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Revista Psicologia Política

versão impressa ISSN 1519-549X

Rev. psicol. polít. vol.14 no.29 São Paulo abr. 2014

 

A participação das cooperativas de catadores na cadeia produtiva dos materiais recicláveis: perspectivas e desafios

 

Participation of collectors cooperatives in production chain of recyclable materials: prospects and challenges

 

La participación de las cooperativas en la cadena de producción de recolectores de materiales reciclables: perspectivas y desafíos

 

Participacion des coopérative de collecteurs de matières recyclables dans la chaîne de production de matières reciclables : perspectives et défis

 

 

Ana Carolina Lemos PereiraI; Letícia Dal Picolo Dal SeccoII; Ana Maria Rodrigues de CarvalhoIII

IPsicóloga e mestre em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Assis, SP, Brasil. lemosacarolina@gmail.com
IIPsicóloga pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Assis. É mestre em Ciência, Tecnologia e Sociedade e doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP, Brasil. le.dalpicolo@gmail.com
IIIDoutora em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Docente do Departamento de Psicologia Experimental e do Trabalho, e Coordenadora da Incubadora de Cooperativas Populares da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Assis, SP, Brasil. anamaria@assis.unesp.br

 

 


RESUMO

Como consequência da Globalização, durante os anos 90, observa-se um aumento do desemprego. Os trabalhadores que perderam seus postos de trabalho migram para o setor informal, caracterizado por condições de trabalho mais precárias, buscando formas de sobreviver, e entre as atividades mais procuradas por estes trabalhadores, encontra-se a catação de materiais recicláveis. Neste contexto, tem-se por objetivo apresentar as dificuldades encontradas pelas Cooperativas de Catadores em sua participação na cadeia produtiva dos materiais recicláveis, procurando melhores condições de trabalho, o que será ilustrado através da experiência de uma Cooperativa de Catadores do interior do Estado de São Paulo. Também será ressaltada a importância da formação e da educação popular, a atuação junto ao Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis e ainda o estabelecimento de parcerias com entidades civis e Poder Público para que os cooperados obtenham autonomia sobre sua organização, atuando nos princípios da Economia Solidária.

Palavras-chave: Catador de Materiais Recicláveis, Educação Popular, Economia Solidária, Cadeia Produtiva dos Materiais Recicláveis, Precarização do Trabalho.


ABSTRACT

As a consequence of globalization, during the 90s, there was an increase in unemployment. Workers who lost their jobs migrate to the informal sector, characterized by poor working conditions, looking for ways to survive, and be among the activities sought by these workers, the picking of recyclable materials. In this context, in order to present the difficulties encountered by cooperatives of collectors in their participation in the production chain of recycled materials, looking for better working conditions, which will be illustrated through the experience of a Cooperative of Collectors in the state of Sao Paulo. It will also emphasize the importance of the popular education, the performance in the National Movement of Recyclable Materials and also the establishment of partnerships with civil organizations and public authorities to obtain the cooperative autonomy over their organization, acting on the principles of economics solidarity.

Keywords: Collector of Recyclable Materials, Popular Education, Economic Development, Production Chain of Recyclable Materials, Precarious Work.


RESUMEN

Como consecuencia de la globalización, en los años 90, hubo un aumento en el desempleo. Muchos trabajadores que perdieron sus puestos de trabajo migran al sector informal, caracterizado por malas condiciones de trabajo, buscando la manera de sobrevivir, y ser una de las actividades solicitadas por los trabajadores, la compactación de los materiales reciclables. En este contexto, este trabajo tiene como objetivo presentar las dificultades encontradas por las cooperativas de recolectores en su participación en la cadena de producción de materiales reciclados, en busca de mejores condiciones de trabajo, que se ilustrarán a través de la experiencia de una cooperativa de recolectores en el estado de Sao Paulo. También se hará hincapié en la importancia de la formación y la educación popular, la actuación en el Movimiento Nacional de Materiales Reciclables y también el establecimiento de alianzas con organizaciones civiles y las autoridades públicas para obtener la autonomía de la cooperativa sobre su organización, que actúa sobre los principios de la economía Solidaridad.

Palabras clave: Colector de materiales reciclables, Educación Popular, Desarrollo Económico de la cadena de producción de materiales reciclables, trabajo precario.


