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Cadernos de Psicologia Social do Trabalho

versão impressa ISSN 1516-3717

Cad. psicol. soc. trab. vol.20 no.2 São Paulo jul./dez. 2017

https://doi.org/10.11606/issn.1981-0490.v20i2p143-157 

DOI: 10.11606/issn.1981-0490.v20i2p143-157

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Trajetórias de feminização no trabalho hospitalar

 

Trajectories of feminization in hospital work

 

 

Tábata Milena Balestro Borges; Priscila Pavan Detoni

Universidade do Vale do Taquari (Lajeado, Rio Grande do Sul, Brasil)

Correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste trabalho é compreender as trajetórias de feminização no espaço hospitalar, entendendo os reflexos da divisão sexual e das relações de gênero nas práticas de trabalho, com base em uma pesquisa realizada em um hospital na Serra Gaúcha. Utilizou-se, como metodologia, a análise de discurso das trajetórias de vida das trabalhadoras, por meio de entrevistas semiestruturadas. Participaram desta pesquisa nove mulheres com escolaridades e funções diversas. As análises compuseram-se pelos seguintes elementos: o trabalho como possibilidade de autonomia e sustento; o trabalho feminino precarizado diante da divisão sexual do trabalho e no início da carreira; o trabalho feminino doméstico como pouco reconhecido e obrigatório; a duplicidade da jornada em ser mãe e trabalhadora; e o cuidado como atribuição naturalizada das trabalhadoras da saúde. Conclui-se que essas mulheres se sentem realizadas no trabalho, apesar de serem pouco valorizadas, diante dos marcadores sociais de gênero e da faixa etária. A pesquisa também possibilitou que, ao rever suas trajetórias durante as entrevistas, as trabalhadoras participantes refletissem sobre a necessidade de encontrar estratégias para que a feminização do trabalho não seja estendida para a próxima geração, bem como de que o trabalho hospitalar seja uma atividade que possa produzir saúde.

Palavras-chave: Feminização, Cuidado, Trabalho hospitalar.


ABSTRACT

The goal of this study is to understand the pathways to the feminization within hospitals, comprehending the outcomes of sex division and gender relations at work based on a research performed in a hospital in the state of Rio Grande do Sul. The methodology used was semi-structured interviews about the workers' life paths and analysis of discourse. Nine women with a wide range of education and varied functions participated in this research. The analysis was made of the following elements: work as autonomy and sustenance; precarious female work due to sexual division of labor and beginning of career; female domestic work as under acknowledged; the double journey of being a mother and a worker; and caretaking as a natural attribution to the female health provider. It is concluded that these women feel fulfilled at work even being little recognized because of the social markers of gender and age. The research also made possible, when reviewing their trajectories during the interviews, that the participating workers reflect on the need to find strategies so that the feminization of labor is not extended to the next generation, and that hospital work is an activity that can produce health.

Keywords: Feminization, Care, Hospital work.


 

 

Introdução

Este artigo objetiva compreender as trajetórias de feminização no espaço hospitalar, entendendo os reflexos da divisão sexual e das relações de gênero nas práticas de trabalho, com base em uma pesquisa realizada em um hospital na serra gaúcha. Dessa forma, é importante considerar as constantes transformações nas relações de trabalho e de gênero, por isso trabalhamos com o conceito de feminização que, para Yannoulas (2011), se refere a "um significado qualitativo que alude às transformações de significado e valor social de uma profissão ou ocupação, originadas a partir da feminilização ou aumento quantitativo e vinculadas à concepção de gênero predominante em uma época" (p. 271).

O desejo por realizar esta pesquisa surgiu da experiência da pesquisadora, que trabalhou em um hospital no interior do Rio Grande do Sul, cujo total de colaboradores era de 1181 e, desse total, cerca de 99 eram mulheres – ou seja, 84% dos/as trabalhadores/as do hospital. Essa foi a circunstância que levou à reflexão sobre a feminilização e feminização nas trajetórias do trabalho em saúde, uma vez que o quadro de funcionários/as do hospital, em sua maioria, é composto por mulheres – filhas, mães, donas de casa, trabalhadoras –, portanto, cuidadoras no contexto da saúde.Durães, Jones e Silva (2010) apontam que as mulheres possuem maior oportunidade de colocação no mercado de trabalho em setores de públicos, nos serviços, sobretudo, de saúde e educação, no comércio e no setor industriário, quando se trata de produção têxtil, alimentos e bebidas. Esses autores consideram que, mesmo sendo perceptível o aumento de mulheres no mercado de trabalho nos últimos anos, situações que denotam a divisão sexual do trabalho estão ainda muito presentes. Para Wermelinger, Machado, Tavares, Oliveira e Moysés (2010), o setor da saúde apresenta forte vocação para a ocupação de mulheres, e o contingente feminino tem se tornado majoritário nesse ramo da economia.Pastore, Rosa e Homem (2008) afirmam que o setor da saúde tem se caracterizado pela presença da divisão sexual do trabalho, no qual, predominantemente, as mulheres atuam nas funções voltadas aos cuidados, por essa prática ser vista e reconhecida como um processo naturalizado e, por vezes, precarizado.

O trabalho, conforme Nardi (2006), é central para o desenvolvimento da estrutura social, material e psíquica dos sujeitos. E o gênero é um fator que constitui o sujeito, uma vez que o/a trabalhador/a imprime em sua dinâmica de trabalho características que se referem à divisão sexual do trabalho, marcada pela generificação dos sujeitos, do que seria trabalho de homem e de mulher. Para Hirata (2002), a amplitude do espaço que as mulheres vêm obtendo no mercado de trabalho chama atenção devido ao modelo de trabalho precário, vulnerável e flexível. Dessa forma, as trabalhadoras ainda vivenciam em suas práticas profissionais reflexos de uma história de luta contínua por igualdade.

