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Psicologia: teoria e prática

versão impressa ISSN 1516-3687

Psicol. teor. prat. vol.21 no.1 São Paulo jan./abr. 2019

https://doi.org/10.5935/1980-6906/psicologia.v21n1p186-203 

ARTIGOS
DESENVOLVIMENTO HUMANO

 

Livro infantil especializado como estratégia de prevenção do abuso sexual

 

Specialized children's picture book as a strategy of sexual abuse prevention

 

Cuentos infantiles ilustrados como estrategia para prevenir el abuso sexual

 

 

Sheila Maria P. SomaI; Lúcia C. A. WilliamsII

IDepartamento de Psicologia, Laboratório de Análise e Prevenção da Violência (Laprev), Universidade Federal de São Carlos (Ufscar)
IIDepartamento de Psicologia, Universidade Federal de São Carlos (Ufscar)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O estudo avaliou se um livro infantil sobre abuso sexual é um meio efetivo para desenvolver habilidades autoprotetivas em 33 crianças de uma escola pública. Os instrumentos utilizados foram: versão adaptada do What If Situation Test (Teste de Situações Condicionais - TSC), que avalia a aquisição de três habilidades autoprotetoras (reconhecer, resistir e relatar); Protocolo de Observação de Atividades Práticas com Familiares e Crianças; e análises qualitativas de verbalizações das crianças filmadas. Em um delineamento experimental, os participantes foram divididos em três grupos: contação de história com livro sobre prevenção do abuso sexual; contação de história com livro não específico sobre abuso sexual e grupo controle (sem contação ou livro). Observou-se que as crianças que participaram da contação com livro sobre abuso sexual obtiveram melhor desempenho em comparação aos outros grupos, apresentando aumento significativo na habilidade de relatar o fato abusivo ocorrido a uma pessoa de confiança.

Palavras-chave: abuso sexual infantil; contação de histórias; prevenção; habilidades autoprotetivas; livros infantis.


ABSTRACT

This study evaluated whether storytelling based on a children's picture book on sexual abuse prevention is an effective way to acquire self-protection skills in 33 children of a Brazilian public school. The instruments included: the adapted Portuguese version of the What If Situation Test (WIST III-R), which was used to assess the acquisition of three self-protective skills (recognize, resist, and report); the Observational Protocol of Practical Activities with Parents and Children; qualitative analysis of children's filmed verbalizations. Participants were divided into three groups in the experimental design: story-telling with a child sexual abuse prevention book, story-telling with a nonsexual abuse prevention book, and a Control Group without intervention. Children who participated in the child sexual abuse book intervention had a statistically significant increase in the ability to report the abuse to a trusted person.

Keywords: child sexual abuse; storytelling; prevention; self-protective skills; child books.


RESUMEN

El estudio evaluó si un libro infantil sobre abuso sexual es un medio efectivo para desarrollar habilidades auto protegidas en 33 niños de una escuela pública. Los instrumentos utilizados fueron: una versión adaptada para el portugués de What if Situation Test (TSC), que evalúa la adquisición de tres habilidades auto protectoras (reconocer, resistir y informar), el Protocolo de Observación de Actividades Prácticas con Familiares y Niños; y análisis cualitativos de verbalizaciones de los niños filmadas. En un delineamiento experimental los participantes fueron divididos en 3 grupos siendo: cuenta de historia con libro sobre prevención del abuso sexual; cuenta de historia con libro no específico sobre abuso sexual y Grupo Control sin historia o libro. Se observó que los niños que participaron en la cuenta con el libro de prevención del abuso obtuvieron un aumento significativo en la habilidad de Reportar el hecho abusivo ocurrido a una persona de confianza.

Palabras clave: abuso sexual infantil; cuenta de historias; prevención; habilidades autoprotegentes; libros infantiles.


