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Revista Mal Estar e Subjetividade

versão impressa ISSN 1518-6148

Rev.Mal-Estar Subj vol.13 no.1-2 Fortaleza jun. 2013

 

AUTORES DO BRASIL
ARTIGOS

 

Reflexões acerca da experiência de observação de um bebê abrigado

 

Reflections on the observation experience of a sheltered baby

 

Reflexiones sobre la experiencia de observación de un bebé ubicado

 

Réflexions sur l'expérience de l'observation d'un bébé blotti

 

 

Rose Daise Melo do NascimentoI; Janari da Silva PedrosoII

IPsicóloga. Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará (PPGP). E-mail: daisenascimento@hotmail.com
IIProfessor Doutor da Faculdade de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Pará. E-mail: jsp@ufpa.br

 

 


RESUMO

A presente pesquisa apresenta, como proposta principal, pensar a questão do desenvolvimento emocional de um bebê abrigado a partir da experiência de observação direta, com adaptação para o contexto de abrigo, do método de observação da relação mãe-bebê proposto originalmente por Esther Bick. Dessa maneira, teve-se acesso ao mundo de Miguel, um bebê que aos cinco dias de vida foi admitido em um abrigo público por motivo de abandono. Foram feitas observações semanais com duração de uma hora durante os quatro primeiros meses de vida do referido bebê e, para subsidiar as discussões propostas no presente estudo, foram selecionadas as observações relativas aos dois primeiros meses de vida de Miguel. Tendo como base o referencial teórico psicanalítico, discute-se o desenvolvimento emocional nos primórdios da vida de um bebê privado do convívio parental, com ênfase nas discussões sobre as relações objetais e pele emocional. Destaca-se o método com o qual se teve acesso a esses conteúdos. Ao final desta jornada, através do recurso metodológico utilizado, revelou-se um bebê cujos cuidados recebidos estiveram permeados pela carência de afeto, cuidados estes, na maioria das vezes, incoerentes com as reais necessidades de Miguel, o qual, ao contrário, estava totalmente disponível ao contato e aos poucos desenvolveu recursos próprios para atingir e ter um mínimo de retorno e de interação com o outro.

Palavras-chave: abrigo; observação de bebê; desenvolvimento emocional; relações de objeto; pele emocional.


ABSTRACT

This research has as main purpose to reflect on the issue of emotional development of a sheltered baby through the experience of direct observation, with adaptation to the context of shelter, of the method of observation of mother-infant relationship, originally proposed by Esther Bick. Thus, the world of Miguel was accessed, a baby five days old who was admitted into a public shelter due to abandonment. Observations were made weekly, lasting one hour, during the first four months of his life. However, in order to support the discussions proposed in this study were selected the observations of the first two months of Miguel's life. Based on the psychoanalytic theory, this study emphasizes the discussion of the emotional development in early life of a child deprived of parental care, with emphasis on objectal relations and emotional skin. We highlight the method used to access these contents. At the end of this journey, through the methodological resource used, Miguel showed to be a baby whose care received was pervaded by the lack of affection. This kind of care, in most cases, were inconsistent with the real needs of Miguel, who, however, was fully available to the contact and gradually developed his own resources to achieve and take a minimum interaction with others.

Keywords: shelter; infant observation; emotional development; objects relations; emotional skin.