RÉSUMÉ

En conséquence de la mondialisation au cours des années 1990 il ya eu une augmentation du chômage. Les travailleurs qui ont perdu leur emploi ont migré vers le secteur informel, caractérisé par des conditions de travail plus précaires, à la recherche de moyens de survivre et parmi les activités recherchées par ces travailleurs a eu place la collecte de matières recyclables. Dans ce contexte, la recherche vise à présenter les difficultés rencontrées par les coopératives dans leur participation dans la chaîne de production des matériaux recyclés, en recherche de meilleures conditions de travail, qui sera illustrée par l'expérience d'une coopérative de collecteurs de matières recyclables de l'État de São Paulo. Il sera également mis en évidence l'importance de la formation et de l'éducation populaire, l'action avec le Mouvement National des Collecteurs de Matières Recyclables et pourtant l'établissement de partenariats avec les organisations civiles et les pouvoirs publics afin que la coopérative peut gagner l'autonomie sur son organisation agissant avec les principes de l'économie solidarité.

Mots clés: Collecteurs de matières recyclable, Éducation populaire, Économie solidaire, Chaîne de production de matières recyclables, précarisation de l'emploi.


 

 

Introdução

Ao perambular pelas ruas da cidade, certamente nos deparamos com pessoas recolhendo papelão, latinhas de alumínio, dentre outros materiais recicláveis, nas calçadas e no comércio de maneira geral.

São os catadores de materiais recicláveis. Misturados à cena cinza da cidade de concreto e asfalto, vão transformando o que é resto em trabalho e renda, proporcionando dignidade de vida e sustento a si próprios e aos seus familiares.

Estes trabalhadores, no momento da venda dos materiais coletados, são explorados por "sucateiros", "atravessadores", que pagam baixos valores pelos materiais recebidos, e permanecem à margem da cadeia produtiva dos materiais recicláveis

Seria uma alternativa à essa precarização, a organização dos catadores em cooperativas populares, pautadas nos princípios da economia solidária, a qual pode ser definida como:

"fruto da organização de trabalhadores e trabalhadoras na construção de novas práticas econômicas e sociais fundadas em relações de colaboração solidária, inspiradas por valores culturais que colocam o ser humano como sujeito e finalidade da atividade econômica, em vez da acumulação privada de riqueza em geral e de capital em particular." (FBES, 2006).

É importante definir o termo reciclar, que significa "repetir ciclo": re (repetir) + cycle (ciclo). Assim, a reciclagem pode ser definida como o resíduo descartado convertido, através de um processo industrial, em um outro tipo de produto ou em um semelhante ao inicial (Teixeira & Zanin, 1999). Esse processo constitui-se na cadeia produtiva como uma estratégia de fim de vida do produto, ou seja, o momento em que o produto não é mais de interesse do consumidor e é então descartado para disposição final ou recuperação pós-consumo (Seliger, Basdere & Keil, 2001), e compõe assim o processo de ciclo de vida do produto.

Desse modo, o presente artigo pretende discutir como os catadores organizados em cooperativas econômico-solidárias enfrentam dificuldades em participar desta cadeia, bem como os desafios que vêm enfrentando para superar a posição marginal que ocupam e assim, avançar na mesma.

Para tal, o texto contextualiza o mundo do trabalho em épocas de globalização e posteriormente, através do relato da experiência de uma cooperativa de catadores, discute esta posição das cooperativas de catadores na cadeia produtiva dos materiais recicláveis.

 

O Mundo do Trabalho em Épocas de Globalização

Com o desenvolvimento do modo de produção capitalista, e o consequente processo da globalização, a substituição da mão-de-obra humana por máquinas, visando o aumento da produção nas fábricas e o considerável aumento dos lucros, caracterizam o mundo do trabalho. Segundo Antunes (2007) e Castel (2009), a mão de obra excedente, vítima do desemprego causado por essa substituição, o qual teve um auge nos anos 90 com a instauração de políticas neoliberais (Pochmann, 2004), e buscando alternativas para sua sobrevivência, migra para o mercado informal de trabalho pois os pobres, não podem ter o luxo de permanecer parados, e ainda que desempregados, não ficam desocupados sob o risco de morrer de fome (Singer, 1999).

Segundo Pochmann (2001), este cenário provocou o aumento da disputa por trabalho e renda, diminuindo o poder dos trabalhadores sobre seus direitos e, de acordo com Singer (1999), possibilitando ao comprador da mão-de-obra pagar o quanto quisesse ao trabalhador, levando à exploração destes e ao processo de precarização do trabalho. Com o desenvolvimento deste cenário, marcado pelo avanço tecnológico, juntou-se à dificuldade de inserção no mercado, o aumento da exigência em relação ao preparo do trabalhador.

Neste contexto, Antunes (2006) observa ainda a crescente onda de terceirizações, que configuram o modelo de produção chamado Toyotismo e que implicam na flexibilização dos contratos, redução do poder sindical e retirada dos direitos dos trabalhadores.

