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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.18 no.3 São Paulo dez. 2016

https://doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v18n3p115-126 

ARTIGOS
DESENVOLVIMENTO HUMANO

 

Assistência dos cuidadores nas atividades de autocuidado de crianças em acolhimento institucional

 

Assistance of caregivers in children self-care activities in an institutional care

 

Asistencia de cuidadores en actividades de cuidado personal de niños em contexto institucional de refugio

 

 

Thamires Bezerra Vasconcelos de Azevedo; Lília Iêda Chaves Cavalcante; Sabine Heumann; Raphaela Fonseca Torres

Escola Superior da Amazônia, Belém - PA - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo teve como objetivo analisar, do ponto de vista ecológico, os níveis de assistência prestados pelos cuidadores às crianças nas atividades de autocuidado, em uma instituição de acolhimento. Os dados foram obtidos em observação da interação entre 10 cuidadores e crianças de 3 a 6 anos durante as atividades de alimentação, vestuário e higiene. Após, os episódios foram classificados de acordo com os critérios inspirados na Parte II do Pediatric Evaluation of Disability Inventory. Os 57 episódios de atividades analisadas demonstraram a presença de condutas que sugerem níveis elevados de assistência à criança por parte do educador nas atividades de higiene e vestuário. As atividades de alimentação foram as que revelaram menor nível de assistência. Os resultados sugerem que os níveis observados estão relacionados com as características institucionais, além do grau de dificuldade das atividades, o que pode ser interpretado como facilitador ou não do processo de desenvolvimento.

Palavras-chave: atividades cotidianas; acolhimento institucional; cuidadores; desenvolvimento; autocuidado.


ABSTRACT

This study aimes at analyzing, from an ecological point of view, the levels of care provided by caregivers to children in self-care activities in residential care. Data were obtained from observation of the interaction between 10 caregivers and children aged 3 to 6 years during feeding activities, clothing and hygiene. After that the episodes were classified according to criteria inspired by Part II of the Pediatric Evaluation of Disability Inventory. The 57 episodes analyzed demonstrated the presence of behaviors that suggest high levels of child care by the educator in activities hygiene and clothing. Feeding activities were the ones that showed the lowest level of assistance. The results suggest that the levels observed are related to the institutional characteristics, besides the difficulty of activities, which may be interpreted as a facilitator or not for the development process.

Keywords: activities of daily living; residential care; caregivers; development; self care.


RESUMEN

Este estudio tuvo como objetivo analizar, desde un punto de vista ecológico, los niveles de atención prestada por los cuidadores de los niños en actividades de cuidado personal en un centro de acogida. Los datos se obtuvieron a partir de la observación de la interacción entre los cuidadores y 10 niños de 3 a 6 años, durante las actividades de alimentación, el vestido y la higiene. Después de los episodios se clasificaron según criterios inspirados en la Parte II de la Pediatric Evaluation of Disability Inventory. Los 57 episodios de los tres grupos analizados de actividades demostraron la presencia de comportamientos que sugieren que los altos niveles de cuidado de niños por educador en las actividades de la higiene y de la confección. Las actividades de alimentación fueron los que mostraron el nivel más bajo de la asistencia. Los resultados sugieren que los niveles observados están relacionados con las características institucionales, además de la dificultad de las actividades, que puede ser interpretado como un facilitador o no para el proceso de desarrollo.

Palabras clave: actividades cotidianas; atención institucional; cuidadores; desarrollo; autocuidado.


 

 

Introdução

O grupo de atividades que contempla o que é chamado de atividades de vida diária (AVD) tem sido estudado e apontado como de grande importância para a promoção da saúde e o desenvolvimento do indivíduo. Este conjunto de atividades, comuns a diferentes épocas e culturas, está intimamente relacionado à busca pela sobrevivência e manutenção da vida do indivíduo, podendo ser reconhecido a partir de condutas rotineiras que correspondem às responsabilidades pessoais advindas dos papéis sociais que lhes foram atribuídos (Castanharo; & Wolff, 2014; James, Ziviani, & Boyd, 2014).

