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Revista Psicologia Política
versão impressa ISSN 1519-549X
Rev. psicol. polít. vol.14 no.31 São Paulo dez. 2014
ARTIGOS
De figurantes a atores: o coletivo na luta das famílias dos autistas
From extras to actors: the collective in the struggle of families of autistic individuals
De extras para actores: el colectivo en la lucha de las familias de las personas autistas
De figurants à acteurs: le collectif dans la lutte des familles des personnes atteintes d'autisme
Márcia F. Lombo MachadoI; Soraia AnsaraII
IMestre em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política da Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil. s.ansara@yahoo.com.br
IIDoutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade de São Paulo, professora da Universidade Estácio de Sá e docente no Programa de Pós-Graduação em Mudança Social e Participação Política da Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil. marciaflm@gmail.com
RESUMO
Este artigo trata da formação de identidades coletivas centrando-se nas famílias de pessoas com autismo. A chegada do autismo determina a mudança radical da vida cotidiana, das relações sociais e das expectativas dessas famílias, contudo, torna-se um fator que as impulsiona à organização e à luta pela igualdade de condições de vida e concretização de seus direitos. O estigma, a memória compartilhada e as lutas se apresentam como a base de sua identidade social. Valendo-se dos conteúdos teóricos de Tajfel, Goffman e Martín-Baró, o artigo procura evidenciar que a mobilização e a exposição de suas reivindicações fazem as famílias emergirem na cena pública como atores sociais.
Palavras-chave: Identidade, Família, Autismo, Deficiência, Grupos Humanos.
ABSTRACT
This paper deals with the formation of collective identities focusing on the families of people with autism. The arrival of autism is determinative of a radical change in everyday life, social relations and expectations of the families, yet it becomes a factor that drives them to the organization and struggle for equal living conditions and fulfillment of their rights. Stigma, shared memories and struggles are presented as the foundation of their social identity. Based on the theoretical tenors of Tajfel, Goffman and Martin-Baró the article seeks to highlight that the families emerge as social actors when mobilizing and addressing their claims to the public.
Keywords: Identity, Family, Autism, Disability, Human Groups.
RESUMEN
Este artículo se refiere a la formación de identidades colectivas, centrándose en el grupo de familias de personas con autismo. La llegada del autismo determina el cambio radical de la vida cotidiana, las relaciones sociales y las expectativas de las familias, sin embargo, se convierte en un factor que las impulsa hacia la organización, la lucha por la igualdad de condiciones de vida y la realización de sus derechos. El estigma, la memoria compartida y las luchas se destacan como fundamentos de la identidad social. Utilizando los contenidos teóricos de Tajfel, Goffman y Martín-Baró, el artículo intenta demostrar que al movilizarse y hacer públicas sus reclamaciones, las familias emergen como actores sociales.
Palabras clave: Identidad, Familia, Autismo, Discapacidad, Grupos Humanos.
RÉSUMÉ
Cet article traite de la formation des identités collectives des familles de personnes atteintes d'autisme. L'arrivée de l'autisme détermine le changement radical de la vie quotidienne, des relations sociales et les attentes des familles, cependant, il devient un facteur qui pousse l'organisation et la lutte pour l'égalité des conditions de vie et pour la réalisation de leurs droits. La stigmatisation, la mémoire partagée et les luttes sont les éléments soulignés comme la base de l'identité sociale. En considérant les écrits de Tajfel, Goffman et Martín- Baró, cet article démontre que la mobilisation et l'exposition de leurs demandes font émerger des familles comme acteurs sociaux sur la scène publique.
Mots clés: Identité, Famille, Autisme, Handicap, Groupes Humains.
Introdução
Este artigo se origina em uma pesquisa de mestrado sobre o cotidiano de famílias de pessoas com autismo que buscou compreender os caminhos delineados por esse grupo para obter políticas públicas capazes de suprir as necessidades de seus filhos, revelando as questões da apropriação dos espaços da cidade na vida cotidiana e na correlação de forças do processo de luta por cidadania.
Os aspectos sociais e psicopolíticos de grupos específicos que carregam o estigma da deficiência têm sido deixados à margem do debate sobre a democratização do espaço e seus usos, bem como sobre as necessidades e relações sociais das famílias de pessoas com autismo.
Nas linhas que seguem, nos limitamos a discutir parte da análise de uma pesquisa mais ampla, abordando aspectos que dizem respeito à construção de uma identidade coletiva do autismo, à consciência política e às estratégias de mobilização coletiva utilizadas pelas famílias de pessoas com autismo, que têm iniciado um processo de reconhecimento e legitimação de suas lutas por parte do Estado.
A pesquisa se valeu de depoimentos de atores sociais envolvidos no tema e analisou as falas dos sujeitos pesquisados, obtidas por meio de um grupo focal realizado com seis mães de pessoas com autismo residentes em diferentes cidades, engajadas no combate ao preconceito e qualidade de vida, e que desempenham mais de um papel na luta por direitos e mudanças sociais nas associações, e/ou em movimento social, e/ou nas redes sociais.
Ao longo do texto são evidenciados os processos intersubjetivos determinantes à formação de uma identidade grupal expondo sua relevância na discussão sobre participação social e política de grupos estigmatizados. A discussão se detém na formação da identidade social das famílias de pessoas com autismo como singularização de uma prospecção mais ampla, ancorada na memória do grupo de pessoas envolvidas nas questões da deficiência. Seus aspectos identitários vêm de uma ecologia comum e memórias compartilhadas, expressas na experimentação da discriminação, segregação, banimento e invisibilidade social. "Onde a memória persegue a identidade, a história se constrói como inventário das diferenças, numa tensão que envolve de forma permanente o indivíduo contemporâneo" (Decca, 1992:135).
O estudo do tema em uma perspectiva social e psicopolítica justifica-se particularmente na realidade brasileira pelas investidas das famílias de pessoas com autismo para vir a público, tomar a palavra e revelar as lacunas de sua convivência em sociedade, logrando a atenção das esferas midiáticas e do poder público. Sua demanda inicial é seu próprio reconhecimento como um grupo com perfil específico e necessidades comuns em diferentes gradações, e que se compõe dualmente pelas pessoas com transtorno do espectro do autismo e por seus familiares. Nesse contexto e vivendo uma modificação radical de vida, a família, além de cuidadora, passa a ter a inserção social do filho com autismo em condições de isonomia como meta, empenhada em uma luta cotidiana tanto para suprir suas necessidades emergenciais quanto para construir caminhos que amparem o futuro dos filhos sobre direitos alicerçados e cumpridos.
O autismo é um conjunto de alterações caracterizadas por modificações qualitativas com prejuízos severos e invasivos nas áreas de interação social e comunicação, e por um repertório de interesses e atividades restrito e estereotipado (Tamanaha, Perissinoto & Chiari, 2008). Sua categorização psicofísica é recente, a partir da descrição da síndrome em 1943. Inicialmente, os pais foram apontados como culpados pelo isolamento dos filhos, tendo que suportar por décadas a carga agregada de um estigma oficializado pela ciência, e que, mesmo com o abandono da hipótese, ainda é mencionado pelas famílias entre os desafios de seu cotidiano.
Os sistemas sociais em sua maioria são constituídos por indivíduos que diferem entre si de variadas maneiras constatadas sem dificuldade pela simples observação. A partir de tais diferenças são categorizados pelos próprios pares de seu sistema em razão da necessidade de diretrizes de conduta em seu ambiente social (Tajfel, 1984). A necessidade de singularização é a base identitária de um grupo. Opondo-se ao que é generalizante para centrar-se no específico, conhecido e vivido gera benefícios e fortalecimento suprindo necessidades de diversas ordens.
Para tratar da constituição de identidades sociais e estigma este texto apoia-se nos enunciados de Tajfel (1984) e Goffman (1988), enfatizando os aspectos da memória sobre os temas da apropriação e ressignificação do passado marcando tempo e lugares com base em Halbwachs (1950/2012), Jelin (2002, 2003), Nora (1993) e Pollak (1982, 1989). Discute ainda aspectos de consciência política lançando mão dos referenciais teóricos de Martin-Baró (1998).
Camadas de uma Memória Imposta de Incapacidade e Segregação
Enquanto o estranho está a nossa frente, podem surgir evidências de que ele tem um atributo que o torna diferente de outros que se encontram numa categoria [...] deixamos de considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída (Goffman, 1988:12).
A discussão que envolve o cotidiano das famílias de pessoas com autismo e as mobilizações que articularam nos últimos anos demandam compreender as forças e conexões sobre e entre essas famílias produzindo motivações e substituindo paradigmas.
Em uma trajetória que remete às origens da própria civilização as pessoas com deficiência e suas famílias passaram por períodos de lenta evolução no modo de serem vistas e tratadas, estando sujeitas a práticas sociais que inicialmente destituíam-nas de valor e dos traços de igualdade com o grupo humano. A relação entre pessoas com e sem deficiência em sociedade era em princípio baseada no não contato, o que manteve a deficiência associada à exclusão de ambientes sociais e condicionou o tempo das mudanças necessárias para alcançar estágios de maior inserção na sociedade a acelerar apenas há poucas décadas.
Paradigmas de segregação podem ser relacionados a cada período histórico e suas práticas discriminatórias. As experiências acumuladas sob os signos da rejeição e do fracasso pelas pessoas com deficiência é marcante desde a Antiguidade, quando o abandono e o extermínio eram legitimados, em vista de os valores sociais privilegiarem os fisicamente vigorosos eliminando desde bebês os feios, disformes e franzinos (Otto M. Silva, 1986 citado por Puhlmann, 2008). Nas obras de Platão e Aristóteles o termo "exposição" foi usado como um eufemismo para admitir as práticas de abandono (Pessotti, 1984), e em Roma a nomenclatura era constructo do estigma de crianças com deficiência, cuja morte intencional não era proibida por lei quando os nascidos fossem "mutilados" ou "monstruosos" (Puhlmann, 2008:19).
Ao considerar que o estigma, segundo Goffman (1988), refere-se a um atributo profundamente depreciativo, que, no entanto, não é intrínseco da marca no indivíduo, mas calcado na esfera das relações, outras percepções sociais determinaram modificações nas formas de convivência entre pessoas com e sem deficiência. A doutrina cristã alterou significativamente essa relação a partir do século III, quando bebês malformados passaram a ter direito à vida e pessoas com deficiência intelectual ganharam reconhecimento como "criaturas de Deus" e dotadas de alma (Pessotti, 1984; Silva, 1986 citado por Puhlmann, 2008).
Em um contexto reforçado por crendices e pela noção de castigo como veículo de remissão de pecados, dar à luz uma criança com deficiência equivalia a uma punição divina. Em troca do pagamento de indulgências e reparação espiritual pelas famílias, as instituições religiosas ofereciam abrigo e isolamento (Puhlmann, 2008). Essa realidade revela o estigma que mantinha as pessoas com deficiência sob as chancelas de vergonha, inferioridade e perigo, reduzindo-as a algo não completamente humano, diminuindo também suas chances de vida (Goffman, 1988).
Por séculos a culpabilização, o asilamento e o abandono nas ruas, quando as famílias não tinham como pagar à Igreja, seguiram em vetor ascendente, atrelados ao aumento do número de pessoas com deficiência em virtude das precárias condições de saneamento e higiene, casamentos consanguíneos e promiscuidade (Puhlmann, 2008).
Até o século XVII as pessoas com deficiência mental eram associadas à ideia de possessão e envoltas em um imaginário mítico que as submetia a práticas cruéis a fim de expulsar demônios e depurar suas almas (Pessotti,1984; Puhlmann, 2008). "A ambivalência caridadecastigo é marca definitiva da atitude medieval diante da deficiência mental" (Pessotti, 1984:12). Assimilada e reproduzida por todas as sociedades ocidentais, a ambivalência figura como elemento de identidade que ultrapassa o âmbito de classes sociais e outras categorizações, sendo assumida pelo próprio Estado, como acontece no Brasil, uma vez que este não investe em ações e atenção às pessoas com deficiência e suas famílias, delegando essa tarefa à filantropia (Carvalho, 2002).
A condição de inabilidade para serem socialmente aceitos, assim como a caracterização das pessoas com deficiência como inúteis, nunca foi interrompida, sobretudo em relação à deficiência intelectual. Carregaram juntamente com suas famílias o estigma imposto segundo o ponto de vista dos costumes sociais, mantendo o não contato como mecanismo de autopreservação da comunidade tida como saudável e virtualmente capaz (Goffman, 1988).
Este processo de autopreservação reflete-se numa memória social decorrente das experiências vividas ou herdadas pelos grupos sociais ao longo das gerações como assinala Pollak (1992). "A memória é, em parte, herdada, não se refere apenas à vida física da pessoa. A memória também sofre flutuações que são função do momento em que ela é articulada, em que ela está sendo expressa. As preocupações do momento constituem um elemento de estruturação da memória" (Pollak, 1992:4).
Quando a Ciência passa a explicar os males do corpo e da mente humanos um novo paradigma estabelece a correção do indivíduo como possibilidade para sua integração social, fazendo progredir na Europa a institucionalização, que além das pessoas com deficiência manteve entre muros aqueles com doenças incuráveis, ou contagiosas, e os de comportamentos não aceitos (Puhlmann, 2008). Os processos mencionados não são lineares, mesclando-se tanto em épocas quanto em culturas, haja vista os extermínios no nazismo ou as remanescentes práticas de comunidades nativas que se mantiveram isoladas.
Somente no século XX essa concepção começa a ser modificada, sobretudo com o início de movimentos sociais com as pessoas com deficiência. Na órbita dessa mudança estiveram questões de relevância social com forte protagonismo do período das guerras que aliaram o poder de destruição de novas armas à extensão de seus efeitos. Combatentes que retornavam com mutilações e outras sequelas físicas eram heróis, não mais monstros ou castigados pela mão divina, adquirindo voz e visibilidade enquanto suas famílias angariavam respeito. Aliada a uma realidade social mais democrática em várias nações, notadamente as hegemônicas do pós-guerra, forças sociais diferenciadas passaram a exercer pressões capazes de gerar um embrião de identificação e mobilização logrando mudanças nas relações sociais entre as pessoas com e sem deficiência, tendo um novo instrumento balizador de condutas e reivindicações: a Declaração dos Direitos Humanos (1948).
O que leva o indivíduo a ser estigmatizado não é a marca pessoal, nem tampouco uma experiência específica, mas a história cumulativa de fracassos em ter ou em manifestar atributos desejáveis no meio social que o cerca assim como a rejeição às tentativas de pertencer aos grupos sociais convencionais (Kaplan & Liu, 2000). As identidades pessoais estigmatizadas como motivadoras à participação em movimentos sociais estariam relacionadas "à antecipação e experimentação das implicações de autovalorização" (Kaplan & Liu, 2000: 215), que reprogramam o indivíduo perante o enfrentamento com a sociedade e vice-versa.
O marco na conquista de novas perspectivas e mudança de paradigmas foi o Ano Internacional das Pessoas Deficientes criado pela Organização das Nações Unidas, em 1981. Pela primeira vez a referência ao indivíduo usou o substantivo pessoa como designação primeira e deficiente passou a ser um adjetivo à pessoa designada (Sassaki, 2002). A mudança etimológica, além de uma troca de foco, traz a legitimação do humano em meio ao abandono e à animosidade expressos na especificação substantiva do estigma. Já que o discurso cotidiano é gravado por metáforas e representações cujo significado original carregamos sem pensar, um novo discurso restaura identidades, conduzindo a novas significações (Goffman, 1988).
Dados sobre deficiência levantados pela primeira vez na década de 1970 pela Organização Mundial da Saúde mensuravam sua ocorrência em 10% da população mundial. Na análise das conquistas dos movimentos sociais, cabe atentar para esses dados revelando os custos de um expressivo contingente à parte das possibilidades da mais valia e das perspectivas de mercado como possíveis influências contra a exclusão das pessoas com deficiência, melhor dizendo, de parte delas, aquelas com o potencial para o trabalho e o consumo. A discrepância existente entre identidade social virtual e identidade social real descrita por Goffman (1988) sofre correções e reclassifica faixas do grupo de pessoas com deficiência em outra categoria, como a anterior, igualmente prevista socialmente, mas com ganhos positivos na avaliação social. Tal correção não foi estendida àqueles com deficiência intelectual e transtornos severos.
As pessoas com autismo permaneceram referidas como deficientes mentais ou psicóticas, em meio a outros até hoje alijados de atenção e políticas públicas. Fragmentos não montados de uma categoria indistinta na massa descartada da sociedade. No Brasil, o autismo era pouco mais que um dentre os tantos vocábulos guardados nas publicações de saúde mental do qual a maioria jamais ouvira. A palavra que não remetia a uma categoria não revelava um rosto para o autismo.
Deficiência, Memória e Reabilitação de uma Identidade
Ao menos em nossos tipos de sociedade, um indivíduo se esforça por obter um conceito ou imagem satisfatória de si mesmo (Tajfel, 1984:291).
A construção de um novo cenário mundial em acordo com paradigmas de convivência e reconhecimento de direitos é recentíssima e bem marcada em rituais de comemorações que se estabeleceram como veículos de memória modificando os sentidos do passado e ampliando a conscientização entre as próprias pessoas com deficiência e suas famílias. A formação de grupos diferenciados por suas particularidades mantém o que veio alinhavado no tempo de forma que, para superar o passado, é preciso evocá-lo a fim de legitimar a justiça de suas lutas (Jelin, 2002).
O Ano Internacional das Pessoas Deficientes gravou na memória da sociedade a legitimação do grupo e o início da construção de uma contra-memória à trajetória de milênios, superando preconceitos e segregação históricos (Pollak, 1992). A posterior criação de um Programa Mundial de ações voltadas às pessoas com deficiência pela ONU em 1982, e a celebração do Dia Internacional da Pessoa com Deficiência, a partir de 03 de dezembro de 1998 significam mais que publicações e datas. Revelam a constituição de símbolos que criam marcas no território do tempo e conferem materialidade entre o que foi o passado e o que se faz do presente, memória, esse "elo vivido no eterno presente" (Nora, 1993:9; Jelin & Langland, 2003).
Inicia-se um movimento contrário ao modelo humano dominante para os fenômenos sociais em que as atitudes e crenças surgem como o produto secundário das tendências profundamente enterradas de seu passado evolutivo (Tajfel, 1984) e que elucida a importância dos processos de apropriação de datas e territorialização simbólica na ressignificação do passado e na formação de uma identidade coletiva. A constituição do grupo passa a ser mediação à consciência política impelindo à luta por cidadania e participação, e estabelecendo mudanças na convivência social e na apropriação do espaço público (Gohn, 2007; Paoli, 1991).
No ano de 2008, quando o Brasil ratificou a Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência promulgada pela ONU em 2006, foi pela primeira vez celebrado o Dia Internacional da Conscientização para o Autismo, em 02 de abril, data que se tornou a maior referência do movimento que cresceu mundialmente ao longo da primeira década do século XXI, superando amplamente as mobilizações comemorativas e reivindicatórias das pessoas com autismo e suas famílias em torno do dia 18 de junho. Esta data fora criada anos antes pela organização norte-americana Aspies for Freedom e, mesmo com certa controvérsia ao ser evocada como o Dia Mundial do Orgulho Autista, fez nascer no Distrito Federal o Movimento Orgulho Autista Brasil - MOAB, um projeto pioneiro na convergência das famílias à participação política pelos direitos das pessoas com autismo, promovendo ações de visibilidade como o Prêmio Orgulho Autista, em homenagem anual aos que se destacam em favor da causa.
A disputa de datas e focos revela a dimensão do grupo das pessoas com autismo e suas famílias e a oficialização pela ONU veio mostrar um coletivo cujas demandas foram reconhecidas, desembocando na decisão de levar suas prerrogativas ao mundo, permitindolhes construir uma identidade com novo significado. Demonstra ainda que a pressão, principalmente quando transversal às camadas socioeconômicas, agrega marcos significativos para uma coletividade, com valores simbólico e político expressos nos rituais da comemoração e no reconhecimento e legitimação por parte do Estado (Jelin & Langland, 2003).
Os rituais e as comemorações são formas eficazes de garantir o caráter comum das memórias coletivas sociais, contribuem para aumentar a coesão dos membros de um grupo ou sociedade (Pennebaker & Basanick, 1998; Connerton,1999) bem como para tornar visíveis as reivindicações, denúncias e aspirações dos grupos estigmatizados. A memória como elemento que constitui a identidade possibilita a construção de uma referência à qual se possa remeter, permitindo "manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seus lugares respectivos, sua complementaridade, mas também as posições irredutíveis" (Pollak, 1989:9).
No Brasil a consolidação dessa identidade acompanhou as datas internacionais e se intensificou nas semanas próximas ao dia 2 de Abril de 2010. Na mesma época, em 2011, a maior movimentação protagonizada pelas pessoas com autismo e suas famílias ocupou ruas, escolas, parques e outros lugares passíveis de mostrar o autismo à população. O resultado de um trabalho persistente das famílias ao longo de anos teve alcance nacional e a cor azul, adotada internacionalmente como símbolo do autismo, surgiu na iluminação de monumentos e edifícios, incluindo o Congresso Nacional e o Cristo Redentor, símbolos políticos e culturais da nação. As palavras de ordem nas celebrações eram da luta por investimentos em saúde, educação e pesquisas visando melhorias nas condições de vida das pessoas com autismo.
Uma Corrida e Caminhada pelo Autismo, organizada pela ONG Autismo & Realidade - A&R, da cidade de São Paulo, ocupou avenidas e uma das pontes mais emblemáticas da capital paulista na manhã do dia 03 de abril de 2011. Divulgada nos sites e grupos virtuais a notícia mobilizou pessoas de diferentes cidades e de outros estados. A iniciativa da Associação em promover um evento esportivo no intuito de conscientizar a população se abriu à participação livre das pessoas que manifestaram o desejo de vivenciar e ocupar aqueles espaços públicos como um pedaço seu, testemunho da luta de anos, por vezes décadas, ao lado dos filhos. Perante o grupo, o foco voltou-se para a Caminhada marcando as vias públicas da cidade como "lugares de apoio da memória" (Pollak, 1992:3), em que pessoas com autismo e familiares, articulados em participação ativa, ao tornar suas identidades expostas, visitadas e assimiladas pelos demais indivíduos e grupos da cidade, configuraram um único coletivo. Tal coletivo constituiu-se como um grupo com identidade assumida e orgulhosamente mostrada em lugares que passam a "servir de base a uma relembrança de um período que a pessoa viveu por ela mesma", ou por seus pares (Pollak, 1992:3).
Meses antes, em 2010, o lançamento de uma revista produzida por pais de autistas, sem patrocínio e com trabalho voluntário, foi um catalisador de muitas dessas ações, transformando-se em um veículo de identidade e ponto estruturador de memória, acompanhando o teor simbólico das paisagens e datas (Revista Autismo). Esses marcos de memória são lançados no ambiente social para que sejam sistematicamente lembrados como indicadores do que define o grupo e o diferencia frente a outros, tecendo e reforçando positivamente os laços de pertencimento, acentuando sua coesão e ligação afetiva. (Halbwachs, 1950/2012).
O significado da mobilização é "fazer emergir uma cena pública, na qual se exponha a existência dos dois mundos e se estabeleça uma relação que só é possível existir se nos fazemos ouvir, entender, enxergar, ou seja, se nos tornamos visíveis" (Ansara, 2008:332). A demarcação dos lugares de memória1 é parte "do processo de recolecção e construção de dados", nas palavras de Jelin (2002:64), como aspectos de força potencial para "corrigir memórias equivocadas ou falsas" (2002:63), provocar indignação e reparar as injustiças sofridas, subjetivando os agentes sociais, ora protagonizados pelas próprias pessoas com autismo e seus familiares.
A força comemorativa é uma forma de enunciar um novo paradigma mediante a ressignificação histórica que até então estivera entre o extermínio, o banimento e a integração condicionada às demandas sociais de "normalidade" para haver igualdade. Se por um lado o sentimento de identidade refere-se à imagem que uma pessoa constrói e apresenta para si e para os outros (Pollak, 1992), "os símbolos culturais não estão imediatamente disponíveis como símbolos de mobilização, mas requerem a intervenção de um agente para se converterem em marcos da ação coletiva" (Tarrow, 2004:232). Assim, a formação de uma identidade envolve estratégias para ganhar territórios no tempo e espaço como constructos de sua legitimação frente aos demais grupos sociais, estabelecendo parâmetros que concorrem para a conscientização sociopolítica internamente ao grupo e ações coletivas que a fortalecem realimentando o conjunto de elementos dos quais a identidade é constituída.
A diferença une um grupo e uma identidade forte penetra as fronteiras das desigualdades sociais aproximando pessoas na ação coletiva, onde as famílias dos autistas se tornam sujeitos de suas conquistas quebrando a continuidade milenar da submissão e dependência.
As Famílias na Identidade Coletiva do Autismo
Necessitamos uma definição de grupo que se refira ao modo em que a noção é construída por aqueles que estão dentro do sistema (Tajfel, 1984:69).
A organização de grupos por critérios de igualdade e diferença e o estabelecimento de valores e juízos que manifestam preferências pelas próprias características são arranjos sociais de natureza cotidiana sempre presentes na história (Tajfel, 1984).
O movimento que iniciou na década de 1970 reivindicando direitos humanos, cidadania e políticas públicas às pessoas com deficiência é também um movimento que caracteriza suas famílias, que mesmo na história recentíssima de conquistas de direitos das pessoas com deficiência são excluídas das discussões.
As mães de pessoas com autismo reclamam não serem reconhecidas como interlocutores legítimos para negociar as necessidades e expectativas de seus filhos em todas as esferas, desde as instituições especializadas de saúde e escolas até o poder público. Essas famílias são parte dos grupos que têm menos espaço e atenção, não são percebidas pela sociedade como sujeito político e muitas vezes não têm consciência desse fato.
Antes de encontrar seus pares, passando à experiência de um novo coletivo, as famílias dos autistas enfrentam o desafio de alterar diversos padrões de comportamento, anteriormente sedimentados. Surgem exigências de novas respostas às condicionantes dos demais grupos a que pertencem, inaugurando conformações de convivência relacionadas ao trabalho, vizinhança, religião, amizades e às esferas mais amplas do parentesco. Tudo passa a serrenegociado nas relações face a face. É gerada uma história de vida na qual o 'hoje' apresenta-se sob incertezas e mudança de diversos referenciais sociais, sendo o futuro uma abstração construída ante o temor do que ocorrerá quando de sua inexorável separação dos filhos2.
Na maioria das vezes, as famílias vêm de refúgio emocional insatisfatório em seus grupos anteriores, que se revelam como insuficientes para lhes fornecer perspectivas nas ações cotidianas que lhes eram habituais. À semelhança do que afirma Goffman (1988) sobre o indivíduo estigmatizado tentar corrigir sua condição dedicando um grande esforço individual em áreas consideradas fechadas, as famílias, especialmente as mães, dedicam-se ao domínio de técnicas e abordagens terapêuticas para incrementar o desempenho do filho, o que indiretamente lhes proporcionará melhor convivência familiar e social.
Uma nova possibilidade de associação identitária fundada no fator central de modificação de sua realidade - o autismo - com base em aspectos positivos pode levar a família à socialização da sua biografia em parâmetros cuja subjetivação supere a visão de "fardo" a ser carregado, e prossiga para deixar de ser suscetível ao estigma, libertando-se, em parte, dos padrões sociais sobre normalidade e defeito.
A heterogeneidade das famílias de pessoas com autismo nos contextos históricos, culturais, sociais e políticos é diluída frente à convergência de objetivos que promovem a união para a conquista de direitos relativos à saúde, educação, mobilidade e lazer para os filhos, ou à mera utilização dos espaços sem que sejam submetidos ao constrangimento das barreiras e dos olhares inquisidores.
Os que se ocupam em conjecturar sobre o que o autista exterioriza em suas estereotipias mais do que sobre quem ele é promovem o desconforto de trazer, além da "curiosidade mórbida sobre a sua condição", juízos e valores não apenas ao filho, mas ao modo com que os pais lidam com ele, lembrando-os a todo o momento dos padrões que a família (re) conhece, incorporados da própria vivência em sociedade (Goffman,1988). "A simples previsão de tais contatos pode, é claro, levar os normais e os estigmatizados a esquematizar a vida de forma a evitá-los" (Goffman, 1988:22). As mães relatam que os aspectos práticos do cotidiano são difíceis e a falta de políticas públicas efetivas na territorialização de serviços, na acessibilidade material e simbólica, por vezes, determina que a família de um autista não se aproprie dos espaços públicos e se isole em virtude das reações da sociedade.
Fávero & Santos (2005) apontam o suporte social como a base do enfrentamento da nova condição vivida no lar, refletindo na vida cotidiana dessas famílias, as quais evidenciam "sobrecarga emocional, física e financeira", "principalmente nas mães", além de "uma dificuldade na representação da ideia de uma vida normal" (Fávero & Santos, 2005: 361).
Se considerarmos que o suporte aos pais é fator mediador do estresse familiar favorecendo o ajustamento social, a aproximação entre as famílias se mostra como um ponto de inflexão de sua ressocialização e uma perspectiva "para obter atendimento apropriado incluindo obstáculos envolvendo onde e como obter os serviços, como pagá-los e dúvidas na tomada de decisões a respeito de opções de tratamento" (Fávero & Santos, 2005; Barbosa, 2010:19).
O aconselhamento informativo se mostra como fator decisivo na construção dos laços de formação do grupo. Pesquisas sobre saúde emocional familiar apontam que, quando aconselhadas pelos próprios pais de crianças com autismo, as famílias se mostravam "mais realistas sobre as possibilidades e limites de suas crianças autistas e aceitavam mais a solidariedade e o suporte de união com outros pais, bem como manifestaram um sentido crescente de otimismo nas interações estabelecidas em casa e na comunidade" (Fávero & Santos, 2005:363).
Nesse sentido, cabe lembrar a diferenciação que Goffman (1988) estabelece entre categoria e grupo e se aplica às situações das famílias de pessoas com autismo: é muito comum que a totalidade dos membros de uma categoria (neste caso, de famílias de autistas) não constitua parte de um único grupo no sentido estrito, mas ocorre que quando um membro da categoria entra em contato com outro, seu trato mútuo modifica-se, revelando a crença de que pertencem ao mesmo "grupo". Uma categoria pode, pois, favorecer as relações e formação de grupo, sem que todos os seus membros constituam um grupo. (Goffman, 1988).
Ao formarem uma rede de relações e constituir um grupo social, as famílias obtêm uma perspectiva menos sombria, significando o reencontro com seu destino imaginado anteriormente, um destino que lhes havia escapado. Não apenas partilham experiências comuns como a nova relação em si proporciona trocas e perspectivas de ganhos, expressas na necessidade de comunicação frequente para equacionarem problemas existenciais e da vida com o autismo: reprodução entre seus pares, de comportamentos e das suas representações. Os fortes pontos de conexão estabelecem vínculos de apoio e reconhecimento mútuo não experimentados nos ambientes sociais da vida cotidiana com os grupos de que até então as famílias de autistas participavam. Considerando que a memória coletiva desse grupo foi moldada pela culpabilização sob diversas formas, a consciência de sua categorização social é positiva, enfrentada e assumida como uma identidade que faz diminuir a importância da aceitação dos demais em base de igualdade - coisa que nunca irá acontecer (Goffman, 1988).
Territórios Virtuais, Vínculos e Consciência Política
A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução (Nora, 1993:9).
As facilitações na mobilidade e na comunicação do mundo contemporâneo tornam-se fomentadoras da multiplicação de grupos diferenciados e de alternativas identitárias, seja pelo aumento das situações de tensão e conflitos de interesse ou pelas transformações sociais, como menciona Ciampa (2002).
No caso das famílias de pessoas com autismo, o compartilhamento de realidades individuais que passam a direcionar o coletivo perante outros grupos sociais tem forte vínculo com a realidade proporcionada pelas tecnologias de informação e comunicação, as quais viabilizaram ferramentas para formar e consolidar grupos cuja comunhão de experiências era inviável antes da facilitação da era digital. O espaço do contato, necessário ao sentido de identidade entre pares por muito tempo não existiu para autistas e familiares. As chances de intercâmbio de experiências e informação nas Associações têm limitações, mormente quando os espaços institucionais seguem o padrão associativo conservador, inapto a gerar participação das famílias, sendo o trabalho de conscientização e cidadania uma exceção.
Os obstáculos quanto a possuírem seus lugares indicam um grande impedimento de atitudes emancipatórias, evidenciados pela longa trajetória de exclusão e dependência imantada ao paradigma do não contato social. Lembrando Halbwachs (1950/2012) para que nossa memória se beneficie das de outros, ela precisa ser reconstruída sobre uma base comum e para tanto é preciso haver suficientes pontos de contato entre ela e aquelas trazidas por outros indivíduos ou grupos, sendo ainda construtores da identidade.
As mães de pessoas com autismo mencionam a internet como a ponte para a informação e a abertura à reconstituição das perspectivas de vida pelo contato com outras famílias de mesma história. O meio virtual revela-se, pois, como fundamental na construção dessa identidade coletiva em âmbito nacional com vínculos a iguais grupos fora do país, onde o coletivo das famílias teceu uma coesão antes não conseguida pela ausência dos encontros, ou por não se saberem coexistindo em realidades tão similarmente limitadas pela intransigência de uma sociedade talhada para seres, espaços e relações concebidos em uma esfera mítica de "normalidade".
Os grupos de discussão pela internet (também chamados de listas) foram os pioneiros no agrupamento de pessoas em torno do tema Autismo. No Brasil, surgiram em 1998 e expandiram-se tanto em número de participantes quanto na multiplicação das listas, blogs, sites e outros veículos em rede. As famílias são os protagonistas dos grupos, comunidades e páginas e as conexões proporcionaram condições para a criação de novas associações em diversas cidades que hoje incorporam a voz do "nós", ou do "eu" grupal, cimentando uma "política de identidade" no sentido dado por Ciampa (2002), quanto à orientação aos estigmatizados que se percebem com certa naturalidade dentro da dificuldade e adotam uma "linha correta" tendo "aceito um "eu" para si mesmo [...] um habitante estranho, uma voz do grupo que fala por e através dele" (Goffman citado por Ciampa, 2002:3).
Entre as várias associações que ocupam os territórios virtuais, exibem um novo perfil, com forte presença das famílias e projetos que atendam as pessoas com autismo segundo suas próprias demandas e especificidades, citamos a Autismo & Realidade - A & R surgida em 2010, investindo na expansão da rede de capacitação e pesquisa e na disseminação de informações.. A defesa dos direitos, a difusão do conhecimento que confere autonomia às famílias, o suporte, e a força em marcar espaços e datas são aspectos fortes dessa atuação que não se limita às associações. Citamos os exemplos do Movimento Orgulho Autista Brasil - MOAB e do Movimento Pró-Autista - MPA, este último criado em 2010 na cidade de São Paulo, no combate ao preconceito e na conquista de aliados em defesa das pessoas com autismo.
A partir do intercâmbio das relações as famílias estabelecem o compartilhamento e a renovação de sua memória viva, sempre "aberta à dialética da lembrança e do esquecimento" (Nora, 1993:9). Fazendo das questões individuais, questões coletivas, os fatores que concorrem para a singularização do grupo constituem elementos de força, influência e credibilidade no teor de sua identidade: projetos de lei em âmbito municipal e federal foram desenvolvidos a partir da mobilização em torno das datas e comemorações, pois nessas oportunidades as famílias chamaram a atenção pública sobre si e começaram a disseminar as falas sobre suas necessidades.
Salientamos que as estratégias descritas, de mobilização das famílias de pessoas com autismo a partir das redes sociais, e que hoje são comuns na criação de manifestações políticas e organização de diversos grupos, iniciaram quando esse tipo de ação coletiva não era disseminado no país. Esse é um indicador da força e coesão dessa identidade social capaz de se organizar coletivamente, lançar mão de novas tecnologias em seu favor e criar conflitos que conduzam à transição da cena social e política.
Exclusão e Fatalismo dos Oprimidos
A análise a seguir reflete um ponto de convergência das noções de categorias, grupos sociais e sentimento de pertencimento, de Tajfel (1984) e Goffman (1988), frente às afirmações de Martin-Baró (1998) sobre o fatalismo e sua funcionalidade política. Ao questionar o traço supostamente característico das classes populares dos povos latinoamericanos quanto a encarar e aceitar sem resistência a realidade de suas vidas como desígnio de Deus ou do destino, Martin-Baró discute as razões que concorrem à manutenção de suas dificuldades.
O paralelo à historicidade da deficiência parece inegável, relativamente ao caráter herdado do sofrimento como expiação e culpa - como na realidade da idade média -, e ao estresse parental nos casos do autismo, uma vez que este é mais facilmente superado quando a crença na fatalidade ou o sentimento de aceitação estão presentes (Fávero & Santos, 2005). Para Martin-Baró, a "síndrome fatalista", presente nas camadas populares dos povos latinoamericanos, que expressa uma defesa emocional necessária para a continuidade da vida, é própria das populações marginalizadas que chegam a assumir como seu, o estereótipo que lhes é atribuído, ainda que esse não corresponda a uma característica real (Martin-Baró, 1998).
As pessoas com deficiência estão em sua maioria entre os economicamente mais pobres. Politicamente marginalizados, traduzem-se em âmbito mundial como os membros menos visíveis entre os já invisíveis das classes socioeconômicas menos favorecidas: 15% da população mundial com algum tipo de deficiência, 4/5 das pessoas com deficiência vivendo nos países em desenvolvimento e 82% dessas abaixo da linha da pobreza, alocados, pois, entre os mais vulneráveis do planeta (International Labour Organization, 2011; World Health Organization & The World Bank, 2011).
O autismo é apontado por Camargos Jr. (2010) como o transtorno mais complexo da psiquiatria e com maior custo financeiro (direto + indireto). Em um estudo comparativo com pessoas com síndrome de Down foi revelado que os indivíduos das classes econômicas "D" e "E" nem sequer eram caracterizados como autistas nos dados de saúde e educação, não recebendo, portanto, atenção e tratamento adequados (Camargos Jr, 2010)3.
Com esses dados em mente, cabem algumas considerações sobre o protagonismo das famílias. Dos movimentos e ações que foram previamente descritos, sejam em ambientes virtuais ou físicos, empreitados pelos diversos segmentos desse coletivo, os atores são aqueles que têm a consciência de sua identidade coletiva. São os que pertencem ao grupo, no sentido dito por Tajfel (1984), de que se é parte de um grupo a partir do momento em que se sente parte dele. Isso não ocorre com as famílias das classes socioeconômicas menos favorecidas e nem poderia, já que nem sequer conseguem saber o diagnóstico de seus filhos.
O que determina a pertença ou não ao grupo é justificado nos pressupostos de Martin-Baró quanto aos sentimentos despertados pelas memórias sociais de grupos menos precarizados, aos quais tem cabido o protagonismo das ações. Embora o autismo seja um transtorno que alcança todos, os não fragilizados socialmente conseguem fazer uso da palavra e, em defesa dos filhos, firmar pés no caminho da mudança, superando o conformismo e a atitude fatalista.
A memória herdada e compartilhada pelo passado quanto à fatalidade da deficiência é contrabalançada e mesmo neutralizada tanto pela história, quando de iniciativas vindas de famílias dos estratos sociais privilegiados, quanto pela memória de lutas e força social, quando de inciativas das classes sociais intermediárias. Isso deixa à parte dos grupos articulados um número expressivo de famílias de pessoas com autismo, bem como acontece com as famílias de pessoas com deficiência. No Brasil do autismo, a consciência do "nós" não foi assimilada pelos mais carentes. Descartados sem escolha, seguem sem consciência do transtorno dos filhos e se veem envolvidos por casos sempre agravados pela falta de intervenção precoce. Pertencem à mesma categoria, sem serem categorizados.
A luta pela inclusão que trabalha tão somente a sensibilização dos agentes e grupos sociais externos às questões da deficiência é a manutenção de um status de conforto, bem descrito por Goffman (1988) como a possibilidade de os 'normais' manterem-se a uma distância tal que lhes seja assegurado confirmar, de forma indolor, as crenças de que a carga que as pessoas com autismo, com deficiência e suas famílias suportam não é pesada demais, e nem que ao carregá-la tornaram-se diferentes deles próprios.
Pelos relatos da dificuldade de diagnóstico e tratamento, abandono do trabalho por parte do familiar cuidador que necessita prover necessidades básicas e emergenciais ao autista (Machado, 2014), as famílias em condições sociais precárias não têm meios de levar à frente, como elucida Martin-Baró (1998), a perspectiva de desenvolvimento do filho com autismo, fruto da própria desesperança quanto aos tantos outros itens não preenchidos para o básico da sobrevivência. Não há, ainda hoje, propostas concretas nos grupos das famílias para encontrar e resgatar os que não foram alcançados pelas mobilizações, com dificuldades cotidianas tão profundas que os impedem de vislumbrar a possibilidade de luta.
Considerando a herança do não contato entre pessoas com e sem deficiência, que marca conflitos nas discussões sobre políticas integrativas e de inclusão, trabalhar na conscientização daqueles que historicamente oprimiram e ainda hoje excluem os autistas, mantendo as ações coletivas entre grupos restritos é manter nos porões o grito da injustiça de além séculos.
Considerações Finais
Partindo do cenário que envolve as pessoas com deficiência e com base em referenciais teóricos da psicologia política este artigo destacou os aspectos que envolvem a formação de identidades coletivas evidenciando que as razões e o modo como se estabelecem as conexões entre as famílias das pessoas com autismo são componentes de sua identidade, com coesão fundada nas trocas que levam à constatação da própria situação e ao estabelecimento de estratégias de luta em favor dos filhos.
A memória de relações históricas baseadas no estigma submete o grupo de pessoas afetadas pelo autismo a juízos e padrões restritivos à vida em sociedade, condicionados à herança cultural e aos processos sociais determinantes da vida cotidiana com a deficiência. Entretanto, o discurso das mães de pessoas com autismo reafirma que uma identidade não se constrói a priori, mas durante as ações coletivas, sendo ela própria um indício do movimento existente nesse coletivo e das interações que proporcionam benefícios aos que a assumem (Tajfel, 1984). Os marcos da memória que se configuram nos grupos, nas ações e nos rituais da comemoração constituem um diálogo com a consciência do coletivo ligado à deficiência. As famílias os utilizam para romper com o estigma, angariar espaços sociais e estampar na sociedade sua feição identitária.
Ao mesmo tempo o sentimento de pertença contribui para uma autopercepção positiva e novas formas de conduta social, sendo função de condições históricas. Aqueles que por fatores de exclusão social não têm acesso ao conhecimento do que é o autismo e do suporte identitário entre as famílias vivem à margem da história de sua própria categoria, das memórias ora construídas e das lutas (Martín-Baró, 1998; Tajfel, 1984).
Seguindo a perspectiva dos "novos" movimentos sociais conforme analisam Paoli (1991) e Gohn (2007), as famílias de pessoas com autismo se tornam atores políticos em suas manifestações, ocupando espaços de participação, apresentando suas reivindicações como interlocutoras que desejam o reconhecimento do poder público. Para tanto, articulam-se em torno de objetivos concretos na intenção de interferir em valores e hábitos sociais, "na condução dos assuntos públicos que lhes dizem respeito - por mais localizados que sejam" e "em sua enunciação como sujeitos coletivos de direitos" (Paoli, 1991:121).
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Recebido em 13/11/2013.
Revisado em 16/07/2014.
Revisado em 21/10/2014.
Aceito em 16/12/2014.
1 Sobre "os lugares da memória" ver Pierre Nora (1984), autor francês e um dos primeiros a dedicar-se aos estudos dos lugares da memória em que destaca os lugares enquanto espaço material onde se dão as lembranças, as comemorações, os monumentos, os museus, as festas e os símbolos e os lugares constituídos pelos sujeitos coletivos, responsáveis pela transmissão da memória: a família, a escola, a igreja, o Estado.
2 Além dos depoimentos das mães sobre a falta de políticas públicas para o autista adulto, Koegel e col. (1992, citados por Fávero & Santos, 2005:361) relatam que as famílias de autistas revelam um nível alto de preocupação quanto ao bem estar de suas crianças depois que os pais não estiverem aptos a providenciar os cuidados para elas.
3 Também referido em carta do pesquisador à Assembleia Legislativa de Minas Gerais, encaminhada pelo movimento em defesa da população afetada pelo Autismo, em abril de 2011.