SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.18 número2Freud e o programa científico kantiano índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Natureza humana

versão impressa ISSN 1517-2430

Nat. hum. vol.18 no.2 São Paulo dez. 2016

 

DOSSIÊ

 

Da perícia argumentativa de Freud: dossiê em comemoração aos 100 anos de publicação das Conferências introdutórias à psicanálise

 

 

Caroline Vasconcelos Ribeiro1, I, II; Suely Aires2, II, III

IUniversidade Estadual de Feira de Santana (UEFS)
IIUniversidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)

IIIAssociação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Anpof)

 

 

No inverno dos anos de 1916 e de 1917, Freud proferiu conferências com o objetivo de introduzir a psicanálise para um público composto de médicos e leigos. As palestras foram divididas em três partes – "os atos falhos", "os sonhos" e "teoria geral das neuroses" – e publicadas, posteriormente, sob o título Conferências introdutórias à psicanálise. Dada a importância desta obra para a divulgação e transmissão do saber psicanalítico, a revista Natureza Humana apresenta um dossiê em comemoração aos cem anos de sua publicação. Na obra in comento, testemunhamos o esforço freudiano em expor, sem "esmorecer a atenção dos ouvintes", as "novidades indesejadas" que foram descobertas por sua ciência. No prefácio, Freud explica ao leitor que não pôde manter a fria serenidade que se encontra em um tratado científico e que buscou conduzir as palestras como uma instrução preliminar à psicanalise, considerando, obviamente, o desagrado que suas argumentações poderiam gerar na plateia.

Na ocasião em que proferiu as conferências, a psicanálise já tinha sido objeto de apresentações introdutórias por parte de estudiosos e praticantes dessa jovem ciência3. Sem pretender rivalizar com as introduções previamente publicadas, Freud conduziu sua forma de introduzir as ideias centrais da psicanálise com bastante perícia argumentativa. Repetiu temas e retomou teses e argumentos para facilitar a compreensão do público e não desconsiderou o fato de que estava a anunciar muita "coisa que contradiz opiniões tradicionais e fere sentimentos profundamente arraigados" (Freud, 2014, p. 12). Apesar disso, o pai da psicanálise se esforçou em mostrar que as novidades que trazia ao público eram "imprescindíveis e dignas de conhecimento", caso todos quisessem entender a vida humana.

Ao longo de palestras que duravam em média duas horas, Freud teve que lidar com as dificuldades relacionadas à transmissão da psicanálise para um público sem familiaridade com esse campo. Ciente de que os ouvintes poderiam se apressar em repudiar seus argumentos, com muita habilidade o orador se colocava no lugar de seus interlocutores, antecipava uma possível contestação destes e tratava de "fornecer estímulos" ao debate e de "abalar preconceitos" (Freud, 2014, p. 266). Esforçou-se em não proferir conferências dogmáticas que requisitassem o crédito irrestrito do público ouvinte. Ao invés de fomentar convicções a qualquer custo, criou um clima em que um "ceticismo benévolo" pudesse ter lugar. Apresentou o material de que dispunha, baseado em sua prática, e pediu que os participantes, de antemão, não acreditassem nele ou o rejeitassem, mas apenas ouvissem atentamente deixando que o que foi proferido atuasse sobre eles antes de qualquer julgamento.

Ao explanar sobre temas relativos às duas primeiras fases das conferências – "os atos falhos" e "os sonhos" –, Freud se mostrou muito flexível em relação às contestações e se empenhou "em não dar nenhum passo sem a concordância dos senhores" (Freud, 2014, p. 266) presentes. Nessas duas primeiras etapas das conferências, que ocorreram no inverno de 1916, o pai da psicanálise se sentiu à vontade para ter esse posicionamento porque sonhos e atos falhos não eram fenômenos desconhecidos do público, sendo assim, os ouvintes tinham uma certa experiência sobre o assunto que estava sendo abordado. Já os temas que foram considerados no inverno de 1917, ou seja, na terceira fase das conferências – relacionada a uma teoria geral das neuroses e a aspectos da clínica psicanalítica –, eram fruto de um trabalho árduo e aprofundado decorrente de uma prática que não era familiar aos interlocutores. Para Freud, não era só o público em geral que não tinha contato habitual com pacientes neuróticos, mas também os próprios médicos (Freud, 2014, p. 266). Estes prestavam tão pouca atenção ao que diziam os doentes dos nervos que obstruíam a possibilidade de efetuar observações acuradas a respeito do assunto. Mesmo correndo o risco de ser julgado como alguém acometido por alto grau de teimosia ou extremamente apegado às suas ideias, Freud deixou claro aos ouvintes que os temas abordados naquele semestre de inverno eram relacionados a um tipo de experiência profissional que não lhes era familiar, sendo assim, a formação de juízo por parte público deveria evitar rejeições instantâneas. O fato de o público desconhecer o material clínico que Freud dispunha não foi motivo para que o orador tentasse fomentar "conversões-fulminantes" (blitzähnlichen Bekehrungen) ou "convicções apressadas" (raschen Überzeugungen), uma vez que estas não têm serventia no campo do intelecto. Contudo, a não familiaridade dos ouvintes com a "matéria em julgamento" fez com que Freud emitisse um alerta para que o ímpeto de julgar e condenar fosse contido em prol de uma escuta atenta.