Dessa forma, esta pesquisa buscou entender o processo de feminização do trabalho em um setor da saúde, especificamente em um hospital de média complexidade, no qual problematizaram-se os desafios encontrados pelas mulheres nas suas trajetórias em relação à equidade de gênero no trabalho, uma vez que ambos estão diretamente imbricados.

 

Gênero, trabalho e cuidado

A fim de compreender como ocorre a feminização do trabalho na área da saúde, decorrente dos efeitos da divisão sexual, entende-se que os conceitos de gênero, trabalho e cuidado carecem discussão.

Na sociedade ocidental, dentro de uma matriz heteronormativa que nos constitui enquanto sujeitos, precisamos existir dentro dos gêneros feminino ou masculino (Butler, 2013). A partir dessa divisão, monta-se uma trajetória para tais gêneros – seja pelo comportamento, pelo corpo ou trabalho. Para Meyer, Klein, Da'Igna e Alvarenga (2014), o entendimento de gênero é construído e implicado por discursos instituintes de feminilidades e de masculinidades que são produzidos e ressignificados ao mesmo tempo, o que pode ou não contemplar o entendimento de diversidade sexual e de gênero.

De acordo com essa perspectiva, Scott (1995) destaca que o gênero é um conceito histórico que demarca em seu terreno questões socioculturais que permanecem em constante fluxo, evocando reflexões acerca da construção da caminhada da mulher. A autora indaga:

Qual é a relação entre as leis sobre as mulheres e o poder de Estado? Por que (e desde quando) as mulheres são invisíveis como sujeitos históricos, ainda que saibamos que elas participaram de grandes e pequenos eventos da história humana? O gênero legitimou a emergência de carreiras profissionais?... Houve, em algum momento, conceitos de gênero verdadeiramente igualitários sobre os quais fossem projetados ou mesmo fundados sistemas políticos? (Scott, 1995, p. 93).

Assim sendo, gênero é uma categoria em curso, que se relaciona inclusive com a temática do trabalho, uma vez que os meios de produção e a divisão de renda reproduzem as relações. Para Detoni e Nardi (2012), "as relações de gênero são constituintes dos modos e dos processos de subjetivação,... a subjetividade como uma produção da experiência de si, em um determinado contexto sócio histórico" (p. 66). Nessa perspectiva, a constituição do sujeito se dá por meio das atribuições de gênero, na qual o sujeito se define ou é definido, bem como o entendimento de que trabalho faz parte da identidade social dos sujeitos (Nardi, 2006).

Isso implica considerar que as instituições sociais, os símbolos, as normas, os conhecimentos, as leis, as doutrinas e as políticas de uma sociedade são constituídos e atravessados por pressupostos de gênero e, ao mesmo tempo, estão implicadas com sua produção, manutenção e ressignificação (Meyer et al., 2014).

Para Butler (2013), o sexo é generificado na nossa cultura e assim construído. Tal percepção é fundamental para a mudança de concepção do senso comum, pois a desconstrução desses entendimentos nos remete a desnaturalizar a ideia de que o feminino está ligado à postura de fragilidade ou submissão, como também possibilita explicar preconceitos que ainda existem em torno da reiteração cotidiana que é feita para designar os corpos, os sexos e os desejos nos seus postos de trabalho dentro dos polos da binariedade. Butler (2013) ainda aponta que "ser de um gênero é um efeito" (pp. 58-59), ou seja, a construção social desse "ser" passa por efeitos/modificações mais diversos no cotidiano.

Diante de um número considerável de mulheres que atuam no setor da saúde, o conceito de divisão sexual do trabalho se mostra fundamental, principalmente em dois aspectos: o primeiro aponta questões sociográficas, que visam identificar como se dá a distribuição de homens e mulheres no mercado de trabalho e as variantes de tempo e local dessa distribuição; o outro aspecto diz respeito às desigualdades que funcionam geralmente de forma sistemática, o que também está associado às diferentes práticas profissionais e, portanto, de gênero. (Hirata & Kergoat, 2007).

Com relação à divisão sexual do trabalho na área da saúde, Durães et al. (2010) afirmam que esse setor tem sido socialmente reconhecido como trabalho feminino, devido ao fato de que tais atividades profissionais geralmente são semelhantes àquelas desempenhadas no cotidiano da mulher, como o cuidado com a família. Pastore et al. (2008) salientam que há maior incidência de feminização no contexto da saúde nas áreas de enfermagem, higienização e no setor de nutrição. Isso se refere aos diferentes modos que o meio social cristaliza ou regula o que define ser homem ou ser mulher e quais lugares e atribuições seriam mais apropriados para cada sujeito, dentro da perspectiva de gênero. Para alguns postos é preconizada a virilidade e, em outros, o cuidado, uma vez que a dinâmica das relações de trabalho – como as de gênero – é fundamental na constituição de sujeito.

Desse modo, percebe-se uma conexão nas relações de gênero e de trabalho. Para Araújo (2002), as mulheres passaram a ingressar no mercado de trabalho, de forma crescente, durante "as décadas de 1920 e 1980, acompanhando os processos de industrialização e de urbanização da sociedade" (p. 133). A autora também salienta que as ocupações femininas tradicionais daquele período eram caracterizadas por serviços domésticos, atividades em prol do próprio consumo e da família, além de serviços como "magistério, enfermagem, comércio, telefonia, alguns setores industriais, como os ramos têxtil e do vestuário, e nos serviços pessoais, como cabeleireiras, manicures, lavadeiras" (Araújo, 2002, p. 133).