[...] rompe-se a relação um homem/uma máquina. Na Toyota, desde 1955 um trabalhador opera em média cinco máquinas. Enquanto quatro delas funcionam automaticamente, ele carrega, descarrega, prepara a quinta [...] a relação homem-máquina torna-se a de uma equipe de operários frente a um sistema automatizado; em segundo lugar, o trabalhador deve tornar-se polivalente para operar várias máquinas diferentes em seu trabalho cotidiano [...]. (Gounet, 1999:27)

Desse modo, pode-se dizer que o trabalho informal acontece frequentemente em condições precárias, na medida em que os trabalhadores não possuem nenhuma proteção trabalhista, não participam dos benefícios da Previdência Social, do Fundo de Garantia, entre outros (Pereira, 2010), tanto por falta de renda suficiente, quanto por desinformação dos procedimentos relativos ao trabalho não registrado.

A realização da catação como uma atividade de geração de renda, surgiu historicamente nesse cenário de crescimento do desemprego (MNCR, 2005). Assim, a catação aparece como uma ocupação informal alternativa ao cenário de desemprego (Carneiro & Correa, 2008).

 

Os Catadores de Materiais Recicláveis: condições precárias de trabalho

Com seus carrinhos ou carroças, ou ainda sacos de lixo, os catadores circulam pela cidade em busca dos materiais que foram descartados pela população e assim os comercializam com os atravessadores (sucateiros) que enquanto comerciantes, adquirem esse material por preços irrisórios, caracterizando uma relação de exploração dos indivíduos excluídos socialmente, que escolhem recolher materiais como alternativa às práticas criminosas e de mendicância (Singer, 2002).

O sucateiro geralmente possui uma infraestrutura como galpões, prensas, que geralmente os catadores não dispõem, e assim, agregam valor ao material para revender a aparistas, que são donos de lojas que comercializam aparas, papéis. Os aparistas, por sua vez, venderão os materiais às grandes indústrias sob a forma de matéria prima, com um valor cerca de dez vezes superior ao valor comprado do atravessador (Magera, 2003).

Este esquema compõe a cadeia produtiva dos materiais recicláveis, a qual se inicia na indústria com a produção das mercadorias. Nesse esquema, o catador realiza a maior parte do trabalho e fica com a menor porcentagem do valor final do produto. Assim, o catador permanece à margem do ciclo da reciclagem, no mercado informal de trabalho (Dias, 2002).

As condições de trabalho dos catadores de materiais recicláveis, como em grande parte dos trabalhos informais, são precárias. Além da exploração já explicitada pelos atravessadores, trabalham expostos ao sol e intempéries do tempo. Chegam a carregar até duzentos quilos de material em um dia de trabalho, percorrendo cerca de 20 km (Magera, 2003) e atuam em jornadas extensas, acima de dez horas por dia (Scarpinatti, 2008).

Para Santos (2002:375), "no trabalho, correm vários riscos: ficam com cortes e ferimentos produzidos por objetos cortantes e pedaços de vidro ou contraem, no lixo, alergias de pele causadas por lixo químico." A catação de materiais recicláveis caracteriza-se nesse sentido como uma atividade altamente insalubre, que ocasiona danos à saúde dos catadores que, em sua maioria, não contam com a proteção do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social).

A catação de materiais recicláveis figura como uma ocupação desde 2002, e está registrada sob o número 5192-05 na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO). Entre as diversas formas de atuação no mercado informal de trabalho, encontramos catadores que exercem a catação nas ruas, individualmente, denominados catadores avulsos, e também catadores que trabalham em grupos organizados, em associações e cooperativas populares.

 

Cooperativismo e Economia Solidária: um novo horizonte para os catadores de materiais recicláveis

A formação de cooperativas populares é uma alternativa encontrada pelos catadores de materiais recicláveis como forma de se organizarem para obter melhores condições de trabalho e vida, e também lutar pelo reconhecimento do seu trabalho pela sociedade (Singer, 2002). O autor pondera que para as pessoas excluídas do mercado formal de trabalho e fragilizadas socialmente, é necessário a união como defesa. Nesse sentido, por meio de uma cooperativa, por exemplo, no caso dos catadores, é possível dar visibilidade ao trabalho realizado, perante o Poder Público, firmando convênios, concorrendo a editais para aquisição de equipamentos, financiamentos a fundo perdido, etc.

As cooperativas populares também atuam nos princípios do cooperativismo, que para Magera (2003) podem ser assim resumidos: adesão livre e voluntária, controle democrático pelos sócios, participação econômica dos sócios, autonomia e independência, educação, treinamento e informação, cooperação entre grupos e preocupação com a comunidade.

