonhos pessoais, cartazes, monumentos, praças, galerias etc.
10. Escolhemos o nome Escola Passagens evocando o livro de Walter Benjamin, Passagens (2007). O livro é um trabalho inacabado de Benjamin, que contém fragmentos de seus textos de 1927 a 1940, ano da sua morte. Passagens, na obra de Benjamin, é uma referência às "passagens parisienses", galerias comerciais ou lojas de departamentos nas quais as passagens eram ao mesmo tempo entradas e saídas.
11. Todos os nomes dos alunos são fictícios para preservar as identidades.

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