Carvalho, Cavalcanti, Almeida e Bastos (2008) questionam: "será que na divisão de trabalho por gênero há uma tendência recorrente à assunção pelas mulheres e/ou a atribuição a elas, mais do que aos homens, do papel de cuidadora?" (p. 440). De acordo com Meyer et al. (2014), a feminização é marcada pelo lugar de cuidadora dos vulneráveis, dos doentes. Para tal, Guimarães, Hirata e Sugita (2011) afirmam que "no Brasil e nos países de língua espanhola, a palavra 'cuidado' é usada para designar a atitude; mas é o verbo 'cuidar', designando a ação, que parece traduzir melhor a palavra care" (p. 154). Nesse sentido, Dumont (2012) refere que "o cuidado é tratado de forma naturalizada como modos de sentir e agir das mulheres" (p. 43). Por esse motivo, o gênero estabelece "centralidade na construção das relações" e, assim, inicia-se a divisão sexual do trabalho.

Diante disso, é interessante refletir que as mulheres são treinadas para exercer funções de cuidado desde a infância – por exemplo, brincadeiras de bonecas, cuidar dos irmãos, auxiliar nos serviços domésticos. Nesses contextos, a menina passa a assumir o papel de mulher e, na medida em que cresce, o que era apenas brincadeira de infância se naturaliza em suas práticas diárias. Contudo, cabe destacar que, muito recentemente, as mulheres assumiram postos de trabalho com direitos sociais, afinal, isso só foi possível no Brasil a partir de 1932, quando conquistaram-se os direitos do sufrágio universal2, à propriedade e aos estudos, frutos das lutas dos movimentos feministas.

O trabalho das profissionais mulheres em um ambiente hospitalar

A condição das mulheres exercendo a prática do cuidado leva à reflexão sobre a naturalização do papel da mulher na sociedade, desde os primórdios, que se referia ao cuidado dos filhos, da casa. Assim, Yannoulas (2011) aponta que o conceito de feminização diz respeito a aspectos qualitativos observados na mudança que determinada ocupação atravessa. Essas mudanças estão vinculadas à imagem simbólica do feminino predominante na época ou na cultura especificamente analisada.

Nesse contexto, é importante considerar os processos históricos de industrialização e urbanização, marcos esses fundamentais para a compreensão do conceito de divisão sexual do trabalho no Brasil. Conforme aponta Yannoulas (2011), o trabalho passou a ser caracterizado como

trabalho produtivo e assalariado, excluindo todas as atividades destinadas à reprodução da vida biológica e social. Trabalhar foi pensado como uma atividade a ser realizada extramuros, uma atividade pública. Cuidar do lar, dos filhos, dos idosos e da família ficou delimitado como atividade não trabalho, privada (p. 276).

A autora ainda complementa que o processo de feminização pode ser considerado "uma categoria em movimento, em processo de construção" (Yannoulas, 2011, p. 276).

Hirata (2002) afirma que, historicamente, "a atividade feminina continua concentrada em setores como serviços pessoais, saúde e educação" (p. 10), por isso a feminização do trabalho em saúde. Assim, a abordagem dessa temática diz respeito a compreender o posicionamento do público feminino nos diversos contextos sociais do trabalho, levando em consideração que estudar e pesquisar o tema divisão sexual do trabalho, tendo em vista as constantes transformações que o mundo do trabalho vem percorrendo, torna-se um grande desafio, visto que ainda hoje temos reflexos da história em que as mulheres eram diferentemente tratadas em relação aos homens.

Para Hora, Ferreira e Silva (2013), é estatisticamente comprovado o número maior de profissionais do sexo feminino que atuam no âmbito hospitalar, somando-se a isso a sobrecarga de trabalho, que é algo eminente no dia a dia da mulher, devido às tarefas domésticas, entre outras, que geralmente são desempenhadas em dupla jornada.

Osório (2006) relata que as atividades em um hospital, tomando como base o exemplo do estado de São Paulo, são flexibilizadas constantemente, em que o quadro muda em instantes e o cenário é frenético, sendo preciso habilidades específicas de manejo no trabalho por parte das profissionais que precisam se adequar o tempo todo. Conforme Maturana e Valle (2014), é comum vivenciar em hospitais situações como:

apresentar respostas rápidas relacionadas a situações-limite de vida e morte de pacientes, alta carga horária, atendimento ao público, muitas vezes, em estados emocionais alterados, sobrecarga de tarefas, conflitos de opiniões e pontos de vista divergentes com profissionais de outra formação acadêmica (p. 3).

Em uma pesquisa realizada no interior do Rio Grande do Sul, com uma equipe de atendimento pré-hospitalar, Carreno, Veleda e Moreschi (2015) identificaram que a maioria dos profissionais que integravam a equipe era composta por homens, com idade superior a 36 anos, que ocupavam as funções de técnico em enfermagem seguida de médicos e enfermeiros – contrário às demais pesquisas encontradas. Nesse caso, a atuação do sexo masculino em atendimentos pré-hospitalares, como no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), é evidenciada constantemente devido às atividades que exigem força e preparo físico. Por isso, ao estudar feminização em ambiente hospitalar, não podemos negligenciar o trabalho dos homens. Afinal, o gênero só existe nas relações, sejam elas domésticas ou de trabalho, que hierarquizam um dos gêneros em detrimento do outro.

 

Percurso metodológico

Todos esses que aí estão,
Atravancando meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho!

