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Psicologia: teoria e prática
versão impressa ISSN 1516-3687
Psicol. teor. prat. vol.14 no.3 São Paulo dez. 2012
ARTIGO ORIGINAL
Brincadeiras em uma comunidade ribeirinha amazônica
Play in an Amazonian riverine community
Juegos en una comunidad ribereña amazónica
Daniela Castro dos Reis; Eline Freire Monteiro; Fernando Augusto Ramos Pontes; Simone Souza da Costa Silva
Universidade Federal do Pará, Pará – PA – Brasil
RESUMO
A pesquisa objetivou descrever as brincadeiras em uma comunidade amazônica, relacionando-as ao contexto ribeirinho e ao seu modo de vida. Utilizaram-se como instrumentos o inventário sociodemográfico e o espontâneo de brincadeiras, a observação naturalística e notas de campo. Participaram da pesquisa 22 famílias, sendo 125 moradores, 66 crianças/adolescentes e 59 adultos. Inicialmente, caracterizou-se a comunidade, identificando os espaços físicos utilizados para brincadeiras, vinculados aos contextos sociais mais amplos. Verificou-se que as brincadeiras expressavam uma cultura tipicamente ribeirinha, influenciadas pela fauna e flora, representando temas domésticos e aspectos ligados ao meio de subsistência. Apesar de a barreira imposta pela floresta e pelo rio limitar o contato entre pares e priorizar as interações no contexto familiar, a cultura infantil apresenta-se ativa, criando estratégias de encontros sociais, como no caso do espaço escolar e do campo de futebol. Conclui-se que a cultura ribeirinha, aliada aos contextos tipicamente amazônicos, propicia modos de brincar diferenciados e específicos.
Palavras-chave: Amazônia; brincar; comunidade; criança; adolescente.
ABSTRACT
The research aimed to describe children's play in an Amazonian community, relating them to the riverine context and style of life. The instruments used were the sociodemographic inventory and spontaneous play, the naturalistic observation and the field notes. Twenty-two families participated in this study, including 125 residents: 66 children/adolescents and 59 adults. Initially the community was characterized and physical space used for play was identified, associated to the social context. It was found that the play expressed a typically riverine culture, influenced by the river and the forest, representing domestic issues and aspects relating to the means of subsistence. Despite the barrier imposed by the forest and river, which limit contact between peers and prioritize the interactions within the family, the children's culture has been active, creating strategies for social gatherings, as in the case of the school and the soccer field. It is concluded that the riverine culture linked to the typically Amazonian contexts, provide different and specific ways to play.
Keywords: Amazon region; children's play; community; child; adolescent.
RESUMEN
La investigación tuvo como objetivo describir los juegos en una comunidad amazónica, relacionándolos con el contexto ribereño y su forma de vida. Fueron utilizados instrumentos como inventario sociodemográfico, el espontáneo de juegos, observación naturalista y notas de campo. Participaron de la investigación 22 familias, 125 vecinos, 66 niños/adolescentes y 59 adultos. Inicialmente se caracterizó la comunidad, identificando espacios físicos utilizados para jugar, vinculados a contextos sociales más amplios. Se verificó que los juegos expresaban una cultura típicamente ribereña, influenciados por la fauna y flora, representando asuntos domésticos y aspectos relacionados al medio de subsistencia. Pese que la barrera impuesta por el bosque y el rio limite el contacto social y priorice las interaciones en el contexto familiar, la cultura infantil preséntase activa. Creando estratégias de encuentros sociales, como en el espacio escolar y campo de fútbol. Se concluye que la cultura ribereña, junto a contextos típicamente amazónicos, ofrecen maneras de jugar diferentes y especificas.
Palabras clave: Amazonía; jugar; comunidad; niños; adolescente.
Introdução
As relações sociais constituem importante artifício no processo de evolução humana, de forma que a sua investigação é fundamental para a área da psicologia do desenvolvimento (BUSSAB, 2003). Os contextos de interação entre pares, de modo especial o grupo de brincadeiras, formam espaços naturais de relação e de desenvolvimento, contribuindo com a construção da identidade individual, grupal e na significação simbólica dos contextos socioculturais. Desse modo, a compreensão do desenvolvimento envolve o conhecimento da sua dinamicidade e complexidade, marcado pelas características do contexto em que a pessoa vive, além da descrição das interações de elementos de ordem pessoal e relacional (SILVA, 2006).