Nas cooperativas populares, os catadores de materiais recicláveis tomam as decisões em assembleias, realizando assim uma gestão democrática e participativa, contemplando as ideias e opiniões de todos os membros. Nesse sentido, os catadores são atores dos seus empreendimentos, como mostra a experiência da cooperativa popular de catadores denominada ASMARE em Belo Horizonte-MG, sobre a qual Ananias (2008:7) relata que os catadores são "pessoas que emergiram e ganharam consciência política, social e ambiental, superando por meio da conquista da cidadania, as enormes adversidades que enfrentavam."

Os trabalhadores informais podem se organizar, atuando nos princípios da Economia Solidária, que buscam defender a propriedade coletiva ou associada, a liberdade individual, a distribuição de renda de forma mais igualitária e a solidariedade, possibilitando a promoção de sentido ao trabalho, favorecendo a implicação de valor ao trabalhador (Gaiger, 2004).

Esta forma de organização possibilita o fortalecimento da categoria à medida em que juntos, os trabalhadores conseguem ter um poder de barganha maior na venda dos materiais recicláveis e estabelecer parcerias, que para Freitas & Neves (2008) proporcionam aos catadores a criação de uma nova identidade, modificando sua posição no espaço urbano.

 

A Economia Solidária Contribuindo para a Constituição de uma Identidade Coletiva

Pode-se relacionar a situação do catador em relação ao seu trabalho ao processo dialético de exclusão/inclusão social perverso (Sawaia, 1999). Este processo demarca-se por três partes, sendo a primeira voltada para a dimensão material (desigualdade social), a segunda referindo-se à injustiça social (falta de ética) que caracteriza-se pela discriminação, pelo preconceito e pela criação de estereótipos e a terceira, caracterizadora do sofrimento psíquico, que diante à condição de exclusão, faz com que o indivíduo possua sentimentos tais quais culpa, tristeza, medo e vergonha. Não tratar desses aspectos emocionais seria desconsiderar a humanidade existente no sujeito e nas suas relações sociais (Sawaia, 1999).

Nenhuma ação é desencadeada sem uma base emocional. Agir não é apenas fixar umobjetivo racional. É colocar em funcionamento um poder de imaginação. Cidadania é consciência dos direitos iguais, mas esta consciência não se compõe apenas do conhecimento da legislação e do acesso à justiça. Ela exige o sentir-se igual aos outros, com os mesmos direitos iguais. Há uma necessidade subjetiva para suscitar a adesão, a mobilização, tanto quanto condições para agir em defesa destes direitos. (Sawaia, 1994:152)

Filizola e col. (2010) constatam que o empreendimento econômico solidário não envolve somente aspectos econômicos, mas também a constituição de sentidos que contribuem com as atividades humanas e com a reorganização destas. Considera ainda, que como o trabalhador passa a maior parte do dia no ambiente de trabalho, este passa a estar diretamente ligado à capacidade do indivíduo produzir seu sentido de existência e configurar novas relações, já que o trabalho influi na formação da personalidade e da identidade.

Desse modo, a Psicologia Política torna-se importante na análise dos contextos expostos, contribuindo para a análise das ações coletivas que envolvem o trabalho do catador organizado em cooperativas, facilitando o entendimento sobre as dificuldades de adaptação do indivíduo ao sistema de trabalho, o que pode ser relacionado ao conceito do atomismo, que remete-se à individualização de sujeitos coletivos através da perda de sua vinculação social, sendo que para tal, a psicologia atua em um campo híbrido junto a outras ciências humanas (Prado, 2000), no sentido de que, ao focar:

[...] as ações coletivas como objeto de reflexão e compreensão, pode ser entendida como um estudo das condições, sejam elas materiais, simbólicas, institucionais, psicossociais, éticas ou políticas, que são necessárias para a constituição de uma identidade coletiva - NÓS - baseada na diferenciação de um elemento exterior. (Prado, 2000:154)

A identidade coletiva remete-se à discussão em espaço público sobre as questões problemáticas referentes aos movimentos envolvidos, transformando decisões em possibilidades e mudanças, dentro das concepções defendidas, sem que a autonomia dos atores seja anulada (Melucci, 1996). Assim, a partir da organização do movimento para discussão pública de suas problemáticas, torna-se possível a constituição de uma identidade coletiva, fortalecendo a busca e a concretização de objetivos comuns.

 

Vivenciando o Contexto de uma Cooperativa de Catadores de Materiais Recicláveis

A Cooperativa de Catadores de Materiais Reciclávies de Assis (COOCASSIS) foi formalizada em 2004 por catadores que trabalhavam nas ruas individualmente, a partir de um trabalho realizado em parceria com a Universidade Estadual Paulista (UNESP) do Campus de Assis-SP e com a Cáritas Diocesana (Igreja Católica).

No contexto estudado, observou-se que para sua consolidação, foi fundamental a viabilização de um convênio com o Poder Público Municipal de Assis-SP, para a realização pela COOCASSIS da Coleta Seletiva Solidária no município, que é a coleta de materiais recicláveis separados do lixo orgânico, doados pelos munícipes à cooperativa. Assim, os catadores cooperados passaram a coletar materiais nas residências do município pela manhã, e à tarde, a triá-los (que consiste em separar materiais conforme sua qualidade - alumínio, plástico, papelão, por exemplo), a prensá-los e a enfardá-los para comercialização.

Antes da constituição da cooperativa, os catadores trabalhavam sem carga horária definida, sujeitos às intempéries do tempo, pelas ruas da cidade, coletando materiais geralmente retirados dos lixos dos domicílios. Para Borges e Kemp (2008), o catador avulso tria materiais recicláveis em meio ao lixo orgânico, não tendo local específico para a realização do trabalho, possuindo um ritmo próprio para execução das tarefas bem como um posicionamento físico.

Observa-se que com a organização do grupo e a implantação da coleta seletiva, as condições de trabalho melhoraram à medida que alguns riscos à saúde, como materiais contaminados e substâncias tóxicas descartadas indevidamente foram sendo eliminados. Isso foi possível mediante o desenvolvimento de um projeto de conscientização dos moradores dos bairros onde a coleta seria realizada, por meio de panfletos e conversas educativas, o que ocorreu em parceria da cooperativa com a UNESP e o Poder Público.

A coleta seletiva, no âmbito da cooperativa, significa a possibilidade de atenuar as condições precárias de trabalho, já que os materiais doados à Cooperativa pelos moradores são considerados materiais limpos. O catador, ao realizar essa atividade, passa a ser considerado um agente ambiental, uma vez que também conscientiza a população sobre o descarte adequado de materiais e resíduos e promove a limpeza da cidade. Para Lima & Oliveira (2008:226), estes trabalhadores organizados "conseguem produzir riqueza a partir do que é descartado pela produção capitalista como lixo, incluir pessoas em situação de vulnerabilidade social e, de quebra, desenvolver a consciência ambiental e mobilizar a sociedade para a prática da reciclagem." Porém, é necessário observar a distribuição de responsabilidades sobre os resíduos sólidos, visto que as empresas raramente se envolvem com o processo de conscientização da população e viabilização do descarte adequado dos produtos, aumentando ainda mais seus lucros e a exploração dos catadores e da população.

Porém, a COOCASSIS realizava também a triagem dos materiais que provêm do lixo (material contaminado, sujo, não separado na coleta seletiva pelos munícipes) recolhido por todo o município, e é uma atividade que já havia sido superada por ela mas, devido a uma exigência da Companhia de Tecnologia e Saneamento Ambiental (CETESB), do início de 2007, para que fosse reduzida drasticamente a quantidade de materiais recicláveis depositados no aterro sanitário do município, a Prefeitura firmou um novo convênio com a Cooperativa, para que os catadores realizassem a triagem do lixo do município1.

O ideal seria a implantação da coleta seletiva em 100% do município, mas como este procedimento exige uma transformação cultural e a educação permanente dos cidadãos, e este é um processo demorado, a alternativa encontrada foi retomar a triagem do lixo para separação dos recicláveis2. Esse convênio previa um repasse para o grupo de um valor correspondente a um salário mínimo, agregando ainda o valor do INSS, para que cerca de 40 cooperados realizassem a triagem de todo o lixo da cidade em uma esteira. Naquele momento, a Cooperativa era composta por mais ou menos 32 cooperados, e foi realizada então uma divulgação para a inclusão de mais cooperados no grupo para viabilizar o cumprimento dessa nova tarefa. No período em que este convênio ocorreu, no início de 2007 a cooperativa já contava com cerca de 90 cooperados.

Observou-se nesse contexto, um retrocesso às condições precárias de trabalho referentes à insalubridade. Apesar disso, os cooperados avaliaram positivamente a nova atividade, posto que temiam a contratação de uma empresa privada em seu lugar. Magera (2003) reflete que as atividades de reciclagem, no que se refere às relações de trabalho e às interfaces sociais, promove um paradoxo relativo à precarização do trabalho humano que era encontrada em estágios da história do trabalho que já haviam sido superados na modernidade.

Esta triagem de recicláveis realizada no lixo foi proposta à Cooperativa como uma atividade temporária, uma vez que estavam se consolidando os estudos para ampliação da coleta seletiva para todo o município, e sendo necessária pela não adesão de toda a população das áreas de coleta seletiva à campanha.

Nesse sentido, estes trabalhadores permaneciam à margem da cadeia produtiva dos materiais recicláveis, realizando uma atividade árdua, em más condições de trabalho, recebendo uma parcela ínfima em relação ao valor final do produto que é o material reciclável transformado em matéria prima para indústria.

 

A Importância das Parcerias

Como referido anteriormente, a parceria com diversas entidades civis e poder público é fundamental para a superação desse lugar marginal na cadeia produtiva de materiais recicláveis. Assim, observou-se em relação à experiência da COOCASSIS, a compra de prensas em parceria com o Poder Público Municipal e a Cáritas Diocesana, o que permitiu um pequeno avanço no ciclo da reciclagem, na medida em que era possível vender o material já prensado e enfardado, o que agregava um pouco mais de valor a este material.

A participação junto ao Movimento Nacional dos Catadores (MNCR) também se mostrou como um forte incentivo à organização do grupo para avançar na cadeia produtiva. Nesse sentido, a cooperativa em questão e outros grupos de catadores da região oeste do Estado de São Paulo, compõem o Comitê Regional do Oeste Paulista, um órgão representativo do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis.

Esse movimento advém da luta dos catadores pela melhoria das condições de trabalho e inclusão social da categoria, além do avanço na cadeia produtiva dos materiais recicláveis. Para isso, propõe a organização desses trabalhadores em cooperativas e associações, com o objetivo de defender o trabalho coletivo, como uma alternativa à exploração dos trabalhadores no modo de produção vigente, o capitalismo. O MNCR defende a solidariedade de classe contra o individualismo que enfraquece os grupos populares, para transformar as relações sociais e fortalecer o povo diante das classes dominantes. Luta pela criação de políticas públicas de inclusão dos catadores e por parcerias que possam contribuir para a melhoria das condições de trabalho destes, bem como sua organização (MNCR, 2008).

O Comitê, formado por representantes dos grupos de catadores e de alguns apoiadores, tem por finalidade potencializá-los por meio das trocas de experiências, discussões temáticas e deliberações coletivas. Definem objetivos e metas a serem atingidas pelos grupos, buscando alternativas que contribuam para realizá-los. Para tal, além de reuniões esporádicas, realizam visitas aos grupos da região, observando e discutindo os problemas apresentados.

No entanto, muitas dificuldades se apresentaram para que esta cooperativa conseguisse de fato avançar na cadeia produtiva dos materiais recicláveis e também atuar nos princípios da Economia Solidária. Para avançar na cadeia produtiva dos recicláveis, os catadores necessitariam antes estar organizados inclusive para concorrer a editais públicos de financiamento a fundo perdido de equipamentos que possibilitariam este avanço pela possibilidade da transformação do material coletado nas ruas pelos catadores da Cooperativa em matéria prima, que poderia ser vendida diretamente à indústria, agregando valor ao material.

Uma das principais dificuldades observadas, era a falta de interesse dos sócios em participar dos espaços coletivos de decisão, delegando todas as decisões à Diretoria da cooperativa. Para Singer (2002) os sócio-cooperados em geral delegam confiança para que a direção tome decisões por todos, e não é a direção que sonega informações aos sócios.

Muitos destes trabalhadores carregavam em sua história de vida a luta pela sobrevivência com a exploração de seu trabalho por atravessadores e ainda a relação servil com patrões que sempre lhes ditaram o que fazer e como fazer. Nessa perspectiva, detecta-se uma grande dificuldade das pessoas recém-chegadas à cooperativa popular de adesão ao empreendimento solidário, no sentido de conviver e trabalhar em grupo, de expressar suas opiniões e compreender os estatutos construídos coletivamente, que estabelecem as normas que devem ser seguidas pelos cooperados.

 

Educação Popular: fortalecendo a organização dos catadores

Estas dificuldades são associadas à representação de um modelo de escolarização elitista formal, vivenciado por estes trabalhadores e que não considera a realidade dos alunos, ou educandos. Muitas vezes, estes foram classificados como "incapazes", "inadequados" para a escola. Tiveram suas palavras, seus gestos, suas singularidades furtadas por este modelo escolar despotencializante.

Nesse sentido, era imprescindível que estes catadores tivessem acesso a uma educação popular que superasse esse modelo de submissão e que não limitasse o conhecimento a uma linguagem muito rebuscada, que considerasse o conhecimento construído a partir da realidade do educando, assim como pensou Freire (1980), possibilitando a todos o acesso a ele. Para Mance (2002), a educação solidária considera que para o exercício da liberdade humana, promovendo a autonomia de pessoas e grupos, é necessária sim a educação, definindo que esta não é apenas uma forma de produzir e interpretar informações.

Uma forma encontrada para enfrentar essa dificuldade e que se constituiu em um desafio, foi a construção de um espaço para a educação popular na cooperativa, onde ocorria não só o letramento, mas a problematização do cotidiano de trabalho por meio de uma alfabetização crítica.

A COOCASSIS, incentivada pelo MNCR, vivenciou a experiência do projeto de educação popular MOVA - Brasil, desenvolvido pelo Instituto Paulo Freire e financiado pela Petrobrás e Federação Única dos Petroleiros (FUP) no período de outubro de 2006 a junho de 2007. Com este espaço de educação popular na cooperativa, o MNCR contribuiu para que o catador se apropriasse de ferramentas para romper com as organizações tradicionais de trabalho, que os alienavam, e discutir o significado da catação, dos materiais, bem como a cadeia produtiva dos mesmos.

A Organização em Rede dos Catadores

As reuniões do Comitê Regional dos Catadores promovem a integração dos grupos para troca de experiências. Nessa perspectiva, se caracterizava como espaço para a reflexão sobre as políticas públicas existentes e mobilização para que pudessem avançar na cadeia produtiva dos materiais recicláveis. Portanto, para que este avanço fosse viabilizado, seria imprescindível fortalecer a união dos grupos de catadores.

Neste contexto, foram realizadas diversas reuniões com a Cooperativa e os grupos de catadores da região para discutir o avanço na cadeia produtiva dos materiais recicláveis, para que juntos pudessem comercializar diretamente com as indústrias. Até então, os materiais eram vendidos aos atravessadores, que processavam ou transformavam os materiais coletados/triados para realizar essa venda. A transformação, além de configurar um avanço na cadeia produtiva dos materiais, possibilitaria agregação de valor a estes.

Uma dificuldade encontrada pelos grupos de catadores para avançar na cadeia produtiva era que, ainda que fossem beneficiados com equipamentos para a transformação dos materiais, o volume de material necessário para que estes equipamentos não se tornassem obsoletos era expressivo, já que devido à capacidade do maquinário (de transformação de plástico, por exemplo), seria necessário uma quantidade grande de material que compensasse os gastos com água e energia utilizados em seu funcionamento.

As parcerias, para os empreendimentos solidários, sobretudo em sua fase inicial, são de importância fundamental, posto que estes estão em processo de desenvolvimento e nem sempre são donos dos bens e meios de produção. No entanto, é necessário o cuidado para que as parcerias não promovam ingerências nos empreendimentos populares, agindo com medidas paternalistas, o que fere os princípios da gestão democrática, ou ainda, da autonomia dos grupos.

É importante ressaltar que a solidariedade despertada entre cooperados e associados da região, reflete nas práticas sociais em geral, produzindo modos de relacionamento mais saudáveis, e intervenções menos predatórias no meio ambiente, já que a solidariedade, assim como a igualdade e a equidade, é intrínseca ao conceito de desenvolvimento e, consequentemente, relativa ao desenvolvimento econômico pensado a longo prazo. Considerando a sustentabilidade, a solidariedade fortalece a relação entre os objetivos ambientais, econômicos e sociais (Sachs, 2008).

A união dos grupos por meio do Comitê Regional do MNCR trouxe propostas fundamentais para o avanço na cadeia produtiva, como a comercialização dos materiais em rede. Esta ferramenta consiste na organização das associações e cooperativas de catadores da região para agruparem os materiais coletados e comercializarem juntas, garantindo a venda dos materiais a um preço significativamente maior, devido à quantidade acumulada. Esta ferramenta aumenta o poder de barganha dos grupos populares nas negociações.

Esta etapa foi significativa na medida em que por meio dela, foi possível mapear a quantidade de material coletado em toda região, e assim traçar o perfil produtivo daquelas cooperativas e associações para concorrer a editais, como do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) ao qual, em 2007, a COOCASSIS enviou projeto e foi contemplada com um recurso não reembolsável para a viabilização de um Centro Regional de preparação, transformação e comercialização de materiais recicláveis, contemplando conjuntamente, diversos catadores da região, que passaram a compor uma Cooperativa Regional.

A Comercialização em Rede tem se configurado como um processo fundamental para o desenvolvimento da economia solidária e para a consolidação dos empreendimentos solidários populares, já que os grupos de catadores isoladamente, devido ao contexto apresentado neste artigo, não conseguiriam sobreviver em meio ao mercado competitivo.

Um fator favorável ao avanço na cadeia produtiva dos materiais recicláveis pelos catadores cooperativados é a A Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), instituída pela Lei nº 12.305, de 02 de agosto de 2010, e regulamentada pelo Decreto nº 7404/2010 assinado por Luis Inácio Lula da Silva, ex-presidente, em ato ocorrido na EXPO CATADORES. Essa lei surgiu em um contexto no qual não existia nenhum instrumento legal que instituísse diretrizes para orientar sobre a gestão dos resíduos sólidos. O Conselho Nacional de Meio Ambiente (CONAMA) era o único órgão que estabelecia normas nesta temática.

Dentre os pontos desta lei, pode-se citar, referentes aos catadores, a responsabilização compartilhada pelo ciclo de vida do produto; a responsabilização do setor empresarial pela destinação final ou reinserção do resíduo sólido no ciclo produtivo (logística reversa); a coleta seletiva; o incentivo a mecanismos que fortaleçam associações e cooperativas de catadores de materiais recicláveis como importantes à gestão desses (Ministério, 2010).

É importante observar que esse plano considera a participação popular nas decisões o que, junto aos outros pontos, contribui para tirar os catadores da condição de explorados pelas grandes indústrias.

 

Considerações Finais

O contexto da catação de materiais recicláveis traz a marca do trabalho realizado em condições precárias, insalubres, a exploração pelos atravessadores e ainda a ausência de direitos básicos de proteção social. Traz ainda a perspectiva do lugar marginal ocupado pelos catadores na cadeia produtiva dos materiais recicláveis, os agravos à sua saúde e as más condições de trabalho e vida.

No entanto, estes homens e mulheres que saem pelas ruas em busca não só do pão, mas da dignidade de sentir-se sujeito na cidade, tem se organizado e lutado no sentido de resistir solidariamente com outros grupos no mercado predatório da reciclagem.

E assim vão trilhando seus caminhos com seus carrinhos, formando uma verdadeira Rede para além do sentido de comercialização. Rede de laços, de construção de cidadania e solidariedade, de leitura de mundo a partir de sua realidade de classe. A educação popular é arma fundamental para a apropriação dos sentidos e significados de tudo que o ciclo dos materiais recicláveis produz.

Ao abrir mão de trabalhar individualmente, para unir-se ao grupo da cooperativa, estes trabalhadores vão em busca de melhores condições de trabalho e renda, e acabam ganhando a consciência de sujeitos que emergiram dos restos de uma sociedade de consumo, criando uma identidade coletiva que se fortalece em seu movimento e discussões.

Esta análise social deve ser pensada criticamente, indo ao encontro da Psicologia Política, considerando a participação "do indivíduo enquanto sujeito da esfera da política, participação esta que se dá na esfera pública e que articula a construção de demandas coletivas capazes de reconhecer o caráter histórico das posições sociais e de poder." (Mouffe, 1988, citado por Prado, 2000:153).

Este caminho é trilhado com muitos obstáculos, como a organização formal da cooperativa que exige que estes trabalhadores se reúnam em número mínimo de vinte pessoas e que se apropriem de documentos como estatutos, atas de assembléias, o que faz da educação popular uma ferramenta importante para que essa apropriação ocorra de maneira efetiva.

Ainda que os catadores atuem unidos pelas redes de comercialização das cooperativas e associações, o mercado da reciclagem é instável, e estes trabalhadores que não possuem "capital de giro", ou reservas para arcar com as crises lutam juntos para não sucumbir quando elas acontecem. Nesse sentido, ressaltamos novamente a importância das parcerias travadas com a sociedade civil e poder público local.

Avançar na cadeia produtiva dos materiais recicláveis para os catadores significa, neste contexto estudado, mais do que ter acesso a riqueza que o trabalho produz, como também reconhecer-se no processo de transformação da natureza, encontrar no produto final de seu trabalho, sua atividade humana singular de pensar, criar e agir sobre o seu meio.

 

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Recebido em 11/12/2011
Revisado em 07/06/2012
Revisado em 26/08/2013
Aceito em 22/09/2013

 

 

1 Esta realidade condiz com o contexto da época em que este artigo foi redigido pela primeira vez. Atualmente, a COOCASSIS é contratada pela Prefeitura Municipal de Assis-SP para realizar o trabalho de coleta seletiva no município, ao mesmo tempo em que não realiza mais a triagem de lixo do município. Com isso, constata-se a superação desta condição precária de trabalho e um avanço na busca dos catadores por condições de trabalho adequadas.
2 Atualmente, em Assis-SP, a coleta seletiva já abrange 100% do município, comprovando que a ação conjunta dos catadores e apoiadores é importante para a superação dos desafios impostos a esta categoria de trabalho.

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