Mário Quintana

Durante a caminhada de pesquisa e escrita, buscou-se uma forma de analisar as trajetórias das participantes, e eis que surgiu a imagem de um passarinho. Passarinho porque a maior parte das mulheres trouxe em suas narrativas presentes que o trabalho deu a elas: a liberdade, a independência, além de inúmeras possibilidades de viver e olhar para a vida atribuindo-lhe um novo significado. Metaforizando o "Poeminho do contra", de Mário Quintana (2014), segundo Franco (2009), o verbo "passarão" – conjugação do verbo passar no futuro do indicativo.

deixa de ser tão somente verbo e torna-se também um pássaro gigante, predador do passarinho, um bicho-papão ameaçador que, pela enormidade, não tem a agilidade do passarinho – este, quando viu seu caminho atravancado, bateu asas e voou (pp. 75-76).

No sentido literal da palavra, "pássaro grande" não se compara às qualidades do canto, da ligeireza e da liberdade caracterizadas pelo "passarinho". Dessa forma, as mulheres-passarinhos são análogas às conquistas feministas marcadas nos discursos das trajetórias das trabalhadoras entrevistadas no ambiente hospitalar. Pode-se, então, associar a agilidade e a liberdade do passarinho com os constantes movimentos e deslocamentos que as mulheres realizaram nos últimos tempos, lutando pela igualdade de direitos e a liberdade social, o que possibilitou a inspiração no poema de Quintana.

Participaram desta pesquisa, realizada por meio de entrevistas semiestruturadas, de forma livre e esclarecida, nove mulheres trabalhadoras de um hospital de média complexidade, com idades entre 20 e 54 anos: quatro solteiras, três em união estável ou casadas, duas separadas; seis delas têm filhos/as; seis delas são as únicas responsáveis pela renda familiar; oito brancas e uma parda; escolaridades e funções são variadas3. A seleção das participantes ocorreu de forma voluntária, por meio de um convite; cada trabalhadora interessada em participar da pesquisa registrou seu nome em um formulário de inscrição, fixado no quadro mural do hospital e, assim, a pesquisadora agendou as entrevistas. As entrevistas individuais ocorreram a partir de um roteiro sobre a biografia pessoal e profissional das nove mulheres que se voluntariaram a participar da pesquisa, mediante termo de consentimento4.

O roteiro semiestruturado aplicado nas entrevistas se baseou no levantamento de dados sociodemográficos das profissionais, além de mapear dados relacionados ao núcleo familiar (profissão parental, número de irmãos, participação de outros na renda familiar, profissão do companheiro/esposo/pai dos/as filhos/as) e, principalmente, informações associadas ao contexto do trabalho, com o propósito de compreender a trajetória das mulheres participantes da pesquisa (idade com que começou a trabalhar; tipos de trabalho e período de permanência; função e remuneração atual; como foi o início de sua trajetória profissional; e como é o atual momento profissional). É importante ressaltar que o roteiro foi um elemento orientador que a entrevistadora utilizou para conduzir a conversa com as participantes da pesquisa.

Essas entrevistas ocorreram em uma sala disponível no hospital, as falas das participantes foram gravadas em áudio e, posteriormente, transcritas na íntegra, para realizar a análise dos discursos (Foucault, 2005) que permeavam essas trajetórias.

Neste estudo, pretendeu-se compreender as trajetórias de feminização no espaço hospitalar, entendendo os reflexos da divisão sexual e das relações de gênero nas práticas de trabalho. Suas técnicas profissionais podem estar associadas ao cuidado dos usuários do serviço, que se estende desde cargos relativos à higienização, copa, cozinha e enfermagem a técnicas de enfermagem, nutrição, psicologia, farmácia, médicas, atendimento, entre outras.

O corpus da pesquisa foi constituído pela análise dos discursos das trajetórias de vida das trabalhadoras que, segundo Born (2001), se relacionam a "um conjunto de eventos que fundamentam a vida de uma pessoa" (p. 4). O autor cita que:

Normalmente é determinada pela frequência dos acontecimentos, pela duração e localização dessas existências ao longo de uma vida. O curso de uma vida adquire sua estrutura pela localização desses acontecimentos e pelos estágios do tempo biográfico (Born, 2001, p. 4).

A análise da trajetória de vida "permite descrever e entender como o trabalho atravessa os processos de subjetivação e expressa o conflito que caracteriza o jogo de verdades" (Nardi, 2006). Quanto aos jogos de verdade, Nardi (2006) também utiliza o conceito foucaultiano para pensar a relação ética e subjetiva que constitui a centralidade do trabalho na vida dos sujeitos, o que é parte de um elemento da nossa sociedade atual e que analisamos nesse estudo. De acordo com Foucault (2005), existem condições de possibilidade de determinado período histórico e localizado que fazem emergir discursos, e estes vão produzindo verdades sobre os sujeitos e subjetivando formas de existir.

 

Análises e discussão dos resultados

A partir das narrativas das trajetórias de vida, analisaram-se os discursos que emergiram dentro da interlocução de gênero e trabalho das mulheres trabalhadoras hospitalares, em que são destacados: o trabalho como possibilidade de autonomia e sustento; o trabalho feminino precarizado diante da divisão sexual do trabalho e no início da carreira; o trabalho feminino doméstico como pouco reconhecido e obrigatório; a duplicidade de jornada em ser mãe e trabalhadora; e o cuidado como atribuição naturalizada das trabalhadoras da saúde.

 

"Aos pouquinhos fui subindo, subindo, subindo...": trabalho como possibilidade de autonomia e sustento

Com relação à ascensão no trabalho, percebe-se que grande parte das mulheres se sente livre, independente e capaz quando possui sua própria remuneração, por isso o trabalho faz parte da construção ética e moral dos sujeitos (Nardi, 2006,) e se constitui como uma necessidade para que essas profissionais possam crescer, conquistar oportunidades e se sentirem realizadas, além de garantir o sustento dos/as filhos/as (Moreira, 2008).