 

 

1. Introdução

O abuso sexual infantil ocorre, na maioria dos casos, no ambiente familiar ou no círculo de relações da criança. É caracterizado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como o envolvimento da criança em atividade sexual da qual ela é incapaz de dar consentimento ou para a qual não tem preparo do ponto de vista de seu desenvolvimento, ou, ainda, que viole leis ou tabus sociais de uma sociedade (Krug, Dahlberg, Mercy, Zwi, & Lazano, 2002). Tal abuso envolve uma discrepância na relação de poder entre um adulto (ou adolescente mais velho) e a criança (ou adolescente), na qual a segunda é usada como objeto de satisfação sexual do primeiro (Cunningham, 2009). O ofensor sexual geralmente é do sexo masculino, sendo uma pessoa da confiança da criança e da família, cuja atuação é permeada por seduções, ameaças e geração de sentimentos de medo, culpa e segredo (McDaniel, 2001; Williams, 2012).

Apesar de não haver estudos epidemiológicos populacionais investigando a prevalência de abuso sexual infantil no Brasil, há farta evidência com base em estudos internacionais diversos de que tal fenômeno é frequente. Em um estudo de revisão sistemática com metanálise, Stoltenborgh, Ijzendoorn, Euser, & Bakermans-Kranenburg (2011) analisaram 217 publicações (de 1980 a 2008) sobre a prevalência do fenômeno, englobando 9.911.748 participantes ao redor do mundo (Brasil não incluído), concluindo que a prevalência é de 11,8% na população, sendo mais frequente para meninas (18%) do que para meninos (7,6%). Estudos nacionais confirmam tal desproporção de gênero, porém alertam para a gravidade de sequelas em meninos (Costa, Penso, Conceição, Rocha, & Williams, 2018; Habigzang, Koller, Azevedo, & Machado, 2005).

Trata-se de um fenômeno subnotificado, pois reflete apenas os relatos que chegam ao sistema de garantia de direitos, portanto, não representa a realidade do problema (Cunningham, 2009; Padilha & Williams, 2009). Dados do sistema Vigilância de Violências e Acidentes do Ministério da Saúde [VIVA] (2011) informam que, em 2011, foram registradas 14.625 notificações de casos de violência contra a criança nessa faixa etária, e 35% delas correspondem a casos de abuso sexual. O Disque 100 Nacional divulgou dados sobre as notificações de violência praticada contra crianças/adolescentes de janeiro a julho de 2018, informando que dos 71.640 casos de denúncias recebidas, 8.581 eram referentes a situações envolvendo abuso sexual.

Este estudo apoia-se no referencial teórico da psicologia do desenvolvimento, tendo como foco a prevenção de problemas de saúde mental em crianças e adolescentes, tal como proposto por Murta, Leandro-França, Santos, & Polejack (2015). Embora a prevenção do abuso sexual infantil possa englobar três níveis de prevenção, conforme proposto por Wolfe (1998), o foco do presente estudo volta-se para a prevenção primária do fenômeno. O sociólogo David Finkelhor tem acompanhado a prevalência do abuso sexual, e, nos Estados Unidos, esse tipo de abuso teve uma redução de 65% em notificações a agências de proteção de 1990 a 2016 (Finkelhor, Saito, & Jones, 2018). Entre as possíveis hipóteses para a redução de tais casos, encontra-se o grande esforço em todos os níveis preventivos de abuso sexual nesse país.

O Brasil tem experiência em programas de prevenção primária do abuso sexual infanto-juvenil, por exemplo, o programa de prevenção primária ao abuso sexual infanto-juvenil direcionado a professores, profissionais e adolescentes realizado no ambiente escolar (Brino & Williams, 2009), o programa de intervenção escolar para a prevenção do abuso sexual realizado com pré-adolescentes e adolescentes (Padilha & Williams, 2009; Williams, Padilha, & Brino, 2013), e ainda o estudo de Williams, Albuquerque, Stelko-Pereira, & Santini (2014), que avaliou uma capacitação para a prevenção do abuso sexual com profissionais do Projeto Escola que Protege. A importância de tais programas reside no fato de que uma das principais funções da escola é a formação da cidadania plena, sendo na escola que as crianças e adolescentes passam boa parte do seu tempo (Walsh, Zwi, Woolfenden, & Shlonsky, 2015).