De modo particular, o engajamento nesse conjunto de atividades cotidianas tem sido visto como um aspecto essencial para o desenvolvimento nos primeiros anos de vida (Bart, Jarus, Erez, & Rosenberg, 2011). Em condições normais, crianças são motivadas a participar de atividades cotidianas e, com isso, adquirir novas competências, refinar as habilidades existentes e aumentar sua participação e independência em ocupações rotineiras (Davis & Polatajko, 2006; Law, 2002). O crescente engajamento em atividades que possibilitem à criança experimentar processos cada vez mais complexos de interação com o ambiente que a cerca promovem o aprendizado e o desenvolvimento, fazendo com que ela lide melhor com suas necessidades pessoais e os recursos internos e externos para atendê-las (Bronfenbrenner, 2011). Ou seja, sendo o desenvolvimento produto das interações entre a criança e o ambiente deve-se dar atenção às atividades capazes de se constituírem em processos que assegurem independência e autonomia na realização das atividades de autocuidado (Castanharo & Wolff, 2014).

Desse modo, estudos mostram que para a promoção efetiva do máximo desempenho é necessário avaliar o indivíduo, considerando uma série de fatores que podem apoiar ou dificultar o envolvimento da criança nesse tipo de atividade. Nessa perspectiva, vale salientar que, segundo o Fundo das Nações Unidas para a infância (Unicef, 2011), a privação da convivência familiar e comunitária, associada ao acolhimento institucional, ocupa o quarto lugar entre os principais fatores que comprometem o desenvolvimento saudável. Nesse sentido, este estudo tem como objetivo analisar, do ponto de vista ecológico, os níveis de assistência prestados pelos cuidadores às crianças nas atividades de autocuidado, em uma instituição de acolhimento, descrevendo ainda situações cotidianas da interação criança-cuidador que ilustram os achados.

 

Método

O estudo foi realizado em uma instituição de acolhimento infantil de natureza governamental voltada para o atendimento de crianças de zero a seis anos em situação de risco social e pessoal. À época da pesquisa, a equipe era formada por 165 funcionários e atendia em média 50 a 60 crianças. Com relação à rotina institucional, os educadores cumpriam plantões do tipo 12 x 48 (trabalhavam 12 e folgavam 48 horas), organizados em turnos que iam das 7h às 19h.

Para a realização do estudo, contou-se com a autorização judicial do MM Juiz da 1ª Vara da Infância e Juventude da Comarca da Capital e aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Pará (Protocolo n. 014/08).

Participantes: Participaram deste estudo 10 educadores que foram observados em suas rotinas de cuidado às crianças durante a pesquisa realizada por Corrêa (2011). Foram selecionados para análise apenas episódios que envolviam rotinas de cuidado destes educadores com crianças na faixa etária de 3 a 6 anos, por se supor que neste período estas conseguem interagir de forma mais consistente com os educadores no contexto das AVD.

Os educadores participantes tinham entre 27 e 56 anos, sendo que a média de idade era de 38,6 anos. A maioria possuía, pelo menos, um filho (7 de 10 educadores) e havia concluído o ensino superior (três cursaram pedagogia; e um, ciências contábeis), ensino superior incompleto (um) e ensino médio completo (5). O tempo de serviço destes educadores manteve-se entre 11 e 303 meses, sendo que a média ficou em 66,3 meses (ou pouco mais de cinco anos). Todos os cuidadores participantes declararam estar cientes dos objetivos e riscos da pesquisa ao assinarem os Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

 

Materiais e procedimentos

A abordagem dos educadores e a observação de suas práticas de cuidado nas atividades de vida diária da instituição foram realizadas em diferentes ambientes do abrigo. Entre os ambientes onde foram realizadas as sessões de observação destacam-se as áreas destinadas à alimentação (refeitório), à higiene pessoal e ao descanso (banheiros e dormitórios) e à recreação infantil (quintal e outro ambiente denominado barracão).