Desse modo, pode-se refletir o quanto o trabalho representa centralidade para as pessoas (Dejours, 2000), especialmente, neste estudo, para as mulheres, ainda que a precarização e a divisão sexual do trabalho existam como marcas das trajetórias que atrelam as responsabilidade do trabalho doméstico para as mulheres, além do trabalho fora de casa, que recebe mais reconhecimento, inclusive pela via econômica. "Porque do trabalho que vem o sustento... Claro, a família em primeiro lugar, mas o trabalho anda ali, anda junto" (Bem-te-vi).

Para Moreira (2008), a relação econômica atrelada à necessidade de trabalhar é "constituída tanto das formas possíveis de trabalho quanto das relações de gênero" (p. 105). Isso pode ser observado nas narrativas das mulheres, de modo especial quando Águia diz que o salário "dele", referindo-se ao companheiro, não é mais suficiente para dar conta das responsabilidades da casa. Ainda, conforme a autora, se, antes, o trabalho como forma de organização social tornava possíveis relações de gênero pautadas na divisão homem provedor (econômico) e mulher mantenedora (do bem-estar e dos cuidados com a família), hoje, o trabalho do homem não é garantia do sustento familiar. Contudo, o trabalho doméstico, na maioria dos casos, continua essencialmente feminino, apesar das duplas jornadas.

Só com o salário dele a gente não conseguia muita coisa e, graças a Deus, comigo trabalhando também, a gente consegue comprar as coisinhas que a gente quer (Canário).

É uma questão de conseguir teu próprio dinheiro, tu ter um dinheirinho se precisar comprar alguma coisa, ir lá e comprar (Sabiá).

A narrativa de Pintassilgo serviu de inspiração para definir o subtítulo da análise e o lugar das mulheres no trabalho formal, como em: "Eu vejo que cresci profissionalmente, tipo eu era lá uma coisinha e nada e, aos pouquinhos, fui subindo, subindo, subindo", pois percebe-se a autonomia e a independência que proporcionam às mulheres. Isso fica muito claro nos relatos, inclusive na fala das demais mulheres, segundo as quais não depender do marido traz a elas muita satisfação. Analisou-se a centralidade do trabalho na vida dessas trabalhadoras, pelo fato de seis das nove mulheres entrevistadas serem as únicas responsáveis pela renda familiar e as outras três trabalharem também com o propósito de não serem dependentes de seus companheiros.

Mas assim, o principal sentimento era a independência, não depender 100% de meus pais (Azulão).

Eu dou muito valor, procuro não faltar, se tem que fazer, procuro fazer, porque é muito importante ter serviço, para mim, ter carteira assinada. Tem teu salário no final do mês, tu pode, tipo... como é que vou te dizer? Comprar uma coisa que tu quer, é outra vida (Tico-tico).

Pela análise dessas narrativas, compreende-se o que Nardi (2006) aponta como a ética do trabalho, que também estabelece e reconhece socialmente o/a trabalhador/a como cidadão. Nesse caso, referindo-se às possibilidades que a mulher possui em desfrutar do que o trabalho pode lhe oferecer: melhores oportunidades, satisfazer necessidades, liberdade de escolha, enfim, fazer uso dos recursos obtido pela renda do trabalho a partir de seus próprios desejos relacionados ao consumo e de uma vida melhor para os filhos e para as filhas.

 

"Tu tens que aprender a trabalhar...": o trabalho feminino precarizado diante da divisão sexual do trabalho e no início da carreira

Sete das nove mulheres entrevistadas iniciaram sua vida de trabalhadoras ainda muito cedo, na faixa etária dos dez aos vinte anos. A grande maioria delas começou desempenhando atividades como empregada doméstica, babá e atendente, que marcam o trabalho feminino precarizado diante da divisão sexual do trabalho e, principalmente, no início da carreira (Hirata & Kergoat, 2007). Geralmente, foram trabalhos informais e caracterizados como estereótipos de mulheres (Meyer et al., 2014) e com práticas de cuidado, o que demonstra experiência informal na área que atuam. Quatro dessas mulheres também tiveram seus/suas filhos/as antes dos vinte anos, ou seja, desde muito cedo desempenham o papel de cuidadoras do lar, conforme aparece nas entrevistas:

Foi bem difícil, eu nunca tinha trabalhado. Claro, ajudava o pai, eu perdi a mãe com onze anos... Aí tinha meu pai e meus irmãos, tipo, tomei conta da casa (Bem-te-vi).

Eu me ajuntei tinha treze anos. Com catorze tive meu primeiro filho, com quinze eu já tive meu segundo filho (Canário).

Com relação à divisão sexual do trabalho, Madalozzo, Martins e Shiratori (2010) consideram que os reflexos não estão presentes somente no âmbito do emprego e na participação diferenciada de homens e mulheres no mercado, mas também na forma como essas relações se difundem na sociedade, como nas famílias marcadas por desigualdades.

Entretanto, ao rever suas trajetórias, as entrevistadas percebem o quanto de dever e obrigação com relação às responsabilidades domésticas e cuidados em geral lhe foram impostos na construção de sua trajetória, seja pela valorização do trabalho como pela forma de conduzir a vida e seus corpos (Nardi, 2006). Trabalhar no espaço doméstico como forma de conduzir a subjetividade das mulheres e a naturalização dessa responsabilidade a elas atribuída pode ser evidenciado no seguinte relato:

Com cinco anos, eu fui morar com uma senhora, lá. Daí tu já começa: tu vai lavar a louça, varrer a casa, vai limpando, aí cada dia ia aumentando, né, as coisas assim... Eu lembro que, com sete anos, vamos supor, eu tinha uma boneca, né. Vou brincar? Não, não pode. Ela pegou e jogou fora: "tu tem que aprender a trabalhar, não a brincar" (Tico-tico).