Os estudos do desenvolvimento têm sido realizados com base em diferentes modelos teóricos, entre estes se destaca o modelo bioecológico (BRONFENBRENNER, 1996) que enfatiza a influência exercida pela pessoa (criança/adolescente), o processo, o contexto e o tempo na sua trajetória de vida, de modo que contextos diferentes geram desenvolvimentos distintos (LORDELO; CARVALHO, 2006). Portanto, as situações de brincadeira e o contexto de desenvolvimento estão interligados, uma vez que ambientes diversos propiciam maneiras de brincar diferentes, de acordo com o meio social e seus aspectos culturais particulares (REIS, 2007).
As características específicas do contexto em que as brincadeiras ocorrem refletem na sua forma peculiar de expressão, isto é, cada cultura possui especificidades no brincar, embora esta seja uma atividade universal (MORAES; OTTA, 2003). A brincadeira e os possíveis objetos que fazem parte dela estão marcados pela identidade cultural e por características sociais específicas de uma comunidade. Portanto, a brincadeira é um produto coletivo e inovador, uma vez que quem brinca é um agente ativo desse processo e contribui para a produção de culturas particulares entre os brincantes (CORSARO, 1985).
Partindo da importância das características do contexto, estudos (PONTES; MAGALHÃES, 2003; BICHARA, 1999; JOHNSON; CHRISTIE; YAWKEY, 1999; GOSSO, 2004; REIS, 2007) têm destacado os fatores geográficos, socioculturais, econômicos e familiares que especificam os modos particulares de brincar. Assim, a diversidade geográfica e cultural do Brasil é palco de diversas formas e conteúdos de brincadeiras, o que constitui um vasto campo de investigação, revelador de aspectos universais e específicos. Um exemplo dessa diversidade é o contexto ribeirinho, que se diferencia dos demais em termos físicos e sociais.
A literatura define o contexto ribeirinho com base na forma de sobrevivência adotada por seus moradores. Segundo Noda, Noda, Pereira e Martins (2001), o trabalho essencialmente extrativista e agrícola, às margens dos rios, centrado na produção familiar, é característica marcante da vida ribeirinha. A vida dos "povos das águas" está condicionada ao ciclo da natureza, pois o fenômeno da enchente e da vazante das marés regula, em grande parte, o seu cotidiano, de modo que o mundo do trabalho e das relações obedece ao ciclo sazonal (SCHERER, 2004). Os ribeirinhos tradicionais vivem em comuni dades compostas de vários agrupamentos familiares de 20 a 40 casas de madeira construídas em palafitas, adequadas ao sistema de cheias dos rios, distribuídas ao longo de rios, igarapés, furos e lagos (NODA; NODA; PEREIRA; MARTINS, 2001).
Afora os modos de sobrevivência, a dinâmica de morar às margens do rio na Amazônia configura uma característica relevante neste estudo. Os ribeirinhos apresentam um isolamento tanto com a cultura mais geral (escassez no acesso à mídia escrita e restrição à mídia televisiva e radiofônica) como entre os próprios moradores da comunidade (a distância entre as residências está em torno de 200 metros). Em termos interacionais, o rio atua como constritor e fonte de contato, uma barreira e ponte ambiental, criando e restringindo as possibilidades de interação entre as crianças/ adolescentes (SILVA et al., 2010). Acredita-se que, comparativamente às famílias de comunidades urbanas, há uma maior frequência de interação entre os membros familiares, o que pode consequentemente redundar em estrutura familiar tipicamente acomodada a esse modo de vida.
Esquecidos pelas ações públicas e escondidos na genérica denominação de trabalhador rural, os ribeirinhos enfrentam problemas de toda ordem. Em termos educacionais, o índice de analfabetismo é alto; as escolas das comunidades, em sua maioria, funcionam até a 4ª série do ensino fundamental. Na saúde, existem sérios problemas de saneamento básico, pois, no geral, não há programas dirigidos a essa população. Economicamente, há pouca possibilidade de ascensão social, em razão do baixo domínio tecnológico embutido nos produtos que vendem. Todos esses fatores contribuem para uma condição de vulnerabilidade social (SCHERER, 2004), o que implica uma invisibilidade política e os relega à massa de manobras eleitoreiras.
Quando se consideram esses aspectos, as implicações desse modo de vida para a cultura da brincadeira ribeirinha ainda são desconhecidas. Desse modo, o objetivo deste estudo é descrever o conteúdo e as características das brincadeiras em uma comunidade ribeirinha da Amazônia, em termos de variáveis como sexo e idade, e discuti-los considerando as peculiaridades do contexto ribeirinho e do modo de vida dessa população.