RESUMEN

Esta investigación tiene como propósito principal para pensar en el desarrollo emocional de un niño acurrucado de experiencia de observación directa, con la adaptación al contexto del refugio, del método de observación de la relación madre-recién nacido originalmente propuesto por Esther Bick. De esta manera, acceder al mundo de Miguel, un bebé que a cinco días de edad, fue admitido en un refugio público por motivos de abandono. Se realizaron observaciones semanales con una duración de una hora durante los primeros cuatro meses de vida del bebé y subvencionar los debates propuestos en este estudio fueron seleccionadas las observaciones relativas a los primeros dos meses de la vida de Miguel. Basado en el psicoanálisis teórico referencial, aborda la discusión sobre el desarrollo emocional en los primeros días de la vida de un niño privado de interacción parental, con énfasis en las discusiones sobre las relaciones objetais, piel emocional, así como destacar el método con el cual tenía acceso a dicho contenido. Al final de este viaje, a través de recurso metodológico utilizado, resultó para ser un bebé cuya atención médica recibida fueron atravesadas por la falta de afecto, cuidado, esto más a menudo, incompatible con las necesidades reales de Miguel, que, en cambio, fue completamente disponibles para contactar y desarrolló gradualmente sus propios recursos para alcanzar y obtener a cambio un mínimo de interacción con los demás.

Palabras-clave: refugio; observación; desarrollo emocional; relaciones de objeto; piel emocional.


RÉSUMÉ

Cette recherche a comme objectif principal de réfléchir sur le développement affectif d'un bébé niché de l'expérience de l'observation directe, avec adaptation au contexte de l'abri, de la méthode d'observation de la relation mère-enfant, initialement proposée par Esther Bick. De cette façon, l'accès à l'univers de Miguel, un bébé qui, à l'âge de cinq jours, a été admis dans un abri public au motif de l'abandon. Ont effectué des observations hebdomadaires d'une durée d'une heure au cours des quatre premiers mois de la vie du bébé et pour subventionner les discussions proposées dans cette étude ont été sélectionnés les observations concernant les deux premiers mois de la vie de Miguel. Basé sur la psychanalyse théorique référentielle, traite de la discussion sur le développement émotionnel dans les premiers jours de la vie d'un enfant privé de l'interaction parentale, en mettant l'accent dans les discussions sur les relations objetais, peau émotionnelle, ainsi que mise en évidence de la méthode avec laquelle vous aviez accès à un tel contenu. À la fin de ce voyage, par le biais de ressources méthodologiques utilisés, s'est avéré être un bébé dont les soins reçus ont été imprégné par le manque d'affection, soins, ceux-ci le plus souvent, incompatible avec les besoins réels de Miguel, qui, en revanche, a été totalement disponibles pour les contacter et graduellement développé ses propres ressources pour atteindre et obtenir en retour un minimum d'interaction entre eux.

Mots-clés: abri; observation; développement affectif; relations d'objet; peau émotionnelle.


 

 

O olhar

Acessar a vida emocional do lactente sob o enfoque da psicanálise se fez possível graças às constatações provenientes da observação direta de bebês, prática esta que favoreceu a expansão do saber psicanalítico para além da fala, para o plano da fantasia do período pré-verbal.

Klein (1991, p.143) ressalta que "através da observação cuidadosa de bebês muito novos, podemos obter algum insight sobre sua vida emocional assim como indicações de seu desenvolvimento emocional futuro".

Em 1964, Esther Bick, discípula de Klein, estruturou um método sistemático de observações semanais da díade mãe-bebê, no ambiente familiar, durante os três primeiros anos de vida. Originalmente foi desenvolvido para auxiliar a formação de psicoterapeutas infantis da clínica Tavistock, em Londres, com ênfase na observação ao invés da intervenção. Não se trata de uma observação para verificar, quantificar, normatizar, validar ou informar. É um trabalho inspirado no método psicanalítico, em especial no que diz respeito à consideração do contexto e à observação de detalhes aparentemente irrelevantes, os quais veiculam sinais de áreas inacessíveis espontaneamente e que pertencem ao mundo inconsciente. Nesse sentido, a observação proposta por Bick privilegia, sobretudo, o olhar, cuja atividade deve voltar-se a tudo que ocorre com o bebê, mantendo uma postura de atenção flutuante.

Chbani e Pérez-Sanchez (1998, p. xvii) destacam que

(...) a observação de bebês não é apenas uma atividade visual. Se assim o fosse, não seria ética, já que nada nos autoriza a sermos voyeristas. A observação de bebês é uma actividade que envolve todos os sentidos, todo o nosso ser. É uma disciplina, uma necessidade de estarmos ali, vigilantes, para não perdermos a riqueza de momentos que não se repetem ao longo da vida, donde que só os olhos seriam completamente insuficientes.