Neste estudo, foram utilizadas as sessões de filmagem das rotinas dos educadores que trabalhavam na instituição, registradas em meio digital por Côrrea (2011). As filmagens aconteceram após o período de habitação, baseado na perspectiva da Inserção Ecológica proposta por Bronfenbrenner (2011). Os vídeos trazem imagens de episódios do cotidiano institucional, com sequências de interações envolvendo 10 desses cuidadores. As sessões de observação foram realizadas com base na técnica do sujeito focal (Altmann, 1974).

As sessões de observação foram realizadas no período entre às 7h e 19h, visando reproduzir a sequência temporal de um plantão cumprido pelo educador que tem duração de 12 horas. Desse modo, o tempo de observação de cada sujeito focal equivaleu a 12 sessões com duração de uma hora cada, que foram realizadas em 12 dias diferentes. Ao todo, foram realizadas 120 sessões, perfazendo 120 horas de observação dos educadores e suas práticas diárias. As sessões foram planejadas em intervalos que obedeceram os horários e as escalas de trabalho estabelecidas.

Foi utilizado um protocolo para a análise das situações de autocuidado identificadas nos vídeos. Nesta folha, foram especificadas as categorias utilizadas para a identificação (higiene pessoal, vestuário e alimentação), em que cada episódio registrado foi avaliado de acordo com as categorias de análise inspiradas no sistema de escores dos níveis de assistência do cuidador presentes na Parte II do inventário de avaliação padronizado denominado Pediatric Evaluation of Disability Inventory Pedi (Haley, Coster, Ludlow, Haltiwanger, & Andrellos, 1992). O Pedi foi escolhido por ter sido considerado o instrumento mais adequado para medir AVD em crianças que estejam em idade escolar (James, Ziviani, & Boyd, 2014). Os dados obtidos a partir do inventário possibilitam analisar o nível de assistência do cuidador em relação à criança, com foco na realização de ações predefinidas. Essa escala é composta por 20 itens organizados em uma escala de 6 pontos que variam do 5 ao 0, sendo que 0 corresponde ao mínimo de assistência (quando o cuidador não dá nenhuma assistência ou supervisão e a criança experimenta o máximo de dependência) e 5 representa o máximo de assistência (quando o cuidador realiza quase toda a atividade, sem auxílio significativo da criança).

 

Resultados e discussão

Do estudo realizado por Corrêa (2011), foram selecionados 57 episódios de atividades de autocuidado envolvendo crianças de três a cinco anos. Como mostra a Tabela 1, em relação ao tempo, todos os episódios observados na pesquisa somaram um total de 689 minutos e 40 segundos. Cada educadora dedicou em média 70 minutos para as atividades. Os episódios selecionados foram transcritos e depois distribuídos de acordo com as categorias de AVD consideradas pela pesquisa. Na categoria Alimentação, foram observados 20 episódios, perfazendo um percentual de 35% das atividades. A categoria Higiene foi composta por 40% das atividades, em um total de 23 episódios. E, finalmente, na categoria Vestuário, ocorreram 14 episódios, sendo 25% do total das atividades observadas.

A média geral do nível de assistência observado no conjunto dos episódios de AVD foi de 2,31 (DP =1,18), o que corresponde a um nível de Assistência Moderada (Mancini et al., 2005). A média equivalente a 2,31 pode ser interpretada como a situação em que se vê o cuidador e a criança dividindo igualitariamente a responsabilidade sobre a atividade realizada. Entretanto, é importante ressaltar que as médias referentes a cada categoria de AVD variaram de acordo com o tipo de atividade realizada, qual seja, alimentação, higiene e vestuário.

Fez-se necessário ainda entender as características e a dinâmica do ambiente em que foram realizadas as atividades selecionadas para análise. Por se tratar de um estudo em contexto de acolhimento institucional, compreende-se ser importante destacar as condições ecológicas específicas em que estes aspectos de desenvolvimento acontecem, o que inclui pessoas, objetos e relações (Bronfenbrenner, 2011). Analisar o desenvolvimento de crianças em instituições de acolhimento exige, pois, perceber os fatores de risco e de proteção inerentes a esse contexto específico e as relações desenvolvidas nesses espaços de convivência.