Método
Participantes
Participaram desta pesquisa 22 famílias integrantes da comunidade, totalizando 125 pessoas, das quais 66 eram crianças e adolescentes (entre 0 e 18 anos) e 59 adultos (entre 19 e 85 anos). Entre crianças e adolescentes, 32 eram do sexo masculino e 34 do sexo feminino. Desse total, selecionaram-se crianças e adolescentes na faixa etária de 5 a 18 anos. Destaca-se que se trata de uma comunidade constituída, em sua maioria, por jovens, uma vez que aproximadamente 65% dos moradores encontravam- se na faixa etária de zero a 24 anos. Outro fator importante é a proporção entre meninos e meninas: os bebês e as crianças de 11 a 12 anos eram majoritariamente meninos, a quantidade de meninas igualava-se ou sobrepunha-se à de meninos nas demais faixas etárias.
Ambiente
A coleta de dados aconteceu na comunidade do Rio Araraiana localizada no Estado do Pará, no município de Ponta de Pedras, na Ilha do Marajó, distante cerca de quatro horas de viagem de barco da capital Belém. Cercada pela floresta amazônica e Baía do Marajó, caracteriza-se como área rural, desconhecida daqueles que vivem nos centros urbanos. Apresenta uma lógica de funcionamento própria, com uma rede complexa de relações interpessoais. Sua principal característica baseia-se na economia extrativista. Nessa comunidade, as moradias são construídas em sistemas de palafitas, não há energia elétrica e a população não tem acesso aos serviços públicos básicos.
O espaço físico da comunidade é composto predominantemente por floresta nativa, com campos alagados e áreas de terra firme. Uma vegetação diversificada que serve para a subsistência dos moradores, por meio das atividades de caça e pesca, coleta de frutos e sementes e retirada de insumos naturais para construção de casas e artefatos domésticos, inclusive brinquedos confeccionados por crianças/adolescentes.
Outro aspecto importante da comunidade é a sua relação com o rio. A maioria das casas dos moradores do Araraiana localiza-se às margens do rio, o que demonstra que este é parte integrante do cotidiano. O Rio Araraiana tem a extensão aproximada de 5 quilômetros e largura em torno de 100 metros, com águas barrentas que deságuam na Baía do Marajó, com um ciclo de enchente e vazante. O rio figura como o principal meio de deslocamento dos moradores da comunidade, que o atravessam por meio de pequenos barcos a motor ou canoas a remo. O rio atua também como barreira, impedindo o contato entre os ribeirinhos que moram distantes uns dos outros. O rio, ao mesmo tempo que possibilita encontros, age como constritor de interação.
Instrumentos e técnicas
Utilizou-se o inventário sociodemográfico (ISD) que contém 88 questões referentes ao modo de vida: identificação dos participantes pertencentes ao grupo familiar (nome, idade, gênero, parentesco, estado civil), dados demográficos (renda, escolarização, religião, residência), aspectos referentes ao modo de vida familiar (modo de sobrevivência, alimentação típica, atividade de lazer, atividades sociais, hábitos de saúde e higiene) e contextos de brincadeira (tipos de brincadeira e brinquedo, locais para brincar, companhia e fonte de aquisição dos brinquedos) (ASSEF-MENDES et al., 2008).
No inventário espontâneo das brincadeiras, registraram-se os relatos das brincadeiras, de companhia, dos locais onde elas ocorriam, o período e a descrição.
A observação naturalística das brincadeiras ocorreu por meio da estratégia de observação participante, na qual o pesquisador se inseria no grupo de brincantes. Como registro de campo, utilizaram-se os diários que descreviam eventos e observações dos pesquisadores referentes aos participantes da pesquisa, suas atividades, companhias, brincadeiras e objetos.
Procedimentos de coleta de dados
Os primeiros contatos com os participantes se deram em visitas às residências dos moradores, cujo propósito consistiu na habituação com os pesquisadores e como processo de inserção da equipe de pesquisa no cotidiano da comunidade (ASSEF-MENDES et al., 2008).
Para realizar a inserção na comunidade, um dos moradores, previamente contatado, exerceu o papel de informante, conferindo credibilidade ao pesquisador junto aos participantes e reduzindo eventuais dúvidas quanto às peculiaridades da cultura local e da linguagem falada pelos habitantes. Nesse momento exploratório, ocorreram as apresentações entre pesquisadores e moradores da região, oportunizando o início da fase dos esclarecimentos sobre a pesquisa e a autorização dos participantes para a realização do estudo, cujo protocolo de aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa foi registrado sob o número 2.716/06.