O procedimento metodológico proposto por Bick é realizado em três tempos: observação, na qual o observador se insere no contexto familiar do bebê semanalmente, permanece durante uma hora e mantém uma relação ética e cordial; anotação, o tempo dos registros dos detalhes da observação, bem como dos afetos experimentados pelo observador; e supervisão, ocasião em que o observador pode compreender, organizar e dar sentido a essas vivências (Oliveira-Menegotto, Menezes, Caron, & Lopes, 2006).

Com este método obtém-se uma riqueza de informações sobre a vida do lactente, da relação mãe-bebê e suas implicações no desenvolvimento (Shuttleworth, 1995). Sendo assim, muitos autores realizaram adaptações deste modelo observacional para outros contextos, utilizando-o em pesquisas acadêmicas com resultados inovadores (Magagna, 1987; Piontelli, 1987; Boyer & Sorensen, 1999; Barros, 2009).

A partir desses princípios, a presente pesquisa apresenta como proposta principal pensar a questão do desenvolvimento emocional de um bebê abrigado, a partir da experiência de observação direta com a adaptação, para o contexto de abrigo, do método de observação da relação mãe-bebê proposto por Esther Bick.

O bebê do presente estudo é Miguel (nome fictício dado ao bebê selecionado para essa pesquisa) que foi observado semanalmente durante seus quatro primeiros meses de vida num abrigo público. Para o presente estudo foram selecionados fragmentos das observações referentes aos dois primeiros meses de vida, em seguida associaram-se os achados com a teoria existente sobre essa fase primordial do desenvolvimento emocional do lactente. A restrição do tempo de observação consta como uma divergência/adaptação do método original proposto por Bick, assim como o contexto institucional por si só demanda demais ajustamentos, pois verifica-se nesse ambiente ausência das figuras parentais, rotina institucional permeada por condutas burocráticas, a possível brevidade da permanência do bebê naquela instituição, desconhecimento do período pré e perinatal, presença de muitas pessoas no setting observacional, entre outras adaptações que configuram tal pesquisa como inovadora no campo da observação de bebês.

Em conformidade com o método original, após cada observação os dados foram registrados e supervisionados pelo orientador da pesquisa.

 

Alguns Fragmentos da Experiência

Depois de realizados todos os procedimentos éticos e burocráticos junto à instituição onde foi realizada a presente pesquisa, teve-se acesso ao mundo de Miguel aos vinte dias de vida. Constava em seu histórico que havia nascido a termo e ali fora deixado por motivo de "abandono". No prontuário desse bebê sua mãe foi identificada como uma mulher de 33 anos que possuía dois outros filhos que moravam consigo, esta senhora havia amamentado Miguel durante os cinco primeiros dias de vida até sua admissão no abrigo; não constavam informações sobre o pai. O motivo do abandono foi justificado devido à falta de condições financeiras e de moradia que garantisse o cuidado ideal para o bebê, segundo relato da mãe. Miguel destacava-se por sua aparência angelical, daí a inspiração da observadora para dar-lhe este nome, era um bebê branco, de pele sedosa, olhos claros em tom azulado, cabelos ruivos e sempre armados para cima.

O ambiente onde Miguel vivia a maior parte do tempo era o dormitório "Anjinho", um lugar claro, em boas condições de higiene, onde dividia espaço com vários outros bebês na idade ente 0 e 6 meses. O cuidado diário dos bebês era responsabilidade de duas monitoras que trabalhavam por plantão.

Nesse contexto, foram feitas observações semanais de uma hora de duração a partir do vigésimo dia de vida de Miguel, tratava-se do bebê mais novo que naquele momento encontrava-se abrigado e foi selecionado devido ao parecer técnico institucional que garantia sua permanência por um período mínimo de quatro meses, logo, oferecia disponibilidade para o tempo exigido no projeto inicial da pesquisa.