Nesse sentido, para melhor entendimento dos fatores que influenciaram os resultados em cada uma das atividades analisadas, a seguir será apontando o perfil do desempenho infantil no cumprimento de cada uma delas e, consequentemente, do nível de assistência do cuidador nelas e a análise das relações proximais estabelecidas e dos fatores contidos nos diferentes contextos de desenvolvimento.

Atividades de higiene pessoal

Neste estudo, as atividades de higiene pessoal foram entendidas como todas aquelas que envolveram o cuidado da criança com o próprio corpo, tais como banho, escovação dos dentes, limpeza das mãos, nariz e boca, além do trato do cabelo e o uso do toalete (Mancini et al., 2005). Nesse sentido, os momentos de higiene pessoal registrados foram divididos em dois grupos de atividades: banho e outras atividades. Essas atividades podiam ser realizadas coletivamente ou individualmente, envolvendo um ou mais educadores e obedeciam uma rotina institucional, com horário predefinido. Observou-se que havia geralmente preocupação por parte dos educadores em conduzir grupos de crianças menores nesses momentos específicos.

Com relação ao nível de assistência prestado às crianças apurado nesta categoria, a média obtida foi de 1,65 (DP =0,93), sendo o valor mínimo de assistência 3 e valor máximo 0. Esta média aponta a observação de níveis que variaram entre assistência máxima (nível 1), em que o cuidador fica responsável por realizar mais da metade da atividade, e a assistência moderada (nível 2), em que a sua participação foi inferior a 50% da atividade.

Pelo exposto, constatou-se que as atividades de higiene pessoal caracterizaram-se por um grau mais elevado de assistência prestado às crianças pelo cuidador. Este resultado pode estar associado ao uso de chuveiros ou banheiras, material para limpeza dos cabelos e do corpo todo (xampu, condicionador, sabonete ou mesmo medicamentos), escova e pasta de dente, entre outros produtos e utensílios que entrarão em contato direto com a pele e os órgãos da criança, podendo lhe oferecer algum tipo de ameaça ou dano, o que corrobora com os achados de Mancini et al. (2002) sobre padrão semelhante encontrado nos seus estudos em ambiente familiar.

Estudos de Mancini et al. (2002) demonstram que as atividades de higiene em geral apresentam um alto grau de dificuldade, o que pode justificar a necessidade de um maior nível de assistência nessa categoria de atividades. Nos episódios de AVD selecionados para análise, verificou-se que conduta semelhante foi observada entre um dos participantes da pesquisa, como ilustra o episódio descrito a seguir. Para a exposição dos relatos selecionados, foram estabelecidos códigos que representam Educadores (E) e Crianças (C), seguidos de um número que identifica a ordem em que cada um dos sujeitos (tanto E quanto C) aparece nos relatos.

EPISÓDIO 1: [...] E1 pega a menina pelo braço e começa a enxugar o cabelo dela. Enquanto ainda está passando a toalha no cabelo de C1, E2 entra no banheiro e entrega um frasco com medicação para pediculose a E1 [...]. E1 vai até o guarda-roupa, abre a porta, guarda alguns utensílios que estava utilizando no banho das crianças. A educadora se aproxima de outra criança, agora um menino, e começa a enxugar o seu corpo, começando pela cabeça [...]

Apesar das atividades de autocuidado terem demandado níveis elevados de assistência por parte dos cuidadores, conforme observado nas práticas destinadas à higiene pessoal, os dados levantados identificaram também a presença de estratégias de incentivo a um maior envolvimento da criança, o que pode ser exemplificado pelo episódio 2:

EPISÓDIO 2: No banheiro, E2 e C2 se preparam para o banho. O menino está vestido com uma sunga, que é retirada por E2, sem auxílio da criança. No chuveiro, os dois conversam e E2 incentiva o menino a se molhar e a lavar as mãos. Nesse momento, E2 demonstra à criança como realizar a atividade e a criança passa a lavar as próprias mãos. [...]

Ainda sobre esse ponto, observou-se que a escolha do nível de assistência prestada dependeu em algumas das situações analisadas, como a idade da criança, mas também de fatores pessoais, como o tempo de serviço na instituição e outros. O estudo de Corrêa e Cavalcante (2013) identificou que quanto maior o grau de conhecimento sobre o desenvolvimento aferido a partir da aplicação do Inventário do Conhecimento de Desenvolvimento Infantil (Kidi), maior o tempo em que os educadores dedicavam às atividades de cuidado e melhor era a qualidade das interações estabelecidas com ela (mais estímulo e atenção às demandas infantis). A aplicação deste inventário tem como base teórica a perspectiva de que o conhecimento dos cuidadores sobre desenvolvimento infantil pode influenciar o comportamento e suas práticas de cuidado com as crianças.

Em síntese, os momentos de higiene, apesar de apresentarem maior grau de dependência das crianças em relação aos adultos e à assistência por eles prestada, também foram marcados por interações ricas em aprendizado e pela preocupação dos educadores em maximizar as oportunidades de aprendizado colocadas na realização das atividades diárias. Na visão bioecológica, esses momentos de interação são importantes fatores de proteção para o desenvolvimento da criança acolhida, visando fortalecer o sentido de convivência familiar no ambiente do abrigo.

Atividades de alimentação

A partir da análise dos episódios que envolviam esta modalidade de AVD, o almoço e o jantar foram refeições em que foi possível se observar níveis maiores de assistência às crianças. A média obtida com base nos diferentes níveis de assistência do cuidador nos episódios que envolveram atividades de alimentação equivaleu a 3,3 (DP =0,47), sendo o valor mínimo de assistência 4 e valor máximo 3. Essa média, a maior entre todas as apuradas, pode ser definida como nível de assistência mínima, isto é, a situação em que criança necessita apenas de uma pequena quantidade de ajuda do cuidador, geralmente no início e no fim da atividade.

A média do nível de assistência desta categoria pode ser ilustrada a partir da descrição contida no episódio 3, no qual se vê várias crianças sentadas à mesa no refeitório da instituição:

EPISÓDIO 3: E3 pega os pratos que estão empilhados no centro da mesa e coloca um a um à frente de cada criança. [...] E4 olha para uma das crianças, a que possui um irmão gêmeo, que está sentado à mesa e lhe diz: Calma, devagar. E4 olha para C5 e diz: "Devagar, C5, que tem mais". E4 vai até a primeira criança, um dos gêmeos, da mesa e diz "Bora misturar, bebê, pra ti comer tudinho". Vai até C6 e fala "Deixa eu misturar o teu, C6. Comer tudo pra ficar forte". [...]

Este episódio ilustra a preocupação do cuidador em fazer com que as crianças realizem a maior parte da atividade, encorajando especificamente e orientando algumas delas. Por acompanhar um grupo formado por um grande número de crianças, o educador procura dar comandos verbais, estimulando-as a cumprirem com a atividade sozinhas. Lordelo (1998) sinaliza que os momentos em que as crianças são alimentadas ou levadas a se alimentarem sozinhas são de grande importância para o desenvolvimento da criança, seja no ambiente familiar, seja no ambiente institucional.

A American Occupational Therapy Association (Aota) (2015) sinaliza ainda que o engajamento em ocupações reflete os contextos e ambientes em que são realizadas. Em vista disso, um fator que poderia ser considerado de risco, o número reduzido de cuidadores para um número grande de crianças, se torna favorecedor de desenvolvimento, na medida em que estimula a autonomia e a independência nesse tipo de AVD, o que corrobora os achados de Brazelton e Sparrow (2003), que discutem que a alimentação apresenta-se como um momento de grande experimentação de sua autonomia por parte da criança. Observou-se ainda que as atividades de alimentação foram marcadas por orientações dadas pelos educadores quanto à importância de a criança cultivar bons modos à mesa (respeitar a hora da alimentação, sentar-se corretamente), além de saber evitar o desperdício de comida e o incentivo à conclusão da atividade.

