SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.24 número1Avaliação de indicadores psicossociais em idosos hospitalizadosAvaliação dos sintomas de depressão em pessoas com deficiência visual índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Revista da SBPH

versão impressa ISSN 1516-0858

Rev. SBPH vol.24 no.1 São Paulo jan./jun. 2021

 

Corpo e envelhecimento: A vivência do papel social do homem idoso com doença cardiovascular crônica

 

Body and aging: The experience of the social role of elderly men with chronic cardiovascular disease

 

 

Andreza Mariz da SilvaI; Priscilla Melo Ribeiro de LimaII; Marylia Glenda Lopes Dep SousaIII

IHospital das Clínicas (HC - UFG/ EBSERH) - Goiânia/ GO - andrezamariz@hotmail.com
IIUniversidade Federal de Goiás (UFG) - Goiânia/GO - primlima@ufg.br
IIIHospital das Clínicas (HC - UFG/ EBSERH) - Goiânia/GO - maryliaglenda@hotmail.com

 

 


RESUMO

O artigo teve como objetivo compreender como a doença crônica afeta a percepção do papel social de homens idosos a partir da construção social de velhice, e de que forma velhice, como uma categoria social, traz implicações à subjetividade destes sujeitos, suas relações sociais e de trabalho. Se trata de uma pesquisa de abordagem qualitativa descritiva, realizada a partir de entrevista semiestruturada. O estudo foi realizado em um hospital universitário, com dez homens, com idade entre 60 e 76 anos, portadores de doenças cardiovasculares crônicas. Os dados foram analisados a partir dos eixos temáticos elencados na entrevista: Adoecimento físico; Envelhecimento; Papel social; em seguida, foram expostos os núcleos de significado encontrados a partir das falas dos entrevistados. Conclui-se que a doença crônica e o envelhecimento trazem modificações significativas no que se refere à autonomia e relações sociais destes sujeitos, sendo que o modo como cada um percebe este processo está associado ao apoio familiar, e papel social desempenhado. O papel social exercido pelo homem idoso é um fator que repercute significativamente no cuidado em saúde e na vivência subjetiva do processo de envelhecimento.

Palavras-chave: envelhecimento; doença cardiovascular crônica; corpo; masculinidade.


ABSTRACT

The article aimed to understand how chronic disease affects the perception of the social role of elderly men from the social construction of old age, and how old age, as a social category, has implications for the subjectivity of these subjects, their social and working relations. This is a qualitative and descriptive research, carried out from a semi-structured interview. The study was carried out in a university hospital, with ten men, aged between 60 and 76 years, with chronic cardiovascular disease. The data were analyzed from the thematic axes listed in the interview: Physical illness; Aging; Social role; then, the nuclei of meaning found from the interviewees' statements were exposed. It is concluded that chronic disease and aging bring significant changes regarding the autonomy and social relationships of these subjects, and the way each one perceives this process is associated with family support, and the social role played. The social role of an elderly man is a factor that significantly affects health care and the subjective experience of the aging process.

Keywords: aging; chronic cardiovascular disease; body; masculinity.


 

 

Introdução

A velhice é uma fase do desenvolvimento humano determinado a partir da história, cultura, economia, de um povo, e é reconhecida socialmente a partir das mudanças corporais evidenciadas por marcadores biológicos facilmente identificáveis, tais como, rugas, cabelos brancos, dificuldades de memória, doenças crônicas, por exemplo. Goldfarb (1997) aponta que essas mudanças podem ser perceptíveis também sob o aspecto psicológico, como rigidez de pensamento, algum grau de regressão ou tendências depressivas. Essas marcas evidenciam a passagem do tempo sobre o corpo e o psiquismo.

Diferentemente do processo de envelhecimento, a velhice diz respeito a questões que vão além das mudanças corporais. Ela é marcada por uma série de transformações tanto físicas quanto psicológicas, sociais e laborais, e todo esse processo é permeado pelos significados construídos culturalmente no decorrer da história de cada comunidade. No entanto, é importante pensarmos na velhice não apenas num estado do sujeito, mas como uma etapa da vida em que ocorre um processo contínuo de subjetivação de um ser que está envelhecendo (Goldfarb, 2004; Mucida, 2018).

De acordo com o discutido por Debert (2006, 2012), Lima (2013), Lima, Lima e Coroa (2016), Lima e Viana (2018), Mercadante (2005), Messy (1999), Monteiro (2005) e Peixoto (2000, 2006), o termo velhice diz respeito também ao processo social e histórico de construção de um termo classificatório e aos aspectos biológicos, sociais e políticos que envolvem essa etapa da vida. Utilizar termos como 'terceira idade' ou 'melhor idade' indicam afiliações ideológicas ao movimento do capitalismo e da emergência da classe média à aposentadoria. Eufemismos como esses indicam uma negação da velhice e seus aspectos sociais e marginais. Diante disso, optamos por utilizar o termo velhice para designar essa etapa da vida a que nos propomos investigar.

A consciência da passagem do tempo sobre o corpo para o sujeito, geralmente acontece após a vivência de perdas, seja de alguma pessoa querida, do adoecimento, ou uma experiência social, de modo que ele não se reconhece nesta imagem reproduzida. Goldfarb (1997) afirma que essa estranheza diante da imagem reproduzida pelo espelho - o espelho negativo - vem acompanhada de outras reflexões. Estas se associam ao funcionamento do corpo, à construção social acerca da velhice, à estética do corpo, à proximidade da morte, e que estão intimamente relacionadas à dependência, principalmente no idoso de idade avançada, e da falta de reconhecimento do outro, deste corpo que não é mais objeto de desejo. Mucida (2018) aponta que as modificações da imagem do corpo, do enfraquecimento dos laços sociais a partir do contato com o real, impõem a necessidade de novos sentidos. Quando isso não ocorre, existe a formação de sintomas como vias para lidar com o real.