O primeiro contato da observadora com o bebê se deu numa ocasião em que este estava sendo banhado e seus gritos se destacavam pelos corredores do abrigo: "Segui os gritos que vinham do banheiro, ao entrar neste ambiente me apresentei para duas cuidadoras que banhavam dois bebês, fui apresentada a Miguel, nu e roxo de frio, sendo banhado por sua cuidadora que o apoiava com uma das mãos e com a outra fazia movimentos bruscos e rápidos em sua cabeça, enquanto isso ele gritava desesperadamente e jorrava sobre ele uma água que parecia muito fria, direto da torneira e seu pezinho tocava o inox gélido da pia. Seu grito era de dor e desespero, fazia movimentos frenéticos com braços e pernas, como se quisesse se agarrar em algo, para mim e creio que para o bebê, aqueles minutos duravam uma eternidade" (observação 01, idade: 20 dias).

Durante o banho a cuidadora apresentou Miguel como alguém "louco por um colo" e que por isso era "chorão", essa percepção do bebê era compartilhada por outras pessoas que trabalhavam no abrigo e se repetiu em observações posteriores.

Enquanto a cuidadora falava, os lábios do bebê tremiam de frio, ele estava totalmente roxo e rígido, sua voz quase sumia em meio aos berros e de repente ela o tirou debaixo da torneira e o enrolou rapidamente em uma toalha, nesse exato momento, como que num passe de mágica, todo o choro sumiu imediatamente e Miguel não esboçou nenhum suspiro sequer, acalmou-se totalmente e foi colocado no colo para seguir à enfermaria, local onde estava para tratamento de uma forte gripe que enfrentava, respirava com dificuldade, estava com as vias aéreas congestionadas e com bastante secreção nos pulmões, segundo informações da enfermeira da instituição.

De fato, Miguel vivenciava estados de calmaria constante quando estava no colo, enquanto que sozinho parecia experimentar um estado caótico de desorganização que o deixava em pânico e desencadeava crises de choro. No primeiro mês foi comum essa oscilação, contudo, é necessário destacar que o ritmo de cuidado com vários bebês e a própria resistência em envolver-se e investir emocionalmente em um bebê que a qualquer momento poderia ser perdido (para a adoção ou retorno ao convívio familiar), influenciava a interação das cuidadoras com Miguel e com os demais bebês, na maioria das vezes se negavam a dar colo e quando o faziam era de forma parcial, sem aproximação do bebê com o corpo, como se o segurassem à distância, e às vezes lhe davam mamadeira o pondo de costas para seu campo visual, a propósito o contato visual era nitidamente evitado, especialmente nas ocasiões da alimentação.

Convivendo diariamente nesse ambiente, Miguel foi aprimorando seu conceito de "colo" e o expandiu para qualquer forma de contato com o outro, por mais sutil e mínimo que fosse, um exemplo disso foi registrado na terceira observação quando o bebê chorava sozinho no carrinho e qualquer toque externo que o embalava, mesmo se fosse com o pé da monitora que naquele momento dividia sua atenção com mais três bebês. Um embalo, uma voz, um toque e, no primeiro mês, principalmente, um olhar, eram celebrados pelo bebê que se apegava a tais contatos com voracidade.