Em seguida, o ISD foi aplicado a todas as famílias, em visitas domiciliares, por díades de pesquisadores, no período de cinco dias consecutivos, e, posteriormente, aplicou- se o inventário espontâneo de brincadeiras com crianças/adolescentes no decorrer de três viagens, com aproximadamente cinco dias de permanência cada.
Procedimento de análise de dados
Os dados foram organizados em duas seções: caracterização sociodemográfica da comunidade e organização das brincadeiras (contexto físico em que as brincadeiras ocorrem, caracterização das brincadeiras observadas e parceria de brincadeiras). A categoria de contexto físico originou três subcategorias: espaço interno, espaço transição e espaço externo. Tais categorias foram criadas em função de semelhanças de brincadei ras desenvolvidas em cada contexto, apesar de algumas ocorrerem em vários espaços.
Resultado e discussão
Caracterização sociodemográfica da comunidade
Família
Nas 22 casas da comunidade, 16 tinham como moradores crianças ou adolescentes, o que indica a importância dessa população no cotidiano das famílias. A composição familiar mínima era representada pelo casal, e a máxima, por 12 membros, caracterizados por uma rede familiar extensa. As idades dos filhos variavam de 1 a 22 anos de idade, e em alguns casos com membros de terceira e quarta gerações.
Os dados apresentados permitem concluir que o arranjo típico de organização dos lares é constituído por famílias numerosas, podendo ter mais de uma geração convivendo em um mesmo ambiente ao mesmo tempo. Esses aspectos contribuíram para um possível sistema de cuidado compartilhado e rede de apoio presente no próprio ambiente familiar. Constatou-se, com base nos dados, que 12 famílias, das 22 que constituem a comunidade do Araraiana, não eram originárias do local, tendo migrado de outras localidades ribeirinhas, de municípios próximos ao Araraiana, com características físicas semelhantes.
A semelhança das características dos contextos de origem dessas famílias com o contexto ribeirinho investigado sugere que os padrões de brincadeiras são similares em função das similaridades culturais desses dois contextos. Tais fatores podem indicar maior trânsito de características culturais dentro da família. Essas características, possivelmente, influenciam nas principais relações desenvolvidas por crianças/adolescentes e na sua respectiva cultura da brincadeira. O apego ao local e o fato de os moradores serem oriundos de contextos físicos e culturais semelhantes podem sugerir uma reprodução de padrões similares ao longo das gerações e, consequentemente, ser um indicativo do desenvolvimento de uma cultura da brincadeira tipicamente ribeirinha.
Modo de vida
Como a comunidade utiliza recursos naturais para sobreviver e seus moradores vivem em função de um ciclo sazonal de abundância e escassez, esses fatores influenciam no ritmo de suas vidas e das brincadeiras.
O extrativismo vegetal exercia um papel relevante na ocupação dessa população, devido à diversidade da flora local, com frutas e sementes. A caça (referida pelos moradores como "lanternar") e a pesca, praticadas de maneira artesanal e não predatória, também influenciavam na vida dessas pessoas. Em geral, essas atividades eram praticadas pelos genitores ou responsáveis das famílias, que incentivavam as gerações mais novas a aprendê-las e realizá-las, sendo suas técnicas frequentemente reproduzidas por elas nas atividades lúdicas, como: brincadeiras envolvendo sementes coletadas (como o bole-bole), a utilização de animais silvestres em brincadeiras e construção de brinquedos, como espingardas e armadilhas.
A renda das famílias complementava-se pela venda, em feiras dos municípios vizinhos, de excedentes dos frutos coletados, do pescado e de artefatos domésticos confeccionados pelas mulheres (paneiros e peneiras). As atividades mencionadas caracterizavam- se por uma divisão de gênero: os homens ficavam responsáveis pela caça e pesca, enquanto as mulheres encarregavam-se das tarefas domésticas e da coleta de sementes. Entretanto, essa divisão poderia ser flexibilizada, pois não se trata de uma estrutura rígida. A maioria dos homens assume o papel de pescador, e a maioria das mulheres, o de doméstica, aspecto que se revela nas atividades lúdicas de crianças e adolescentes, como as brincadeiras de casinha e boneca de garrafa PET e de vassoura de açaí entre as meninas, e entre os meninos a confecção de barcos.