O foco da intervenção do presente estudo, entretanto, não será na capacitação de educadores, e sim no ensino de habilidades de autoproteção para a criança escolar. As crianças vítimas de abuso sexual podem apresentar dificuldades em discriminar as manifestações afetivas; não perceber a diferença entre o que é um ato agressivo e um ato cooperativo, além de não possuírem repertório para agir de forma adequada diante dessas situações. Portanto, aprender a identificar riscos deve ser um dos objetivos principais dos programas de prevenção (Soma & Williams, 2014, 2017; Williams et al., 2013).

Os programas preventivos de abuso sexual direcionados à criança devem promover o ensino de habilidades de autoproteção, ou seja: a) ajudá-la a reconhecer potenciais situações abusivas ou ofensores em potencial; b) ensiná-la a resistir ("dizer não") e se retirar da presença do ofensor; e c) incentivá-la a relatar incidentes abusivos (anteriores ou atuais) a uma figura de autoridade e de confiança, enfatizando os três "Rs" - reconhecer, resistir e relatar (Padilha & Williams, 2009; Soma & Williams, 2014, 2017; Wurtele, 2008).

Um estudo de revisão sistemática com metanálise (Walsh et al., 2015) buscou evidências da eficácia dos programas preventivos nas escolas com o intuito de auxiliar crianças a evitar o abuso e buscar ajuda. Após exame minucioso de 24 artigos com 5.802 participantes, os autores concluíram que as habilidades de autoproteção podem ser desenvolvidas pela participação das crianças em programas preventivos no ambiente escolar.

Entre as estratégias que podem ser utilizadas nos programas preventivos de abuso sexual com crianças, há a utilização de literatura infantil de abordagem preventiva (LIAPs) (Soma & Williams, 2014). Contudo, apesar de existirem livros que abordem o tema do abuso sexual diretamente para crianças, há poucos estudos que utilizam e avaliam esse recurso, e, em um estudo de revisão de literatura sobre avaliação de livros infantis para a prevenção do abuso realizado entre 1997 e 2012, encontrou-se apenas três publicações internacionais que tratavam sobre a temática (Soma & Williams, 2014).

Um segundo estudo das mesmas autoras (Soma & Williams, 2017) analisou o conteúdo de seis livros infantis brasileiros sobre abuso sexual, com base em 27 critérios estabelecidos pela literatura (McDaniel, 2001; Lampert & Walsh, 2010). Todos os livros foram bem avaliados por especialistas da área de diversas regiões do Brasil, e o livro O segredo da Tartanina (Silva, Soma, & Watarai, 2011) destacou-se dos demais, pois, de acordo com os avaliadores, apresentava maior número de critérios pertinentes para a prevenção do abuso sexual, em comparação com os outros títulos. Dessa forma, o livro de Silva et al. (2011) será o LIAP a ser utilizado neste estudo.

Assim, o estudo pretende contribuir para a diminuição da carência de estudos brasileiros com a temática da prevenção do abuso sexual infantil, tendo o objetivo de avaliar se a contação de história apoiada em um livro especializado sobre a prevenção de abuso sexual é um meio efetivo para a aquisição de habilidades de autoproteção em crianças. Cabe ressaltar que se trata do estudo principal da dissertação de mestrado da primeira autora, sob a orientação da segunda autora.

 

2. Métodos

2.1 Participantes

O presente estudo foi realizado com 33 crianças com idades entre 7 e 10 anos que frequentavam o 2º ano do ensino fundamental de uma escola estadual no município de Ribeirão Preto, SP. Entre as crianças participantes, 14 eram do sexo masculino e 19 do feminino.