Observou-se que um determinado comportamento de Miguel se repetiu por várias observações: a demora em terminar a mamada, quando chegava a concluí-la. Conforme consta no fragmento da observação a seguir: "(...). Logo a cuidadora percebeu que estava demorando a acabar o leite, então comentou com a enfermeira, a qual afirmou 'no começo ele comia rapidinho, agora fica demorando, eu acho que é o bico da mamadeira, tem que trocar de novo!', sendo assim a monitora estimulava a sucção girando o bico da mamadeira na boca do bebê, mas ele aproveitou aquela situação, estava calmo e aconchegado no colo, porém não fazia contato visual com a monitora, pois esta o posicionou de costas para ela, sentado em sua coxa e apoiado em seu colo, sendo assim o olhar de Miguel explorava o ambiente procurando algo para fixar-se e alcançou o meu olhar (da observadora) (...)" (observação 03, idade: 30 dias). Miguel era criticado pelas cuidadoras que afirmavam que ele costumava "enrolar" durante as mamadas, como se estivesse fingindo que mamava, uma delas chegou a afirmar que ele "só ficava passando a língua no bico da mamadeira e não sugava nada", todavia Miguel ingeria o alimento bem lentamente e elas tinham o maior cuidado para que ele não vomitasse, pois o fez durante várias vezes no primeiro mês. O momento da alimentação proporcionava o tão almejado "colo" e Miguel passou a explorá-lo, estendê-lo, fato este que comprometia a qualidade da alimentação do bebê.

No segundo mês, Miguel se aperfeiçoou mais ainda na interação com o meio, começou a vocalizar com mais frequência e isso atraía pessoas para relacionar-se com sorrisos, falas, toques, mesmo que fossem contatos ínfimos. Envolvia-se pelo rosto e falas das pessoas ao redor, ficava horas observando a conversa das monitoras em sua volta, o som o atraía e ele passou a atrair pelo som, fosse uma vocalização que muitas vezes era interpretado pelas cuidadoras como "reclamação, queixa" ou o próprio choro.

Nessa jornada, Miguel teve cuidados variados, desde cuidadoras atentas e sintonizadas com o bebê, uma delas inclusive sabia suas posições preferidas para ficar no carrinho, seu colo estava sempre disponível para o bebê, era carinhosa e conversava constantemente com Miguel; até aquelas que priorizavam outros bebês, que não compreendiam os sinais de comunicação emitidos por Miguel, inclusive uma delas afirmou que "tinha medo de pegá-lo no colo, com receio que o deixasse cair". O ponto comum entre as cuidadoras, fossem "boas" ou "más", era que ao final do plantão todas elas iam embora e Miguel era sucessivamente abandonado. A constância que permeava esse ambiente era paradoxalmente a inconstância padronizada dos cuidados.

 

Diálogo entre a Teoria e a Prática

Há controvérsias entre a teoria psicanalítica clássica e os recentes achados sobre o desenvolvimento emocional e relacional nos períodos iniciais da vida do lactente. As contradições versam, por um lado, sobre a defesa de um estado de não-diferenciação no período pós-natal imediato; e por outro lado, há aqueles autores que descrevem um mundo subjetivo dinâmico do bebê desde o nascimento. Em síntese, observa-se certa oposição entre a defesa de um estágio não-objetal e a existência de relações objetais1 desde o nascimento.

Discutir-se-á essas divergências, na medida do possível comparando a teoria com o que fora observado na experiência de observação de Miguel no contexto de abrigo.

Inicialmente recorremos à Freud (1920/1996), que acreditava que os bebês estavam protegidos pela "barreira de estímulos", que os resguardava de terem que registrar e lidar com a estimulação externa, incluindo outras pessoas. Semelhante à compreensão freudiana, Mahler, Pine e Bergman (1986) viam os bebês como ocupando um espaço de autismo normal, essencialmente não-relacionados com outros.

Essa compreensão do mundo do recém-nascido influenciou as proposições de Spitz (1991), este autor afirma que no mundo do recém-nascido não existe objeto, nem relação objetal, denominou este período como estágio pré-objetal ou não-objetal, período no qual se observaria no bebê um estado de não-diferenciação, uma vez que considerava que a percepção, a atividade e o funcionamento do recém-nascido estariam insuficientemente organizados em unidades, exceto, até certo ponto, em áreas que são indispensáveis à sobrevivência, tais como o metabolismo e consumo alimentar, circulação, função respiratória, etc.