Pensar sobre o papel social do idoso na sociedade se faz necessário, tendo em vista que a concepção de velhice de cada época reflete diretamente no processo de subjetivação desses sujeitos, pois tem diversos efeitos sobre a cultura, a política, o social. A partir disso, Goldfarb (2004, p. 18) afirma que "a subjetividade não é da ordem do originário - biológico psíquico ou social, não importa - é sim, da ordem da produção, sendo que cada cultura e cada época histórica oferece diferentes condições e padrões de produtividade subjetiva". O pouco investimento social neste idoso é resultado de uma construção histórica de uma imagem que relaciona os sujeitos idosos com o declínio do corpo, a improdutividade e a proximidade da morte (Lima, 2019; Lima & Viana, 2018; Vieira & Maciel, 2020). A partir disso, a falta desse envolvimento social no idoso provocaria nestes sujeitos um sentimento de isolamento, diminuindo o fluxo libidinal, podendo a doença ser uma saída para algum tipo de investimento de interesse do outro neste corpo envelhecido (Cherix, 2015).

O lugar social ocupado pelos sujeitos se relaciona, no decorrer da história do homem, ao tempo de trabalho e capacidade de consumo, permeando a subjetividade desses indivíduos. Mucida (2009) aponta que a segregação dos idosos se dá por três vias: a primeira pela segregação do corpo social; a segunda pela não produção de bens; e a terceira pela impossibilidade de inserção no mercado. A segregação ocorre pela perda do lugar de referência social onde, numa sociedade em que a produtividade e a força de trabalho são aspectos valorizados, a velhice e o adoecimento do corpo não são vivenciados de forma tranquila. Nesse contexto, muitos idosos carregam o medo de perder a independência e o controle de si (Elias, 2001).

Um outro ponto que necessita ser analisado, diz respeito à construção social do que é ser homem ou mulher em nossa sociedade e como ela influencia na forma com que homens e mulheres envelhecem. O conceito de gênero aponta para as diferenças reforçadas pelo corpo biológico e suas diferentes atribuições e papéis, marcando a maternidade, o cuidado com a casa e com a família como sendo feminino; e a força, a virilidade e o trabalho como masculino (Sarti, 1994). Essa diferenciação carrega em si uma demarcação de poder e lugar de privilégio social. Dessa forma, compreendemos que o modo como as relações de poder e a definição de papéis se constituíram historicamente e têm forte influência sobre como o idoso lida com seu próprio corpo e vivencia a sua velhice.

Fernandes (2009), em estudo sobre os papéis sociais ligados ao gênero, aponta que uma das maiores dificuldades enfrentadas pelo homem idoso é a capacidade de reestruturar seu papel social diante das perdas vivenciadas na velhice. Dentre elas, Fernandes destaca o confronto com os atributos que socialmente constituem a masculinidade hegemônica, tais como a força física, a capacidade para trabalhar e a potência sexual. Essas mudanças moderam as relações desse sujeito a partir da forma como ele se vê e é visto pelo Outro.

Durante o contato com pacientes da cardiologia, ao retratarem sobre a experiência subjetiva do adoecer, surgiam frequentemente falas acerca do impacto da doença crônica sobre as relações afetivas, bem como na autoimagem, e acerca das mudanças sociais e econômicas, atreladas muitas vezes, ao envelhecimento. A partir do exposto, este estudo busca compreender como as mudanças corporais decorrentes da velhice têm permeado a subjetividade de homens idosos, atravessados pelas limitações físicas impostas pelo adoecimento, gerando sofrimento psíquico. E de que forma a velhice, como uma categoria social, traz implicações nas relações sociais e na construção subjetiva da própria velhice.

 

Percurso metodológico

Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa descritiva, realizada a partir de entrevistas semiestruturadas geradas de forma individual com cada participante. O objetivo desse tipo de entrevista, neste estudo, foi de compreender a vivência de cada entrevistado acerca do tema, discorrendo sobre o assunto de forma mais livre.

De acordo com Minayo (2012), a pesquisa qualitativa possibilita a compreensão do fenômeno a ser estudado pois se aprofunda nos significados, crenças, valores e atitudes contidos em cada ação do homem, a partir da "apropriação da linguagem de variáveis para especificar atributos e qualidades do objeto de investigação" (p. 22), permitindo, a partir do processo de fala e escuta do sujeito, entrar em contato com o fenômeno. Deste modo, essa pesquisa teve como foco que os entrevistados pudessem expor suas percepções acerca do envelhecimento, do adoecimento e do papel social que exercem, e a partir da vivência subjetiva de cada participante expressa a partir do discurso, pudéssemos compreender melhor o fenômeno do envelhecimento masculino.

Procedimentos

Este estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (HC/UFG) via Plataforma Brasil (CAAE nº 1466919.6.0000.5078). Os participantes receberam informações acerca do objetivo da pesquisa, dos instrumentos utilizados, do caráter voluntário da participação e do sigilo das informações e do anonimato, seguindo os princípios éticos para pesquisas com seres humanos. Além disso, receberam, leram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). As entrevistas foram realizadas após a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

O estudo foi realizado em um hospital universitário e os dados foram gerados com pacientes internados em duas unidades do hospital, o Pronto Socorro e a Clínica Médica. As entrevistas foram realizadas em um só encontro na enfermaria ou leito onde o paciente estava internado, com duração média de vinte e cinco minutos. As entrevistas foram realizadas durante o período de junho a agosto de 2019, e a escolha dos participantes ocorreu a partir da especialidade de internação. Os pacientes foram convidados a participar da pesquisa após explicarmos os objetivos do estudo, sendo entrevistados aqueles que concordaram em participar.

Participantes

Participaram do estudo dez homens, sendo a faixa etária de 60 a 76 anos, internados pela Cardiologia em tratamento clínico. Para aqueles que aceitaram participar do estudo foi explicado o objetivo da pesquisa e assinado o termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Como critério de inclusão para o estudo participaram homens idosos, internados no hospital universitário, com doença cardiovascular como a principal doença de base. Os pacientes em pré-operatório com internação para realização de cirurgia e mulheres idosas não foram selecionados para a pesquisa, tendo em vista que a temática deste estudo aborda a questão do papel social e envelhecimento de homens.

Caracterização dos Participantes

A idade média dos participantes foi de 66,9 anos, e, em sua maioria, aposentados, sendo que três deles ainda trabalhavam formal ou informalmente. Sete dos participantes residiam apenas com a esposa, e três moravam também com filhos. A quantidade de filhos variou entre um e sete filhos adultos. Segundo os relatos, sete entrevistados possuíam uma ou mais limitações decorrentes do adoecimento, mas que não os tornavam dependentes para o autocuidado. As principais queixas no que se refere às dificuldades físicas foram de diminuição de força muscular e prejuízo na mobilidade.