Nessa trajetória, é muito forte e evidente os aspectos do trabalho infantil e do trabalho doméstico naturalizado como sendo de responsabilidade da menina desde cedo. Paganini (2011) considera que, por mais que haja um aparato jurídico que vise erradicar o trabalho infantil, deve-se sensibilizar a sociedade para a garantia real dos direitos assegurados a todas as crianças e adolescentes. É importante dizer o quanto foi doloroso para Tico-tico relembrar que, durante sua infância, quase não pôde brincar como as demais crianças, e, sim, foi obrigada a trabalhar para ganhar sua refeição diária.

Ainda sobre as diferenças entre trabalhadores/as, a fala da mulher Sabiá está relacionada a comparações feitas de papéis ocupados por homens anteriormente e que, agora, são exercidos por mulheres. Hirata e Kergoat (2007) sinalizam que a divisão social do trabalho é caracterizada por "dois princípios organizadores: o princípio de separação (existem trabalhos de homens e trabalhos de mulheres) e o princípio hierárquico (um trabalho de homem 'vale' mais que um trabalho de mulher)" (p. 599). Isso pode ser materializado diante da legitimação, como também o processo de naturalização, no qual o estereótipo do trabalho doméstico é serviço exclusivo da mulher, considerado como uma obrigação de seu fazer.

Se tu tenta conversar com alguém, eu sempre falei com mulher, eu nunca tive dificuldades. Agora, com homem, parece um pouco mais resistente, porque tu ta falando, já te cortam (Sabiá).

Mas vou dizer que a gente tem uma hierarquia, mas eu me sinto, hoje, muito mais à vontade para conversar com ela, levar um problema, pedir para me ajudar a solucionar uma coisa que eu não consigo, sabe? Antes, quando a gente tinha um homem, não tinha, era bem difícil, bem difícil mesmo (Pintassilgo).

A idade e a forma de apresentação das mulheres, enquanto sujeitos no mercado de trabalho, se configuram em marcadores sociais a serem analisados, pois, de certa forma, quanto mais jovens elas assumirem papéis de liderança, mais recebem hostilidades em meio às suas relações profissionais, passando por certa falta de credibilidade ao se compararem com uma liderança masculina e, se estiverem com uma idade maior que cinquenta anos, já ficam vistas como pouco produtivas e ágeis para as atividades laborais.

 

"Eu era dona de casa, eu cuidava das crianças só...": o trabalho feminino doméstico como pouco reconhecido e obrigatório

Com relação ao trabalho feminino doméstico, é importante observar que três das participantes não o reconhecem como trabalho, pois compreendem que este teve início a partir do momento que saíram do lar e tiveram um emprego formalizado. Além disso, é possível também perceber que algumas das participantes, durante o período de formação, consideravam que não trabalhavam, apenas estudavam.

Para Santos (2010), a estrutura familiar vem passando por modificações nos últimos anos e, com isso, os homens, principalmente os mais jovens, têm passado a compartilhar algumas tarefas domésticas com as mulheres, embora elas ainda continuem sendo a pessoa de referência com relação aos cuidados dos/as filhos/as e domésticos.

Visto que os modos de trabalho são pautados por fazeres formais ou informais determinados pelo social, percebe-se, nas narrativas da trajetória dessas trabalhadoras, uma desvalorização dos afazeres domésticos, cuidados com os filhos, ou o fato de ser estudante.

Eu era dona de casa, eu cuidava das crianças, só (Canário).

Eu comecei a trabalhar depois que eu me formei (Beija-Flor).

Ao analisar a fala "eu era dona de casa, eu cuidava das crianças, só", a palavra "só" está imbuída do significado de que tais afazeres são diminutos, que precisam ser ampliados. Verifica-se aí a necessidade de desnaturalizar a ideia de um cuidado desvalorizado, culturalmente identificado como trabalho informal. De acordo com Meyer et al. (2014), cabe a problematização: quais são os reflexos dos atributos que naturalizam atividades e características de homens e mulheres nas relações de cuidado? A autora também questiona como o que é naturalizado atravessa e legitima o conhecimento que é produzido, bem como as práticas profissionais na área da saúde.

 

"Conseguir conciliar a casa e meu trabalho aqui...": a duplicidade de jornada em ser mãe e trabalhadora

A duplicidade de jornada em ser mãe e trabalhadora também foi um marcador importante nas respostas das mulheres que, além de trabalharem fora de casa, conciliam a maternidade e o trabalho doméstico em seu ofício. De forma geral, os horários no hospital são marcados por turnos de seis horas diárias, de segunda a sexta-feira, e de doze horas (plantão), em finais de semana, assim, o horário é alternado com o exercício da dupla jornada (Osório, 2006).

Hirata e Kergoat (2007) explicam que a definição que retrata o trabalho doméstico vem passando por alterações e propõem usar os seguintes termos: dupla jornada, acúmulo ou conciliação de tarefas, como se fosse apenas um apêndice do trabalho assalariado. Conforme apontam Rotenberg et al. (2001), a relação saúde-trabalho configura outro olhar quando se trata do trabalho noturno, considerando que as mulheres precisam operar com demandas duais dos trabalhos profissional e doméstico.