Observa-se que nessas visões os bebês se relacionam com os outros apenas indiretamente, na extensão em que os outros influenciam seus estados internos de fome, fadiga e assim por diante, permanecendo num delongado estado de indiferenciação, subjetivamente, para ajudá-los a diferenciar o eu do outro. Na avaliação de Stern (1992), a psicanálise clássica focou quase que exclusivamente a regulação fisiológica durante esse período inicial, enquanto desconsiderava o fato de que grande parte dessa regulação era na verdade realizada através das mútuas trocas de comportamentos sociais. Essa abordagem resultou no quadro de um bebê de certa forma associal, mas também proporcionou uma rica descrição da vida interior do bebê da forma como é afetada pelas mudanças no estado fisiológico.

Todavia, os afetos flutuantes e as tensões fisiológicas que ocorrem nos bebês são vistos como a fonte de experiências que irão definir fundamentalmente um senso de eu. Essas experiências ocupam um estágio central nos primeiros dois meses (Stern, 1992).

Ressalta-se que a ênfase nos cuidados fisiológicos, em detrimento do cuidado relacional é privilegiada nas instituições de abrigo, como fora observado no caso de Miguel. Cavalcante, Magalhães e Pontes (2007) reconhecem que a criança, quando permanece sob a responsabilidade de uma instituição de abrigo, via de regra, recebe cuidados físicos relativamente adequados, há uma preocupação maior com a alimentação, a higiene, o tratamento e a prevenção de doenças, o lazer, etc. Entretanto, esses cuidados são emocionalmente indiferentes, manifestos através da massificação, despersonalização, burocratização do atendimento social, que mantêm a distância entre o cuidador habitual e a criança, o que pode gerar situações de deficiência cognitiva e danos emocionais que afetam de maneira decisiva o seu desenvolvimento.

Para além dos estados fisiológicos do bebê, a abordagem do colorido afetivo inerente à sua vida emocional foi estruturada num arcabouço teórico original proposto por Melanie Klein, que descreveu os processos envolvidos nas relações objetais precoces. Klein (1991) afirmava que perante um ambiente ameaçador e necessidades que implicam em sobrevivência, o mundo do bebê no início da vida pós-natal é envolvido por ansiedades provenientes não somente de fontes externas, como também de fontes internas, sendo assim, a fome, dores, desconforto, e demais sensações desagradáveis são sentidos como um ataque por forças hostis vividas como perseguição.

Observa-se que o primeiro objeto de amor e ódio do bebê é a figura materna, a qual é ao mesmo tempo desejada e odiada com toda intensidade e força características dos anseios arcaicos da criança. Muito no início, está a ama no momento em que satisfaz suas necessidades de alimentação, aliviando seus sentimentos de fome e oferecendo o prazer sensual que obtém quando sua boca é estimulada ao chupar o peito. Mas quando o bebê está com fome e seus desejos não são atendidos, ou quando sente dor ou desconforto físico, a situação imediatamente se altera. Surgem sentimentos de ódio e agressividade, e ele é tomado por impulsos de destruir a mesma pessoa que é objeto de todos os seus desejos e que, em sua mente, está ligada a tudo aquilo que está sentindo - seja bom ou ruim (Klein, 1996). A esse estágio Klein (1991) denominou de Posição Esquizo-Paranóide, pois o bebê cinde o mesmo objeto em bom ou mau de acordo com os momentos de gratificação ou frustração que obtém deste e manifesta sentimentos ambivalentes para com o mesmo objeto.