Os brincantes, desde pequenos, eram inseridos nas atividades cotidianas, de maneira que parecia haver uma transmissão do padrão de sobrevivência, reconstruído por crianças e adolescentes na representação de tarefas rotineiras, nas questões de gênero, na construção dos brinquedos artesanais e nas formas e nos conteúdos das brincadeiras próprias do lugar. Dentre as tarefas desempenhadas por crianças e adolescentes, os meninos apareciam, preferencialmente, executando aquelas mais voltadas para a subsistência, enquanto as meninas realizavam mais tarefas voltadas para o ambiente doméstico, o que repercute também na preferência de brincadeira de meninas e meninos.
Religião
Uma das características marcantes da comunidade revelava-se na presença de duas religiões: católica e evangélica. Essas religiões exerciam forte influência no modo de vida dos moradores, inclusive nas atividades lúdicas praticadas por crianças e adolescentes ribeirinhos. A religião tendia a cindir os moradores em dois grupos: os "crentes" e os "católicos". Essa denominação percebida na fala dos evangélicos é marcada por um conjunto de valores e restrições a determinados tipos de comportamentos, como a brincadeira, especialmente aquelas que envolviam a utilização de bola. Nesse contexto, crianças e adolescentes eram proibidos de participar de jogos de futebol.
Categorias de contexto físico em que as brincadeiras são exercidas
Espaço interno
Considerou-se como espaço interno toda área residencial, incluindo o banheiro, localizado fora da casa.
As casas da comunidade seguiam, geralmente, um padrão estrutural semelhante. Na parte frontal, havia uma sala espaçosa, com uma parede que demarcava o restante da residência. O segundo cômodo englobava o quarto e a cozinha que, na maioria das vezes, estavam interligados. Apesar de serem casas pequenas, tinham amplos espaços, já que móveis e utensílios domésticos eram raros, o que facilitava a prática de brincadeiras.
Na parte frontal das residências, existiam trapiches ou troncos de madeira local que serviam de ponte entre a casa e o rio, lugar de intensa atividade lúdica. Normalmente, o banheiro encontrava-se separado da casa, em um compartimento nos fundos do terreno. O banheiro era um pequeno barraco sem cobertura, com um orifício no assoalho.
Com base nas características do ambiente interno das residências, foram registrados, preferencialmente, jogos de tabuleiros como dominó, baralho, dama, peteca (bola de gude), além de brincadeiras como casinha e boneca. Grande parte dessas brincadeiras desenvolvia-se com produtos encontrados na natureza e entre parentes, principalmente irmãos e primos; em alguns casos, identificou-se que os pais brincavam com os seus filhos preferencialmente no período noturno.
Espaço de transição
Faziam parte do espaço de transição o rio, o terreiro e os espaços adentrados em torno da casa. Esta área caracterizava-se por possuir grandes dimensões territoriais, fato que contribuía para o desenvolvimento das brincadeiras.
Na comunidade do Araraiana, o rio representava uma área de interação física, social e cultural, e, inclusive, possibilitava encontros lúdicos observados na hora de viajar, no caminho para a escola ou no próprio banho. Registrou-se, nos fins de tarde, o rio ocupado por crianças e adolescentes com o chamado "banho", momento em que se desenvolvia um conjunto de brincadeiras relacionadas a essa atividade, geralmente entre parentes ou vizinhos. As brincadeiras desenvolvidas nesse período envolviam atividades motoras e de caráter turbulento, tais como saltos, piruetas, mergulhos e brincadeiras de perseguição, como as piras e as disputas de resistência de fôlego. O terreiro, componente dos espaços de transição, era composto pelo terreno ao lado e ao fundo das casas, onde se encontravam plantações de açaí e árvores frutíferas variadas. As crianças e os adolescentes utilizavam esse espaço para brincar preferencialmente no período vespertino, uma vez que a maioria ocupava-se pela manhã com a escola e/ou tarefas domésticas e subsistência. As brincadeiras nesse espaço de transição foram observadas no período de estiagem, no qual o terreno ao redor das casas apresentava consistência dura e seca. As principais brincadeiras registradas nesse espaço foram as piras, o cemitério, a bola, a bandeirinha e a construção de brinquedos como barcos e gaiolas, demonstrando a possibilidade de exploração desse ambiente.