2.2 Instrumentos

Foram utilizadas a tradução e a validação do instrumento What If Situation Test (WIST III-R) (Wurtele, Hughes, & Owens, 2006). Tal instrumento foi planejado para ser lido à criança em entrevista individual e apresentar confiabilidade interna de teste e reteste das seis escalas de acordo com os padrões de exigência para pesquisa (Alfa de Cronbach de 0,75 a 0,90 e Coeficiente de Pearson de 0,60 a 0,84), refletindo adequada consistência interna e estabilidade temporal. Após os procedimentos de tradução, com autorização da autora, e retrotradução do instrumento original, a nova versão em português foi enviada para três juízes especialistas em abuso sexual e desenvolvimento infantil, que propuseram adequações (troca das expressões "pessoa adulta" por "gente grande"; "um jogo realmente muito divertido" por "um jogo divertido"; "pouco tempo" por "um tempinho"; "machucado" acrescentou-se "machucado (dodói)"; "sem roupa" pela palavra "pelado"). Em seguida, foi conduzido um projeto piloto com cinco crianças, sendo realizados os ajustes finais necessários. O instrumento em português passou a ser chamado de Teste de Situações Condicionais (TSC).

O TSC apresenta seis escalas compostas por situações que questionam como a criança procederia diante das cenas a fim de avaliar as habilidades de reconhecer, resistir e relatar. As cenas 1, 2 e 6 são consideradas apropriadas, pois apresentam situações nas quais não haveria problemas se a criança permitisse que alguém tocasse suas partes íntimas (por exemplo, médico, enfermeira ou pais tocarem em partes íntimas da criança para verificar um machucado ou administrar alguma medicação). As cenas 3, 4 e 5 são consideradas inadequadas por representarem risco à criança (por exemplo, um vizinho solicitando tirar fotos da criança sem roupa, uma babá pedindo que a criança lhe toque em suas partes íntimas e um homem conhecido que quer tocar nas partes íntimas da criança e lhe dar um sorvete).

O segundo instrumento utilizado foi o Protocolo para Observação das Atividades Práticas com Familiares e Crianças, elaborado no estudo sobre prevenção de abuso sexual infantil (ASI) por Brino e Williams (2009), para avaliar quatro categorias durante as intervenções: 1) os conteúdos propostos; 2) a adequação dos conteúdos; 3) a adequação das atividades realizadas e; 4) a adequação da linguagem utilizada durante o processo de intervenção descrito.

Foram, também, realizadas filmagens das intervenções com a contação de histórias com os grupos experimentais. Tais filmagens foram realizadas com uma câmera digital doméstica Sony Cybershot e tiveram duração aproximada de 1 hora e 50 minutos. As imagens foram avaliadas com a finalidade de obter informações complementares a respeito das intervenções, sobretudo para preenchimento posterior do Protocolo para Observação das Atividades Práticas com Familiares e Crianças.

2.3 Procedimento

Após firmar compromisso com a escola e obter aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Carlos (parecer n. 290.903), foi autorizada a realização da intervenção com as crianças das três turmas do 2º ano do ensino fundamental. Inicialmente, foram contatados 90 pais por meio de carta convite enviada pela escola. Não havendo adesão, a primeira autora compareceu a uma reunião de pais promovida pela escola, na qual os objetivos da pesquisa foram apresentados. Nessa reunião, estavam presentes 53 pais, contudo, apenas 33 deles assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e deram autorização para a participação dos filhos. No TCLE constavam informações sobre os procedimentos que seriam realizados com as crianças (entrevistas, contação de histórias) e informava que a intervenção com as histórias seria filmada, entretanto, as imagens não seriam divulgadas.

Assim, cabe mencionar que a amostra utilizada no estudo foi de conveniência com base nos pais presentes na reunião que deram anuência à participação no estudo. Sete alunas do curso de Pedagogia de uma universidade de Ribeirão Preto, SP, participaram do procedimento de intervenção como auxiliares de pesquisa, realizando as atividades de aplicação do instrumento, intervenção com a contação das histórias e auxiliando na tabulação dos dados.

O estudo utilizou um delineamento experimental de grupos, sendo as crianças divididas em três grupos, cada qual representado por uma sala de aula, a saber: Grupo Experimental 1 (GE1), com 11 crianças (M = 5, F = 6); Grupo Experimental 2 (GE2), com 14 crianças (M = 6, F = 8); e Grupo Controle (GC), com 8 crianças (M = 3, F = 5).