No caso particular do bebê estudado, não se teve acesso ao pós-parto ou aos períodos iniciais para associar as afirmativas de Klein ao caso de Miguel, nesse sentido recorre-se à clássica prática psicanalítica da inferência e destaca-se os momentos que provavelmente foram vividos com extrema angústia pelo bebê: inicialmente a inevitável perda do estado intra-uterino, que Klein (1991) considera como a primeira fonte externa de ansiedade; seguidos cinco dias, o bebê foi bruscamente separado de sua mãe, e isso após ter tido um contato mínimo com a satisfação de ser saciado pela amamentação. Na sequência, Miguel foi colocado no abrigo com suas rotinas impessoais e, pelo apelido que lhe deram ("chorão"), pode-se imaginar o quão persecutório foram vivenciados todos esses "ataques" e, como se não fosse suficiente, desenvolveu um quadro infeccioso (pneumonia) que durante todo o primeiro mês dificultava sua respiração, causava dores e o bebê era submetido a vários procedimentos na enfermaria que lhe pareciam desagradáveis (aerossol, injeções, etc.), além de que esse quadro clínico culminou em uma semana de hospitalização. Onde estaria o objeto bom para equilibrar a cisão característica desta fase? Já teria ele sido introjetado pelo bebê com o pouco tempo de convívio com a figura materna? Ou o objeto bom foi associado aos modestos momentos de gratificação (emocional, de contato) que eram oferecidos no contexto de abrigo?

Faz-se relevante nessa discussão destacar o fato de que os impulsos e sentimentos do bebê são acompanhados por um tipo de atividade mental que Klein (1996) julga ser a mais primitiva: a construção da fantasia. Por exemplo, o bebê que deseja o seio da mãe quando ele não está lá pode imaginar sua presença, isto é, pode imaginar a satisfação que obtém dele. Esse fantasiar primitivo é a forma mais arcaica da capacidade que mais tarde se transforma na atividade mais elaborada da imaginação (Isaacs, 1969).

As fantasias arcaicas que acompanham os sentimentos ambivalentes do bebê são dos tipos mais diversos, podendo ser agradáveis ou destrutivas. Quando o bebê se sente frustrado no seio, na sua fantasia ele ataca esse seio; mas se está sendo gratificado, ele passa a amá-lo e tem fantasias agradáveis a respeito desse objeto. Segal (1982) endossa esse raciocínio à medida que considera que as fantasias originais possuem uma natureza grosseira e primitiva, preocupadas diretamente com a satisfação dos instintos, vivenciadas de forma somática assim como mental e, já que nossos instintos estão sempre atuantes, assim também uma camada primitiva de fantasias primárias estão atuantes.

Não se sabe descrever precisamente se Miguel se utilizou do recurso da fantasia, as observações proporcionaram a constatação de que em determinados momentos, Miguel evidenciava ter o registro de algo bom, que o confortava, que permitia a organização de seus estados caóticos de choro, esse lugar era o colo, o contato.

Em se tratando de ansiedades arcaicas recorremos também à compreensão de Bick (1968) sobre o período mais primitivo da vida do recém-nascido. Essa autora observou a manifestação de um tipo de ansiedade catastrófica, vivenciada como sensação de despedaçamento iminente, isso porque, em sua forma mais primitiva, as partes da personalidade do bebê são sentidas como não tendo nenhuma força de ligação entre si, e que devem se manter unidas com a pele funcionando como limite, como um objeto integrador. Em outras palavras, observa-se que nos primeiros dias e semanas após o nascimento, pode-se perceber que certos acontecimentos acham-se associados com movimentos inquietos e descoordenados dos membros e com grunhidos, choros e gritos. Eles ocorrem, de modo típico, quando o bebê é despido, seu rosto é lavado ou ele é seguro de modo precário quando se interrompe a alimentação. Outros acontecimentos reduzem a aparente descoordenação e aflição: quando ele é carregado no colo, vestido após um banho, enquanto se o amamenta ou se enrola em cobertores na caminha. Sustenta-se que estes estados distinguíveis de modo bastante claro correspondem a estados mentais posteriores, que Bick (1968) identificou como sendo o sentimento de despedaçar-se (aniquilamento) ou conter.

Para Bick (1968, p.195)

a necessidade, no estado não-integrado infantil, de um objeto continente, parece gerar uma busca frenética por um objeto - uma luz, uma voz, um cheiro ou outro objeto sensório - que possa prender a atenção e desta forma ser vivenciado ao menos momentaneamente, como um objeto que mantém unidas as partes da personalidade.