Na subcategoria contextual "espaço adentrado", encontravam-se as proximidades da floresta fechada compostas por capoeira, mata terciária e campo aberto. Esses espaços ficavam entre as residências e favoreciam os encontros dos pares, em período de estiagem. A incursão em territórios extrarresidenciais parecia evocar as atividades neles desenvolvidas, ou seja, as brincadeiras adquiriam conteúdos exploratórios, como a caça e a coleta de espécimes nativos.
Espaço externo
O espaço externo englobava dois contextos, a escola e o campo de futebol. Esses dois contextos distinguiam-se como verdadeiros lócus de socialização, uma vez que possibilitavam que todas as crianças/adolescentes compartilhassem brincadeiras.
Durante o período de estiagem, surgiam, no entorno da escola, áreas livres nomeadas pelos brincantes como "campinho" e "bambuzal". Ambos apresentavam características físicas semelhantes, com terreno limpo, sem vegetação rasteira, devido ao intenso trânsito de brincantes. As principais brincadeiras localizadas nesses espaços foram: pira-garrafão, pira-cola, pira-alta, bandeirinha e cemitério. Todas as brincadeiras encontradas na escola foram desenvolvidas após o período de aula, o que permitia a intensa interação entre crianças/adolescentes que moravam longe e que não tinham contato com seus colegas a não ser no período das atividades escolares.
O campo de futebol, outra subcategoria do contexto "espaço externo", situava-se no terreno da casa de um morador. Apresentava como característica terreno de terra firme, com grande extensão territorial e árvores frutíferas ao redor. Esse espaço demonstrava, de forma geral, ser um lugar privilegiado para o lazer ou para qualquer outra atividade de integração social entre crianças/adolescentes e adultos. Dados se melhantes foram encontrados no trabalho de Oliveira e Francischini (2003). Ressalta-se que esses encontros se restringiam aos católicos, uma vez que os evangélicos eram proibidos de se envolver em atividades com bola.
As brincadeiras mais encontradas nesse espaço foram: futebol, pira-cola, pira-pega, cemitério, roda, entre outras. O campo de futebol consistia em um grande ambiente de interação multietário, porém com uma organização por idade, habilidade e gênero em determinadas brincadeiras.
De maneira geral, dos espaços estudados, a categoria "transição" teve maior frequência de respostas entre crianças e adolescentes (de 5 a 18 anos), de ambos os gêneros. A alta frequência de utilização dos espaços de transição está relacionada a brincadeiras como piras, cemitério e de exploração. Registrou-se alta taxa de presença entre os meninos na categoria externa, fato relacionado ao jogo de futebol, muito difundido entre o gênero masculino, tanto na escola quanto no campo. Na categoria "espaço interno", as brincadeiras mais frequentes foram entre as meninas, que brincavam de boneca e de casinha, atividades lúdicas exercidas no interior das casas.
Essa relação estabelecida entre os espaços e o gênero, bastante difundida na literatura (ARCHER, 1992; MACCOBY, 1990), parece ser coerente quando se observa o maior número de meninas brincando dentro de casa, comparativamente aos meninos. Porém, quando se verifica o número de meninas brincando no espaço externo, percebe- se que esse padrão de comportamento não é idêntico ao das crianças que brincam nas ruas da zona urbana (REIS, 2007), pois, conforme o trabalho de Silva (2006), os meninos usam mais o espaço da rua para brincar do que as meninas.
O período sazonal, de seca e de chuva constante, parece interferir nesse padrão de preferência de locais para brincar no Araraiana. No trabalho com crianças xocós e do Mocambo (BICHARA, 1999), dados similares foram encontrados: a influência de variáveis ecológicas e climáticas, devido ao calor da região, parece interferir nas preferências de crianças e adolescentes.
Apesar da alta frequência de brincadeiras entre crianças e adolescentes, e contrariando as expectativas para uma comunidade ribeirinha, o rio não se revelou um local de intensa atividade lúdica. Embora se tenha registro de brincadeiras, estas aconteciam especialmente na hora do banho. O que se sabe é que lendas amazônicas povoavam o imaginário dos moradores, o que impedia que o rio fosse explorado intensamente por crianças e adolescentes. As brincadeiras no rio eram influenciadas pela natureza, pela cultura, por mitos e tradições. Segundo Wagley (1988), a crença em diversos seres sobrenaturais tem influência sobre as atividades de comunidades ribeirinhas.
