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Revista Psicologia Política
versão impressa ISSN 1519-549X
Rev. psicol. polít. vol.14 no.31 São Paulo dez. 2014
ARTIGOS
Família, acolhimento institucional e políticas públicas: um estudo de caso
Family, residential care and public policy: a case study
Familia, atención residencial y políticas públicas: un estudio de caso
Famille, accueil institutionnel et politiques publiques: une étude de cas
Vinícius FurlanI; Telma Regina de Paula SousaII
IPsicólogo Social, Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Atualmente é professor e Psicologia Social na Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba, SP, Brasil. vc_furlan@hotmail.com
IIPsicóloga pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas, mestrado e doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Atualmente é professora de Psicologia Social na Universidade Metodista de Piracicaba, Piracicaba, SP, Brasil. trpsouza@uol.com.br
RESUMO
Este artigo resulta de uma pesquisa que visou conhecer a relação das políticas sociais dirigidas às famílias que possuem crianças e adolescentes em situação de acolhimento institucional. Por meio de análise documental e entrevistas com os técnicos que trabalham nos serviços dirigidos a estas famílias, pudemos identificar que: a pobreza marca a realidade destas famílias; há um ciclo da violação de direitos que perpassa por várias gerações; há falta de políticas públicas dirigidas a estas famílias que dê conta de suas realidades; há a ausência de equipamentos para lidar com as demandas apresentadas; as demandas quase sempre se colocam sob a forma de situação-limite; há grande dificuldade de articular um trabalho intersetorial em rede; e, identifica-se que a única resposta do Estado para os problemas vivenciados no contexto familiar tem sido o afastamento das crianças e adolescentes, o que cria uma cultura de institucionalização dos "des-ajustados".
Palavras-chave: Família, Acolhimento Institucional, Políticas Públicas, Direitos Humanos, Pobreza.
ABSTRACT
This article is the result of a research that aimed to know the relationship of social policies aimed at families with children and adolescents in residential care situation. Through document analysis and interviews with technicians working in the services to these families, we observed that: poverty marks the reality of these families; there is a cycle of violation of rights that passes for generations; there is a lack of public policies targeting these families realize their realities; there is a lack of equipment to deal with the demands presented; the demands often arise in the form of extreme situation; it is very difficult to articulate an intersectoral working network; and identifies that the only State's response to the problems experienced in the family context has been the removal of children and adolescents, which creates an institutionalized culture of "de-tuned".
Keywords: Family, Residential Care, Public Policy, Human Rights, Poverty.
RESUMEN
Este artículo es el resultado de una investigación que tuvo como objetivo conocer la relación de las políticas sociales dirigidas a las familias con niños y adolescentes en situación de acogimiento residencial. A través del análisis de documentos y entrevistas con los técnicos que trabajan en los servicios a estas familias, se observó que: la pobreza marca la realidad de estas familias; hay un ciclo de violación de los derechos que pasa por generaciones; hay una falta de políticas públicas dirigidas a estas familias a realizar sus realidades; hay una falta de equipo para hacer frente a las demandas que se presenten; las demandas surgen a menudo en forma de situación extrema; es muy difícil de articular una red de trabajo intersectorial; e identifica que la respuesta del Estado sólo a los problemas experimentados en el contexto de la familia ha sido la separación de los niños y adolescentes, lo que crea una cultura institucionalizada de "de afinado".
Palabras clave: Familia, Acogimiento Residencial, Políticas Públicas, Derechos Humanos, Pobreza.
RÉSUMÉ
Cet article résulte d'une recherche qui a visé à connaître les rélations des politiques sociales adressées aux familles qui ont des enfants et des adolescents en situation de l'accueil institutionnel. Selon l'analyse de documents et des entretiens avec des téchniciens qui travaillent dans les services adressés à ces familles, nous avons pu identifier que : la pauvreté marque la réalité de ces familles ; il y a un cycle de violation de droits qui impregne plusieurs générations ; il y a une manque de politiques publiques adressées à ces familles qui travaillent éfféctiviment avec leur réalités ; il y a une absence de instituitions pour travailler avec ces demandes présentées ; les demandes presque toujours sont présentées sous la forme de situation-limite ; il y a une grande dificulté d'articuler un travail intersectoriel en réseaux ; et, on a identifié que la seule réponse de l'État pour les problèmes vécus dans le contexte familial est l'éloignement des enfants et des adolescents, ce qui crée une culture de institutionnalisation des « inadaptés».
Mots clés: Famille, Accueil Institutionnel, Politiques Publiques, Droits Humains, Pauvreté.
Introdução
Silva (2012) demarca que a Psicologia Política se constitui caracteristicamente como um campo interdisciplinar, e que sua constituição enquanto campo não se resume apenas em politizar as práticas psi, mas à produção de um campo científico que emerge da interação de diversos saberes, de modo especial da Política e da Psicologia.
Deste modo, um tema caro à Psicologia Política refere-se ao campo das políticas públicas (Silva, 2015), haja vista ser interesse de uma Psicologia que se afirma preocupada com a Política a tarefa de compreender os processos que reverberam na construção e busca pela efetivação ou não das políticas públicas na esfera do cotidiano, na medida em que tais políticas visam reduzir os impactos dos interesses econômicos que produzem desigualdades e mazelas sociais.
Para Souza (2015) a Psicologia Política, assim, pode ter um papel analítico das políticas públicas, tanto como de intervenção para sua construção, afirmação ou negação, na medida em que pode criar um campo de tensão para planejar estratégias que contribuam para o movimento histórico na dimensão humano-genérica, bem como pode servir a instituições reguladoras. (O humano-genérico para Heller (2008) é sempre representado pela comunidade, em que o homem constitui sua 'consciência de nós' comunidade, cuja sua colocação se orienta para o 'nós'; significa a preocupação com o interesse de todos os homens, com o bem comum).
Neste sentido, cabe à Psicologia Política debruçar-se à empreitada de entender as relações entre a instituição familiar e as políticas públicas, considerando que, no contexto atual, a família está no centro do debate político enquanto público-alvo das políticas públicas sociais para garantir a proteção de seus membros, e, deste modo, contribuir, a partir de um compromisso ético-político, com os processos de subjetivação/objetivação humano-genérica.
Inserindo a discussão sobre família, alguns autores, como Lasch (1991) e Reich (2001), a entendem como uma instituição social, que se configura como um instrumento de socialização criado pelo próprio homem com a função de organizar suas relações interpessoais.
De acordo com Lasch (1991), a família é a principal fonte de socialização do indivíduo ao ensinar-lhe quais os padrões e normas culturais que devem ser internalizados e reproduzidos em suas relações sociais.
Reis (1984) destaca que a família possui duas funções importantes na estrutura social: uma econômica, no que se refere à reprodução de mão-de-obra, e outra ideológica, no que se refere à reprodução da ideologia dominante.
Apesar de a instituição familiar apresentar fortes resistências à mudança, ela sofre um processo de transformação assim como toda instituição social. Neste sentido, foi possível observar, a partir do século XX, grandes mudanças na instituição familiar e na vida do cotidiano doméstico: a possibilidade de escolha do parceiro pelos cônjuges, a redução no número de membros, a valorização da afetividade entre os pais e a prole, a inserção da mulher no mercado de trabalho e na universidade, a inserção dos filhos no mercado de trabalho, o grande índice de divórcios, os casais homoafetivos, revelam alguns aspectos que vem ocorrendo na família.
Ao longo da história da humanidade, a família, nas suas mais diversas configurações, sempre desempenhou papel significativo na conformação da proteção social nas diferentes sociedades, em seus diferentes períodos sócio-históricos, especialmente na modernidade, que instituiu a família nuclear burguesa. Essa função protetiva da família, entretanto, parece não ser suficiente para evitar as condições de vulnerabilidade e risco social, na medida em que tais condições impactam diretamente o cotidiano da vida familiar e doméstica, repercutindo em situações de vulnerabilidade e risco às crianças e adolescentes que estão sob seus cuidados.
Os textos normativos e legais reconhecem que os laços familiares e a afetividade garantida na família são de fundamental importância para o desenvolvimento, proteção e socialização das crianças e adolescentes. Assim, visam garantir o direito da criança e do adolescente à convivência familiar e comunitária1.
Entretanto, vê-se que para uma parcela de famílias este direito não lhes é garantido, pois, contrariando a suposição de que são órfãos as crianças e adolescentes que vivem nos abrigos, o levantamento nacional realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA, 2003) mostrou que a grande maioria deles possuía família (86,7%), sendo que 58,2% mantinham vínculos com os familiares.
O Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes - CONANDA, 2006), constitui um marco nas políticas públicas no Brasil, ao romper com a cultura da institucionalização de crianças e adolescentes e ao fortalecer o paradigma da proteção integral e da preservação dos vínculos familiares e comunitários, preconizados desde 1990 pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. De acordo com este Plano, a manutenção dos vínculos familiares e comunitários - fundamentais para a estruturação das crianças e adolescentes como sujeitos e cidadãos - está diretamente relacionada ao investimento nas políticas públicas de atenção à família.
Esta preocupação também está presente nas "Orientações Técnicas para os Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes" (Conselho Nacional de Assistência Social - CNAS, 2009), o qual visa estabelecer parâmetros e oferecer orientações metodológicas para que a rede de proteção favoreça o fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, o desenvolvimento de potencialidades das crianças e adolescentes atendidos e o empoderamento de suas famílias.
Conforme destacado pelo CONANDA (2006), falar da qualidade de vida de crianças e adolescentes é falar da qualidade de vida de suas famílias e nas suas famílias. Sendo assim, ao considerar o vínculo familiar a base para o cuidado e a socialização das crianças e adolescentes, o apoio às famílias é, portanto, essencial para garantir os seus direitos fundamentais. Contudo, é importante destacar que o mesmo Plano considera que o estabelecimento de vínculos e a socialização das crianças e adolescentes não se restringem apenas a pessoas ligadas por laços de consanguinidade, mas por pessoas com as quais as crianças criam laços afetivos e significativos.
A Constituição Federal do Brasil (1988) estabelece que a "família é a base da sociedade" (art. 226) e que, portanto, compete a ela, a sociedade em geral, juntamente com o Estado, "assegurar à criança e ao adolescente o exercício de seus direitos fundamentais" (art. 227). Entretanto, a legislação ainda considera que no contexto familiar podem ser refletidas situações de violação dos direitos da criança e do adolescente, e, conforme está previsto no ECA, isto justifica a intervenção do Estado no seio familiar.
O Plano Nacional destaca que a violação de direitos que tem lugar no cotidiano da família pode refletir, ainda que não necessariamente, também uma situação de vulnerabilidade da família diante dos seus próprios direitos de cidadania, do acesso e da inclusão social. Assim sendo, o apoio sociofamiliar é, muitas vezes, o caminho para o resgate dos direitos e fortalecimento dos vínculos familiares. Levando isto em consideração, compete à sociedade, aos demais membros da família, da comunidade, e ao próprio Estado, nesses casos, reconhecer a ameaça ou a violação dos direitos e intervir para assegurá-los ou restaurá-los.
Neste sentido, sempre é importante contextualizar a violação de direitos das crianças e adolescentes no contexto familiar tendo em vistas as condições sociais, históricas, culturais e econômicas que as produzem.
Atualmente, como destacamos antes, a família está no centro do debate político, enquanto público-alvo de políticas públicas, especialmente nos programas de transferência de renda, que objetivam o combate à pobreza e a erradicação da miséria.
O debate sobre a família como sujeito de referência na política social tem sido, especialmente a partir dos anos 80, motivo de inúmeras controvérsias tanto no terreno político como no debate acadêmico.
Mioto (2010) destaca que um dos interesses do Estado em sustentar a família como referência na política pública é o fato de, ao atender suas necessidades, evita que muitas outras necessidades se tornem demandas para os serviços de políticas de saúde e assistência social.
Deslandes e Barcinski (2010) enfatizam o fato de que, no Brasil, as propostas e serviços de atenção às famílias atuam majoritariamente em situações-limite, situações conhecidas como de risco social. Raramente tais serviços atuam no cotidiano dessas famílias para garantir-lhes o apoio necessário para sustentarem as suas potencialidades. Geralmente a intervenção se dá depois de estabelecida a situação de violação de direitos.
Com vistas a garantir o convívio das crianças e adolescentes no seio de suas famílias, políticas sociais devem apoiar as famílias no cumprimento de suas funções de cuidado e socialização de seus filhos, buscando promover a inclusão social e a superação das vulnerabilidades, sendo também necessárias políticas e ações voltadas para proteger as crianças e adolescentes quando os seus vínculos familiares estão fragilizados ou rompidos, oferecendo atenção especializada e acompanhamento sistemático em programas de orientação, apoio e proteção no contexto social.
Podemos considerar que as famílias de crianças e adolescentes em situação de abrigamento são aquelas que mais sofrem os impactos da violação e não garantia de seus direitos, haja vista os documentos normativos considerarem a intervenção do Estado para o afastamento de seus filhos quando esgotadas todas as medidas possíveis para garantir os direitos da família e convivência familiar da criança.
Conforme destacado por Rosseti-Ferreira e col. (2012), as famílias de origem de crianças e adolescentes em situação de abrigamento permanecem na "invisibilidade", traduzido pelo desconhecimento destas famílias, até mesmo nos prontuários das crianças e adolescentes acolhidas nos abrigos, os quais carecem, muitas vezes, de informações básicas.
Neste sentido, desenvolvemos uma pesquisa que visou caracterizar os motivos do abrigamento de crianças e adolescentes em relação a sua história de abrigamento, buscando compreender a relação entre as políticas sociais do município dirigidas às famílias de Piracicaba, em especial aquelas que possuem crianças e adolescentes em situação de acolhimento institucional.
Metodologia
A pesquisa foi realizada num abrigo do município de Piracicaba, que passa por um processo de reordenamento institucional desde o final de 2009, conforme previsto pelo CONANDA (2006).
Para levantar dados acerca dos motivos do abrigamento, bem como das famílias e das crianças e adolescente, trabalhamos com a sistematização das informações presentes nos prontuários das crianças e adolescentes do abrigo: estudo de caso e PIA (Plano Individual de Atendimento), portanto pesquisa documental. Também foram analisados os documentos relativos às políticas de assistência social do município no contexto do Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e dos marcos legais em relação aos direitos das crianças e adolescentes (importante destacar que se trataram dos documentos que estão à público).
Na análise documental, os prontuários das crianças acolhidas foram sistematizados a partir dos dados como: motivo do acolhimento, data do acolhimento, etnia segundo IBGE, idade, dados do pai, dados da mãe, pessoa referência, encaminhamentos, etc.
Quanto à articulação das políticas sociais e a realidade das famílias, realizamos entrevistas com cinco técnicos: um responsável pelo contato com as famílias e acompanhamento do PIA, funcionário do abrigo estudado; três técnicos da Vara da Infância e Juventude e da Vara da Família de Piracicaba, responsáveis pelos pareceres em relação às crianças/adolescentes do abrigo2; e com um técnico do Centro de Referência Especializado em Assistência Social, instituição responsável pelo trabalho com as famílias do abrigo. As entrevistas foram semidirigidas, tendo como norteador um roteiro com perguntas abertas.
A metodologia utilizada foi a qualitativa, visto nos interessar os significados da realidade investigada, o que implica entendermos como os indivíduos envolvidos nessa realidade constroem a realidade em que vivem. Nesse sentido, além da pesquisa documental e das entrevistas, a observação participante esteve sempre presente nos contextos da investigação, em espaços que possibilitaram maior aproximação dos pesquisadores da realidade pesquisada, reuniões dos atores responsáveis pela execução das ações dirigidas à infância e juventude no município, eventos de capacitação, supervisões relacionados com os objetivos pretendidos, bem como participação dos pesquisadores no Fórum Municipal dos Direitos das Crianças e Adolescentes, no Conselho Municipal dos Direitos das Crianças e Adolescentes (CMDCA) e Conferências Municipais, como exercício de controle social.
Entre os procedimentos acima, destacamos as entrevistas como principal material para análise, uma vez que estas possibilitaram um diálogo aberto em torno de questões relevantes sobre a temática estudada.
Os sujeitos foram informados acerca dos objetivos, justificativas, propósitos e metodologia da pesquisa, assim como do respeito ético que permeou todo o trabalho, segundo as normatizações do Conselho Nacional de Saúde (Resolução nº 466), expressas no Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Assim respeitamos todos os princípios da ética em pesquisa com seres humanos.
Todas as entrevistas foram áudio-gravadas, com o consentimento dos sujeitos, transcritas e posteriormente analisadas. A análise dos dados foi realizada por meio de uma hermenêutica dos discursos dos entrevistados, fundamentada em conhecimentos das ciências humanas e sociais.
Resultados e Discussões
Primeiramente queremos enfatizar que estas discussões não esgotam as análises produzidas na pesquisa. Fizemos o esforço de sintetizar os dados para trazê-los a público e iremos focar a discussão acerca da (des)articulação entre as realidades das famílias e as políticas sociais públicas.
A partir do levantamento dos dados dos prontuários, identificamos que os motivos que justificam o abrigamento, como medida judicial, configuram o seguinte: dependência química dos pais e envolvimento com as drogas (21%), pais falecidos (9%), violência física (4%), saúde mental dos pais (6%), falta de cuidados (4%), abuso sexual (9%), abandono (11%), negligência (2%), violência sexual (1%), violência doméstica (2%), pais desaparecidos (4%), exploração sexual (7%), situação de rua (14%), trabalho infantil (2%) e pais em situação de presídio (4%)3.
Quanto aos arranjos familiares, levantamos os seguintes dados a partir da pessoa referência da criança/adolescente do abrigo: famílias com pai e mãe (4%); apenas mãe (39%); apenas pai (13%); família extensa (24%); inexistente (13%); irmãos (7%). Analogamente, estes dados acompanham os dados levantados pelo IBGE (2012) sobre a situação das famílias no cenário atual que aponta que houve uma redução da família tradicional, aumento das famílias monoparentais, e o índice de arranjos monoparentais femininas são maiores.
Do ponto de vista analítico, pode se identificar algumas premissas centrais nos discursos dos sujeitos acerca das políticas dirigidas às famílias com suas crianças e adolescentes em situação de abrigamento:
a) a pobreza marca a realidade destas famílias, embora não seja o fator que legalmente justificou o afastamento das crianças e adolescentes de suas famílias;
b) há um ciclo da violação de direitos que perpassa por várias gerações;
c) há falta de políticas públicas dirigidas a estas famílias que dê conta de suas realidades;
d) há a ausência de equipamentos para lidar com as demandas apresentadas;
e) as demandas quase sempre se colocam sob a forma de situação-limite, em condições de alta complexidade, em que já está instaurada a violação de direitos;
f) há grande dificuldade de articular um trabalho intersetorial em rede; e,
g) identifica-se que a única resposta do Estado para os problemas vivenciados no contexto familiar é o afastamento das crianças e adolescentes, o que cria uma cultura de institucionalização dos "des-ajustados". Iremos discorrer nossa discussão a partir destas premissas interpretativas.
Família e Situação de Pobreza
De acordo com os técnicos que foram entrevistados, a realidade destas famílias perpassa pela problemática da pobreza, embora a pobreza não constitua motivo legítimo para o afastamento das crianças e adolescentes do seu cotidiano familiar, conforme previsto no ECA (1990) e CONANDA (2006). Indagados se a questão da pobreza tem motivado o abrigamento, os entrevistados comentam:
"Acho que não só isso. Mas acho que a condição econômica desfavorecida é quase 100%. Mas acho que isso não é o determinante, porque há famílias muito pobres, mas que dão conta de garantir o básico tanto afetivo quanto físico e econômico". (Técnico4)
"Primeiro vou falar de um âmbito geral, não necessariamente daqui. Apesar de que aqui reflete o âmbito nacional também. A esmagadora maioria das crianças que estão em situação de acolhimento tem a questão da pobreza perpassando, com falta de acesso às políticas públicas, falta de acesso aos direitos fundamentais, direitos básicos, com a rede de apoio aos familiares que não conseguiu um trabalho efetivo. É exceção caso que não passe por isso. Então, tem a ver sim, somado a dependência química e outros fatores ligados a pobreza. Porque quando se tem uma família com uma condição socioeconômica favorecida, mesmo que se tenha uma situação de dependência química, às vezes tem um ou outro que apoia, ou vai pagar um cuidador durante o dia e a noite vai dormir num parente, vai pra uma clínica pra se tratar e consegue às vezes se cuidar, nem sempre, mas às vezes sim. Até ai é um pouquinho mais fácil". (Técnico)
"A pobreza não pode ser determinante. Mas sabemos que a consequência da vitimização da criança e a situação de risco que não se tem mais como dar uma resposta satisfatória vem da pobreza. A família não tem mais onde morar? Ela não tem mais onde comer? Vai se buscar uma estratégia por meio da política pública. Mas o Estado não dá". (Técnico)
"A grande maioria das famílias que são atendidas tem sim a questão da pobreza colocada, porque a vigilância social e o controle sobre essas famílias é maior. E a pobreza, às vezes, passa a questão econômica. A demanda maior que surge no CREAS são famílias de baixa renda". (Técnico)
Neste sentido, ainda destacam:
"Teve um caso de uma família mais bem de vida em que o pai da criança estava envolvido com drogas, e os avós pra não expor a família conseguiram a guarda sem nem ter que chegar a Vara, pra não se expor mesmo. As pessoas acham que entrar na rede é expor algo ruim". (Técnico)
Fica claro, portanto, que mesmo os profissionais do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente compreendendo que a pobreza não deve ser fator determinante do impedimento das famílias terem direito a cuidar de seus filhos, essa problemática ainda está colocada nesta realidade. A falha na garantia dos direitos das famílias, dos direitos a moradia, a saúde, a educação, a saneamento básico, etc., gera consequências no seio das famílias que repercutem no direito da criança e adolescente a convivência familiar e comunitária. Nesse aspecto destacam:
"A maioria destas famílias moram em bairros bem pobres, favelas ou mesmo na rua. Muitos são usuários de drogas. A maioria tem trabalhos informais, sem registro, bicos, então a maioria tem pai na família pedreiro, alguns trabalham com reciclagem, a maioria das mulheres ficam na casa, poucas trabalham na verdade, quando trabalham também é informal, então ou ajuda o marido, ou trabalha na casa de uma família, ajudando a fazer faxina, esses tipos de coisa. Mas acho que são quase todos informais os trabalhos. Tem poucos casos que eles são registrados e tudo mais, e a maioria moram em bairros periféricos, favela, não tem condições boas de moradia". (Técnico)
Esta realidade já vem sendo apresentada em outras pesquisas, como por exemplo, o levantamento nacional feito pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada), em 2003, que identificou que as causas que motivaram o abrigamento da expressiva parcela das crianças e adolescentes encontradas nas instituições de abrigos estavam relacionadas à pobreza, consequência da falha ou inexistência das políticas complementares de apoio aos que delas necessitam. A pesquisa apontou que 50,1% das crianças e dos adolescentes foram abrigados por motivos relacionados à pobreza - 24% exclusivamente em função da situação de pobreza de suas famílias; 86,7% tinham família, sendo que 58,2% mantinham vínculos familiares, com contato regulares; apenas 43,4% tinham processo na justiça; e somente 10,7% estavam em condição legal de adoção; 20% estava no serviço há mais de 6 anos. Para 35% das crianças e adolescentes a principal dificuldade para o retorno ao convívio familiar era também a situação de pobreza de suas famílias.
Com relação a isso, cria-se no imaginário social uma ideia de que a família pobre é desqualificada, perigosa, desestruturada, incompetente, fracassada, delinquente, dentre outros atributos de inferioridade. Como destaca Nascimento, Cunha e Vicente (2008), a sociedade passa a conceber as famílias pobres como desestruturadas e como aquelas que necessitam de intervenções de especialistas que venham regular e tutelar suas vidas, já que a legislação não pune mais a pobreza. A família pobre, portanto, ganha uma nova identidade: a de família negligente. Essa categorização está deslocada da crítica à realidade social que gera injustiça e violação dos direitos.
Ciclo de Violação de Direitos
Observamos que a violação dos direitos dos cidadãos, no caso específico se tratando da família, gera um ciclo de violação dos direitos que vai passando de geração em geração, chegando à criança e adolescente, em que não se garante o mínimo para suprir o básico para a sobrevivência. Na fala dos técnicos:
"Casos de ciclo de revitimização e reprodução, nós já estamos atendendo aqui a 3ªgeração. Já foi atendida a avó, a mãe, e agora a criança. É um ciclo. Onde está o problema? É possível que todas as famílias da cidade, as famílias carentes, sejam famílias que revitimizam seus filhos? Porque elas não dão conta do ponto de vista pessoal, individual? Não são portadoras de bons valores? Isso é uma questão estrutural, uma questão de pobreza". (Técnico)
"Vejo que são famílias em que o histórico também é o dos pais que passaram também por situação de negligência, violência, e que acaba reproduzindo com os filhos. O uso de drogas é muito comum. Às vezes problemas como doenças mentais, de uma classe econômica e social bem desfavorecida, que tem econômica e socialmente os direitos violados. Muitas vezes as mães são muito jovens, que foram mães na adolescência. O mesmo aconteceu com os avôs e avós dessas crianças. Vê-se um ciclo se perpetuando". (Técnico)
"Muitas vezes atendemos processos que a avó foi acompanhada aqui, a mãe passou aqui quando era criança, e o que se vê é uma reprodução que eles vivem, dessa violação dos direitos". (Técnico)
"Tem uma família que conheço a muitos anos que estamos com um processo, e eu conheço esta família há muitos anos, porque eu trabalhava com ela na rede. Sei que é uma família revitimizada, que a mãe é uma sofredora, que foi vitimizada pelo companheiro, e que teve filhos que foram abrigados e agora uma das moças teve neném, e já é a terceira geração. E não tem jeito, conversamos com a avó, a avó chorou e viu o limite, e viu que a mãe tinha um limite, então eu sofro, porque eu sei que não é justo. É um sistema que perpetua injustiça. É injustiça atrás de injustiça. E de certa forma a gente está nesse meio, nesse contexto. Nós somos um instrumento de injustiça ou somos um instrumento pra defender direitos? Não só o direito da criança, costumamos falar que estamos aqui pra defendermos o direito da família, também. Porque penso que como está ligado diretamente ao direito da família não é algo desvinculado". (Técnico)
"Normalmente o histórico destas famílias tende a se reproduzir. Agora a gente está acompanhando uma segunda geração de assistência, então está se repetindo na verdade. Então a maioria sim é um ciclo que está continuando". (Técnico)
Este ciclo de violação dos direitos, de exclusão dos bens culturais e econômicos, de miserabilidade e vulnerabilidade, de desfavorecimento, é perpetuado entre as gerações, constituindo-se num ciclo contínuo de reprodução de violações que acabam configurando uma situação extremamente difícil de romper e superar.
Esta reprodução da violação de direitos que transpassa pelas gerações, pode ser entendido pelo fato que, embora o artigo primeiro da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 declare que "todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos", e o discurso dos direitos humanos esteja carregado de um discurso de valorização do humano, no qual caberiam todos os humanos, Coimbra (2000) enfatiza que sempre estiveram fora dos direitos à vida e à dignidade, demarcados na Declaração, os segmentos pauperizados e percebidos como "marginais": os "deficientes" de todos os tipos, os "desviantes", os miseráveis, dentre muitos outros.
(Des) articulação das Políticas Públicas e da Rede Intersetorial
A relação entre a realidade destas famílias e o investimento, por parte do Estado, em políticas públicas faz-se importante, pois, sua falta permite que os impactos da lógica estrutural do capitalismo sejam diretos e drásticos no seio familiar. As violências, a miserabilidade, o desemprego, as relações de poder, a exclusão e desigualdade social, a exploração, a opressão, geradas pelo capitalismo se reproduzem justamente no cotidiano da vida doméstica, atingindo diretamente os membros das famílias, entre eles as crianças e adolescentes, sujeitos em peculiar condição de desenvolvimento.
Apesar de esta importância ser reconhecida nas políticas públicas, os sujeitos da pesquisa destacam que as políticas públicas, tanto municipais como de todo o país, são deficitárias. Tais políticas não têm dado conta das demandas que tem se apresentado. Destacam ainda que o ideal para um trabalho efetivo com os cidadãos que fazem uso de tais políticas é contarem com uma rede intersetorial de cuidados, que é o principal limite da cidade.
"Acho que temos políticas públicas muito deficitárias no Brasil pra garantir condições, acesso ao sistema de saúde de qualidade, pra se trabalhar alguns problemas que a família enfrenta. Acho que são famílias que também esbarram em entraves sociais e emocionais também. Então, alguém que nunca foi cuidado como vai garantir os cuidados adequados, não é? Acho que os entraves são esses". (Técnico)
"Acho que no Brasil todo não temos uma rede intersetorial. Acho que isso deveria ser ideal nesses casos. Porque um setor só como, por exemplo, a saúde, não vai fazer milagre. Então, acho que falta muito esse trabalho em parceria. Não falo só do município, acho que é um problema da maioria das cidades. Pois, não se tem uma rede preparada e é preciso ser um trabalho de rede. Então, isso falta e é um entrave importante". (Técnico)
"[...] a rede ainda tem suas dificuldades, temos dificuldades pra atuar em rede, e fica muito uma coisa de "ai essa é minha competência, essa é sua, isso é meu, isso é seu" [...]".(Técnico)
A fragilidade da rede ainda pode ser identificada quando um técnico destaca que a "rede muitas vezes falha. Algumas situações ainda não eram pra estar aqui".
Há anos que se tenta organizar uma articulação e um fluxo para se trabalhar em rede. Entretanto, podemos observar pelas falas e pelo acompanhamento das políticas públicas que ainda não se conseguiu configurar um trabalho em rede intersetorial no município, bem como esta dificuldade aparece na realidade do país de modo geral. O trabalho em rede intersetorial é de suma importância para se trabalhar as demandas das famílias, perpassando principalmente pelos serviços de saúde e assistência social, na busca ativa de promoção e prevenção, ou seja, devendo ser trabalhados de forma primordial na atenção básica de saúde (Programa Saúde da Família - PSF -, de modo especial), e na proteção social básica (com os Centros de Referências de Assistência Social) quando os vínculos familiares ainda não foram rompidos nem estão fragilizados e nem se instaurou uma situação de violação direitos, fazendo com que aquilo que é baixa complexidade não se torne alta e configure uma situação ainda mais difícil de superar. Compete, portanto, aos serviços que trabalham a atenção e proteção básica no território exercerem todos seus esforços, e especialmente que o Estado invista nessas políticas, para que aquilo que é baixa complexidade não se transforme numa situação ainda mais complexa.
Em estudo acerca da centralidade das famílias no âmbito das políticas públicas, Souza e Souza (2011) puderam observar que, para os profissionais da saúde, o princípio da intersetorialidade é apontado como essencial para alcançar os objetivos do PSF e do sistema de saúde em geral (SUS). Assim, as pesquisadoras afirmam que as redes territoriais devem ser priorizadas como redes de produção de saúde, possibilitando aos profissionais e, principalmente aos usuários do Programa Saúde da Família, desfrutar de ações articuladas e não fragmentadas, tanto entre os setores da saúde pública quanto destes em relação a outras (Assistência Social, Educação, Meio Ambiente, Habitação e outras Secretarias).
O fato de não se configurar o trabalho em rede intersetorial no município não se dá apenas pelo que destacamos, apesar de a rede já instaurada poder buscar a articulação dos serviços, mas também pela insuficiência de serviços no município para atender a determinadas demandas, como por exemplo, as demandas de dependência química que não contam com serviços de saúde mental que trabalhem com álcool e outras drogas, o que implica sérias dificuldades para o trabalho com estas famílias, pois, o maior índice de casos de acolhimento é por conta de dependência química por parte dos pais, conforme apontamos acima.
Sobre a realização do trabalho em conjunto, em parceria, e articulação dos serviços os técnicos comentam:
"Agora tem acontecido mais, por conta do CREAS que está sendo bem parceiro. Com o CRAS sempre tivemos um pouco mais de dificuldade, às vezes precisávamos muito, até mesmo pra conseguir alguma informação de uma família. Por que quando a gente vai visitar está de um jeito, e muitas vezes não avisamos que vamos, e pegamos aquela parte que presenciamos. Já o CRAS tem informação de tudo por ali, do PSF, de todo território, de visinhos. Já pegamos informações, que não identificamos em nossas visitas, mas a partir deles, soubemos de uma conhecida, que apareceu no grupo que eles fazem. Então, esse contato com o CRAS é muito importante para o trabalho". (Técnico)
"O trabalho de rede é muito difícil. Embora muita coisa tenha mudado. Os setores têm procurado fortalecer mais as parcerias, mas isso é um problema da estrutura do Brasil, de políticas públicas. Muitas vezes a demora, o volume de trabalho. Tudo isso são fatores que vão dificultando". (Técnico)
Não obstante, a rede venha buscando articular melhor as parcerias entre os serviços, ainda se tem empecilhos e dificuldades, por conta da falta de investimento do poder público em políticas públicas para se garantir um trabalho intersetorial, conforme podemos observar:
"Na área da saúde estamos precisando muito de uma articulação. Mas é muito difícil. Dois ou três casos que tentamos fazer uma reunião de rede, em que estávamos precisando da área da Saúde, afinal aqui 90 e pouco por cento do motivo de abrigamento é por conta de dependência química, portanto, é área da Saúde, e estávamos tentando fazer uma reunião de rede, algumas vezes até conseguimos, mas não conseguimos a continuação desse acompanhamento por eles. Por exemplo, uma adolescente que é irmã de algumas crianças que estão aqui, está na sexta gestação com 17 anos de idade, usuária de drogas e numa situação deplorável, que não sabemos onde vai parar, soro HIV positivo, e tentamos uma articulação com a Saúde e a Saúde diz que ela precisa passar pelos procedimentos do CAPS AD, ir à triagem, voltar, passar pelo psicólogo, voltar pra passar pelo médico. E ela não irá, por mais que essa mãe esteja tentando, junto, ela não vai, chega no dia do atendimento ela está usando drogas, não volta pra casa, e ai trava tudo. Então, com a Saúde está bem difícil. Tivemos uma conversa com a Saúde Mental pra tentar amarrar mais esse trabalho em conjunto, pra tentar uma nova forma de trabalho". (Técnico)
Outra dificuldade apontada pelos técnicos que, segundo eles, dificulta a articulação dos serviços e a própria realização do trabalho refere-se ao grande volume de trabalho e o baixo contingente de profissionais. Isto também é compartilhado por outros técnicos que apontam a falta de funcionários, a falta de investimento nas políticas, a falta de estrutura, a ausência de serviços e as questões institucionais como os empecilhos na realização do trabalho junto à família e a impossibilidade de garantir o tempo mínimo da criança/adolescente no abrigo. Além da remuneração dos servidores que revela que também são desvalorizados.
"As dificuldades de trabalhar com as famílias, muitas vezes é por quantidade de funcionário, porque quanto mais funcionários, conseguiríamos melhor trabalhar com as famílias". (Técnico)
"São profissionais comprometidos, que estão engajados no trabalho, mas são questões institucionais, é uma demanda muito maior que a capacidade e a estrutura pra se trabalhar". (Técnico)
"E sabemos que não é por falta de vontade dos servidores, mas por ausência de serviços, de estrutura, de profissionais". (Técnico)
Acerca do trabalho junto às famílias e seus filhos, anteriormente a esta nova reestruturação que está iniciando, conforme apontado nas falas anteriores, iremos expor nosso diálogo junto a um técnico que detalha essa problemática:
"Pesquisador - Você disse que antes de começar a acontecer estas reuniões em equipe e articulação da rede, isso não acontecia antes.
Técnico - Não acontecia. Na verdade o CREAS fazia o trabalho dele, e muitas vezes a criança estava aqui e nunca passou pelo CREAS, veio direto.
P - Muitos casos?
T - A maioria dos casos não passou.
P - A família também não passou pelo CREAS?
T - Não. Nada. Tem casos que nem no CREAS tinha prontuário destas famílias.
P - Não houve nenhum trabalho?
T - Nada. Pulou todas as etapas que deviam ter acontecido.
P - Você tem uma porcentagem?
T - Mais de 50%. Principalmente dos acolhimentos que já fazem algum tempo, que foi em 2009, por ai. O mais antigo que temos é de 2006. Esses casos não tiveram nenhum acompanhamento anterior. Foi mais do Conselho Tutelar mesmo.
P - Quem que fazia o abrigamento?
T - A maioria dos abrigamentos que temos é do Conselho Tutelar. Principalmente os mais antigos. Hoje em dia praticamente todos, os mais atuais, são pelo Fórum. Mas antigamente, e fizemos um levantamento ano passado pra passar pro Conselho Tutelar sobre o porquê as crianças foram abrigadas, a maioria foi pelo Conselho Tutelar. Porque a nova organização do Conselho Tutelar é recente, de apenas casos extremos fazer acolhimento emergencial sem passar por nada".
Este tipo de prática do Conselho Tutelar (CT) era uma prática corriqueira e ainda perdura na concepção de alguns conselheiros tutelares. A resposta às questões familiares era a retirada da criança/adolescente da família e sua institucionalização. Com o início do processo de reordenamento institucional, o abrigo estudado começou a fazer resistência a esta prática do CT, antes mesmo da Lei nº 12.010/2009 entrar em vigor, pois, entra em vigor a partir de 2010. Esta Lei preconiza que apenas o poder Judiciário pode determinar o afastamento da criança ou adolescente de sua família de origem e ser abrigada, a não ser em casos de extrema exceção em que requerem ações imediatas para retirar crianças e adolescentes de situações as quais a vida da criança encontra-se em risco, nesse caso sendo encaminhados a uma Casa de Passagem. Neste sentido, o abrigo não aceitava o abrigamento encaminhado por um CT quando não houvesse vaga no abrigo, mesmo sob protestos dos CTs, visando respeitar os documentos normativos que preveem o máximo de 20 crianças/adolescentes num abrigo, bem como se posicionar frente àquele tipo de prática exercido pelo CT de institucionalização, quase compulsório, de crianças e adolescentes, sem a atenção e cuidado prévio da família previsto nas políticas públicas. Com a promulgação da Lei nº 12.010/2009, que também determina que o afastamento da criança e do adolescente do convívio familiar não pode exceder a dois anos − sendo necessário, portanto, um trabalho significativo com a família de origem para a reintegração familiar (nuclear ou extensa), ou com sua impossibilidade, encaminhamento para família substituta −, há que se exercerem todos os esforços para garantir este direito e de modo primordial na família de origem. E para garantir a reintegração à família de origem é preciso que esta família já venha sendo acompanhada pela rede anteriormente ao abrigamento, fato que não constava nos casos de abrigamento realizados pelo CT.
Isto ainda é identificado quando percebemos que no discurso das famílias entrevistadas o único ator da rede a quem eles se referem e que demonstram conhecer, em certa medida, são os Conselheiros Tutelares, entre os demais atores ainda citam o judiciário, mas de forma impessoal, e os demais agentes representam a figura da instituição do abrigo.
Ainda no que se refere ao acompanhamento das famílias anterior ao abrigamento, houveram casos que deveriam ter sido trabalhados pela rede, seja pela saúde, assistência social, etc., que foram deixados de lado e ficaram esquecidos por muito tempo, não tendo sido realizado nenhum trabalho e nenhum acompanhamento com estes familiares. Isto implicou em tomar a institucionalização como única medida possível para resolução dos problemas familiares (pudemos ver com as histórias das famílias), e na dificuldade, atualmente, do estabelecimento de vínculo com estes familiares, os quais os casos estão sendo retomados. Assim cria-se uma cultura de institucionalização na qual as famílias encontram como única resposta do Estado para suas problemáticas a intervenção para o afastamento e a internação de suas crianças e adolescentes em instituições de acolhimento.
Vemos, assim, que a violação de direitos pode ocorrer no seio da família quando esta se encontra em situação de vulnerabilidade e por isso ela tem necessidade de acesso e inclusão social, que no caso destes cidadãos lhes foi negado. Conforme enfatiza Santos (2013), embora seja incontestável a linguagem de dignidade humana na hegemonia global dos direitos humanos, a grande maioria da população é apenas objeto desse discurso e não sujeitos de direitos humanos de fato.
Para finalizar é importante destacar que embora todas essas problemáticas estejam colocadas na realidade dos familiares entrevistados, estas famílias entendem que o abrigo garantiu uma vida digna a seus filhos, permitindo que tivessem onde viver, comer, dormir, estudar, trabalhar, etc., se tornando pessoas responsáveis e que lutam por uma vida digna de ser vivida.
Considerações Finais
Embora a discussão trazida no texto possa parecer apenas de denúncia e, por vezes, pessimista, o que procuramos fazer foi trazer os relatos dos sujeitos que atuam no âmbito das políticas públicas, bem como dos familiares, quando indagados sobre tais questões, e ainda trazer à tona a realidade vivenciada no município que, muito provável, se assemelha das de muitos outros lugares. Entretanto, conforme apontado na metodologia, sempre buscamos estar presente em espaços de discussão e construção de políticas públicas dirigidas às crianças e adolescentes e suas famílias, pois, acreditamos que são em espaços coletivos como estes que permitem que políticas sejam problematizadas, elaboradas e implementadas a fim de que se reduza ou cesse os impactos causados pela lógica da estrutura social na vida cotidiana.
As situações que levam ao abrigamento são reflexos da falta de investimento nas políticas de atenção à família, acarretando, portanto, em situações que fogem ao controle dessas famílias e que as impossibilitam de terem uma vida digna, com seus direitos garantidos para cuidar de seus filhos. Sendo essas famílias, portanto, vítimas das condições sociais e objetivas de vida em que impera a exclusão e miséria sociais.
A intervenção para o afastamento da criança e adolescente de seu convívio familiar revela a lógica da estrutura social que impede as famílias de cuidarem de seus entes por falta de investimento significativo capaz de proporcionar a essas famílias o apoio necessário para que possam superar suas vulnerabilidades e exercerem suas funções de cuidado, proteção e socialização de seus filhos. Revela ainda não apenas a violação dos direitos da criança e adolescente por parte das famílias, mas também por parte do Estado que não garante o direito à convivência familiar, tendo a institucionalização como a única medida para a resolução dos problemas familiares, e também a violação dos direitos das famílias que se encontram em situação de vulnerabilidade devido à lógica excludente da estrutura social que favorece uma minoria e exclui a maioria da população dos bens econômicos e culturais.
A insuficiência de investimento em políticas públicas, em serviços e equipamentos, acarreta na não articulação dos serviços num trabalho em rede intersetorial. Pois, as demandas que são trabalhadas num setor geralmente esbarram em limites do serviço prestado o qual caberia a outro serviço e/ou equipamento. Todavia, mesmo os serviços já instaurados ainda encontram dificuldades em articular um trabalho em rede intersetorial e criar um fluxo de atendimento e acompanhamento para seus usuários.
Neste sentido, as problemáticas enfrentadas por estas famílias ainda estão por serem cuidadas. Cabe ao poder público, portanto, preocupar-se com os cidadãos e investir, de modo prioritário, nas políticas de atenção às famílias para que as crianças e adolescentes possam ter garantidos, como enfatiza o CONANDA, sua qualidade de vida tendo no vínculo familiar sua base de cuidado e socialização.
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Recebido em 11/03/2014.
Revisado em 12/05/2014.
Aceito em 17/05/2014.
1 Dentre estes textos podemos citar: Estatuto da Criança e Adolescente (1990), Plano Nacional de Promoção, Proteção e Defesa do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência Familiar e Comunitária (2006) e, mais recentemente, a Lei nº 12.010/2009.
2 Destacamos que tanto a Vara da Infância e Juventude como a Vara da Família são compostas pelo mesmo quadro de técnicos.
3 É importante destacar que estes dados se referem ao todo (52 casos de um abrigo de 60 vagas), em que separamos cada um dos motivos justificados nos prontuários de cada criança e adolescentes. No caso de dependência química, por exemplo, aparece em cerca de 90% dos casos. E ainda, na maioria dos casos, envolve não apenas um, mas vários dos motivos destacados. Outro fator importante de destacar é que decidimos resguardar a distinção entre violência doméstica de violência física que estavam nos prontuários sobre as crianças e adolescentes. Entretanto, na literatura entende-se por violência doméstica: agressão física, psicológica, moral e abuso sexual.
4 Identificaremos as falas não identificando o local onde os técnicos trabalham, para resguardar suas identidades, embora seja possível localizar de onde se fala por meios dos discursos. Essa atitude ainda se refere ao sigilo quanto aos nomes que podem aparecer nas demais falas.