A maioria das trabalhadoras entrevistadas realizam a escolha do turno de trabalho mediante a conciliação do trabalho à noite com o cuidado dos filhos e da casa, durante o dia. Contudo, existem fatores subjacentes às diferenças individuais quanto à tolerância ao trabalho em turnos e noturno, pois existem características do trabalho que podem ou não favorecer a tolerância a essa jornada de trabalho, bem como atenuar as dificuldades enfrentadas no âmbito da saúde e do bem-estar orgânico e social (Moreno, Fischer & Rotenberg, 2003).

Segundo Rotenberg et al. (2001), pode ser difícil para as mulheres a reorganização da vida cotidiana, como a maneira de descansar (sono) e as demais rotinas do dia a dia, devido à dupla jornada. Os autores ainda reforçam que, ao se tratar do trabalho noturno sob a visão de gênero, deve-se compreender a realidade de homens e mulheres fora do contexto do trabalho, considerando a relação com o processo de trabalho e, sobretudo, os fatores associados à divisão sexual do trabalho.

Dentro desse contexto, segundo Poldi, Borges e Araújo (2011), o patriarcado considera o trabalho doméstico como tarefa natural da mulher, o que, por vezes, dificulta a ascensão no âmbito público. Da mesma forma, percebemos nas falas de Pintassilgo e Canário quão valiosa e potente foi a saída de seus lares para desenvolver um trabalho formal. No entanto, ainda estão evidentes nos seus discursos as demandas da casa e a necessidade de conciliar ambos os trabalhos.

É uma vida tripla fora daqui: filhos, marido, mulher, mãe, tudo, família. Tá, para mim é importante, porque é como se fosse... eu saio daquele mundinho de dona de casa e tô buscando alguma coisa fora, assim (Pintassilgo).

Para mim, sempre tive um filho atrás do outro, né. Então, tu começas: tem que cuidar da casa, tem o marido que chega de meio-dia, tu tem que estar com o almoço pronto, o almoço tem que estar tudo organizadinho... Eu não queria trabalhar o dia inteiro, eu achava difícil porque tinha meus outros guris que trabalhavam. Tinha que ter comida na hora, roupa pra passar, comida para fazer, eu não vou vencer em fazer tudo no final de semana. Para mim, foi uma benção em todos os sentidos, eu conseguir conciliar a casa e meu trabalho aqui (Canário).

Esta pesquisa produziu nas participantes uma reflexão do porquê precisam desenvolver dupla jornada, afinal as tarefas do lar precisam ser desempenhadas pelas pessoas que o habitam, e não concentrar-se restritamente à mulher. Emergiu, durante as entrevistas, a motivação para olhar de outra forma ao que está dado, o que está naturalizado e desenvolver movimentos de quebra de paradigmas que estão institucionalizados quanto ao modo de fazer e ser mulher.

A maior parte das mulheres retrata em sua trajetória a importância de conciliar a vida familiar com a profissional. De acordo com Hirata e Kergoat (2007), essa é uma "política fortemente sexuada, visto que define implicitamente um único ator (ou atriz) dessa 'conciliação': as mulheres, e consagra o statu quo, segundo o qual homens e mulheres não são iguais perante o trabalho profissional" (p. 603). Dado o contexto do desejo de atingir a igualdade por meio da conciliação de tarefas, talvez esteja aqui o grande desafio da mudança no olhar sobre a divisão de tarefas, visto que, conforme Colcerniani et al. (2015), é uma produtora de desigualdades e tensões, evidentes na conciliação de vida profissional e trabalho reprodutivo.

A mulher como o "sexo frágil" também foi uma das expressões que apareceu como enunciado dos discursos em torno das relações sexistas de gênero na pesquisa. Considerando as narrativas de Canário e Pardal, evidencia-se um antagonismo de olhares. Para Canário, mesmo que haja homens que reconheçam as mulheres como sexo frágil, elas asseguram a capacidade em realizar diversas tarefas, não havendo restrições por ser de determinado sexo. Já Pardal relaciona a fragilidade e a sensibilidade da mulher ao grau de força, pois há trabalhos que requerem nível de esforço maior, os quais, geralmente, seriam mais bem realizados por homens. Segundo elas:

A gente é colocada como sexo frágil... Eu, em casa, sou homem e mulher, eu faço, faço encanamento. Digo o que dizem que a gente é. Mas a gente é muito mais forte do que qualquer homem, mas, para eles, a gente é frágil (Canário).

O homem pode até fazer melhor no sentido de mais força, né. Acredito que a mulher é sexo frágil mesmo. [Pesquisadora: Tu concorda que a mulher seja um sexo frágil?] Não. Ela é a parte mais frágil e mais sensível (Pardal).

A dualidade de atributos faz parte da trajetórias dessas trabalhadoras, como aparece nas suas narrativas, e é, de fato, o que se presencia como legítimo e naturalizado no meio social de uma cultura ainda marcada pela construção do machismo nas relações de gênero. Meio esse onde são construídas "verdades" sobre os estereótipos de fragilidade, fraqueza, sensibilidade, entre outros, apresentando, assim, barreiras que ainda precisam ser superadas, sendo importante reconhecer que, em todos os gêneros, há características pessoais que identificam cada sujeito.

 

"Quem auxilia, quem presta atenção e presta cuidados, é a mulher...": o cuidado como atribuição naturalizada das trabalhadoras da saúde

Com relação ao número considerável de mulheres que atuam no contexto hospitalar, as trabalhadoras identificam essa feminização (Yannoulas, 2011) com a ideia de que o cuidado já é uma das tarefas naturalizadas das mulheres, considerando que já realizavam atividades relacionadas às práticas de saúde e higienização em seu meio familiar (cuidar dos filhos/marido, afazeres domésticos).

Com relação aos atributos que socialmente são incumbidos para homens e mulheres, Gondim et al. (2013) apontam que, devido à influência da cultura, homens tenderiam a assumir mais atributos de agressividade e competitividade, ao passo que as mulheres adotariam mais facilmente atitudes e comportamentos de sociabilidade, gentileza e amabilidade, pela valorização cultural da sensibilidade e do cuidado com a família e o lar.

De acordo com os atributos reafirmados pelo papel social da menina, mulher, mãe, trabalhadora, percebe-se, conforme Gondim et al. (2013), a influência social na construção dos sujeitos na divisão sexual do trabalho, em suas escolhas profissionais, levando à compreensão do porquê há um número tão expressivo de mulheres que atuam no segmento da saúde, como bem apontaram as seguintes falas:

A mulher é mais sensível, mais organizada (Pintassilgo).

Até mesmo a questão de um recém-nascido, a mulher toma muito mais as rédeas de cuidar, de limpar... que é essa questão do cuidado com o paciente, que já é imposta à mulher pela sociedade; não sei se pela sociedade, ou pela forma que é criado, pela história (Azulão).

Olha, eu até acredito que seja a questão do cuidar, da sensibilidade, da preocupação com o outro, isso digamos que já, culturalmente, é destinado à mulher. Então, acredito que muito pode estar vinculado à questão da cultura também... Essa área da saúde é mais procurada e vista como feminina em função de uma cultura, que já ta predeterminado que quem cuida, quem auxilia, quem presta atenção e presta cuidados, é a mulher (Beija-Flor).

A mulher parece que tem mais, por ser dona de casa, e as mulheres que têm filhos, a criança faz sujeira, tu vai lá e limpa, não tem mistério. E para o homem é mais complicado. Então eu acho que é porque na área da saúde tem menos homens, eles têm mais medo... a mulher é mais sensível nesse sentido (Pardal).

Ao finalizar a análise, é importante considerar que as trajetórias das mulheres levam a pensar também sobre a subjetividade por meio dos "processos" e dos "modos de subjetivação". O modo de subjetivação está associado à maneira como os sujeitos se relacionam com a regra e a forma como se veem obrigados a cumpri-la e, ao mesmo tempo, se reconhecerem como ligados a essa obrigação. Os processos de subjetivação, de acordo com Nardi (2006), pode ser compreendido a partir da análise de como cada indivíduo se relaciona com o regime de verdade próprio em cada período, ou seja, a maneira como o conjunto de regras que define cada sociedade é experienciado em cada trajetória de vida. Os discursos aqui analisados marcam as construções das trajetórias dessas mulheres enquanto trabalhadoras de um hospital de médio porte.

 

Considerações finais

A rotina de uma mulher que trabalha no hospital é cuidar do paciente, seus familiares, medicar, preparar as refeições, manter o ambiente limpo e organizado, além de atentar-se para os processos burocráticos, atualização no uso de novas tecnologias e práticas administrativas. Conclui-se, portanto, por meio da pesquisa, que essas mulheres se sentem realizadas em suas trajetórias de trabalho, apesar de, por vezes, naturalizarem a divisão sexual do trabalho, bem como receberem pouca valorização diante dos preconceitos advindos de marcadores sociais, atravessados especialmente pelo gênero e a faixa etária no trabalho, por serem muito jovens em funções que exigem responsabilidades ou estarem mais perto da aposentadoria.

De certa forma, esta pesquisa pode ter produzido nas participantes um olhar mais atento ao seu espaço de trabalho, no sentido de perceber o que está a sua volta, o porquê de sua configuração ser, em sua maioria, composta por mulheres. As análises produzidas apontaram a existência da divisão sexual do trabalho e da apropriação das experiências no cuidado, por meio das trajetórias que mostram os cuidados com os familiares a elas atribuídos, o que corresponde à feminização do trabalho no hospital.

Ao enunciar suas trajetórias, as trabalhadoras no espaço hospitalar estão subjetivadas pelos discursos de feminização e de divisão sexual do trabalho. Contudo, elas vêm ocupando esse lugar de transição das relações de trabalho, no qual mulheres trabalhadoras e, principalmente, mães trabalhadoras puderam repensar seus comportamentos sociais ligados à cristalização das relações de gênero, para que buscassem estratégias diante das dificuldades produzidas pelas desigualdades de gênero e hierarquias no trabalho, de modo que não sejam estendidas para a próxima geração de seus/suas filhos/as. Por isso, pesquisar sobre os processos de trabalho pode potencializar o cuidado e produzir saúde para outros/as trabalhadores/as e usuários/as.

É necessário, no entanto, levar em consideração que a divisão sexual do trabalho é um fator que provoca, ainda, muitas diferenças e discriminações no meio profissional, especialmente no campo da saúde e hospitalar. Por esse motivo, é relevante desenvolver estudos e ações sobre a temática da feminização, tendo em vista a necessidade de promover equidade de gênero no campo do trabalho em saúde.

 

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Endereço para correspondência
tabatabalestro@yahoo.com.br
ppavandetoni@gmail.com

Recebido em: 23/08/2017
Revisado em: 02/08/2018
Aprovado em: 27/09/2018

 

 

1 Dado obtido do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), no mês de setembro de 2016.
2 Direito ao voto: no Brasil, apenas em 1932 a mulheres obtiveram o direito ao voto e também de serem votadas (Piscitelli, 2009).
3 Não apresentamos a identificação e/ou informações individuais das mulheres trabalhadoras, por constituírem um grupo muito pequeno, o que poderia facilitar a identificação. Percorremos pelas funções de higienização até a gestão hospitalar.
4 Este projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Universitário Univates, conforme CAAE: 64759116.5.0000.5310.

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