Entre as doenças cardiovasculares presentes, cinco dos participantes apresentavam Insuficiência Cardíaca, três possuíam Miocardiopatia chagásica e dois Arritmia Cardíaca. O período de diagnóstico variou de 3 meses a 17 anos de início da doença. Além disso, oito dos entrevistados possuíam outras comorbidades, como Hipertensão Arterial, Diabete, Doença Renal Crônica, Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC), Hipotireoidismo e Câncer de pele.

Instrumentos

Para a geração de dados foi utilizado um questionário sociodemográfico que continha perguntas sobre o estado civil, constituição familiar e profissão, a fim de se avaliar a rede sociofamiliar, além de informações acerca da doença, tempo de diagnóstico e grau de dependência para o autocuidado. A entrevista semiestruturada possuía seis perguntas elaboradas de acordo com os temas de pesquisa: adoecimento, envelhecimento e papel social: "O que o senhor entende por saúde?", "O que o senhor entende por 'estar doente'?", Percebe que sua vida teve mudanças após o surgimento da doença?", "Percebe que sua vida teve mudanças após o envelhecimento?", "Sente que houve alguma mudança do seu papel com homem após o adoecimento?", "O que o senhor tem feito para se sentir bem?". As respostas foram gravadas através de dispositivos de áudio, conforme autorização do participante, e posteriormente, transcritas para análise.

 

Resultados e Análise dos Dados

A técnica utilizada para análise das entrevistas foi a Análise de Conteúdo de Bardin (2011), visando a compreensão do fenômeno do adoecimento e envelhecimento a partir da perspectiva do entrevistado. Em um primeiro momento foi realizada a caracterização do perfil sociodemográfico dos participantes do estudo e, em seguida, a análise dos dados gerados nas entrevistas. Os nomes dos participantes foram substituídos por nomes fictícios de forma a preservar o anonimato. Optamos por utilizar nomes fictícios, ao invés de siglas (como P1, P2 etc.) por compreendermos, a partir dos estudos de Sawaia (1998), Schmidt (2008a, 2008b), Schmidt e Torniette (2008), que os participantes que nos contam suas histórias em pesquisas com entrevistas narrativas são co-autores dos dados gerados. Ao nos atentarmos para a escuta de pacientes em sofrimento físico e psíquico dentro de um hospital, nos atentamos também para suas produções subjetivas enquanto pessoas em interação. Após categorização das falas por seus eixos temáticos - Adoecimento; Envelhecimento; Papel social - organizados de acordo com a estrutura das entrevistas, foram levantados alguns núcleos de significados, elencados conforme a análise dos conteúdos apresentados.

Adoecimento físico: "Hoje em dia, em vista do que eu era, eu sou 5%"

O primeiro eixo de análise trata dos discursos sobre o adoecimento físico. Compreendemos o adoecimento como um processo contínuo, de curso prolongado como é característico da doença crônica. Nesse aspecto, o adoecimento se diferencia de "estar doente" no sentido de que este se refere a um estado atual e não implica num estado físico permanente. O primeiro núcleo de significado dentro desta categoria se apresenta em torno do adoecimento como um fator gerador de mudanças físicas, psíquicas e sociais, assim como apontadas nas falas dos entrevistados, e que requerem adaptação de rotina, de estilo de vida e, principalmente, uma reorganização psíquica. Quando questionados sobre as mudanças decorrentes do adoecimento, alguns participantes relataram:

"Mudou um pouco, mudou, mudou porque a gente não é aquilo que era mais né. Não tem aquela 'rompança', aquela atitude, aquele destino assim, de sair e arrumar as coisas que era preciso. Então fica um pouco esperando, vê se melhora um pouquinho, vou tomar um remédio e depois eu vou. Fica jogando, fica naquele jogo de empurra. E quando a pessoa é sadia ela levanta ela diz "vou ali, vou aqui buscar as coisas", então modifica por conta disso, a pessoa não tem aquele ânimo que tinha" (Irineu, 73 anos, arritmia cardíaca).

"Eu fui sadio até meus 45 anos, daí pra cá acabou. Sempre tem uma coisa pra tá atrapalhando o serviço da gente né. Comecei pela coluna, aí daí pra cá enrolou. A doença atrapalha tudo da vida da gente [...] Atrapalha os planos da gente né?! Você tá com os planos de fazer alguma coisa, aí vem a doença e acabou. Paralisa tudo, fica tudo paralisado" (Rui, 62 anos, arritmia cardíaca).

As falas dos participantes trazem o adoecimento como fator dificultador da realização das atividades cotidianas e referentes ao trabalho. O corpo acometido pela doença é reconhecido como um fator limitador para exercer sua autonomia. A diminuição da autonomia pode gerar a dependência total ou parcial de familiares para a realização de algumas atividades muitas vezes simples, tudo isso implica em uma alteração da configuração familiar e inversão de papéis, afetando tanto o sujeito adoecido quanto sua família (Di Menezes & Lima, 2019).

O segundo núcleo de sentido aborda a perda de autonomia e suas implicações. A diminuição progressiva da autonomia pode provocar modificações de aspectos sociais e emocionais importantes na vivência da velhice e é vivenciada como fonte de sofrimento. Campos e Pecora (2015) em um estudo sobre a autonomia de idosos, apontam que o adoecimento pode ser percebido como uma incapacidade de exercer o autocuidado, além da incapacidade de realizar atividades que lhes traziam prazer e de desempenhar seu papel produtivo. Esse aspecto pode ser experienciado como uma perda de controle sobre seu corpo e sua própria vida, aproximando-o da vivência da finitude.

As reações expressas diante desse impasse entre o desejo de realizar as atividades e a perda da autonomia podem ser alterações do humor e de autoconceito, além do sentimento de frustração, escancarando para esses sujeitos a castração do corpo adoecido. A fala de Manoel (71 anos, Coronariopatia) explicita essas questões: "a gente não concorda que a gente não dá conta de fazer as coisas. Não concorda que a gente não tá servindo pra aquilo. Então aquilo vai trazendo nervoso pra gente e causa problema na vida da gente...desse jeito que eu acho". A agressividade é um tema que surge nas entrevistas, apontada como um recurso diante do sentimento de impotência pelas limitações impostas pelo corpo e dependência do outro.