Ainda com relação aos ensinamentos passados pelos cuidadores nas atividades de alimentação, entende-se que estes são intrinsecamente ligados aos aspectos da cultura na qual estão inseridos, como reafirma Seabra & Seild-de-Moura (2005). Para as autoras, a alimentação propicia o contato mais próximo da criança com o cuidador e pode fazer do momento das refeições um contexto aberto às influências do meio social. Conclui-se, portanto, que, embora no contexto institucional a alimentação tenha caráter coletivo, essa estrutura propicia a criança maior liberdade de experimentação e reafirmação de significados ocupacionais.

Atividades de vestuário

Quanto à essa categoria de AVD, há um ponto curioso a ser destacado: com frequência foi observado o uso coletivo de roupas e calçados, em que as crianças poucas vezes tiveram a oportunidade de escolher a peça do vestuário que iriam vestir ou que seria da sua preferência. Essa situação reflete a influência das estruturas organizacionais presentes no macrossistema que prejudicam o sentido de convivência familiar e comunitária que poderia ser resgatada nos ambientes institucionais. Entretanto, também se constatou certa preocupação por parte do educador em oportunizar esta escolha ou mesmo priorizar o uso das peças que agradavam mais às crianças. Este dado corrobora os achados de Cavalcante (2008), que destaca que estratégias voltadas à escuta das preferências das crianças podem ser encontradas em ambiente institucional, por vezes, como forma de se obter a adesão delas à atividade ou até no sentido de apaziguar conflitos estabelecidos nas interações com seus pares.

Do mesmo modo, nas atividades de vestuário descritas e analisadas por este estudo, foi identificado um número maior de comportamentos de cooperação e ajuda entre pares, às vezes incentivados pelos próprios educadores, de acordo com a descrição contida no episódio a seguir:

EPISÓDIO 4: [...] Olha para C7 e pergunta: "Tu sabe vestir a tua roupa sozinho?". Ele aponta para C8 e fala: "Olha a C8 ali". E1 olha para a menina e lhe diz: "Ela vai olhar, né". E4 lhe dá a roupa que seria usada por C7. E4 recebe a roupa e olha para C7. Em seguida, pergunta à criança: "Tu sabe vestir sozinho?". C7 responde-lhe que não. E4 retruca então: "Não? Mas tem que aprender já". Ela diz isso à criança enquanto começa a lhe vestir a cueca. Depois, ela lhe pergunta: "Quantos anos tu tem?". Ela faz a pergunta e continua a vestir a cueca na criança. Na sequência, ela pega o short e fala: "Vem, gato. Quantos anos tu tem? 2? 3?". E lhe veste o short. [...]

Quantitativamente, o nível de assistência constatado nas atividades de vestuário foi 2 (DP =1,35), tendo sido encontrado o valor mínimo de assistência 5 e valor máximo 0, o que corresponde ao nível de ajuda moderada prestada pelo cuidador à criança. Os dados estatísticos demonstraram uma variação evidente entre os níveis de assistência encontrados no desempenho desta AVD, tendo sido observados episódios que foram reconhecidos como de assistência total (escore 0) até o nível que indica uma situação de completa independência da criança (escore 5).

A variação existente entre os níveis de assistência no momento da troca de roupa, por exemplo, pode ser vista como o resultado de fatores como o grau de dificuldade que as crianças apresentaram no cumprimento desta atividade em consonância com a dinâmica que define a distribuição do tempo na rotina institucional, por exemplo, o prazo destinado à sua execução. Estudos empíricos conduzidos com crianças típicas e com crianças com patologias limitantes demonstram que, no geral, o grau de dificuldade encontrado na realização de atividades de vestir, despir, utilizar zíperes, abrir e fechar botões é elevado em ambos os grupos (Mancini et al., 2002). A esse fato soma-se um conjunto de situações que são comuns ao desenvolvimento dessa atividade em ambientes coletivos de cuidado, como são as instituições de acolhimento infantil, com grande número de crianças para um único cuidador, horários predeterminados etc. Em contrapartida, observou-se que as estratégias de incentivo e de orientação dadas pelos educadores foram medidas importantes no sentido de se buscar diminuir o impacto negativo do ambiente institucional e suas rígidas rotinas e regras a serem cumpridas.

Pelo exposto, pode-se analisar os resultados em duas esferas diferentes, o primeiro como um fator positivo para desenvolvimento e o segundo de forma a dificultar esse processo. Primeiramente, por um lado, no contexto institucional, uma porção maior de orientação e apoio à criança, por parte do educador, pode ter um significado bastante diferente do observado em ambiente familiar, por corresponder a mais momentos de interação entre criança e educador, o que, em tese, favorece a formação de laços afetivos, melhorando a qualidade das relações. Por outro lado, este mesmo resultado pode ser compreendido no sentido de que quanto maior o nível de assistência menor tende a ser a liberdade que criança terá para exercer sua autonomia nas AVD e em outras atividades, o que poderá ter implicações negativas para o curso do desenvolvimento.

Em vista disso, entende-se que pesquisar ambientes diferenciados, como instituições de acolhimento, é de suma importância para melhorar o entendimento do curso do desenvolvimento em suas várias faces. Somente um conhecimento abrangente dos processos de desenvolvimento envolvidos nesses ambientes pode proporcionar situações para que crianças que convivem nessas instituições de longa permanência desenvolvam senso de autonomia por se sentirem seguras e preparadas para o cumprimento das várias atividades que marcam a sua vida diária.

A compreensão do desenvolvimento humano deve vir ao encontro da urgência de proporcionar esse conhecimento aos indivíduos diretamente envolvidos no processo, tais como os cuidadores, instituições e legisladores. Os estudos de Cruz, Cavalcante e Pedroso (2014) corroboram a necessidade de se investir na formação e na difusão das informações acerca do desenvolvimento infantil, tanto em contextos familiares (em que a mãe assume o papel de principal responsável) quanto em institucionais (em que profissionais assumem esse papel). Levar as cuidadoras a essa reflexão pode melhorar a qualidade do cuidado que dispensam às crianças. Do mesmo modo, intervir nas interações entre cuidador e criança impacta nos processos proximais, o que reflete não apenas nos comportamentos no contexto imediato em que a criança está inserida, mas também em outros ambientes, como; na sala de aula e na relação entre pares (Cia & Barham, 2013). Conhecer as influências dos diferentes níveis do ambiente no desenvolvimento se faz necessário para compreender quais medidas devem ser tomadas no sentido de proporcionar um atendimento individualizado e capaz de formar indivíduos preparados para os desafios futuros da vida adulta.

Estima-se que este estudo tenha contribuído para o entendimento das instituições de acolhimento enquanto ambiente ecológico de desenvolvimento de muitas crianças, levantando questionamentos acerca de vários fatores que concorrem para a qualidade do serviço prestado a elas, em que se inclui a intensidade e o tipo da assistência prestada pelos educadores nas situações de AVD. No entanto, supõe-se serem necessários mais estudos capazes de embasar medidas que visem melhorar este aspecto dos serviços de acolhimento, qualificando os profissionais envolvidos no cuidado e maximizando as potencialidades desse ambiente como promotor do desenvolvimento. Entende-se que este estudo apresentou como limitação o olhar focado em uma única instituição, tendo em vista que a realidade nacional em termos de acolhimento de institucional é variada e abrangente.

 

Referências

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Endereço para correspondência:
Thamires Bezerra Vasconcelos de Azevedo
Universidade Federal do Pará
Travessa Dom Pedro I, 1113, ap. 504, Umarizal
Belém - PA - Brasil. CEP: 66050-100
E-mail: thamiresv@gmail.com

Submissão: 26.9.2015
Aceitação: 14.9.2016

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