O que gostaríamos de destacar na obra Conferências introdutórias à psicanálise – além do poder de síntese e as conquistas teórico-clínicas da pesquisa psicanalítica até então – é a habilidade argumentativa de Freud na condução de suas palestras. O palestrante, em mais um volteio argumentativo, advertiu que a psicanálise lhes pareceria estranha inicialmente e, por vezes, atrairia aversão. A primeira das afirmações desagradáveis da psicanálise foi anunciada por Freud aos seus ouvintes da seguinte maneira: "os processos psíquicos são, em si, inconscientes, e os conscientes são meros atos isolados, porções da totalidade da vida psíquica" (Freud, 2014, p. 22). Como costumeiramente a consciência é tida como o elemento definidor do psíquico, esta asserção, presume o orador, pode ser recebida como um verdadeiro contrassenso. Ao postular e legitimar a existência de "um pensar e um querer inconsciente", a psicanálise assumiu o risco de perder a simpatia dos "amigos da cientificidade sóbria" e de atrair para si a suspeita de constituir-se como uma "fantástica doutrina secreta", construída no escuro. Ciente de que seus ouvintes teriam o direito a essa suspeita e a rejeitar a assertiva apresentada, Freud lhes assegurou que demonstraria como a hipótese da existência de processos psíquicos inconscientes abriria "caminho para uma nova e decisiva orientação no mundo e na ciência" (Freud, 2014, p. 23). Esse objetivo seria perseguido por ele ao longo de suas conferências.

Se a hipótese de que o psiquismo não equivale à consciência infringe uma preconcepção intelectual, a que daí decorre parece ser mais ousada porque atinge "uma preconcepção de caráter estético-moral". Trata-se do seguinte posicionamento: os impulsos sexuais não apenas são "os causadores de doenças dos nervos e da mente", como também contribuem de modo significativo "para as mais elevadas criações culturais, artísticas e sociais do espírito humano" (Freud, 2014, p. 23). Esse tipo de afirmação suscita resistência porque atinge em cheio uma visão estética e moral que optou, com propósito educativo, por desviar a atenção do campo relativo às pulsões sexuais. A sociedade, diz Freud, não gosta "de ser lembrada dessa parte delicada de seus fundamentos, não tem interesse nenhum em que seja reconhecida a força dos instintos sexuais e seja demonstrada a cada indivíduo a importância da vida sexual" (Freud, 2014, p. 24). Quem tentar estigmatizar uma discussão sobre a força dos impulsos sexuais como esteticamente repugnante ou moralmente repreensível, transformando esse assunto "desagradável" em "incorreto", diz Freud, vai se distanciar do campo dos argumentos lógicos e factuais inaugurado pela psicanálise. Portanto, Freud propôs a seus ouvintes que abandonassem a crítica apressada e acompanhassem a explanação. Essa proposta foi repetida todas as vezes em que um argumento ou conceito com possibilidade de gerar resistências foi apresentado ao público.

Um século depois dessa experiência de transmissão que culminou na publicação da obra Conferências introdutórias à psicanálise, propusemos a pesquisadores ligados ao campo da filosofia da psicanálise que tomassem esta obra como objeto de análise e discussão. A variedade dos temas apresentados por Freud nas conferências abriu um rol de opções para a reflexão dos autores que aqui escrevem. Dentre os 28 temas abordados há cem anos, alguns foram escolhidos por nossos colaboradores para serem examinados em franco diálogo com a filosofia ou com outras correntes psicanalíticas. O resultado o leitor poderá conferir nas duas edições deste Dossiê em comemoração aos 100 anos da obra Conferências introdutórias à psicanálise.

Nesta primeira edição, Francisco Verardi Bocca, em seu artigo "Freud e o programa científico kantiano", analisa o estatuto epistemológico da metapsicologia freudiana à luz da distinção kantiana entre ciência genuína e não genuína. Para tanto, examina inicialmente como Freud apresentou a sua "jovem ciência" na ocasião das conferências introdutórias de 1916-1917 e o que foi acrescentado e até mesmo substituído nas Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise, de 1933. A afinidade epistemológica da metapsicologia com o programa científico kantiano é apontada na adoção, por Freud, do ponto de vista dinâmico e sua consideração de uma força a mobilizar o aparelho psíquico, expressa na noção de Trieb. A utilização do procedimento de natureza convencional e heurística, avalizado por Kant, é analisada pelo autor em distintos textos de Freud, o que lhe permite considerar a psicologia profunda freudiana como um produto bem-sucedido do programa científico kantiano.