O desenvolvimento defeituoso dessa função continente e integradora da pele pode levar à formação de "segunda pele", através da qual a dependência do objeto é substituída por uma pseudo-independência, pelo uso inapropriado de certas funções mentais (Bick, 1968).

Um dos casos usados por Bick para ilustrar o fenômeno segunda pele, a bebê Alice, se assemelha ao caso de Miguel. Alice era filha de uma mãe imatura que apresentou inúmeros problemas em sua capacidade de suporte (holding) que a afastavam do bebê. Em determinado momento a mãe alimentava o bebê enquanto assistia televisão, ou no escuro, sem segurá-la nos braços, o que desencadeou um fluxo de transtornos somáticos e um incremento de estados não-integrados no bebê. Aos poucos, a mãe foi estimulando o bebê a adquirir uma pseudo-independência, forçando-a a aprender a beber no copo, introduzindo uma cadeirinha durante o dia, enquanto rudemente se recusava a atender o choro do bebê durante à noite. O resultado dessa relação foi observado nos seis meses de Alice que expressava comportamentos hiperativos e agressivos, que a autora classificou como um tipo muscular de autocontenção, ou seja, uma segunda pele (Bick, 1968).

Consideramos que a semelhança entre Miguel e Alice se dá pelo fato de ambos terem cuidados precários, evidenciando certa desconexão entre as necessidades do bebê e os cuidados ministrados pelo cuidador, assim como esses bebês desenvolveram precocemente uma pseudo-independência.

Nesse sentido, as observações proporcionaram nitidamente a visualização da oscilação entre estados não-integrados e de contenção, sendo que os primeiros sobressaíam sobre os segundos e Miguel passou a encontrar maneiras próprias de relacionar-se com o ambiente de forma a atrair mais contatos, que favoreciam sua organização/gratificação, mesmo que para isso comprometesse sua alimentação, uma vez que parecia privilegiar o contato em detrimento da ingestão de alimentos manifestos nas recorrentes queixas das cuidadoras de que ele pouco se alimentava, numa dessas queixas uma das cuidadoras chegou a afirmar que ele precisava de uma cuidadora exclusiva (a mãe?) só pra ele porque demorava muito na mamada e essa postura se prolongou pelos meses posteriores. Miguel era apontado como um bebê com problemas alimentares manifestos por pouca ingestão de alimentos e recorrentes episódios de vômito, que podem estar associados ao conceito de segunda pele proposto por Bick (1968) devido à preferência pela contenção proporcionada pelo colo em prejuízo da alimentação.

Na tentativa em articular prática e teoria na observação do desenvolvimento emocional de um bebê abrigado, quer-se ilustrar a eficácia do método de observação de bebês adaptado a um contexto totalmente diverso do original, capaz de acessar emoções ainda indizíveis. Com esse recurso metodológico revelou-se um bebê cujos cuidados recebidos estiveram permeados pela carência de afeto e contato físico, cuidados estes, na maioria das vezes, desconectados das reais necessidades de Miguel, o qual, ao contrário, estava totalmente disponível ao outro e o buscava incessantemente com os recursos que aos poucos foi desenvolvendo.

 

Referências

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Recebido em 10 de junho de 2010
Aceito em 14 de dezembro de 2010
Revisado em 23 de março de 2011

 

 

1 O bebê das relações objetais é compreendido como um indivíduo que desde o nascimento é capaz de distinguir e relacionar-se com outro ser humano, ou seja, busca e relaciona-se com um objeto. As vivências com o outro são internalizadas pelo funcionamento mental (introjeção); sua mente desde o início é capaz de defender-se de experiências intoleráveis (cisão e projeção); esses processos tornam-se a base para uma primitiva comunicação em que existe o objeto humano disposto a recebê-los e transformá-los de maneira que eles possam estar disponíveis para reintrojeção pelo bebê (identificação projetiva); estes processos constituem os primórdios de um contato com a realidade externa e a experiência interna e são fundamentais para a constituição da subjetividade (Klein, 1991; Hinshelwood, 1992).

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