O procedimento de intervenção deu-se em cinco etapas. A etapa 1 correspondeu à fase do pré-teste, na qual as crianças dos três grupos responderam ao TSC em entrevista individual. A etapa 2 ocorreu sete dias após a etapa 1 e consistiu em momento de contação de histórias realizada por uma das auxiliares de pesquisa (estudante de pedagogia), nas quais o GE1 participou da contação com o livro O segredo da Tartanina (Silva et al., 2011) sobre o tema prevenção do abuso sexual e o GE2 participou da contação com o livro A terra dos bons pensamentos (Williams, 2010), livro que tem o objetivo de promover atividades preventivas de resolução de conflitos, prevenção da depressão infantil e preservação do meio ambiente, sem qualquer menção ao abuso sexual infantil.

No pós-teste (etapa 3), transcorridos sete dias após a etapa 2, houve a reaplicação do TSC com cada uma das crianças dos três grupos. A etapa 4 correspondeu ao follow-up, realizado 30 dias após o pós-teste, dos três grupos. Na etapa 5, foi realizada a contação de histórias com o livro O segredo da Tartanina para as crianças do GE2 e do GC, a fim de garantir que todas as crianças participantes pudessem ter acesso ao conteúdo do livro específico sobre prevenção do abuso sexual.

2.4 Análise dos dados

Os resultados foram inseridos em uma planilha, sendo o banco de dados analisado por meio de análise descritiva ou exploratória, que proporcionou uma visão geral do banco de dados em relação ao objetivo principal do estudo. As médias obtidas no instrumento TSC foram comparadas por meio de testes, utilizando o software estatístico SPSS. Cada uma das três habilidades (reconhecer, resistir e relatar) foi analisada por meio de testes de medidas repetidas (Anova), de forma a obter um resultado estatístico ajustado para o efeito de tempo.

 

3. Resultados

Por meio da Tabela 3.1 é possível observar resultados descritivos, envolvendo médias e desvios padrões apresentados pelos grupos em cada período e habilidade analisada.

 

 

Para a habilidade de "reconhecer", é possível observar que a média do GC se manteve estável do pré para o pós-teste, com aumento no follow-up. No GE1, a média de desempenho no TSC decaiu do pré-teste para o pós-teste, aumentando no follow-up. Quanto ao GE2, a média aumentou no decorrer dos períodos. Comparando os grupos, observa-se que o GE1 apresentou maior valor no pré-teste e o GE2, no pós-teste e follow-up, apresentando um aumento crescente nas médias nas três condições: [(1) pré-teste (4,93), (2) pós-teste (5,07) e (3) follow-up (5,36)] superior aos outros grupos (GC e GE1) para essa habilidade. Contudo, apesar dos dados sugerirem um aumento de desempenho para os grupos experimentais, não houve significância estatística nos dados obtidos.

Para a habilidade de "resistir", a média do GC decaiu do pré para o pós-teste e cresceu do pós para o follow-up. No GE1, a média cresceu do pré para o pós-teste e decresceu do pós-teste para o follow-up. Analisando-se o GE2, verifica-se que a média cresceu do pré-teste para o pós-teste e decresceu do pós-teste para o follow-up. Comparando-se os grupos em cada período, apesar de se observar que o GE1 apresentou melhor desempenho para a habilidade de "resistir" [(1) 9,00, (2) 9,73 e (3) 8,91)], tal aumento não apresentou significância estatística.

Por fim, analisando-se a habilidade de "relatar", verifica-se que a média do GC decaiu do pré para o pós-teste e cresceu do pós-teste para o follow-up. No GE1, a média praticamente dobrou do pré para o pós-teste e teve uma queda do pós-teste para o follow-up. Quanto ao GE2, a média cresceu com o passar dos períodos, contudo, não superou o desempenho do GE1.

A fim de confirmar as diferenças observadas na comparação das médias entre os três grupos apresentadas na Tabela 3.1, foi realizada Análise de Variância (Anova) com medidas repetidas, considerando o efeito de grupo, período e a interação entre eles. Não foram observadas diferenças significativas para as habilidades "reconhecer" e "resistir" para quaisquer dos grupos, contudo, houve significância favorável para o grupo experimental que utilizou o livro especializado de Silva et al. (2011) sobre prevenção de abuso sexual (GE1), para a habilidade de "relatar",conforme apresentado a seguir. A Tabela 3.2 apresenta o teste de comparações múltiplas (Anova) para o período de avaliação em cada grupo para "relatar".