O segundo texto deste dossiê, "A limitação do conhecimento de acordo com a primeira teoria freudiana do aparelho psíquico", de autoria de Fátima Caropreso, busca discutir como a possibilidade da consciência – e, portanto, do conhecimento do mundo externo e de nós mesmos – é pensada pelo autor nessa etapa de sua teoria. A consciência é apresentada por Freud como restrita em relação à totalidade dos processos psíquicos, somando-se a processos inconscientes, o que a constitui, portanto, como posterior em relação a estes. Nesse contexto, a autora defende que a possibilidade de conhecimento de nós mesmos e do mundo externo é, de acordo com a teoria freudiana, extremamente limitada, pois o acesso ao mundo externo seria indireto, e o mundo externo seria em si mesmo incognoscível. A autora conclui, assim, que o conhecimento do mundo externo e de nós mesmos seria uma "construção" do nosso aparelho psíquico de acordo com os princípios associativos presentes neste.

Eder Soares Santos, no artigo intitulado "Pressupostos conceituais para a compreensão de angústia em Freud e Winnicott", traz um exame do conceito de angústia, trabalhado na 26ª conferência da obra freudiana. Inicialmente, o autor examina a diferença entre a angústia realística e uma angústia neurótica. Em seguida, aborda as mudanças que ocorreram na maneira como Freud teorizou sobre o tema, com a formulação da segunda teoria da angústia e sua vinculação à ameaça de castração. Ao explanar sobre a compreensão winnicottiana acerca do conceito de angústia, o autor destaca que Winnicott direciona seu olhar para falhas nos cuidados ambientais dirigidos ao bebê e não relaciona o tema a uma experiência pulsional ou a uma ameaça ligada à castração. Além de examinar as diferentes maneiras como os dois psicanalistas abordaram o tema da angústia, o autor avalia os pressupostos conceituais que sustentam cada abordagem.

O artigo "Sartre, Freud e a oposição entre má-fé e inconsciente", de Malcom Guimarães Rodrigues, examina, de forma rigorosa, a tensão entre os argumentos de Sartre em defesa da liberdade e a leitura freudiana acerca do determinismo dos processos psíquicos. Ao explanar sobre a "leitura sartriana de Freud" e o que poderia ser chamado de "leitura freudiana de Sartre", o autor apresenta as críticas que são passíveis de serem dirigidas de "um lado para o outro", mas também a presença de algumas "interpretações discutíveis" nessas críticas. Ao fazer a análise das oposições entre má-fé e censura, liberdade e determinismo psíquico e má-fé e inconsciente, o autor confere às Conferências introdutórias à psicanálise um papel estratégico.

Para finalizar o primeiro volume deste dossiê comemorativo, apresentamos ao leitor a provocativa leitura de Eduardo Fonseca em seu artigo "Como falar de sexo sem ofender as pessoas? Algumas observações sobre a conferência introdutória à psicanálise 'Das menschliche Sexualleben' (1916-1917) à luz da metafísica da sexualidade de Schopenhauer". O autor afirma que a referência de Freud a Schopenhauer não é aleatória ou sem importância, já que existe entre eles certo "ar de família" em função do enfrentamento franco e direto de ambos das questões relacionadas à sexualidade e às escolhas sexuais humanas, bem como pela importância que delegam à sexualidade no contexto da humanidade. Nos dois autores, a sexualidade é simultaneamente o assunto mais importante, o foco dos esforços humanos, e, simultaneamente, o tema mais negligenciado, rejeitado e sublimado no âmbito da linguagem.

Ao fim deste primeiro volume, esperamos que o leitor possa apreciar o conjunto de textos ora apresentados, os quais possibilitam uma reflexão crítica e atualizada do pensamento freudiano em 1916-1917. Esse é um modo possível, dentre outros, de comemorar a atualidade e a permanência da obra Conferências introdutórias à psicanálise.

 

 

1 É professora titular da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), pós-doutoranda em filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana e do grupo de trabalho de filosofia da psicanálise da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Anpof) e organizadora deste dossiê.
2 É professora de teoria e clínica psicanalítica na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB), doutora em filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), membro do grupo de trabalho de filosofia da psicanálise da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia (Anpof), fundadora do Centro de Pesquisa Outrarte (IEL/Unicamp) e organizadora deste dossiê.
3 Freud cita as seguintes obras de introdução à psicanálise: Hitschmann, Freuds Neurosenlehre; Pfister, Die psychoanalytische Methode; Leo Kaplan, Grundzüge der Psychoanalyse; Régis e Hesnard, La psychoanalyse des névroses et des psychoses; Adolf F. Meijer, De Behandeling van Zenuwzieken door Psycho-Analyse. Cf. Freud, S. (2014). Conferências introdutórias à psicanálise (1916-1917) (S. Tellaroli, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras. Todas as demais citações de Freud neste texto são provenientes desta obra.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons