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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev. Mal-Estar e Subj. v.4 n.1 Fortaleza mar. 2004

 

ARTIGOS

 

Entre o cordel e o Pau-Brasil: uma metáfora diacro-sincrônica do Brasil

 

 

John Rex Amuzu Gadzekpo

Professor/Coordenador de Português, Department of Foreign Languages, Obafemi Awolowo University, Ile-Ife, Nigéria; Maître de Conférences Associé, Département d'Études Portugaises et Brésiliennes, Université de Poitiers, França, e Membro da Equipe Brasileira (Fonds Raymond Cantel) do Centre de Recherches Latino-Américaines, Maison des Sciences de l'Homme et de la Société, Université de Poitiers, França. John Rex Amuzu GADZEKPO. Le Studel, Bat.1, Appt. 124; 24, Rue des Champs Balais, 86000 Poitiers, France. e-mail: amuzu22@yahoo.com

 

 


RESUMO

Ao longo do percurso duma viagem de pesquisa, principalmente pelo Nordeste brasileiro, sobre o desafio - o aspecto satírico e dialogado do cordel brasileiro - vários aspectos da civilização brasileira são repertoriados e comentados, na medida em que vêm surgindo nas descobertas bibliográficas dessa pesquisa e de assuntos relacionados (notadamente a literatura e cultura afro-brasileiras), em certas instituições e na própria paisagem humana e natural. Tomando como ponto de partida uma metáfora ancorada nas características do pau-brasil, a avaliação da situação do cordel, assim como as observações e análises da conjuntura socio-econômica brasileira são discutidas à luz do paradigma de um relacionamento simbiótico postulado na dita metáfora. Trata-se, pois, duma tentativa da (re)interpretação pluralista e holística do Brasil, na qual uma viagem sincrônica induz à corolária viagem diacrônica por veredas (quase perdidas) da história do Brasil, convidando a um repensar e uma reavaliação de vários aspectos (inclusive literários) das vigentes estratégias, orientações e políticas da identidade e formação da sociedade brasileira.

Palavras-chave: civilização, historiografia, identidade,literatura de cordel, pau-brasil


ABSTRACT

Within the framework of a research trip about the desafio - the dialogued satirical vein of the Brazilian cordel literature - in the mainly North-eastern region of Brazil, several aspects of Brazilian civilization come up for commentary, as they emerge in the bibliographic discoveries made along this trip, as well as in what are perceived as related matters (notably Afro-Brazilian literature and culture), in certain institutions and in the very human and natural landscape. Based on a metaphor rooted in the qualities of the almost extinct brazilwood, observations and analyses of the status of cordel literature and the present socio-economic situation of Brazil are made in the light of an exemplary symbiotic relationship postulated in the said metaphor. In essence, therefore, this essay attempts a pluralist and holistic (re)interpretation of Brazil in which a synchronic journey induces a corollary diachronic trip along often forgotten paths in the history of Brazil, calling for a rethinking and reappraisal of several (including literary) aspects of the existing strategies, orientations and policies regarding the identity and making of Brazilian society.

Keywords: civilization, historiography, identity, cordel literature, brazilwood.


 

 

Era uma vez, ...

A Carta de Caminha anuncia o "descobrimento" de uma nova terra (embora já habitada pelos índios) logo batizada Província de Santa Cruz "a que Vulgarmente Chamamos Brasil" (como informa outro cronista português, Pêro Magalhães Gândavo. Esse nome "vulgar" (no sentido de "popular", e ao contrário de "oficial"), que resistiu até tornar-se nome oficial e único dessa enorme terra, nasceu, como sabemos, do pau-brasil, árvore dotada não só duma elegância e resistência incríveis, como também de excepcionais valores medicinais, conforme esta acepção no Dicionário Houaiss:

1. árvore de até 30 m (Caesalpinia echinata) da fam. Das leguminosas, subfam. Cesalpinioídea, que outrora habitava o litoral brasileiro, do Rio Grande do Norte até o Rio de Janeiro, e hoje em dia é bastante rara, com casca tanífera, madeira de cerne vermelho e tinta da mesma cor, folíolos pequeninos, flores amarelas e vagens oblongas, tb. Cultivada como ornamental e por usos medicinais; arabutã, arubatã, árvore-do-brasil, brasilaçu, brasilete, brasileto, brasil-rosado, ibirapiranga, ibirapitá, ibirapitanga, ibirapuitá, imbirapatanga, muirapiranga, orabutã, pau-de-pernambuco, pau-de-tinta, pau-pernambuco, pau-rosado, pau-vermelho, sapão. 2. a madeira dessa árvore.

Pode parecer discutível ou até supersticioso, mas consideramos que nesta, nomenclatura, baseada num destacado elemento da flora nacional (e portanto de relevância intrínseca) reside toda uma série de atributos, qualidades, dificuldades, tendências, possibilidades e perspectivas que marcaram, marcam e ainda vão marcar a trajetória da formação da nação brasileira.

Em primeiro lugar, o pau-brasil (fui informado por amigos em Nazaré da Mata, no Pernambuco, onde vi essa árvore pela primeira vez) leva muito tempo - uma geração de 30 anos - para atingir maturidade, chegando a uma altura de até 30m. Longos anos para crescer, grande altura: em escala nacional, a metáfora se traduz em um percurso que se iniciou em 1500, penosamente atravessando os séculos até chegar ao Brasil contemporâneo, gigante tanto no subcontinente como no palco mundial. Mas um percurso multifacetado, engrinaldado, em trechos, de façanhas edificantes, e crivado em outros de balas e feridas desferidas em consequência de vários vergonhosos atos de comissão e/ou de omissão, o que o deixa com a condição de gigante com mais de um calcanhar-de-aquiles.

O próprio pau-brasil constitui uma faca de dois gumes, sendo ao mesmo tempo a força de atração responsável pela onda inicial de colonização e de comércio, e motivo não só do progressivo desmatamento da terra (com eventuais consequências trágicas para o meio ambiente regional e mundial) como também da dizimação dos índios, originais donos da terra. Assim, o pau-brasil revela-se como fenômeno anti-maniqueísta2, encerrando numa única célula os ingredientes (inseparáveis?) do bem e do mal, conceito que casa bem com a mundividência essencialmente africana da inseparabilidade material (e essencial), da relatividade, portanto, do Bem e do Mal, cabendo aos seres humanos usarem da sua moral, dos frutos da civilização e da sua responsabilidade cívica para determinar a utilidade de tudo. A faca, por exemplo, pode matar, mas também pode servir os fins vitais da humanidade. O mal, portanto, não reside na faca que mata, mas no ser humano que a empunha. Tampouco reside de maneira irrevogável no próprio ser humano que mata com a faca: o mal lhe sobrevém, num acesso qualquer de sentimentos destrutivos de caráter temporal, na falta da aplicação dos esquemas da moral, do civismo e da ética. O pau-brasil, também, não é responsavel pelo seu uso e pelas consequências da sua exploração. Isto cabe aos exploradores.

De qualquer maneira, o pau-brasil tem grande prestígio, mesmo se atualmente uma espécie rara, quase em vias de extinçao. Porém, outra árvore nordestina, a algaroba, que me mostraram na mesma rua, ao lado do pau-brasil, tem fama negativa: cresce rápido demais, disseram, e dá trabalho para podar, limpar, etc. Mas é bonita e resistente, ideal, portanto, para projetos de reflorestamento. Mais uma vez, o positivo e o negativo, por assim dizer, estão intrínsecamente ligados na mesma entidade. E se, pelas suas qualidades positivas, o pau-brasil conduz, paradoxalmente, à sua própria extinção (pela mediação predatória do homem), pondo em perigo toda a vida - da fauna, da flora e da humanidade, a algaroba, também paradoxalmente, mas por um processo inverso, pelas suas qualidades "negativas", reúne as condições de consertar, através, por exemplo, dum bem-sucedido projeto de reflorestamento, os estragos provocados por aquele. Um complementa o outro, não só numa relação simbiótica, como também pela sobrevivência de todo o meio ambiente com os seus vários seres.

Complementaridade baseada na totalidade ontológica ("positiva" + "negativa") de cada elemento deste relacionamento exemplar que abre elucidativas perspectivas para uma metaforização a nível da formação da sociedade brasileira, composta de elementos das mais variegadas fontes imagináveis. Tomando, a título de exemplo, só as três principais raças que formaram a base dessa sociedade - o índio, o europeu (português) e o africano, verificar-se-ia semelhante reconhecimento de simbiose e complementaridade nos relacionamentos econômico-socio-políticos? Como o Brasil tem reconhecido e coordenado as várias qualidades, "negativas" e "positivas", de seus componentes humanos, e quais os benefícios auferidos por cada raça-membro dessa suposta "família" multi-racial alinhada ao longo da avenida da história brasileira? Estas são apenas algumas das perguntas em cujas respostas existe a bússola para o caminho a ser percorrido por um Brasil desejoso da digna designação de "nação", heterogênea nas feições geográfico-físico-humanas, mas homogênea quanto à dignidade humana e igualdade de direitos e oportunidades para todos.

 

Na trilha do Cordel

Esta viagem minha de volta ao Brasil, depois duma ausência de quinze anos, foi necessitada por uma pesquisa de campo pelo Nordeste, principalmente, na trilha da literatura do Cordel, especialmente a sua vertente satírica, a peleja. Na minha primeira estada, de estudos brasileiros, fiquei praticamente limitado ao eixo São Paulo - Brasília, permutando entre a garoa fina da selva industrial da mega-cidade, em nada fiel à sua humilde origem jesuítica, e a futurista urbe cosmopolitana, literalmente traçada no solo do astuto cerrado e transformada num belo oásis verde com pitorescos lagos piscosos. Desta vez, porém, o meu trajeto abarca parte do que pode ser considerado o "verdadeiro Brasil" (sem prejuízo aos "outros brasís"), por três razões principais: primeiro, porque é o ponto do "Achamento" do Brasil, e a zona que corresponde ao "habitat" natural do pau-brasil; segundo, porque é lá que se verifica o maior grau de miscigenação racial e cultural dos três elementos fundadores da nação brasileira já referidos; e terceiro, porque essa região representa o berço dessa singular e viçosa manifestação da cultura literária brasileira: o Cordel, objeto da minha pesquisa atual.

Qual é a importância da literatura de Cordel? Por que erigí-la em monumento nacional, fator determinante do "verdadeiro" Brasil, enquanto que o mais atual e conceituado dicionário brasileiro da língua portuguesa, o Houaiss, a define assim?:

1. LIT. Relativo à literatura popular, impressa em livretos de baixo custo, e feita por poetas populares (...) 2. pej. Relativo a literatura popular considerada de escasso valor.

Palavras chaves: literatura popular; baixo custo; escasso valor. Popular = "vulgar" (isto é, do latim vulgo, do povo), como o topónimo "Brasil" que ganhou sobre o oficial Santa Cruz; baixo custo, porque o livreto (= folheto) feito em papel de jornal e impresso em tipografia rudimentar, é destinado principalmente à plebe (e a quem compartilhe a "verdade" do povo), e distribuído tradicionalmente ou pelos próprios poetas ou por vendedores ambulantes em feiras e praças públicas; e de escasso valor só para os praticantes e críticos da chamada literatura oficial, consagrada, a mainstream literature, geralmente com meios abastados e sofisticados de produção e distribuição, mas também com respaldo numa ideologia da suposta superioridade da escrita

 

Cordel: antropologia e literatura

O valor da poesia popular brasileira, da qual o cordel faz parte principal, vem sendo asseverado, paulatinamente, desde o ímpeto inicial dado pelo Romantismo, em cuja ideologia anticlassicista preconizava-se uma liberal estética de mistura, de "impurezas" e duma visão de alteridade inclusivista em que o "eu" individual só se valida se projetando ao "Eu" universal, no tempo e no espaço. Daí a sua valorização das manifestações culturais de camadas sociais desdenhadas pelo classicismo, e a sua predileção pelo fantástico e pitoresco, sobretudo das lendas populares, como elemento fundador de nacionalidade.

Entre os indivíduos, considera-se como o grande pioneiro na defesa da poesia popular brasileira, dentro do contexto geral da cultura popular, o folclorista e crítico literário Sílvio Romero (com Os Cantos populares do Brasil, de 1883), para quem essa poesia teria "duas finalidades complementares, vinculadas ambas ao projeto nacionalista: no domínio científico, fornecer uma "contribuição etnológica, [um] subsídio anônimo para a compreensão do espírito da nação"; no domínio literário, constituir uma matriz referencial para a construção de uma literatura dotada de originalidade e representatividade nacionais" (Matos, 1994, p.150 ).

Para Bráulio do Nascimento (1973), porém, o verdadeiro pioneiro seria Celso de Magalhães, cujos artigos, publicados em 1873 no quinzenário O Trabalho, do Recife, e publicados reunidos no livro A poesia popular brasileira, pela Biblioteca Nacional cem anos depois, em 1973, "marcam o início das pesquisas folclóricas entre nós" (Nascimento, 1973, p.8). Seria, conforme Nascimento, o material desses artigos a base dos Cantos populares do Brasil, de Sílvio Romero. Para as nossas finalidades, a maior importância do trabalho de Magalhães reside no critério de pesquisa adotado pelo autor: seguindo o exemplo de Teófilo Braga (no seu Romanceiro geral da literatura popular portuguesa), adotou o critério de rigorosa fidelidade ao texto popular, em vez de retocá-lo, como fizera Almeida Garrett (que serviu de modelo para José de Alencar), emendando, corrigindo e aperfeiçoando o que ele considerava defeituoso, simples, rústico e obsceno. Até parece a versão literária do embranquecimento racial.

A verdadeira valorização da poesia popular começa com essa fidelidade ao texto tradicional, ao invés da adequação do mesmo aos padrões da literatura erudita. Mas, dada a hegemonia desses padrões, muitos dos estudiosos que seguiram (ou mesmo se opuseram, duma maneira ou outra, a) Sílvio Romero: Capistrano de Abreu, José Veríssimo, Artur Ramos, Edison Carneiro, Araripe Júnior, Luís da Câmara Cascudo, Roger Bastide, etc., adotaram uma abordagem visceralmente etnográfica e folclórica (e até discriminatória) da poesia popular, demonstrando, como diz Cláudia Neiva de Matos, "uma reluctancia de confrontar o caráter estético da poesia popular", insistindo

em reduzir esta poesia a seu aspecto conteudístico, isto é, reconvertem-na em mero assunto, que apenas transfigurado pelo talento individual do homem culto poderia poderia ascender à categoria de arte, universalizada em forma e conteúd. (Matos, 1994, p.152).

Nem mesmo o engajamento social do Modernismo consegue conceder um digno estatuto próprio à poesia popular, além dos clichés do pitoresco e do ingênuo. (Matos, 1994, p.153).

Se Sílvio Romeiro "pecou" do lado literário da poesia popular, pelo menos do ponto de vista antropológico, ele nos deixou um legado inestimável na nossa concepção metafórica duma nação brasileira original e representativa. De novo, Cláudia de Matos:

No campo das ciências humanas, a poesia popular constituiria uma fonte praticamente inexplorada de informações, indicando novos precursos à nossa historiografia e habilitando-a a conceber um retrato mais dinâmico e polidimensional do Brasil. (Matos, 1994, p.150, grifo nosso).

Com esse retrato servindo de pano de fundo, não é difícil compartilhar tanto os questionamentos de Marilena Chauí em torno das delimitações para a cultura popular ("(...) seria a cultura do povo ou a cultura para o povo?"), isto é, "a cultura do povo como vinda deste para este e não sendo produzida pela classe dominante/elite para a classe dominada/popular, donde resulta uma prática genuinamente popular", como a sua observação de que a tal designação "não surge no seio das classes ditas 'subalternas', mas que lhes é atribuída para designar suas manifestações culturais, por parte dos setores dominantes da sociedade". (Lima, 2004, p.1). Desta maneira, opõem-se popular/erudito duma maneira preconceituosa e irreconcilável, assim criando, no processo da formação da nacionalidade brasileira, contraprodutivas cisões que tentativas paternalistas da transformação do popular em erudito, do tipo Movimento Armorial, não conseguem consertar.

Não é nossa intenção discorrer in extenso sobre a literatura de Cordel, mas talvez seja oportuno assinalar a visceral oralidade da mesma, o que a põe em linha de choque frontal com o scriptocentrismo da literatura oficial: além de nascer do meio popular (de raízes orais), boa parte dos gêneros do Cordel são re-produções por "escrito" (manuscrito ou impresso), uma re-verbalização ou re-oralização do assunto (literalmente "cuspido" sobre papel) de cantorias ou narrações em voz viva (portanto, um discurso com uma força e identidade essencialmente oral) e, dado o alto grau de analfebetismo, mas principalmente devido às exigências da própria tradição da poética cordelista, a maneira mais apropriada de curtir o folheto não é a da solitária leitura silenciosa, com os olhos percorrendo as linhas do livreto (como é geralmente o caso das obras da literatura "institucionalizada"), mas a da declamação, da criativa e muitas vezes adaptada re-performance do evento matriz, por assim dizer, diante duma audiência também participativa, a partir do texto manuscrito ou impresso. O Cordel, portanto, se coloca na interface da oralidade e escrita, permitindo uma relação simbiótica entre as duas modalidades, contribuindo, desta maneira, à preservação e ao enriquecimento, tanto da tradição oral quanto da literatura escrita.

Uma das infelizes consequências da oposição escrita/oral é a tendência de atribuir-lhes as contrastivas conotações culto/popular, este sinônimo de inculto, esquecendo que grandes obras clássicas, como a epopéia homérica, A Odisséia, nasceram como textos orais e só depois foram passadas (ditadas, como no caso da Odisséia) ao escrito. Porém, a poética do Cordel, especialmente a fase da Cantoria, é infinitamente mais rica do que se possa imaginar, o que deve estranhar o preconceito que lhe é dedicado no sistema oficial da literatura. Em termos de subgêneros, por exemplo, a Cantoria tem mais de 100 modalidades (de estrutura rímica, métrica e estrófica), a maioria muito complexas, mas que têm que ser respeitadas mesmo na improvisação do repentismo, sem falar do igualmente infinito leque de temas e assuntos tratados: o Cordel é o noticiário, é o documento da história, o registro de ocorrências ou crônicas, o veículo dos mitos populares, o meio para a vazão do gênio criativo e muitas outras aplicações. É o Cordel que, ao longo da sua história, soube acompanhar a história do seu povo e do mundo e aproveitar-se de tanto quanto surgiu em termos da tecnologia de comunicação, chegando a propagar-se, não só em folhetões bem coloridos do tipo da Prelúdio de São Paulo, como também em CD-ROMs e pela Internet.

Tal como o pau-brasil, o Cordel tem atraído muitos estrangeiros, especialmente depois do pioneiro trabalho do francês, o Professor Raymond Cantel, da Universidade de Poitiers, onde existe, merecidamente, o Fonds Raymond Cantel de estudos sobre o Cordel (e da Oralidade e a sua relação com a Escrita), cujo acervo consiste principalmente da coleção pessoal desse exímio intelectual. A minha pesquisa, como membro da equipe deste centro, gira em torno da vertente satírica do Cordel, versando sobre o duelo poético, ou seja, o desafio ou peleja brasileira, (tanto oral como impressa em folhetos e/ou publicadas na Internet), uma das três vertentes dum projeto de comparativismo tripártida, à luz das semelhantes tradições satirico-poéticas de Portugal e da minha terra natal da África Ocidental, especialmente da etnia Ewe de Gana.

Felizmente, e ao contrário do caso do pau-brasil, o interesse do outro pelo Cordel, longe de constituir um perigo ambiental e de exploração descarada (como no caso da Amazônia), abre uma série de perspectivas capazes de proporcionar uma mais ampla divulgação, maior valorização e uma merecida inserção nos currículos de estudos acadêmicos, dentro do próprio Brasil e pelo mundo afora. No meu caso específico, na medida em que se trata também da cultura literária dum dos povos africanos que compõem a base da sociedade brasileira (e portanto duma possível contribuição literária, para além da culinária, dança, música, superstição, etc., que são as únicas concessões feitas, de praxe, ao negro, pelo sistema oficial dos estudos brasileiros), estaremos assistindo à quebra dum tabu, e à restauração qualitativa do verdadeiro mosaíco cultural que esta literatura do Cordel pode representar.

E, falando de mosaico cultural, há um preocupante aspecto do Cordel de que vamos tratar num trabalho separado, aspecto prenunciado numa obra pioneira de Olga de Jesus Santos e Marilena Vianna: O Negro na Literatura de Cordel (Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio, 1989), mas que vai, de traços de racismo anti-negro a uma certa tendência elitizante que parece abdicar suas raízes populares e essencialmente orais, sob a atração osmótica da literatura "oficial" escrita.

De importância central nesta necessidade de reexaminar e reavaliar os recursos (tanto materiais como humanos, espirituais e intelectuais) é a própria identidade e progresso da nação brasileira. Os fundamentos históricos da mesma têm sido falsificados e enfraquecidos por ideologias identificadas, grosso modo, com a empreiteira predatória (de dominar, explorar, colonizar: o intensivo uso do vocábulo "proveito", entre outros indícios) do ponto de partida cujo carimbo está patente na Carta de Caminha, mas levada adiante por um variegado elenco de orientações e medidas voltadas ao engrandecimento do componente europeu, à superficial exaltação simbólica (apesar da dizimação sistemática) do índio, e à sistemática vilificação e marginalização do negro. E com isso, toda uma gama de preconceitos que abrangem as atitudes, inclusive em relação à oralidade vis-a-vis a escrita. As crises e os desafios da modernidade nos convidam, como bem afirma Astor Antônio Diehl, a um "trabalho de rememorização, traduzido na ressubjetivação e repoetização do passado". Isto não implica a ficcionalização, mas sim, uma reconstituição do passado, tirando a poeira das verdadeiras estruturas materiais e sociais, com o fito de reconstruir uma autêntica identidade acolhedora e otimizadora de todos os elementos constitutivos. É um exercício em que, de novo nas palavras de Diehl (2002), "a noção de identidade precisa ser antropologizada com o objetivo de ampliar seus aspectos de possibilidades, saindo-se assim da conceituação de identidade como meramente ideológica" Trata-se, pois, não do estatuto conferido de acordo com os ditames dum certo regime de seletividade cromática e elitismo, mas dum conceito em que ser brasileiro segue a definição da própria antropologia, sendo, apud Houaiss:

Ciência do homem no sentido mais lato, que engloba origens, evolução, desenvolvimentos físico, material e cultural, fisiologia, psicologia, características raciais, costumes sociais, crenças, etc.

O trabalho de rememorização não se limita ao passado. Melhor, trata-se dum dinâmico conceito do passado que se projeta no futuro, mantendo-se nos andaimes do presente, de tal forma que estabeleça-se uma ontologia de complexa contemporaneidade identitária em que "o futuro torna-se cada vez mais presente, (...)", e "(...), o investimento é reconstruir o passado pela perspectiva de futuro no passado."). (Diehl, 2002, p.113).

O presente, então, nos convida a reexaminar o passado, sobretudo no que este tinha como projeto de futuro - "perspectiva de futuro no passado" (o que equivale a nossa conjuntura atual), e em função do que desejamos para o futuro

Remetaforizar as identidades e os recursos nacionais implica "a ornamentação de signos e significados de determinados grupos sociais étnicos", privilegiando "uma recolonização das experiências do cotidiano, especialmente levando em conta a profunda crise atual de valores modernos e seus respectivos projetos de futuro". Implica a queda de tabús e estigmas, e uma reordenação da vigente escala de valores, como veremos mais adiante. Ou, como quer Ivan Cavalcanti Proença (1982), é forjar uma ideologia, porque "a ideologia não é subjetiva, ela é objetiva, são relações sociais práticas sociais, ela é um efeito da estrutura nas formas de práticas sociais específicas. É por isso que não se pode pensar uma formação social sem ideologia." (p.61). E entre os signos e significados, nada mais profundo e relevante do que a manifestação, oral e/ou escrita, da cultura literária popular, desenvolvida em solo brasileiro, na qual o Cordel ocupa um lugar de destaque.

 

Uma trajetória de descobertas.

Começando pelo Rio de Janeiro, descobrindo os pontos de referência como o Pão de Acúcar, a natural fortaleza do Corcovado, e o Cristo Redentor zelando por aquele paraíso quase perdido num intricado mixto de luxo, beleza e alegria por um lado, e miséria, violência e desespero, por outro, mas sentindo no ar e na paisagem praieira em direção de Icaraí no Niteroi algo me lembrando de Accra e Lagos, a minha maior descoberta nesta fase seria, em parte, a Fundação Casa de Rui Barbosa, no Botafogo (cujas livraria - praticamente um quiosco glorificado - e biblioteca, parece, conseguem sobreviver mais pelo esforço do seu dedicado e hospitável pessoal do que pela adequada injeção de fundos e de nova e imprescindível tecnologia de tratamento e preservação de textos), e em parte o Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular/ Biblioteca Amadeu Amaral, junto com o Museu de Folclore Edison Carneiro, (ambos da FUNARTE), no Catete. Em contraste com a biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa, onde a consulta da impressionante coleção de folhetos de Cordel, já em avançado estado de desgaste, continua sendo manual, a coleção da Biblioteca Amadeu Amaral, contando com uma fundamental contribuição dos próprios cordelistas, já se dispõe em catalogação e consulta informatizada conforme normas internacionais, e em breve disponível na Internet, graças ao pioneirismo e à visão do seu fundador (agora aposentado), o Professor Braúlio do Nascimento, com quem eu tive a sorte de conversar sobre certos aspectos do Cordel (com base no seu ensaio, "Literatura de Cordel: Dupla Dimensão Semântica" - Separata do Correio do IBECC/UNESCO, Rio, 1998/2000) e do Centro, na feliz companhia coincidente dum outro pesquisador estrangeiro, o português Carlos Nogueira, da Universidade do Porto.

Atrás de cada um destes dois pontos de parada na romaria cordelista, uma história curiosa: Rui Barbosa foi quem mandou queimar boa parte dos arquivos brasileiros sobre a escravidão, por considerá-los registro da vergonha na história do Brasil. Ato quixótico que parece acreditar que, ao destruir o atestado médico, a doença e suas causas desaparecerão! Mas os negros sobreviveram o dito rito de exorcismo e são os afro-brasileiros de hoje, cuja situação atual parece ainda regida por essa ambiguidade e contradição de existência deletada, ainda à procura, não só duma identidade, como atesta o ensaio de Jussara Santos em Poéticas Afro-Brasileiras, como, significantemente, da sua afirmação ontológica, a priori. O trecho do poema de Luiz Gama, "Quem sou eu?", citado por Jussara Santos (p.100), capta adequadamente este dilema:

Quem sou eu? Que importa quem?
Sou um trovador proscripto
Que trago na fronte inscripto
Esta palavra - Ninguém!"

É um fenômeno de efeito camaleônico que gera "estratégias que disfarçam os conflitos reguladores da visibilidade e invisibilidade do negro numa sociedade que, dizendo-se mestiça, ainda lida mal com a cor que tem" (Introdução a Poéticas Afro-Brasileiras, p.9)

Sobre o Catete ainda paira o espectro de Getúlio Vargas na sua fidelidade de promessa cumprida: "Só morto sairei do Catete". Seja por suicídio ou por assassinato, Getúlio não saiu vivo do palácio do Catete. Um último bilhete seu teria a seguinte mensagem:

A SANHA DOS MEUS INIMIGOS DEIXO O LEGADO DE MINHA MORTE.
LEVO O PESAR DE NÃO TER PODIDO FAZER PELOS HUMILDES TUDO
AQUILO QUE EU DESEJAVA.
(Bueno, 2003; p.339)

Sou levado a crer, por certo ou errado, que o trabalho que se realiza nas instituições sediadas nos recintos desse palácio constitui o desejo, por parte dos seguidores desse controvertido "dictator in defense of democracy" e polémico ex-membro da Academia Brasileira de Letras, de cumprir com mais uma visão ou promessa do chamado "Pai dos Pobres". O Cordel parece ter reconhecido esse compromisso deste, a julgar pelo número de folhetos sobre Getúlio Vargas.

 

Recife

Escondido no segundo andar do Edifício Santalice, ao lado do famoso Cine São Luís, na Rua da Aurora, opera o humilde escritório da Comissão Nacional de Folclore, na realidade uma máquina conduzida por dois antropólogos, o Prof. Roberto Benjamin e José Fernando de Souza, coordenadores da minha viagem de pesquisa. Se no Rio de Janeiro descobri algumas pistas, já no Recife, podia cantar uníssono com a inscrição de Cícero Dias no cais recifense dizendo: "Eu vi o mundo (...) ele estava começando no Recife".

O mundo do cordel, no meu caso. Apenas duas horas depois da minha aterrissagem, estávamos, eu e "meu guia", Zé Fernando, no Teatro do Recife, assistindo a uma cantoria e apresentação de poesias por um variegado elenco de poetas e cantadores de várias idades e diversos níveis de perícia. Esse congraçamento de poetas principiantes (por assim dizer) com os consagrados (como o grande Ivanildo Vila Nova), com as elucidativas intervenções do empolgadíssimo Apologista, faz do evento um verdadeiro ateliê de aprendizagem e formação, de reciclagem e atualização de conhecimentos, técnicas e temas, ao benefício tanto dos poetas como do seu público participante. Em fim, uma cultura dinâmica e auto-renovadora que oferece sadio entretenimento participativo nesta época da agressiva investida da televisão e outros meios eletrônicos de diversão que impõem passividade da parte do público.

Este dinamismo é confirmado, em parte, pelo fato de que, no final do "show", o líder natural do grupo, Ivanildo Vila Nova, anunciou uma longa litania do roteiro de cantorias somente daquela temporada, abrangendo uma dezena de cidades, principalmente no interior do Pernambuco, e também pelo fato de que, dois dias depois do dito evento, numa noite de sábado para domingo, houve mais uma cantoria, no Bar do Paulo (na vizinhança da CHESF - Companhia Hidrelétrica do São Francisco), desta vez involvendo apenas um duo de poetas de renome, o Ivanildo Vila Nova e o Waldir Telles, com o cantor baiano, Xangai, fechando a noite com a sua bela canja, todos dando prova de incrível improvisação que se estendeu à minha pessoa, procedência e missão. Igualmente impressionantes o interesse, a participação e o apoio do público que, como eu, aproveita a oportunidade para adquirir algumas gravacões em CD e video-cassete de famosas cantorias e festivais.

 

Panelas

A poesia do Cordel parece pervadir quase tudo nesta parte do Brasil. Entre as poucas atividades prealavelmente previstas na minha trajetória era um encontro com o famoso Oliveira de Panelas, talvez o maior dos cantadores atuais, com quem eu tivera o privilégio de colaborar (junto com seu colega cantador Lourinaldo Vitorino), sob a coordenação da Profa. Idelete Muzart dos Santos, no Salon du Livre de Paris, em março de 1998. Mas aconteceu que não teria o prazer de conhecer João Pessoa, onde mora Panelas, já que o nosso encontro seria no Recife. Na Casa Marista, onde o poeta lançaria um livro de poesia - Cantando a História (em Cordel) - comemorando o Centenário da Província Marista do Brasil Norte. Toda a história da Província Marista do Brasil Norte, e do fundador francês do Movimento, o Santo Champagnat, em poesia de Cordel, e lançada com toda a pompa e requinte organizacional pelo que o Movimento é conhecido, e em homenagem ao lendário Ariano Suassuna, tudo animado com uma impressionante performance do conjunto musical do Colégio Marista Pio X (Armorial Marista), coordenado pelo Prof. José Ubireval Delgado (o Bira). O Cordel como veículo e registro dum capítulo significante na vida social, religiosa e educacional do povo.

Não é fácil deixar de notar o "luxo" que é a Casa Marista do Recife. Localizada no topo duma colina no bairro de Apipucos, seus bem conservados prédios de rara beleza arquitetônica, seus gramados minuciosamente cuidados, a variegada e bonita paisagem, complementada pela refrescante fonte na frente do prédio principal - fonte que foi restaurada e melhorada, num esforço frenético duma noite no último momento, para as comemorações do centenário, e sem mencionar a extraordinária limpeza dos recintos, essa Secretaria Provincial do Brasil Norte brilha em gritante contraste com suas "vizinhas" mais seculares localizadas em nível "inferior" da colina, a Fundação Gilberto Freyre e a Fundação Joaquim Nabuco, em cujas deprimentes instalações tomadas pelo capim parecem ecoar vozes cansadas de pedir esmola e piedade. A única coisa que parece ligar aquela "Casa Grande" e estas "Senzalas" é a íngreme e romântica via de pedras, esse beco sem saída, pelo qual descem as águas que alimentam o açude lá em baixo.

Foi no auditório dessa Casa Provincial que a retumbante voz do Tenor/Poeta/Cantador Oliveira de Panelas lançava o seu livro, declamando e cantando sua poesia, frequentemente dispensando o microfone , dando prova do seu apelido de "Pavarotti do Sertão", apelido, alias, discutível, já que enquanto que o nosso Panelas não só canta mas faz a poesia (ainda repentista) que canta, o italiano se limita a cantar somente, e obras alhéias! E foi nos vários espaços desse conjunto - jardins, auditório, sala de jantar, etc., que gravei o que começou timidamente como uma entrevista, mas se graduou num verdadeiro "show de realidade" em que entram conversas avulsas, comentários de índole pessoal, risadas provocadas por gozações, etc., isso tudo facilitado pelo gravador MP3 da ARCHOS, dotado dum disco duro de 20Go, capaz de gravar horas a fio. E isso porque da boca do Vate que já cantou ao Papa João Paulo II, emanam, no contexto do mais ordinário papo, rios de episódios históricos na evolução da cantoria e do Cordel, ricas anedotas reveladoras da personalidade do próprio poeta, e verdadeiras aulas sobre aspectos técnicos (rima, métrica, gêneros, etc.) da cantoria, o todo pontuado por trechos de belos versos improvisados. Este é o poeta consumado, a cantoria personificada, um monumento vivo que merece ser reconhecido como ícone nacional para o benefício da humanidade.

 

Nazaré da Mata.

Facilitada pelo casal amigo Maria Alice Amorim e José Américo de Farias, estudiosos e ativistas da cultura popular nordestina, e com preparo teórico na base de Carnaval: Cortejos e Improvisos (uma rica e integral introdução ao mundo do maracatú e da poesia improvisada nos foliões do carnaval, da autoria da própria Maria Alice Amorim e do Prof. Roberto Benjamin), essa viagem ao interior do Recife foi programada como, para mim, apenas uma excursão e oportunidade de observar uma reunião dum Maracatú - o do Leão de Ouro de Nazaré da Mata. Acabou sendo um ninho de descobertas e reflexões que, entre outras coisas, deram orientação a este ensaio: como já indicado, foi o lugar da minha descoberta do pau-brasil e da algaroba. Mas também foi onde me redescobri, emocional e culturalmente na humilde e apertadíssima barraca que leva o elevado título de sede do Leão de Ouro, através da atuação e do esprit de corps daquele grupo mixto e miscigenado de gente simples de todas as idades, cores e ocupações, determinado a remar contra toda maré e levar adiante seu projeto cultural de Maracatú. Cultura popular, viveiro e fonte de toda poesia popular. Projeto sem lucro, mas cheio de sacrifício e de auto-realização, dando cor, conteúdo e carisma a festas populares, às vezes ao servíço das instituições políticas, mas raramente lembrado na alocação de recursos e fundos. Assim, o Leão de Ouro, que me acolheu com a generosidade de espírito indicativo do seu profundo humanismo, em meio dos multi-coloridos adereços de fitas, estandartes, bandeiras, etc., batalhava, debatia, matutava sobre como arrecadar fundos não só para organizar o próximo festejo como também, e mais importantemente, como evitar uma ordem de despejo da barraquinha, por falta de pagamento do aluguel da mesma!

Em Nazaré da Mata, redescobri, no Maracatú do Leão de Ouro, parte da minha África, do sistema organizacional dos grupos de dança "vuhawo" do meu povo Ewe de Gana; também descobri o que considero o símbolo do passado e do futuro do Brasil, uma complexa metáfora diacro-sincrônica: o pau-brasil (com o corrolário da algaroba). Na simplicidade, humildade e sinceridade do Maracatú do Leão de Ouro, os contornos semânticos desta metáfora parecem ganhar profética profundidade.

 

Marcelo Soares

De volta ao Recife, e de bagagem quase feita, tive a sorte de poder receber o poeta e xilógrafo, Marcelo Soares, de Timbaúba, contando com a ajuda e participação do Zé Fernando. Além da entrevista amical, aquele encontro iria contribuir de maneira decisiva à revisão de algumas idéias-chave na palestra que eu tinha preparado para dar na Universidade de Fortaleza, sobre o tema do obsceno e do grosseiro no Cordel. O album Estes Fesceninos, assinado por Marcelo Olecram (o pseudônimo apenas o espelhamento gráfico de Marcelo), e apresentando-se como um "imbecil poeta pretensioso", alterna cartões de xilogravuras "obscenas" (como sugere o próprio título) com as correspondentes composições de motes e glosas, uma "aventura" que empreendeu sob a inspiração duma descoberta que fizera da tal estirpe de "pulhas" no baú do pai, o Poeta-Reporter José Soares, a quem a obra é dedicada. Trata-se dum excelente exemplo de tradição (no original sentido de passar de pai ao filho) num subgênero intrigante que acreditamos merece um profundo estudo desprovido de dogmas, tabús e preconceitos.

 

Fortaleza

O confortável ônibus-leito da S. Geraldo atravessou o verde sertão (em nada parecido com a caatinga das secas de que lemos nos romances de Graciliano Ramos e Raquel de Quieroz) durante a noite, chegando em Fortaleza logo após as oito da manhã, e o que chama atenção, no trajeto para a (igualmente limpa) Pousada Vianna, é a extrema limpeza da cidade, neste aspecto comparável só com Brasília.

A equipe de recepção organizada e coordenada pela infatigável Profa. Lourdes Macena, folclorista e arte-educadora da CEFET-CE e da UNIFOR, me permitiu percorrer o essencial dos pontos turísticos da cidade - o Mercado Central, o famoso Dragão do Mar onde corria uma significante exposição sobre o Cordel (sob a curatoria de Gilmar de Carvalho), a Fortaleza que deu origem ao nome da cidade, além das visitas à Universidade Federal, e uma experiência da vida noturna na zona praiera, mas o ponto mais alto foi os encontros, numa sala da CEFET-CE, primeiro com o renomado antropólogo Gilmar de Carvalho (da Universidade Federal do Ceará) e com o simpático e simbiótico duo, o cantador Geraldo Amâncio e o cordelista António Klévisson Viana. Se com o Prof. Gilmar foi possível, apesar do barulho do massivo ar-condicionador, descobrir novas pistas e endireitar as já iniciadas de pesquisa cordelista e da cultura popular, já com estes verificou-se a frutífera parceria entre oralidade e escrita, uma vez que Geraldo, cuja aparência, voz e atuação lembram muito o seu mentor Panelas, é o poeta oral par excéllence, e colabora com Klévisson, cujo forte é fazer folhetos de cordel. Aquela generosidade de espírito, a intromissão de versos improvisados na conversa, as "lições" práticas sobre a cantoria, com acompanhamento instrumental do violão e as doações de livros e folhetos confirmam a tradição e mostram o vigor atual e vindouro do Cordel.

 

Rouxinol de Rinaré

Meio-dia na Praça Central de Fortaleza, repouso depois das andanças na companhia do jovem aluno Anderson, sentado na frente de outro Cinema São Luís, uma saidinha à procura de informações sobre agências de viagem e, num quiosco de informação sobre turismo num canto da praça, vejo folhetos à venda. Converso com o vendedor e descubro o Rouxinol de Rinaré. Puro acaso, sorte pura. Numa entrevista em que muitos aspectos do métier do poeta e da atualidade e futuro do Cordel foram abordados, me dei conta do fato de estar diante dum dos avatares do mundo do Cordel, detentor do 1° lugar no 1° Concurso Paulista de Literatura de Cordel em 2002, (cuja comissão julgadora integraram especialistas da ordem de Sebastião Marinho, Valdeck de Garanhuns, Teo Azevedo, o Klévisson Viana já mencionado, Claudio Sá e Marcelo Cunha), e protagonista dum programa de conscientização e difusão do Cordel nas escolas municipais de Fortaleza.

 

Palestra

A minha intenção de palestra era apresentar uma versão adaptada duma comunicação apresentada em julho de 2002, no 7° Congresso da Associação Internacional de Lusitanistas na Brown University de Providence, Rhode Island, nos Estados Unidos, sobre o obsceno e o grosseiro nas poesias satíricas cordelista brasileira, escarninha portuguesa e tradicional halo ganesa. Sob o título provocativo de "Entre a moral e a amoral: a poesia satírica como faca de dois gumes", a palestra visava elicitar reações, sugestões, críticas e contribuições para uma redefinição e reavaliação do que constitui o "obsceno" ou "amoral", em primeiro lugar, e, no segundo lugar, avançar possíveis razões pelo que eu, até então, considerava como penúria do "obsceno" no Cordel brasileiro. Mas, já em Fortaleza, os organizadores da palestra, a Profa. Lourdes Macena e o Prof. Dr. Clerton Martins (este professor de Psicologia na UNIFOR), me avisaram que, devido ao período (início das férias de Páscoa), haveria pouco público, e de gente não necessariamente de orientação literária. Isso me obrigou a modificar o formato e conteúdo da palestra, dando destaque às minhas descobertas, observações e apredizagens entre Rio e Fortaleza, especialmente as de relevância central ao tema da mesma: a potente metáfora do pau-brasil, a força vital do Cordel e, principalmente, o novo material e informação que acabou desmentindo a minha anterior impressão de penúria do "obsceno" no Cordel e na literatura popular brasileira em geral..

Além de "Estes Fesceninos", cujo autor me recomendou também as "Pelejas de Zé Limeira com João Mandioca" (que ainda procuro sem sucesso), duas outras fontes, uma oral, outra escrita, contribuíram para abalar os alicerces da minha nascente teoria do obsceno neste campo. O Prof. José Nascimento Braga, professor de Português na Universidade Federal do Ceará, passou pela Pousada Vianna e, em conversa entre amigos falou dum livro sobre as partes do corpo humano, "da calvície à sola dos pés", em que não se poupa nada: linguagem chula? "Talvez, segundo o Aurélio. Chulo, só ele mesmo!", gozou o professor. O livro Relicário Pornô de José Alcides Pinto, com carimbo "PROIBIDO AOS CASTOS", parece corroborar a opinião do Prof. Braga quando declara na contracapa "Imoral é o poeta que escreve ruim. Esse é pornográfico até dormindo", e traz uma cuidadosa seleção de poemas "eróticos" (para os editores) ou pornográficos (para "os castos"), das mais variegadas fontes imagináveis, inclusive o Cordel. E como entrada do menu, nos oferece, em epígrafe, a autoridade de Dylan Thomas: Esses poemas com todas as suas cruezas, dúvidas e confusões, foram escritos pelo amor do Homem e em louvor a Deus, e eu seria um maldito se não o fossem.

Finalmente, é a revista Continente -Documento, na edição sobre A poesia Popular do Nordeste (Ano I - No 6 - 2003, Recife, p.19) que, ao afirmar que "no universo do repente, há espaço para todas manifestações da vida", revela ainda mais o valor dessa poesia:

(...) um pouco de putaria pode ser saudável. Na verdade, um pouco de putaria é necessário em toda vida. Para mantê-la normal, saudável. Do mesmo modo, a castidade na hora própria é normal e bonita. Mas a castidade no cérebro é vício, perversão (...)