 

 

Por meio das análises da Tabela 3.2, nota-se que existe diferença significativa entre os períodos apenas para o GE1. As diferenças estão entre o pré e pós-teste (p-valor = 0,12) e entre o pré-teste e o follow-up (p-valor = 0,073), indicando que o GE1 apresentou melhor desempenho do que os outros grupos (grupo com contação de história utilizando um livro infantil não específico para abuso sexual, GE2) e grupo controle (sem a condição de leitura do livro e contação de história, GC) para a habilidade de "relatar".

Os dados qualitativos obtidos pelo registro de observações das entrevistas com o TSC apontaram que as crianças, de forma geral, não apresentaram dificuldades em participar das intervenções (contação de histórias e aplicação do questionário), exceto por um desconforto inicial em tratar de assuntos como a sexualidade. Nesses casos, apresentavam respostas comportamentais de rubor no rosto, encolher o corpo, abaixar a cabeça, dar risadas tímidas ou "sem graça" e dizer que estavam com vergonha. Contudo, no decorrer das intervenções, esses comportamentos diminuíram e no follow-up as crianças respondiam às questões do instrumento com naturalidade, ou seja, sem apresentar tais respostas presentes no pré-teste.

Os dados qualitativos das intervenções, obtidos por meio do Protocolo para Observação das Atividades Práticas com Familiares e Crianças e das entrevistas individuais com o TSC, indicaram que os conteúdos e as atividades propostas foram apresentados de forma adequada para a idade das crianças. A linguagem utilizada na contação de histórias, na explicação das atividades, bem como na interação entre o contador e as crianças estava de acordo com o processo de intervenção proposto.

Dados sobre as verbalizações das crianças obtidas nas filmagens durante as oficinas de contação de história indicaram que elas, em geral, estavam ansiosas no início das atividades, pois faziam perguntas sobre o que iria acontecer, como seria a intervenção, quais as histórias e o que teriam de fazer. No decorrer da intervenção, as crianças pareciam se sentir confortáveis com as histórias, não apresentando dificuldades de compreensão, mesmo ao tratar de assuntos relacionados à sexualidade e ao abuso sexual. A transcrição dos relatos durante as atividades propostas sugere que as crianças acompanharam os conteúdos das histórias, relacionando-os com os objetivos dos livros e com seus próprios comportamentos e com fatos de suas vidas e seu dia a dia.

Seguem-se exemplos de verbalizações das crianças durante as atividades dos dois grupos experimentais, lembrando que a análise de filmagem deu respaldo ao preenchimento do referido protocolo, portanto, uma vez que não era o foco do estudo em questão, não foram realizadas análises aprofundadas de conteúdo. 1) Verbalizações do GE2, durante a contação de história com o livro A terra dos bons pensamentos (Williams, 2010): "Eles viviam em harmonia porque eles pensavam bom"; "Não pode brigar né, tem que ser amigo"; "Pra não ter inveja, tem que tentar não querer as coisas"; "Eles resolveram o problema sem briga". 2) Verbalizações do GE2, durante a contação de história com o livro O segredo da Tartanina (Silva et al., 2011): "Ela tirou foto sem a roupa dela"; "Ele é mau"; "Eu não deixo ninguém me ver sem roupa"; "Se eu fosse a Tartanina, eu ia ficar triste"; "Quando meu pai chegasse em casa eu contava para ele"; "Ela contou o segredo para a professora".

Após a contação de histórias do GE1, não houve revelações de abuso sexual pelas crianças participantes, mas uma criança relatou presenciar violência íntima do pai contra a mãe e demonstrou sofrimento em seu relato. A direção da escola foi comunicada de tal fato, e, em decorrência disso, conversou com a mãe, que relatou ter se separado do companheiro e que ele havia mudado de cidade. Consequentemente, a coordenação da escola orientou tal mãe a procurar auxílio na rede de atendimento, a fim de minimizar possíveis impactos decorrentes da situação vivenciada.

 

4. Discussão

Este estudo avaliou se a contação de história apoiada em um livro especializado sobre a prevenção de abuso sexual é um meio efetivo para a aquisição de habilidades de autoproteção contra o abuso sexual em crianças. A hipótese inicial era que o GE1, que recebeu a intervenção com a contação de histórias derivada de um livro especializado que tratava de abuso sexual (Silva et al., 2011), teria um desempenho significativo maior nas médias do instrumento TSC para as habilidades de autoproteção de "reconhecer", "resistir" e "relatar" o episódio abusivo a uma pessoa de confiança. Os resultados apontaram que tal hipótese foi confirmada apenas para a habilidade de "relatar", uma vez que, apesar de existirem diferenças entre os grupos e os períodos nas habilidades "reconhecer" e "resistir", as diferenças não foram estatisticamente significativas, ao nível de 5%. Contudo, para a habilidade "relatar", observou-se a existência de diferenças significativas.

Conforme os resultados obtidos para a habilidade "relatar", as pontuações das crianças em todos os grupos tiveram, no primeiro momento, um escore total elevado, mantendo-se constantes nos períodos de tempo, possivelmente pelo fato de elas já terem algum conhecimento inicial sobre a temática, talvez difundido pela mídia ou por campanhas governamentais, por exemplo. Tais campanhas são consideradas uma estratégia de prevenção, com potencial para desenvolver a conscientização das crianças a respeito da temática, conforme aponta a literatura da área (Walsh et al., 2015).

Ao analisar os dados obtidos para a habilidade "resistir" verificando os resultados do GE1, observou-se um aumento após a intervenção com o livro específico sobre abuso sexual, evidenciando que o livro especializado tem potencial para desenvolver tal habilidade. De acordo com Kenny e Wurtele (2010), a habilidade "resistir" está ancorada à habilidade "reconhecer", uma vez que a criança só poderá resistir às investidas do ofensor ou saber dizer não se tiver uma ideia clara do que seja o abuso sexual, justificando, portanto, o bom desempenho observado no GE1. Cabe ressaltar, contudo, que para tal habilidade as recusas cautelosas não garantem que a criança seja habilidosa para sair de uma situação, isso quer dizer que é uma habilidade que ainda precisa ser desenvolvida a fim de garantir a proteção de forma definitiva.

Importante destacar que a habilidade "resistir" envolvia duas classes de respostas específicas: uma verbal (o que você diria para a pessoa/ofensor?) e uma motora (o que você faria em seguida?). A resposta verbal, para ser efetiva, deveria envolver uma recusa definitiva, por exemplo: "não, eu não quero que você faça isso" ou "não, eu não vou fazer isso". Contudo, recusas cautelosas também eram pontuadas e representaram a maior parte das respostas emitidas pelas crianças, por exemplo: "eu tenho que perguntar para minha mãe primeiro" ou "eu quero o sorvete, mas você não pode me tocar". A maioria das crianças do GE1 não emitiu qualquer resposta motora no pré-teste, porém, após a intervenção, passaram a emitir respostas caracterizadas por recusas cautelosas.

A habilidade "relatar" apresentou a maior variação observada nos grupos, revelando uma significância estatística para o GE1, conforme apontado nos resultados. Ao avaliar as respostas no pré-teste emitidas pelas crianças para essa habilidade, os participantes do GE1, em sua maioria, não relatariam a qualquer pessoa o ocorrido, o mesmo também acontecendo com as crianças do GE2 e do GC. Contudo, no pós-teste e no follow-up, a maioria das crianças no GE1 relataria o ocorrido a duas ou mais pessoas e diriam exatamente o que aconteceu, descrevendo com detalhes. Para que a criança possa identificar uma pessoa de confiança a quem reportar uma situação abusiva, é necessário, antes, saber o que é o abuso e compreender que ela pode resistir a ele, ou seja, deve estar equipada com esses conhecimentos prévios (Kenny & Wurtele, 2010; Wurtele, 2008). O mesmo não aconteceu com os demais grupos (GE2 e GC), pois, no pós-teste e no follow-up, prevaleceu a resposta de não contar o ocorrido a ninguém.

A habilidade "relatar" envolve duas classes de comportamentos: identificar uma pessoa de confiança e relatar a essa pessoa algo ruim que lhe tenha acontecido (por exemplo, alguém oferecer um sorvete para tocar suas partes íntimas). Envolve, ainda, a habilidade de fazer amizades, expressividade emocional e assertividade. As respostas das crianças para essa habilidade envolviam as perguntas: "você contaria a alguém o que aconteceu? Para quem você contaria?" e "o que você diria para essa pessoa?".

Embora as três habilidades tenham sido avaliadas separadamente, elas estão inter-relacionadas, ou seja, não basta saber reconhecer uma situação abusiva e resistir às investidas de um adulto mal-intencionado se a criança não puder, não souber ou não conseguir relatar o ocorrido para um adulto de confiança. A resolução de um problema como esse envolve um adulto, que só terá acesso a essa informação se houver um relato. Assim, não se trata de um resultado modesto, visto que a única habilidade na qual o GE1 se destacou dos demais foi a "relatar". Cabe lembrar que o silêncio associado a um episódio de abuso sexual é uma variável responsável pela perpetuação do abuso sexual, pois, para que o ciclo da violência seja rompido, é preciso primeiro romper o silêncio (Kenny & Wurtel, 2010; Lampert & Walsh, 2010; Wurtele, 2008). Romper o estigma associado ao silêncio está associado a um melhor prognóstico em saúde mental ao ter menor risco de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (Williams, 2014).

O estudo apresentou diversas limitações, sendo a primeira referente ao número reduzido de participantes, o que impossibilitou algumas análises estatísticas mais robustas. Hipotetiza-se que o tamanho reduzido dos grupos tenha dificultado achados mais consistentes. Cabe notar que é trabalhoso conseguir adesão ampla para um projeto de tal natureza, pois o tema pode trazer preocupações aos pais, e, infelizmente, por se constituir como um estudo de mestrado, não havia tempo para ampliar a amostra.

Uma segunda limitação foi de ordem metodológica e se refere ao fato de que, durante as intervenções, não foi possível que as crianças da amostra estivessem livres de informações a respeito do procedimento de intervenção ou recebessem informações sobre abuso sexual infantil. Apesar de solicitações dos pesquisadores aos professores no sentido de manter neutralidade sobre o assunto, é possível que as crianças tenham obtido informações sobre respostas a serem dadas no TSC. No caso específico dos professores, durante o período de intervenção, foi realizada uma conversa com eles, a fim de explicar os objetivos da pesquisa e diminuir a ansiedade; entretanto, as explicações fornecidas parecem não ter sido suficientes. Relatos das crianças durante a intervenção indicam que algumas professoras fizeram comentários sobre o conteúdo dos instrumentos e das histórias, por exemplo, "a professora falou que não era para eu ter vergonha, pois os adultos não podem abusar de crianças", "Eu não fiquei com medo de vir aqui, porque a professora me ajudou a saber o que eu tinha que responder". Hipotetiza-se que tal falha metodológica também possa ter contribuído para a ausência de significância para o GE1 em relação ao GE2 e ao GC relativo às habilidades "reconhecer" e "resistir". Assim, futuros estudos poderiam incluir amostras maiores e realizar um treinamento aprofundado com os professores para que colaborassem no sentido de minimizar interferências na coleta de dados.

O presente estudo pretendeu contribuir com avanços para a pesquisa preventiva de abuso sexual infantil e, sobretudo, contribuir de forma a instrumentalizar crianças a identificarem situações de risco e principalmente a se proteger de situações que possam violar seus direitos e lhes trazer sofrimento. Contudo, há a necessidade de continuar a produzir conhecimento científico sobre a utilização de LIAPs em programas preventivos, área ainda pouco pesquisada tanto no contexto nacional como no internacional, conforme apontado por Soma e Williams (2014, 2017).

 

Referências

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Submissão: 10/08/2017
Aceite: 20/12/2018
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