No caso do Araraiana, as brincadeiras aconteciam preferencialmente em ambientes abertos, no entorno das casas e da escola. A escola não apresentava um espaço específico para a realização de jogos e brincadeiras, porém, ainda assim, observaram-se grande variedade de atividades lúdicas e intensa interação entre pares, o que talvez esteja relacionado à segurança do local para os brincantes (REIS, 2007).
A diferença entre os diversos tipos de brincadeiras encontrados nos espaços públicos informais pode estar relacionada aos espaços físicos diferentes que implicam brincadeiras distintas, constituindo variável importante na definição de qual tipo de brincadeira é escolhida pelos brincantes e no direcionamento das atividades lúdicas (COTRIM et al., 2009).
Caracterização das brincadeiras observadas
Todas as brincadeiras observadas têm algum tipo de relação com o contexto em que ocorrem, contudo, no contexto ribeirinho, variados aspectos físicos, sociais e relacionais implicam diferentes modos de brincar. Os conteúdos presentes na maioria das brincadeiras refletem o cotidiano da população local, como temas domésticos (cozinha, boneca, comidinha) ou ligados ao modo de subsistência (pescar, conduzir canoa, construir gaiola), e, em alguns casos, aparecem elementos típicos da cultura ribeirinha, como o barco, a espingarda e a gaiola. Tais brincadeiras relacionam-se com a forma física dos brinquedos presentes na região e ainda com os contextos de interações em que são compartilhados pelos brincantes. Assim, pode-se dizer que a cultura ribeirinha propicia brincadeiras específicas do local.
Entre as brincadeiras encontradas, destacam-se o futebol (bola), a pira-esconde, o cemitério, a bandeirinha, a casinha e a construção de brinquedos com produtos da natureza, o que demonstra a preferência dessas brincadeiras entre as 66 crianças e adolescentes da comunidade. Apesar das distâncias entre as residências da comunidade, os dados apontam para um compartilhamento de preferências de brincadeiras entre as crianças, o que indica a existência de uma cultura de brincadeira (PONTES; MAGALHÃES, 2003).
Quanto às preferências por gênero, dentre as 29 brincadeiras escolhidas pelas crianças e adolescentes, nove foram classificadas como exclusivamente femininas e oito predominantemente masculinas, indicando um padrão de interação distinto entre meninos e meninas. No grupo de meninas, encontram-se brincadeiras como boneca, casinha, quebra-cabeça, roda, elástico, entre outras. A brincadeira de boneca se sobrepõe às demais, enquanto, entre os meninos, observam-se brincadeiras competitivas que envolvem alto grau de atividade e desafio entre os participantes, tais como barco, carro, pipa, polícia e ladrão, tiroteio e caçada, com destaque para o barco, que apresenta uma alta frequência em relação às demais brincadeiras masculinas.
Segundo a literatura (ARCHER, 1992; BEAL, 1994), os padrões de interação de meninos e meninas são distintos. Os meninos brincam em grupos maiores e são mais preocupados com status e reputação dentro dos grupos, também são mais rígidos com seus papéis de gênero e preocupados em rejeitar a feminilidade, ao passo que as meninas são mais intimistas nas interações, cooperativas, confidentes e flexíveis em suas interações. O uso do espaço também surge como uma diferença significativa, pois as meninas usam espaços menores, enquanto os meninos ocupam espaços maiores e públicos em suas brincadeiras.
Parceria de brincadeiras
A análise de companhia é um indicativo primordial do papel do parceiro no processo da brincadeira. Análoga à maneira de interação dos adultos, a criança/adolescente seleciona, recorta aspectos do comportamento do parceiro e ajusta-se pelo ajustamento do outro às suas ações. Desse modo, a criança/adolescente constrói, ativa e conjuntamente, atividades, situações e conhecimento compartilhados nas brincadeiras (CARVALHO, 1994).
A presente investigação identificou um alto número de escolhas de parceria entre colegas, irmãos, primos, sobrinhos e pais. Conforme os resultados de Silva et al. (2010), a comunidade do Rio Araraiana é composta por uma grande rede familiar, de modo que a maioria das crianças e dos adolescentes tem algum grau de parentesco, o que refletiu nos dados observados de brincadeira. Nesse sentido, destaca-se ainda a distância entre as residências dos moradores, o que dificultava o contato com outras crianças/ adolescentes fora do núcleo familiar. Geralmente, a parceria entre colegas ocorria quando a brincadeira se dava na escola, um dos poucos espaços de socialização de todas as crianças/adolescentes da comunidade.
Os aspectos mencionados podem evidenciar uma cultura de brincadeira essencialmente familiar, com o desenvolvimento de formas típicas de brincadeira de determinadas famílias, pois a condição de isolamento geográfico imposta às crianças e aos adolescentes dificulta o compartilhamento de uma cultura única de brincadeira. Além disso, no rio, os adultos desempenhavam um papel ativo sobre a cultura da brincadeira, no sentido de que eles ensinavam às crianças e aos adolescentes determinadas brincadeiras, diferentemente do contexto urbano em que as crianças aprendem com outras crianças. Esses aspectos indicam um conhecimento sobre a brincadeira diferente dos encontrados em contextos urbanos já descritos na literatura (PONTES; MAGALHÃES, 2003; LORDELO; CARVALHO, 2006; SILVA, 2006).
Considerações finais
Com base nas análises expostas, verifica-se que os fenômenos sociais, especialmente dentro dos grupos de brincadeira, acompanham um modelo sistêmico em que os aspectos envolvidos configuram-se como reveladores do modo de vida dos sujeitos. A partir desse pensamento sistêmico, propôs-se uma análise integrada da observação naturalística e dos inventários aplicados que revelou o ambiente ribeirinho como uma composição de sistemas (escola, família e trabalho, religião) significativos para crianças/ adolescentes dessa população.
De modo geral, pode-se dizer que os habitantes da comunidade do Araraiana retiram da natureza o seu sustento e interagem com ela em todas as suas atividades cotidianas. Entre eles, existe uma divisão de tarefas quanto ao gênero, e crianças e adolescentes estão constantemente envolvidos nas atividades de subsistência, o que se revela na sua forma característica de brincar. As relações nesses contextos proporcionam às crianças e aos adolescentes contatos sociais e a possibilidade de desempenhar vários papéis e atividades, condizentes com o modo de vida dos habitantes da comunidade. Nesse sentido, fica claro que os sistemas familiar, de trabalho, religioso e escolar estão interligados, ou seja, de uma forma ou de outra se interinfluenciam.
Assim, a autonomia da cultura infantil/juvenil deve ser analisada de acordo com o con texto maior em que está inserida. Por exemplo, nos contextos urbanos, as relações de pares ocorrem de modo disseminado e geralmente independente das relações familiares, como observado nos estudos de brincadeira de rua das periferias das grandes cidades (PONTES; MAGALHÃES, 2003), enquanto o contexto ribeirinho possibilita uma menor autonomia de uma cultura da brincadeira, já que há menor grau de contato en tre pares e maior presença de crianças/adolescentes nas atividades cotidianas familiares.
As brincadeiras encontradas nesta pesquisa geralmente refletem o cotidiano e o modo de vida da comunidade do Araraiana. Muitas representam temas domésticos (cozinha, boneca, comidinha), e outras, temas ligados ao meio de subsistência (pescar, conduzir canoa, construir gaiola), o que demonstra a relação entre o mundo infantojuvenil com o mundo adulto. Verificou-se ainda que várias das brincadeiras expressam uma cultura de características tipicamente amazônica, como é o caso da construção de brinquedos como barcos e gaiolas com material nativo. Essas brincadeiras estão ligadas aos contextos de interação familiar e de pares e são compartilhadas por crianças/adolescentes. Assim, conclui-se que a cultura ribeirinha propicia brincadeiras específicas do local.
Apesar da riqueza dos dados aqui apresentados, este estudo apresenta limitações metodológicas, uma vez que se entende que o uso de um número maior de instrumentos de coleta permitiria a construção de um banco de dados mais complexo que ajudaria a identificar relações pouco evidentes nesta pesquisa. Outra limitação se refere ao tempo de permanência do pesquisador na comunidade investigada. Acredita-se que a permanência do pesquisador por um tempo mais prolongado na comunidade investigada possibilitaria o acesso a informações não disponíveis ao observador.
Embora se reconheçam as limitações desta pesquisa, ela é muito importante porque os dados são incorporados no acervo de brincadeiras infantojuvenis que ocorrem nos diferentes contextos brasileiros. De fato, existe um esforço por parte dos pesquisadores do tema em construir um panorama das práticas dos brincantes no extenso território brasileiro, por acreditarem que estas revelam especificidades do desenvolvimento humano. Nesse sentido, os dados aqui descritos contribuem para a construção desse retrato nacional.
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Endereço para correspondência
Contato
Daniela Castro dos Reis
e-mail: danireispara@yahoo.com.br
Tramitação
Recebido em setembro de 2011
Aceito em junho de 2012