Como admiti nas minhas observações finais da palestra, assim é a pesquisa: começa com certas premissas empíricas que permitem traçar um roteiro, mas essa feuille de route pode e deve mudar radicalmente, em razão das descobertas ao longo do caminho. Daí o valor inestimável das viagens de pesquisa.

Apesar das novidades apreendidas nessas descobertas, a nossa idéia central sobre a natureza e o papel do obsceno ficou reforçada. Tal como no Portugal medieval, quando as cantigas de escárnio e maldizer, desmentindo aquela falsa fachada plácida apresentada pelo "fingimento" do amor cortês, pela rígida e "sagrada" manutenção dos valores feudais e das fronteiras entre as classes sociais, satirizavam as classes dominantes com frequente recurso à linguagem dita grosseira ou obscena, em cumprimento do componente "ruptura" das duas funções básicas da arte popular (o outro sendo "integração), saneando e equilibrando a sociedade, o obsceno no cordel brasileiro procede ao que Ivan Cavalcanti Proença chama "uma quebra de harmonia de "bom comportamento", acomodação, etc." (p 106), uma ruptura com a sufocante ordem imposta pelo sistema dominante, e o ingresso no universo de liberdade, de mistura, de "impurezas", de saneamento. Mas, artisticamente.

 

Belo Horizonte

Obviamente fora do eixo do Cordel, esta acidentada capital mineira que oferece, além de uma vitrine da melhor safra da cachaça mineira e brasileira, várias vistas noturnas de halucinante beleza, entra no meu roteiro por razões tanto pessoais (visitar amigos e conhecer a cidade) como literários: está se tornando, concentradamente no bairro de Savassi, a capital de livrarias do Brasil. De interesse imediato, um "encontro" com o mundo de Guimarães Rosa, mas importantes descobertas, especialmente na área dos estudos afro-brasileiros se apresentaram, notadamente Os Arturos - Negras Raízes Mineiras (2ª edição, de Núbia Pereira de Magalhães Gomes e Edmilson de Almeida Pereira - MAZZA Edições, 2002), um pot-pourri de estudos da história, sociologia, musicologia e cultura popular do grupo de Congada dos Arturos, descendentes de Artur Camilo Silvério, em cujos cantos e cânticos de altíssimo valor literário residem aquela resistência cultural, espiritual e vital de que se nutre, duma forma ou outra, o próprio Cordel. Em linha semelhante, mas já dum ângulo puramente linguístico, a etnolinguista Profa. Yeda Pessoa de Castro mergulha no baú linguístico da história da escravidão brasileira e sai com A Língua Mina-Jeje no Brasil - Um Falar Africano em Ouro Preto do Século XVIII, (Fundação João Pinheiro/ Secretaria de Estado da Cultura, 2002) que repertoria e analisa, com apoio pictográfico, o legado linguístico no Brasil (Ouro Preto, em particular) daquela parte da África Ocidental que considero minha (sendo Ewe, nascido em Lagos entre o povo Ewe, Mina, Fon e Yoruba, e crescido em Gana). Mais um vez, um fenômeno de auto-descobrimento, numa manifestação de cultura popular de origem africana. E, simbólicamente, foi em Minas, precisamente na aldeia de Jaguara, (na vizinhança de Lagoa Santa, a uma hora de Belo Horizonte) que, na casa de campo duma amiga, encontrei um pau-brasil mirim, de menos de um metro de altura, ao lado de um toco morto duma outra árvore, mas rodeado de belas flores e cheio da promessa e da esperança duma nova geração que substitui e se nutre, seletivamente, da herança da geração precedente.

 

Brasília

Entre todos os lugares, este foi o de realmente matar saudades, rever o que restava das minhas pegadas, amizades e memórias candongas, e descobrir as novidades que surgiram nos últimos quinze anos. De destaque nesta romaria saudosista, o Bloco E da SQS 412, onde fizera a maior parte da minha vida em família, e o Departamento de Letras e Linguística da UnB, minha Mater Alma do Mestrado em Literatura Brasileira - tudo na mesma, só que o intervalo tinha varrido toda a velha guarda do Departamento, passando a bastão a uma nova geração de docentes. Alhures, porém, belas surpresas: nova ponte, a JK, de extrema beleza, e de grande utilidade para o trânsito, especialmente do lado dos Lagos para a Esplanada e a zona central; vários edifícios novos, novas vias, etc., mas a limpeza e ordem de sempre, o passeio correndo por conta duma "guia de luxo", a amiga Dona Heliete de Almeida Ribeiro Bastos, incidentalmente Prefeita da sua Quadra, e Presidenta dos Prefeitos de toda Brasília!

Mas, tinha que ser no apartamento dum amigo diplomata que eu descobriria, através duma outra antiga amiga, Dona Maria José de Souza, As Filhas das Lavadeiras (de Maria Helena Vargas da Silveira), outro registro da história social dos afrodescentes do Brasil, desta vez um documento-testemunho, como indica o título, das filhas das mulheres lavadeiras (a maioria negras e talvez as primeiras mulheres empresariais do Brasil) que lutaram em condições difíceis para ajudar no sustento das suas famílias e investir na educação das suas crianças. Texto híbrido cujo caráter dramático-histórico vem reforçado pela sua organização em quatro atos correspondendo, respectivamente, aos depoimentos das filhas (Ato 1: Referenciais Históricos), à análise dos mesmos (Ato 2: Lavação de Roupas), a uma seleção de poesia (cantada) da temática (Ato 3: Peças Expostas ao Tempo), e às fotografias das filhas das lavadeiras e suas mães (Ato 4: Secar), As Filhas das Lavadeiras insere-se na categoria de vivas testemunhagens de "corpos presentes", tornando sempre presentes os episódios e essências testemunhados, dando dinamismo e continuidade a princípios de luta, sobrevivência e perspectivas para o futuro, não só da população negra, mas do Brasil inteiro, como uma rápida olhada nas fotos revelará: por exemplo, a mãe da própria Maria José, uma dessas filhas cujos depoimentos aparecem no Ato 1, (e cuja voz de cantora lírica um dos cantos ganhou nova vida na nossa entrevista) era descendente de alemães em Santa Catarina. O livro também parece ilustrar adequadamente o nosso exercício de repoetização do passado, uma vez que, sendo de "complexa contemporaneidade identitária" e imbuído da intenção de "reconstruir o passado pela perspectiva de futuro no passado", procura "enfrentar a intransparência cultural e a atemporalidade estrutural" que se evidenciam em fatores socioeconômicos e simbolicamente em grupos sociais. Em termos mais telúricos, qual é diferênça entre as lavadeiras de então e as suas filhas de hoje, em termos de situação social, da facilidade de educar os filhos, etc? Literalmente, a luta continua, e as filhas precisam armar-se com as estratégias das mães. Isto posto, cabe sublinhar, dentro do contexto da remetaforização das identidades, a necessidade da "recolonização das experiências do cotidiano" (como é o caso de As Filhas das Lavadeiras), da revalorização do trabalho de todos, sobretudo os que até hoje são objeto de preconceito e desprezo, haja vista "a profunda crise atual de valores modernos e seus respectivos projetos de futuro".

De interesse literário, além dos cantos que serviam de alimento espiritual às lavadeiras, é o enfoque oral dos depoimentos, com vários estilos de narração, todos levando o carimbo da autenticidade de testemunhagem e fazendo jus à configuração da "tradição" oral como um rio sine fine, a ser renovado e continuado in aeternum, como prevê a autora no Recado que fecha a última cena (entitulada "O Sabãozinho Está Ficando Pouco, Sumindo...) do Ato 3: Lavação de Roupas:

A continuidade deste livro, com seus quatro atos, está aberta a todos aqueles que sentirem necessidade de aprofundamento na riqueza de conteúdos dos referenciais históricos das filhas das lavadeiras. Foram tantos! Mas acabou meu sabão. (p.220)

As Filhas das Lavadeiras nos lega uma interessante metáfora: a testemunhagem de cada geração acaba quando acaba seu sabão (= força vital), dando vez à nova.

 

Observações Finais

A simbiose pau-brasil/ algaroba nos apresenta, a nível da natureza, do meio ambiente, um fenômeno cujo corolário ontológico-espiritual se assenta mais que adequadamente no conceito afro-brasileiro de Axé (para os nagôs) ou Muntu (para os bantus), uma força espiritual dinâmica e neutra veiculadas pelos sangues negro, branco e vermelho, revelando uma cosmovisão globalizante e inclusivista. Isto porque o responsável por esta força é Exu, o Orixa de contradição (= alteridade), dinamizador de tudo entre Aiyê (Terra - física) e Orum (Céu - sobrenatural), o que confere no ser humano uma existência simultânea nos espaços da vida e da morte. O Axé ou Muntu existe não só em seres humanos, mas também no mundo animal, mineral e vegetal, vivos ou mortos, não como algo imanente, mas que precisa de contato de dois seres para ser desencadeada. E como qualquer força, ela é sujeita a mutações, podendo crescer ou diminuir, e ser transmitida, "em função da relação ontológica do indivíduo com os princípios cósmicos (Orixás), com os irmãos de linhagem, com os ancestrais, com os descendentes" (Nascimento, 1983, Introdução.)

Em Axé/Muntu, pois, temos um conceito de pluralismo recíproco, benéfico e dinâmico, exigindo comunição entre indivíduos por um lado, e entre estes e o mundo sobrenatural e natural, por outro. As implicações para a formação racial da nação brasileira, a preservação do meio ambiente e um regime de relações socio-econômicas são óbvias, mas talvez seja oportuno dar o caveat de que este pluralismo não significa, necessariamente, uma fusão ou miscigenação forçada, mas, antes, um reconhecimento e valorização de todos e quaisquer componentes da raça humana, da inteira gama cromática da humanidade tal qual, ou quaisquer combinações da mesma, como resultado de união conjugal livremente contraída pelos próprios genitores, sem nenhum valorativo condicionamento ideológico por parte do sistema oficial. Ou seja, que o pau-brasil permaneça pau-brasil, e a algaroba algaroba! E que se comuniquem livremente, de igual para igual, para desatar a força Axé/Muntu. Na rememorização e ressubjetivação do passado brasileiro, é preciso questionar a base de todo o sistema de valores, da atribuição de louros (para os agressores, predadores e escravizadores de pele mais ou menos branca, estrangeiros sem visto, cuja principal superioridade residia na posse da arma de fogo) e pelourinhos (para as suas vítimas de pele relativamente mais escura, donos e/ou principais construtores da riqueza da terra). O mesmo sistema de valores que vem fazendo da mestiçagem "um processo clarificador", isto é, de enbranquecimento, e do "genocídio do negro e do índio, como também da superposição de valores de matriz européia", como observa meu ex-colega da USP, Cuti, no já mencionado Poéticas Afro-Brasileiras (p.22). Neste questionamento, em vez da chamada "mancha negra" (que Rui Barbosa queria "apagar" pela queima dos arquivos da escravidão), é a "mancha branca" que precisa ser apagada, continua Cuti.

Por muito que a historiografia ocidental tente engrandecer a sua história, especialmente em relação às chamadas conquistas, ao colonialismo e ao retrato e tratamento dos povos que dominaram, e especialmente à escravidão, não há como negar, no atual contexto da globalização dos conhecimentos, da revelação dos bastidores das altas instâncias dos poderes imperiais e do desvelamento das verdadeiras intenções motivadoras daquelas grandiosas missões, que aquilo tudo representava pouco mais que pura agressão, o reino da lei selvagem do mais forte, e uma negação de tudo que hoje identificamos como positivos valores da civilização humana, entre os quais o respeito de direitos humanos e da igualdade e dignidade dos seres humanos, e a exaltação da solidariedade humana. E que, apesar de estar contra a letra e o espirito da própria religião cristã dos protagonistas, o imperialismo conseguiu não só o aval, como também a participação ativa das Igrejas e das Coroas a elas ligadas, graças à deturpação e corrupção das estruturas e doutrinas dessas instituições. Repensar esta história implica, entre outras coisas, desestimular a comemoração e glorificacão dos chamados "Descobrimentos" e dos "desbravadores", "bandeirantes" e semelhantes, que descartaram o recurso aos princípios de comunicação intercultural, a favor do banditismo, da chacina e da opressão, e desmantelar as estruturas socio-políticas e os sistemas estético-filosóficos erigidos com base nas ideologias de partida. Persistir na velha trilha, apesar das crises que nos afligem, seria, como diz um provérbio Ewe, tentar incubar ovos podres!

Felizmente, alguns historiadores modernos estão empenhados num projeto de repensar, representar e reordenar a história do Brasil, desde um ponto de vista global, pluralista, equilibrado e, sobretudo, avaliatório. É o caso de Eduardo Bueno, cujo Brasil: uma História. A Incrível saga dum Povo (Editora Ática, São Paulo, 2003) é um hábil e criativo trabalho enriquecido de farta iconografia, cuja intenção não é uma "simples apresentação de fatos e datas", como se informa com razão na contracapa, mas de aliar "o relato do nosso passado remoto e recente a uma visão crítica do processo histórico do país", uma abordagem de relevância diacro-sincrônica, portanto. Em termos mais explícitos, o informe na contracapa acrescenta:

Índios, negros, mestiços, estrangeiros (...) Para entender este Brasil repleto de diferenças e contradições, é fundamental conhecer o passado e suas muitas histórias. Histórias essas que se reúnem numa só: a formação do povo brasileiro (Bueno, 2003, p.8)

Cabe deixar saborear apenas duas pequenas amostras desta abordagem historiográfica, no tocante ao índio e ao negro. No Capítulo 1: Antes do Brasil, em que o autor começa por (re)valorizar a indígena civilização de pelo menos dez milénios (de cujos elementos alimentares, ecológicas e logísticas os conquistadores europeus dependiam pela própria sobrevivência), lemos o seguinte:

Pode-se afirmar, na verdade, que as trilhas e caminhos pelos quais o país se expandiu, os sítios onde se erguem suas grandes cidades, inúmeros produtos agrícolas que saciam a fome da nação, bem como vários de seus hábitos e costumes, são fruto de um conhecimento milenar - que, embora esteja dessa forma preservado, na essência se perdeu. É preciso ter em mente, portanto, que uma compreensão mais plena do Brasil impõe um mergulho no passado- e que esse passado é muito mais remoto do que apenas os últimos cinco séculos.

O conhecimento da pré-história, de certos condicionalismos geográficas bem como de imposições geográficas se apresenta, assim, como uma ferramenta-chave para uma interpretação mais coerente do "processo civilizatório" do país na medida em que ajuda a dissipar as sombras que obscurecem um dos pilares a partir dos quais portugueses em particular e europeus em geral ergueram a "civilização brasileira". E embora, por um lado, o legado indígena tenha tornado menos árduo o processo de adaptação desses "povos transplantados" ao Novo Mundo, por outro, ele próprio também deixa claro que continuamos sendo, como disse o historiador Sérgio Buarque de Holanda, uns "desterrados em nossa própria terra.

(Grifo nosso, mas as significantes aspas desconstrutoras - pondo em causa conceitos e terminologias demais banalizadas - do autor) (Bueno, 2003, p.8-9).

No Capítulo 11: O Brasil dos Escravos, o livro coloca a escravidão numa perspectiva equilibrada na medida em que acentua o que o tráfico significava para os escravos (e, claro, para o continente africano), os seus donos e a nação (e embora não o explicita, o império português e toda a Europa):

No porão dos navios negreiros que por mais de trezentos anos cruzaram o Atlântico, desde a costa oeste da África até a costa nordeste do Brasil, mais de três milhões de africanos fizeram uma viagem sem volta, cujos horrores geraram fortunas fabulosas, ergueram impérios familiares e construíram uma nação. O bojo dos navios da danação e da morte era o ventre da besta mercantilista: uma máquina de moer carne humana, funcionando incessantemente para alimentar as plantações e os engenhos, as minas e as mesas, a casa e a cama dos senhores - e mais do que tudo, os cofres dos traficantes dos homens (...) (Bueno, 2003, p.112).

Após um fantasmagórico catálogo dos horrores da travessia, citando alguns diários de bordo, o autor conclui:

Na verdade, um em cada cinco escravos embarcados na África não sobreviveu à viagem ao Brasil - constituiam mercadoria literalmente "perecível". Os demais não viviam mais do que sete anos, em média. Mas eram baratos e substituíveis: havia muitos outros no lugar de onde tinham vindo aqueles.

Esta é uma nação erguida por seis milhões de braços escravos - e sobre três milhões de cadáveres.

(De novo, grifos meus, aspas do autor) (Bueno, 2003, p.112).

O Brasil, ao contrário de Portugal, é uma sociedade de formação dramática e forçada de três raças principais em cuja resultante fisionomia polimórfica, porém, longe de constituir motivo para ilhamento, divisionismo e discriminação, sutís ou não, existe a verdadeira prova da pretensão da mesma a uma civilização dita brasileira, uma prova que consiste em integrar numa só unidade os variegados ingredientes da sua composição paisagística - natural e humana, (cujos resultados concretos residiriam, não no simbolismo testemunhal, à la Pélé, de um punhado de negros e índios bem sucedidos, nem na postulação de grandiosas teorias apologéticas dum chamado racismo social, etc., mas na verificável configuração proporcional de todas as cores em todos os níveis da vida nacional: nas várias herarquias políticas e autárquicas, nas repartições públicas (não esquecendo especialmente o corpo diplomático), nas instituições de ensino de todos os níveis (com ênfase no ensino superior, de graduação e pós-graduação, e por conseguinte, nos corpos docentes dessas instituições), nos bairros e moradias de todos os tipos (não apenas como "figurantes" encarregados da faxina, cozinha e entrega, mas como moradores titulares de plenos direitos proprietários), na média (novelas, filmes, e de novo, não limitados a meros figurantes), por exemplo, uma unidade em que o múltiplo cromatismo material, racial, intelectual e espiritual seja visto, não como um encontro antagônico de cores mas, antes, como a rica e bonita composição dum arco-iris onde cada faixa cromática só consegue contribuir para a estética do todo mantendo a sua identidade original e a sua qualidade integral, em contato axé-muntuístico com as outras, como nos demonstra a metáfora aglutinadora do pau-brasil/ algaroba, sendo extensível às dualidades homem/mulher, oral/escrita, passado/presente, campo/cidade, etc., e a nível acadêmico, convocando a estudos pluridisciplinares do nosso humanismo. Como bem afirma Adolfo Casais Monteiro [198-?],

A unidade e diversidade do Brasil é uma dominante a ter sempre presente em qualquer tentativa de compreensão do sentido da sua literatura. Proclamar só a sua unidade, ou pelo contrário, a sua diversidade, constituirá uma distorção da realidade. Ao contrário do que é comum nas literaturas européias nas quais pode dizer-se haver sempre uma linha central de desenvolvimento, ocupando o centro dum círculo em cuja periferia se mantêm os veiozinhos das tendências regionais, o que sucede com o Brasil é, pelo contrário, sermos obrigados a ter em conta, se queremos respeitar a verdade do seu desenvolvimento cultural e literário, que existem diversos centros igualmente importantes, ou alternadamente importantes, sem uma linha única de desenvolvimento que seja a cada momento a expressão dominante dos valores literários. Quer isto dizer que a sua unidade só pode ser entendida na medida em que se aceite como tal a diversidade básica das suas culturas, e se reconheça uma harmonia feita de pluralidade. (grifo nosso). (Monteiro, [198-?]., p.2).

Seria pretensioso, a título simbólico, sugerir a promoção dum projeto de "reabilitação" do pau-brasil, no qual, na medida do possível, a árvore em questão seria plantada em cada lar, rua e praça, e em frente de cada edifício público, ao lado duma algaroba, como vivo lembrete totêmico das origens e do destino da nação? E seria igualmente atrevido propor que sejam institucionalizados um prêmio Nobel, a nível mundial, e um prêmio Pau-Brasil, a nível nacional, de literatura oral/popular?

Tanto a literatura de Cordel, como a Literatura Afro-Brasileira, são produtos diretos desse arco-iris mas, se aquela, como já visto, é considerada "de qualidade inferior", sendo do Nordeste da pobreza, esta nem consta na historiografia oficial da literatura brasileira, apesar da sua significante produção, especialmente desde O Canto do Cisne Preto de Lino Guedes (de 1926), até as contemporâneas edições em torno dos Cadernos Negros de Quilombhoje, reunindo escritores de elevado quilate literário (como Oswaldo de Camargo, Cuti, Paulo Colina, Miriam Alves, Adão Ventura, Oliveira Silveira, Ele Semog, etc.)

Os caminhos desta reviravolta, pois, passam, forçosamente, pela antropologização da integral identidade brasileira, isto é, a restituição de plenos valores e direitos humanos aos até agora estigmatizados, integrar no caráter nacional, qualitativamente, não só a capacidade da produtividade material, mas também da criatividade literária e intelectual de todos, cortando o esclerosado cordão umbilical do elitismo europeu, rumo a um Brasil duma nova ordem e progresso.

 

Referências

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Recebido em 21 de outubro de 2003
Aceito em 11 de novembro de 2003
Revisado em 05 de fevereiro de 2004

 

 

NOTAS

1 Reflexões sobre uma viagem de pesquisa pelo Nordeste, e do descobrimento do "verdadeiro Brasil Sim, descobrimento: o meu!
2 O Maniqueísmo como sistema de dualismo religioso sincrético de origem pérsica baseia-se na crença na existência de um conflito cósmico entre o Bem e o Mal (Deus e Diabo) como poderes opostos e incompatíveis, uma concepção na qual tudo vem separado em dois compartimentos, uma parte considerada boa e favorável, e a outra totalmente má e rejeitada "sans nuance" (na definição do dicionário Le Petit Larousse), enquanto que a mundividência africana acredita na relatividade dos mesmos e na possibilidade de transformação e renovação, dentro do contexto ontológico dum fluir permanente e circular.
3 Mesmo se, como afirma Ria Lemaire (em "Passado-presente e passado-perdido: transitar entre oralidade e escrita" (in Folha de Linguística e Literatura No 5, Departamento de Linguística e Literatura, Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, 2003, p.21), o poeta, como Patativa, é "o poeta de todos" no sentido das palavras do próprio Patativa: "Mas sempre, tudo aquilo que eu faço, o povo apoia, porque eu sempre gosto de falar a verdade, uma coisa filosófica", essa "verdade" ou, como quer Lemaire, esse "ambiente de empatia, de comunhão de compreensão e vontade de comunicação recíprocas em que o poeta se sente apoiado", o público-mor, ao nosso ver, continua sendo a plebe, podendo o poeta contar, nesse "estar comigo", com os raros intelectuais atrevidos que " - assim como você (Lemaire) é um deles - "compartilham essa visão da verdade do poeta e do povo, e não a dos seus congêneres de academia que consideram esta "verdade" cordelista como de qualidade inferior. Prova disso: quantas universidades brasileiras oferecem cursos sobre o Cordel?
Câmara Cascudo, falando dos "elementos trazidos pelas três raças para a memória e uso do povo atual", desvaloriza a oralidade, elevando a escrita de toda índole: "Estudamos sempre a documentação escrita, o que se fixou do Brasil quinhentista, relatórios, ânuas, qaudrimestrais jesuíticas, exposições, cartas". Para ele, o original dono da terra, o índigena "é um motivo a resolver em sua difícil colocação dentro do quadro colonial. Registrar-lhe a vida intelectual, as manifestações de sua inteligência, impressionada pela natureza ou a vida, seria colaborar na perpetuidade de Satanás"! (grifo nosso).
Quanto ao africano, entre outras coisas, o polígrafo do folclore brasileiro diz: "Os registos de seus bailes e festas são confusos memoriais de crítica administrativa, sugestões para a repressão de abusos. E, com tantos séculos de vida comum com os portugueses, seus mitos, crenças e superstições estariam revolvidos pela influência branca ou complicados pela interdependência de outros negros, doutras regiões, amalgamados nos eitos dos engenhos de açúcar ou ao redor das foguieras, nos terreiros das senzalas."
Porém, "O português deu o contingente maior. Era vértice de ângulo cultural, o mais forte e também um índice de influências étnicas e psicológicas. Espalhou, pelas águas indígenas e negras, não o óleo duma sabedoria, mas a canalização de outras águas, impetousas e revoltas, onde havia a fidelidade aos elementos árabes, negros, castelhanos, provençais, na primeira linha de projeção mental. (...)" (Cascudo, 1984, p. 29-30). Isto tudo, depois de mais de um século do pioneirismo Magalhães-Romero.
No caso de Capistrano de Abreu, por exemplo, na sua História da Literatura brasileira, (1916, edição póstuma), "viria ele a negar radicalmente a presença do índio e do negro na constituição da tradição poética do Brasil, apontando o português como" único fator certo, positivo e apreciável nas origens na nossa literatura", e no que demonstra a utilidade da mestiçagem para a classe dominadora, o mesmo afirma que "as duas raças inferiores (sic) apenas influíram pela via indireta da mestiçagem e não com quaisquer manifestações claras de ordem emotiva, como sem nenhum motivo se lhes atribuiu" (Matos, 1994, p.42).
4 O Fonds Raymond Cantel, do Centre de Recherches Latino-Américaines da Universidade e Poitiers, dirigido pela Profa. Ria Lemaire, começou a funcionar nas suas modernas instalações da Maison des Sciences de l'Homme et de la Sociéte em 1997, contando com a perícia de vários especialistas, notadamente a do Prof. Joseph Luyten, e da Profa. Idelette Muzart-Fonseca dos Santos.
5 No ensaio que vai sair em breve (espera-se), além dum exame dos processos artísticos que caracterizam a poética fescenina, traçamos o perfil etimológico dos verbetes "obsceno" e "sátira", numa tentativa de avançar possíveis explicações das diferenças de noção dos mesmos, entre a Idade Média e hoje.
6 Para maiores detalhes sobre este conceito e a sua configuração na poesia afro-brasileira, consultem o nosso trabalho, A Temática da Poesia Negra Brasileira Comparada com a da Poesia Negra Americana e Africana, dissertação de Mestrado em Literatura Brasileira, Departamento de Letras e Linguística da Universidade de Brasília, Dezembro de 1985, p.174 - 184.

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