Envelhecimento: "A pessoa fica velha, já não é mais a mesma"

"[...] tenho que encarar que eu sou um idoso já, não sou jovem mais, a vida mudou muito. De lá pra cá tem mudado. Então a pessoa já vai... a idade vai chegando então a pessoa vai sabendo que cada vez mais velho ele vai mudando o jeito dele" (João, 62 anos, Insuficiência Cardíaca).

A terceira categoria de análise apresenta a temática do envelhecimento. Apesar da universalidade dos efeitos da passagem do tempo sobre o corpo, a forma como o processo de envelhecimento é compreendida ocorre de forma particular. Mucida (2009) aponta que a cultura influencia diretamente sobre a forma com que a velhice é reconhecida na sociedade, impactando na maneira pela qual os idosos experienciam essa fase. Birman (2015) afirma que o envelhecimento se tornou um processo de possibilidades variáveis de ser e existir diante de uma maior expectativa de vida e do aumento da participação dos idosos nos espaços sociais. A partir das falas dos participantes, podemos perceber essa diversidade de experiências retratadas pelos autores.

O primeiro núcleo de sentido dentro deste eixo diz da relação da velhice com o corpo, conforme exposto pelos entrevistados. O sr. Irineu (73 anos, Arritmia cardíaca), quando questionado se sentiu mudanças em sua vida após o envelhecimento, responde:

"E a idade vai defasando muito a pessoa. É, porque o organismo vai ficando fraco, os nervo [sic] vai ficando fraco. Hoje a gente tem que andar, eu ando muito atento pra gente não cair, pra não tomar um esbarrão, pra não quebrar um braço, uma perna, um dedo. E se assim Deus me livre e guarde de isso acontecer, eu vou ficar muito tempo parado pra poder até aquele local cicatriza é difícil. E quando a gente é jovem não, é rapidinho, os ossos tá tudo bom, o organismo tá tudo forte, a carne e tudo. É rapidinho a gente recupera".

As questões referentes às modificações físicas sofridas pelo corpo aparecem na fala de grande parte dos entrevistados, apontando para a fragilidade física em que é possível identificar um luto pelo corpo envelhecido. Este corpo, instrumento de prazer e investimento psíquico, quando acometido pelo enfraquecimento ou pelo adoecimento, suscita um conflito entre o eu desejante e um corpo limitado (Cherix, 2015; Giacomin, Santos, & Firmo, 2013; Mucida, 2018). Esse processo exige uma ressignificação simbólica diante de um corpo que não responde da forma esperada, apontando para o sujeito as fronteiras do envelhecimento físico:

"O ruim é você não poder ser aquilo que era... você, por exemplo, eu gostava muito de jogar bola, gostava muito de cantar, então muitas das vezes a gente sente aquela falta daquelas coisas. Então foi isso que eu achei ruim, de não ter aquele pique pra brincar com o neto" (Manoel, 71 anos, Coronariopatia).

"Eu não tenho aquele ânimo que eu tinha antigamente. Por que eu ia trabalhar e ia sozinho pro serviço, pra obra, trabalhava normal. Não tinha esse negócio de esperar 'não, fulano não vem eu não vou trabalhar não' eu continuava. Aí depois disso daí não teve nem como, a gente perde a força né?! De habilidade de trabalhar, então não teve nem como. [...] perder a saúde é muito ruim" (Jair, 60 anos, Miocardiopatia chagásica).

As mudanças relatadas refletem o enfraquecimento físico que compromete a força física, o equilíbrio e a agilidade. Essas transformações exigem mudanças de hábitos, adaptações da rotina e maior autocuidado. Como retratado por Irineu, a preocupação com quedas e esbarrões se faz imprescindível, o que não era um problema quando era mais jovem.

A mudança de imagem, como os cabelos brancos, as rugas e flacidez da pele, também foi apontada como aspecto associado ao envelhecimento. Compreendemos que, mais do que somente uma alteração física que se reflete na imagem corporal, essas modificações atuam como uma forma de rompimento com sua autoimagem construída anteriormente (Lima, Lima & Coroa, 2016; Lima & Viana, 2018). Essa percepção do sujeito quanto à sua própria imagem é evidenciada com a transformação da imagem daqueles que lhes são próximos. Irineu relata que: "Muda, muda muito. Até os cabelos ficaram branquinhos (risos). E assim a gente vê, tem que perceber [...] o meu filho que tá com 50 anos tá com os cabelo grisalho [sic]".

Goldfarb (1997) aponta que a imagem negativa diante do espelho não trata apenas da relação do sujeito com a imagem refletida, mas se associa ao funcionamento do corpo, à construção social da velhice, à falta de reconhecimento do outro e à percepção da aproximação da morte. Essas questões trazem à tona, muitas vezes, a possibilidade de dependência e perda da autonomia e objetificação desse corpo, isto é, um corpo investido de cuidado e desinvestido de desejo. Sebastião e Rui fazem as seguintes reflexões:

"Eu entendo que é velhice, o 'genevívio' [morte] vai chegando, vai chegando. É eu, é você, todo mundo vai passar e pronto" (Sebastião, 76 anos, Miocardiopatia chagásica).

"Ah, mudou demais, nossa senhora! Uns amigos meus já me falou que a velhice é cruel [...] Você não consegue mais fazer o que você fazia no tempo de novo. As coisas...os alimentos perdem o sabor, você não consegue fazer mais o que você fazia. Até pra andar cê muda, muda o jeito de você andar, o tipo de você conversar. Parece que até fica meio pra escanteio porque tem gente que não gosta de velho [risos]. Eu penso que é desse tipo. [...] Parece que o velho é mais fedido parece [risos]. Não sei. Eu não pensava isso no tempo de novo, mas agora eu penso. Principalmente doente né?! Com uma doença que não sara fácil. Pouca gente fica velho sadio, geralmente tem umas coisas pra somar. Muda demais, acho que muda assim uns 80% de novo pra idade velha" (Rui, 62 anos, Arritmia cardíaca).

Mucida (2018) afirma que há uma desvalorização social da velhice, em que a cultura, marcada pela premência da novidade e supervalorização da imagem, pode provocar nesses sujeitos uma vivência negativa da experiência da velhice, interrompendo o trabalho de luto e a perda do desejo. A fala de Rui aponta para as dificuldades decorrentes da perda do lugar social de referência, a mudança do sabor da comida, o jeito de andar, e podem dar sinais de um corpo que sofre pela ausência deste lugar. A exemplo do discurso trazido acima, o segundo núcleo de sentido é sobre o lugar social na velhice.

O relato de Rui acerca do modo como este é percebido pelos outros como fedido e desvalido aponta para uma ruptura nas relações, marcada pela falta de valorização deste enquanto sujeito. Esta desvalorização social pode provocar a quebra com essa imagem narcísica, podendo gerar uma agressividade voltada para o meio ou para si mesmo. Um fato que nos chama a atenção no relato acima são os risos expressos após falas emblemáticas, e que parecem expressar uma tentativa de minimizar o desconforto de quem ouve e diminuir o sofrimento de quem fala.

Em outro relato, o participante Manoel (71 anos, Coronariopatia) retratou a velhice como uma vivência positiva, de modo que o amadurecimento e a experiência de vida o colocaram em uma posição social de respeito e cuidado. Ele relata:

"Teve, teve... muitas das vezes pra melhor mas muitas das vezes pra pior, muita das vezes pra pior. Você percebe que o idoso hoje ele é muito assim... bem recebido por vocês, pelas pessoas mais jovens. É bem recebido pelas pessoas mais jovens, em lugar público, lugar que a gente vai frequentar, vamos supor um banco ou um hospital. O idoso hoje tem vez e antigamente não tinha, então muita das vezes eu achei melhor ter ficado mais idoso. É mais fácil as coisas da gente. Graças a vocês né?! [risos]".

Essa transição do lugar em que o idoso tem ocupado na sociedade atualmente tem sido amplamente discutida. Birman (1995) afirma que no Brasil, apesar do processo ocorrer de forma morosa, o idoso tem adquirido maior visibilidade social, modificando a cultura e a política. Estas transformações inscrevem o idoso no tempo presente, abrindo possibilidades para se existir enquanto sujeito.

Papel social: "Não é o mesmo homem, eu era muito ativo, já não sou mais"

As relações sociais permeadas pelas identificações sexuais são construções sociais históricas que determinam a forma de agir, as atitudes, as representações e os papéis sociais, bem como as posições de dominação e subordinação (Motta, 1999). Esta autora afirma que historicamente, à mulher é destinada a função de cuidados com a casa e com os filhos, desestimulada a adentrar o mercado de trabalho e a se reconhecer sexualmente, já aos homens cabe a responsabilidade sobre o sustento familiar e autoridade sobre a família. Motta (1999) e Figueiredo et al. (2007) apontam que as diferenças sociais e de papéis possibilitam experiências particulares para homens e mulheres durante a velhice. A liberdade para as mulheres idosas é vivenciada enquanto possibilidade de maior ocupação dos espaços sociais e diminuição das atividades domésticas. Para os homens, esta liberdade é experimentada quando há garantias de uma segurança econômica, papel agora sustentado por sua capacidade de consumo e posição social.

Quando questionados se perceberam mudanças em seu papel social após o envelhecimento, os participantes apontaram modificações nas relações familiares e com a comunidade de um modo geral, sendo este um núcleo de significado dentro desta categoria. Alguns dos entrevistados tem a percepção de que o envelhecimento propicia maior autoridade para dar conselhos aos filhos com base na experiência de vida. Rui relatou que:

"eu sempre sou uma pessoa assim de pouca conversa, fechado, não sou autoritário, gosto de ser liberal, eu não interfiro na vida de filho meu que já são tudo adulto, sabe o que tá fazendo. Mas assim, se precisar de um conselho to pronto pra dar. Porque pai sabe dar conselho pra filho".

No entanto, no caso de Manoel, esse aspecto é trazido de modo diferente, pois o envelhecimento não lhe forneceu a garantia de um lugar social em que possa dar conselhos baseados em um conhecimento pessoal. Ele afirmou que o tempo desqualifica a sabedoria adquirida tendo em vista a modernização atual:

"Eu não posso mais nem falar assim uma coisa, ter aquela autoridade que eu tinha antigamente porque eu não to conhecendo lá fora, eu não sei. Porque muitas vezes eu vou falar pra ele assim que ele fez errado e ele tá fazendo certo. [...] então eu não tenho que pensar que eu to certo porque eu não to sabendo o que tá acontecendo lá fora... então eu me sinto desse jeito. [...] eles me procuram muito pra... pra pedir uma coisa, assim, uma opinião, então eles vê, me respeitou muito como pais, eles gostam de tirar opinião, então eles gostam demais de mim e isso pra mim é uma honra né?! Mas a gente, as vezes eu sinto assim muito abalado, a gente tem que engolir seco pra não. .pra não decepcionar eles porque a gente sabe que não é aquilo tudo mais, foi o tempo, o tempo foi. Então hoje eu tenho que viver da maneira quase... eu viver da maneira deles, não eles viver da minha maneira. Eu sou conformado com isso".

Debert (2010), aponta que o modo de vida contemporâneo é resultado dos modelos econômicos, políticos e culturais de uma época, isso significa que o desenvolvimento biológico é determinado enquanto categoria social - juventude, vida adulta e velhice - a partir da aquisição de conhecimentos, capacidade de realização de determinadas atividades e definição de papéis sociais. Se pensando na velhice enquanto categoria social, ela está atrelada ao fazer e ao saber e principalmente, nas representações acerca do papel desse idoso enquanto sujeito social.

No caso da maioria dos participantes, o envelhecimento e a aposentadoria trouxeram uma melhor aproximação da família, de modo que a idade adquirida, aprimorou os laços sociais baseando esse contato familiar pela forma como esse idoso é reconhecido pelos outros pela função social que ele exerce. No entanto, como relatado por Manoel, a passagem do tempo não lhe traz segurança para se perceber como autoridade, apesar de possuir uma relação familiar considerada satisfatória. Desta forma, esse lugar social pode ser definido por sua capacidade produtiva, aquisitiva, de autonomia e condição física, o que depende também da forma como ele se vê e é visto pelo outro (Motta, 1999 ).

Moacir (70 anos, Insuficiência cardíaca), quando questionado sobre as implicações do adoecimento no seu papel como homem, relata que é totalmente dependente da esposa, havendo neste caso, um rearranjo da dinâmica familiar de acordo com a definição moderna de família, onde este enquanto homem deixa a posição de chefe da casa para uma condição de dependência do outro. No caso de Manoel e Sebastião, apesar de não serem dependentes da esposa ou filhos, trazem em seu discurso a insatisfação gerada pelos limites físicos:

"Teve muita mudança... pra pior... é, eu falo, sempre a mulher briga comigo porque eu falo 'acabou, eu não sou homem mais! O homem daqui de casa acabou!' [...]. Você sente que não é mais o mesmo [...] A gente tenta conformar e a realidade é essa" (Manoel, 71 anos, Coronariopatia).

"Não vou deixar ela pra dizer assim, 'deixei minha mulher à míngua' mas daqui toda hora eu to conversando com ela lá, todo instante. É só o que eu to prestando pra ela, pra lembrar dela, só. Eu não presto pra nada, nada, nada, nada. Não dou conta de fazer cumê pra ela, de lavar a casa dela, nada, nada, nada. E ela sozinha, peleja, peleja, peleja" (Sebastião, 76 anos, Miocardiopatia chagásica).

Repensar a masculinidade, enquanto identidade social durante a velhice, implica na tentativa de elaboração das perdas vivenciadas diante dos signos representativos da masculinidade. A velhice acaba por demandar do sujeito idoso uma redefinição de seu papel no contexto familiar e social. O amadurecimento e saída de casa dos filhos, a aposentadoria ou saída do mercado de trabalho e a viuvez, dentre outros, podem representar a perda do lugar de referência na família (Figueiredo et al., 2007).

Além da velhice e dos efeitos do processo de envelhecimento experimentados pelos participantes, é importante observar que as esposas também são idosas e que exercem um papel de cuidadora dos companheiros, mas que podem, em muitos casos, necessitar de cuidados que nem sempre são oferecidos pelos companheiros. Isso reforça os papéis sociais de gênero em que à mulher cabem as atribuições de cuidado (Figueiredo et al, 2007; Fernandes, 2009). Além disso, isso reforça, como aparece na fala de Sebastião, a necessidade de cuidados somada ao envelhecimento de ambos os cônjuges reforça o sentimento de impotência desses sujeitos diante das limitações.

O tema das alterações no exercício da sexualidade também apareceu nas falas e foi apontada como uma mudança que ocorre em decorrência do envelhecimento, do adoecimento físico, e que modificou de forma direta o relacionamento sexual. Ari relatou que:

"o problema de diabetes me afetou sexualmente. Só que eu não deixei de ser homem e nem de tá junto com a minha mulher. Nós dois beija, abraça, agarra um o outro, mas nós não tem relacionamento porque a diabete... minha mulher também tem 73 anos, ela não, não [pausa]. Nós dois tá naquela fase de viver a velhice, entendeu?! Nós é companheiro um do outro. Nós é companheiro dela e ela é minha companheira. Entendeu?!" (Ari, 63 anos, Insuficiência Cardíaca).

Mucida (2018) aponta que o encontro sexual, enquanto ato sexual, se esbarra nas mudanças corporais e no desempenho sexual que se apresentam como impeditivos para o desejo. Falar de sexualidade implica pensar no desejo enquanto reconhecimento de que os outros enquanto sujeitos podem faltar. Desta forma, bem como colocado por Ari, a relação sexual na velhice pode também se realizar por outras vias, isso diz de uma ressignificação da sexualidade, que se encontra para além do ato sexual.

Outro núcleo de significação que apareceu nas falas dos participantes foi a respeito da saída do mercado de trabalho. A aposentadoria, enquanto um dos principais indicadores da posição social do sujeito idoso, é uma experiência simbólica marcante que pode ser vivenciada de uma forma positiva ou conflitiva. A aposentadoria impacta os indivíduos em sua constituição psíquica, nos projetos de vida e de identificação, ressalta Mucida (2009). Além disso, a depender do tipo de trabalho de o sujeito exercia, a saída da rotina do trabalho se apresenta como uma imposição e que vai demandar do idoso rediscutir novas vias de investimento pessoal.

No Brasil, a aposentadoria exige alguns quesitos como o tempo de trabalho, tempo de contribuição financeira e idade, assim, alguns idosos chegam à velhice e não conseguem se aposentar por falta de contribuição previdenciária. Essa situação tende a se agravar ainda mais após a controversa aprovação da reforma previdenciária de 2019, no Brasil. Não conseguir se aposentar é um fator agravante de diversos problemas sociais enfrentados pela população pobre, pois alguns indivíduos, incapacitados para o trabalho, não possuem renda fixa e precisam trabalhar mesmo sem condições para tal, enquanto outros dependem da ajuda financeira de parentes e instituições religiosas. Em outros casos, a aposentadoria após anos de atividades laborais braçais (como é o caso de pedreiros e trabalhadores rurais), não representa um descanso, mas diminuição da renda. Desse modo, continuam a trabalhar como meio de obter renda extra e de permanecerem autônomos no que diz respeito à renda e à ocupação do próprio tempo.

Para aqueles que necessitam, mas não conseguem continuar a exercer atividade remunerada devido ao adoecimento ou envelhecimento, as dificuldades financeiras são precipitadores de preocupações e sofrimentos. Sebastião e Jair relataram:

"Eu sinto por que eu não dou conta de trabalhar, meu salário não dá pra mim viver, cê entende?! Não dá porque tem que passar tudo o que tem. Mas que vida boa não, aquela fartura, aquela coisa, do jeito que eu tinha o costume de ter. Meus cinquenta sacos de arroz, meus dez sacos de feijão, meu paiolzão de milho. Muito frango no terreiro, muito porco né?! Mas eu me sinto quebrado" (Sebastião, 76 anos, Miocardiopatia chagásica).

"Só isso que eu vou fazer, tenho renda nenhuma mais. [...] Os parentes, os amigos sempre ajudam, dão uma cesta, ajudam a pagar uma água, uma luz, é assim. As vezes ajudam com um remédio..é assim que a gente vai" (Jair, 60 anos, Miocardiopatia Chagásica).

A saída do mercado de trabalho, seja pela aposentadoria ou pela perda da capacidade laboral, é uma perda significativa para o idoso, pois o desloca de uma posição social de produtividade modificando as relações sociais estabelecidas, a rotina, os projetos e o poder aquisitivo. Além disso, o trabalho se faz não somente a partir de um produto, mas pode ser uma via de investimento do sujeito.

Algumas alternativas descritas como recursos simbólicos diante da velhice são o apoio familiar, sendo filhos e netos apontados como elementos fundamentais para o resgate do sentido diante das perdas físicas e da passagem do tempo. A partir disso, Mucida (2009) afirma que a passagem do tempo não é suficiente para se saber conduzir os destinos do corpo pela via do amor, mas é a partir dele que o sujeito pode se abrir para novas possibilidades diante daquilo que nos foi retirado.

 

Considerações finais

São notórias as mudanças geradas pelo envelhecimento, percebidas a partir dos marcadores biológicos corporais e dos aspectos psicológicos associados. A velhice acompanhada do adoecimento crônico é um desafio ainda maior para esse sujeito que vivencia esse processo e do mesmo modo para a família, que muitas vezes se coloca como cuidadora desse idoso.

O processo de adoecimento é apontado pelos entrevistados como um processo intrínseco ao envelhecimento, podendo ser condição para a autonomia e a diminuição da qualidade de vida. A autonomia, neste caso, é descrita como a capacidade para o autocuidado, para o trabalho, e de exercer seu papel social.

O envelhecimento é compreendido pelos idosos como um processo natural e que repercute no modo de funcionamento do corpo, nos hábitos de vida e modo de ser enquanto pai/ esposo. As modificações do corpo são as mais percebidas, descritas a partir da percepção da lentificação dos movimentos, as alterações de memória, humor e disposição física. As queixas não tratam dos aspectos estéticos do envelhecer, mas do controle sobre o próprio corpo. Em algumas falas, é retratada o lugar social do idoso como um fator de valorização social e inclusive, de aproximação familiar, no entanto, em outros relatos, o ser velho diante dos outros é um aspecto gerador de sofrimento, em se tratando do modo como ele é representado socialmente.

Em relação ao papel social do homem idoso, o discurso dos sujeitos aponta para algumas dificuldades enfrentadas diante da capacidade de reestruturação de sua identidade social diante das perdas vivenciadas na velhice. A força física, a capacidade para trabalhar e a potência sexual são aspectos que aparecem nas entrevistas como fontes de sofrimento. A diminuição da força e a consequente incapacidade para exercer o papel de "homem da casa", exigem desses sujeitos uma reorganização diante do contexto familiar, de modo que o cuidado com a casa e com o idoso se torna responsabilidade da mulher em alguns casos.

A saída do mercado de trabalho é percebida por alguns como o reconhecimento da incapacidade de exercer seu papel social anterior, resultado do processo de envelhecimento e/ou adoecimento. Em outros casos, o trabalho tem a função de manter esse sujeito no meio profissional, mantendo a posição social ocupada. Para aqueles em que a aposentadoria não é possível, as questões econômicas são fontes de preocupação e questionamentos acerca de sua capacidade enquanto homem diante de sua família. Lima e Viana (2018), em estudo acerca do corpo, do tempo e do trabalho na velhice, indicam a necessidade de se repensar a forma como a representação da velhice no imaginário social. Seja devido à aposentadoria ou à incapacidade para o trabalho desencadeada pelas perdas que a velhice traz ao corpo, essa etapa da vida é reduzida à ideia de decrepitude e doença (Lima, 2019; Vieira & Maciel, 2020). As falas dos nossos participantes indicam como essa representação pode se desdobrar em um sofrimento psíquico. No que diz respeito aos homens idosos, ocupar esse lugar de improdutividade acarreta um agravante, pois em nossa sociedade 'ser homem' está diretamente ligada ao 'ser trabalhador e produtivo'.

As falas apresentadas trazem uma infinidade de conteúdos que extrapolam esta discussão. O modo com que cada sujeito descreve as experiências vividas é particular e traz consigo aspectos de sua própria subjetividade. O envelhecimento enquanto um processo natural, muitas vezes permeado pelo sofrimento de uma doença, é um processo individual vivenciado por cada um partir de sua construção enquanto sujeito, seu meio e relações estabelecidas. Conforme indicado por Di Menezes e Lima (2019), apesar da singularidade de cada um dos relatos apresentados pelos participantes, essas experiências compartilhadas refletem a realidade compartilhada pelos idosos, "uma vez que nos constituímos como seres sócio-históricos que compartilham de momentos, ambientes e relações" (p. 124). O estabelecimento de um espaço de escuta e acolhimento no contexto do hospital geral se faz fundamental para se pensar na subjetividade destes sujeitos enquanto sujeitos em transformação. Falar sobre as constantes transformações do envelhecimento, das perdas e ganhos da velhice e do sofrimento do adoecimento físico possibilita a construção de novos sentidos diante da vida.

 

Referências Bibliográficas

Bardin, L. (2011). Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70.         [ Links ]

Birman, J. (1995). Futuro de todos nós: Temporalidade, memória e terceira idade na psicanálise. Em, R. Veras (Org.), Terceira idade: um envelhecimento digno para o cidadão do futuro (pp. 29-48). Rio de Janeiro: Relume-Dumará: UnATI/UERJ.         [ Links ]

Birman, J. (2015). Terceira idade, subjetivação e biopolítica. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, 22(4), 1267-1282.         [ Links ]

Campos, K. B.& Pecora, A. R. (2015) Envelhecer adoecendo: relatos de pacientes idosos internados no Hospital Universitário Julio Muller. Estudos interdisciplinares do envelhecimento, 20(2), 625-643.         [ Links ]

Cherix, K. (2015) Corpo e envelhecimento: uma perspectiva psicanalítica. Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Hospitalar, 18(1), 39-51.         [ Links ]

Debert, G. (2006). A antropologia e o estudo dos grupos e das categorias de idade. Em, M. M. L. Barros (Org.), Velhice ou terceira idade? Estudos antropológicos sobre identidade, memória e política (4 ed., pp. 49-67). Rio de Janeiro: FGV.         [ Links ]

Debert, G. (2010) A dissolução da vida adulta e juventude como valor. Horizontes Antropológicos, 16(34), 49-70.         [ Links ]

Debert, G. (2012). A reinvenção da velhice: socialização e processos de reprivatização do envelhecimento. São Paulo: EDUSP, FAPESP.         [ Links ]

Di Menezes, N. R. C. & Lima, P. M. R. (2019) Envelhecimento e doença crônica: uma análise da autonomia decisória de paciente idosos com Mieloma Múltiplo. Revista SBPH, 22(1), 107-126.         [ Links ]

Elias, N. (2001) A solidão dos moribundos, seguido de envelhecer e morrer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora.         [ Links ]

Fernandes, M. G. M. (2009) Papéis sociais de gênero na velhice: o olhar de si e do outro. Revista Brasileira de Enfermagem, 62(5), 705-719.         [ Links ]

Figueiredo, M. L. F., Tyrrel, M. A. R., Carvalho, C. M. R. G., Luz, M. H. B. A., Amorim, D. C. M. & Loiola, N. L. A. (2007) As diferenças de gênero na velhice. Revista Brasileira de Enfermagem, 60(4), 422-427.         [ Links ]

Giacomin, K. C., Santos, W. J. & Firmo, J. O. A. (2013) O luto antecipado diante da consciência da finitude: a vida entre os medos de não dar conta, de dar trabalho e de morrer. Ciência e Saúde Coletiva, 18(9), 2487-2496.         [ Links ]

Goldfarb, D. (1997). Corpo, Tempo e envelhecimento. São Paulo: Casa do Psicólogo.         [ Links ]

Goldfarb, D. (2004). Do tempo da memória ao esquecimento da história: um estudo psicanalítico das demências. Tese de doutorado. Instituto de psicologia da Universidade de São Paulo, São Paulo.         [ Links ]

Lima, P. M. R. (2013). Tempus fugit... Carpe diem. Poiesis, velhice e psicanálise. Tese de doutorado. Universidade de Brasília. Instituto de Psicologia. Programa de Pós-graduação em Psicologia Clínica e Cultura. Brasília, DF.         [ Links ]

Lima, P. M. R. (2019). Tempo, memória e narrativa em Leite Derramado. Em, Cavalcante, R. (Org.). Cultura, religião e sociedade em Chico Buarque de Holanda (pp. 175-201). São Paulo: Recriar.         [ Links ]

Lima, S. C., Lima, P. M. R. & Coroa, M. L. M. S. (2016). Identidade de velhos: modos de identificação e discursos de resistência na velhice. Domínios de linguagem, 10(3), 903-926.         [ Links ]

Lima, P. M. R. & Viana, T. C. (2018). Velhice e psicanálise: o corpo, o tempo e o trabalho na clínica com idosos. Em, D. U. Hur, Lacerda Jr., F. & Resende, M. R. (Orgs.). Psicologia e transformação: intervenções e debates contemporâneos (edição eletrônica, pp. 217-240). Goiânia: Editora UFG.         [ Links ]

Menezes, N. R. C. & Lima, P. M. R. (2019). Envelhecimento e doença crônica: uma análise da autonomia decisória de pacientes idosos com mieloma múltiplo. Revista SBPH, 22(1), 107-126. [Retirar, é o mesmo artigo Di Menezes e Lima]        [ Links ]

Mercadante, E. F. (2005). Velhice: uma questão complexa. Em, B. Côrte, E. Mercadante & I. Arcuri (Orgs.), Velhice, envelhecimento, complex(idade) (pp. 23-34). São Paulo: Vetor.         [ Links ]

Messy, J. (1999). A pessoa idosa não existe. São Paulo: Aleph.         [ Links ]

Minayo, M. C. S. (2012) O envelhecimento da população brasileira e os desafios para o setor saúde. Fundação Oswaldo Cruz, 28(2), 208-209.         [ Links ]

Monteiro, P. (2005). Somos velhos porque o tempo não para. Em, B. Côrte, E. Mercadante & I. Arcuri (Orgs.), Velhice, envelhecimento, complex(idade) (pp. 57-82). São Paulo: Vetor.         [ Links ]

Motta, A, B. (1999) As dimensões de gênero e classe social na análise do envelhecimento. Cadernos Pagu, 13, 191-221.         [ Links ]

Mucida, A. (2009). Escrita de uma memória que não se apaga. Belo Horizonte: Autêntica Editora.         [ Links ]

Mucida, A. (2018). O sujeito não envelhece: Psicanálise e velhice. Belo Horizonte: Autêntica Editora.         [ Links ]

Peixoto, C. (2000). Envelhecimento e imagem: fronteiras entre Paris e Rio de Janeiro. São Paulo: Annablume.         [ Links ]

Peixoto, C. (2006). Entre o estigma e a compaixão e os termos classificatórios: velho, velhote, idoso, terceira idade. Em, M. Barros (Org.), Velhice ou terceira idade? Estudos antropológicos sobre identidade, memória e política (4 ed., pp.69-84). Rio Janeiro: Editora FGV.         [ Links ]

Sarti, C. A. (1994). A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres na periferia de São Paulo. Tese de doutorado. Faculdade Filosofia, Letras e Ciências humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo.         [ Links ]

Sawaia, B. (1998). A crítica ético-epistemológica da Psicologia Social pela questão do sujeito. Psicologia & Sociedade, 10(2), 117-136.         [ Links ]

Schmidt, M. L. (2008a). Aspectos éticos nas pesquisas qualitativas. Em, Guerriero, I. C.; Schmidt, M. L.; Zicker, F. (Orgs.). Ética nas pesquisas em Ciências Humanas e Sociais na saúde (pp. 47-52). São Paulo: Aderaldo & Rothschild.         [ Links ]

Schmidt, M. L. (2008b). Pesquisa participante e formação ética do pesquisador na área da saúde. Ciência & Saúde Coletiva, 13(2), 391-398.         [ Links ]

Schmidt, M. L.; Torniette, M. A. (2008). A relação pesquisador-pesquisado: algumas reflexões sobre a ética na pesquisa e a pesquisa ética. Em, Guerriero, I. C.; Schmidt, M. L.; Zicker, F. (Orgs.). Ética nas pesquisas em Ciências Humanas e Sociais na saúde (pp. 102-107). São Paulo: Aderaldo & Rothschild.         [ Links ]

Vieira, R. A. & Maciel, L. S. B. (2020). Melhor idade, ou naturalização da velhice e produção de preconceitos?. Série-Estudos, 25(54), 49-63.         [ Links ]

 

 

Andreza Mariz da Silva - Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Goiás. Possui Especialização em Atenção Multiprofissional em Urgência e Emergência pelo Programa de Residência Multiprofissional em Saúde do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás.
Priscilla Melo Ribeiro de Lima - Docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia (PPGP-UFG). Mestrado e Doutorado em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília (UnB).
Marylia Glenda Lopes Dep Sousa - Doutoranda pelo Programa Ciências da Saúde da Universidade Federal de Goiás. Psicóloga Hospitalar no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Goiás (HC - UFG/ EBSERH).

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons