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Revista Psicologia Política
versão On-line ISSN 2175-1390
Rev. psicol. polít. vol.22 no.55 São Paulo dez. 2022
ARTIGO ORIGINAL
Mulheres em situação de pobreza nos contextos do Programa Bolsa Família e da vida nas ruas
Women in poverty in the contexts of the Programa Bolsa Família and life on the streets
Mujeres en pobreza en los contextos del Programa Bolsa Família y la vida en la calle
Renata Cristina Façanha de MenesesI; Andrea Ferreira Lima EsmeraldoII; Natacha Farias XavierIII; Verônica Morais XimenesIV
IUniversidade Federal do Ceará. E-mail: renatafacanha@gmail.com
IIUniversidade Federal do Ceará. E-mail: andreaesmeraldopsi@gmail.com
IIIUniversidade Federal do Ceará. E-mail: natacha.nfx@hotmail.com
IVUniversidade de Barcelona/ESP. Universidade Federal do Ceará (UFC) E-mail: vemorais@yahoo.com.br
RESUMO
Este artigo visa a compreender como as categorias gênero e pobreza se apresentam no cotidiano das mulheres beneficiárias do Programa Bolsa Família e das mulheres em situação de Rua. Considera que as opressões de gênero se apresentam de formas distintas conforme as experiências e lugares que ocupam na sociedade, assim demandam um olhar interseccional, que apreenda os marcadores identitários e modos de vida destas mulheres. Utiliza em suas análises o conceito de patriarcado como um sistema de opressões que atinge as mulheres e destaca a vivência de pobreza a partir de uma perspectiva multidimensional, que engloba várias dimensões além da renda. Evidenciaram-se processos opressivos que passam pela estigmatização e culpabilização das mulheres, assim como construção de resistências que atravessam seu cotidiano. Aponta-se a necessidade de políticas públicas que reconheçam as necessidades e singularidades das mulheres.
Palavras-chave: Pobreza; Feminismo; Políticas Públicas; Programa Bolsa Família, População em Situação de Rua.
ABSTRACT
This article aims to understand how the categories gender and poverty are present in the daily lives of women benefiting from the Programa Bolsa Família and women living on the streets. It considers that gender oppression presents itself in different ways according to the experiences and places women occupy in society, thus demanding an intersectional look, which apprehends these women's identity markers and ways of life. It uses in its analyses the concept of patriarchy as a system of oppression that affects women and highlights the experience of poverty from a multidimensional perspective, which encompasses several dimensions beyond income. Oppressive processes were evidenced, which go through the stigmatization and blame of women, as well as the construction of resistance that crosses their daily lives. The need for public policies that recognize the needs and singularities of women is pointed out.
Keywords: Poverty; Feminism; Public Policy; Programa Bolsa Família; Homeless population.
RESUMEN
Este artículo tiene por objeto comprender cómo se presentan las categorías de género y pobreza están presentes en el cotidiano de las mujeres beneficiarias del Programa Bolsa Família y de las mujeres en situación de calle. Considera que la opresión de género se presenta de diferentes formas según las experiencias y los lugares que ocupan en la sociedad, exigiendo una mirada interseccional, que aprehenda los marcadores identitarios y modos de vida de estas mujeres. En sus análisis, utiliza el concepto de patriarcado como un sistema de opresión que afecta a las mujeres, y destaca la experiencia de la pobreza desde una perspectiva multidimensional, que abarca varias dimensiones más allá del ingreso. Se evidenciaron procesos de opresión que pasan por la estigmatización y la culpabilización de las mujeres, así como la construcción de resistencias que atraviesan su cotidiano. Se señala la necesidad de políticas públicas que reconozcan las necesidades y singularidades de las mujeres.
Palabras-clave: Pobreza; Feminismo; Políticas Públicas; Programa Bolsa Família; Población en situación de calle.
INTRODUÇÃO
A vida das mulheres, singularizada por um cotidiano em contexto de pobreza, traduz a realidade de grande parte das brasileiras. Entretanto, ao evidenciarmos esse universo, demarcamos a necessidade de aproximação de sua diversidade. Neste artigo, consideramos experiências de dois grupos distintos: mulheres que estão inseridas no Programa Bolsa Família (PBF) e mulheres em situação de rua. Enquanto as mulheres em situação de rua são invisibilizadas no espectro das políticas públicas, as beneficiárias do Programa Bolsa Família tomam lugar de centralidade, porém de uma maneira onde lhes são impostas uma série de atribuições e nas quais suas demandas são suplantadas pelas demandas familiares.
Partimos de uma concepção que compreende a condição feminina de forma desnaturalizada e que, portanto, apreende as relações sociais que constituem o significado de ser mulher em nosso tempo e sociedade. Para isso, recorremos a Joan Scott (2016), que considera que ocorre uma série de construções históricas sob o manto da naturalização de características sexuais, estas escondem correlações de poder que atuam na sociedade de forma normativa, política e simbólica. Por considerar que, isoladamente, o conceito de gênero não expõe a dominação que hierarquiza as relações entre os diferentes gêneros, tomamos o patriarcado como referência conceitual para demarcar a relação de poder que estrutura nossa sociedade de modo a manter mulheres em posição de inferioridade. Heleieth Saffioti (2015) define o patriarcado como um regime de exploração de dominação dos homens sobre as mulheres e que regulam não apenas a relação homem-mulher, mas a relação mulher-mulher e homem-homem, que reina sob as instituições sociais, e abrange não apenas a família, mas a sociedade como um todo.
A valoração de decisões e comportamentos individuais como solução de problemas estruturais silencia o caráter compulsório, social e histórico que alicerça a construção do gênero em contextos em que suprir necessidades materiais e imediatas é questão de sobrevivência. Judith Butler (2003) problematiza a concepção universalizante em torno do "elemento mulher" e a ilusão de convergência dos interesses do gênero, assim destaca o cruzamento de interlocuções entre raça, etnia, idade etc. Neste sentido, Ângela Davis (2017) destaca a importância de aspectos como família e maternidade, enquanto estratégias emancipatórias das mulheres negras escravizadas e coloca o espaço doméstico como uma forma de resistência à escravidão. Mesmo entre mulheres, a disparidade de relações que se estabelecem no campo do emprego remunerado subalterniza aquelas que estão em situação de pobreza. Também se propaga a ideia de que a igualdade entre sexos se torna uma questão de escolha das próprias mulheres, que precisam ser esteticamente agradáveis, habilidosas, profissionais, maternais, incansáveis, libertas e responsáveis pelas atividades de cuidado dos membros da família e de seus espaços de interação.
A partir dessas concepções, é importante alocar que pretendemos trazer a debate nesse artigo os mecanismos de opressão e de emancipação das mulheres que partilham em comum a realidade da pobreza. Compreendemos definição de pobreza a partir da perspectiva multidimensional, proposta por Amartya Sen (2010), como privação de capacidades para a satisfação minimamente aceitável das necessidades das pessoas nos aspectos da saúde, da renda, do saneamento, da educação, da assistência, da alimentação dentre outros.
Para Martha Nussbaum (2000), as questões de gênero são partes fundamentais no processo de desenvolvimento humano, como a divisão dos recursos na família e a privação de direitos fundamentais pelo gênero passam a ser questões elementares a esta discussão. Mesmo partilhando em comum a pobreza, debateremos as opressões de gênero a partir da condição da domesticidade feminina como condição fundante para que as mulheres pobres recebam o benefício e também sobre a construção e reprodução dos papéis domésticos de mulheres em situação de rua.
As vivências de opressão entre pessoas do mesmo gênero definitivamente são desiguais: as mulheres brancas, escolarizadas e empregadas vivem de forma diferente das negras, pobres e sem teto. Para o primeiro grupo, a auto aceitação e o empoderamento funcionam como estratégias emancipatórias individuais, enquanto já no segundo grupo subjaz de forma mais premente o poder das estruturas culturais, a diversificação das violências sejam elas simbólicas, políticas, urbanas e familiares. As mulheres de classes mais abastadas, por exemplo, ocupam melhores postos de trabalho, ganham mais, têm maior escolaridade e conseguem terceirizar parte significativa das obrigações domésticas para mulheres mais pobres. Flávia Biroli (2018) aponta que a suposta libertação das mulheres com melhores rendas tem o seu viés classista e racista, quando são conquistados por meio da exploração do trabalho das mulheres mais pobres e negras sem o igual questionamento do papel masculino.
Compreendemos a importância do conhecimento e das estratégias de enfrentamento individuais para lidar com as questões cotidianas e específicas na vida de cada uma, entretanto, também gostaríamos de enfatizar que a solução através de estratégias individuais tem eficácia diminuída dentro do contexto da pobreza, da privação e da moradia da rua. As misérias usurpam ainda mais o poder da escolha e aumentam o fosso hierárquico entre mulheres e homens dentro das relações afetivas, entre mulheres de classes sociais diferentes, com a terceirização do trabalho reprodutivo, e dentro das vivências de mulheres em situação de rua.
O espaço doméstico foi se conformando como locus de subalternidade e invisibilidades dentro das relações capitalistas de produção ao mesmo tempo que também é percebido como uma zona de proteção às adversidades externas. Mesmo tendo a rua como espaço de moradia, as mulheres ainda são encarregadas pelo trabalho reprodutivo de seu parceiro e de seu coletivo ainda que também realizem as atividades de captação de recursos materiais de sobrevivência. Clara Araújo, Felícia Picanço, Ignácio Cano e Alinne Veiga (2018) apontam que a falta de cooperação masculina nas atividades domésticas não é justificada pelo volume de trabalho, mas pelas percepções de papéis de gênero e sugerem que a disseminação de valores mais igualitários pode impactar na divisão de tarefas domésticas. A vivência de gênero marca a forma como as mulheres engendram seus modos de vida nas ruas.
Dessa forma, as vivências que as mulheres necessariamente experienciam apenas por serem mulheres podem variar de intensidade de acordo com a classe social. As mulheres pobres acumulam maiores exigências em relação à tarefa do cuidado inclusive para as políticas públicas, que transfere para elas a resolução de problemas políticos endêmicos através de políticas socioassistenciais que são associados a condicionalidades de cuidado. O cuidado também é transferido para a vivência do espaço da rua como moradia, não implicando na dissolução de seus antigos arranjos. Padrões marcadamente generificados apontam a transversalidade das vivências de gênero na domesticidade da rotina das donas-de-casa para cotidiano das mulheres que vivem em situação de rua.
Justificamos a importância de debater as questões que são apresentadas especificamente às mulheres no contexto de pobreza como forma de denúncia às formas de opressão e de exploração do gênero feminino e de ressaltar os processos contínuos de resistência dessas mulheres, que mesmo em contextos de exploração e de vulnerabilidades extremas, produzem movimentos de resistência através do cuidado e do afeto, ambos desvalorizados e invisibilizados pelo capitalismo, mas imprescindíveis para a sua manutenção. A partir do apontamento dessas questões, objetivamos compreender como as categorias gênero e pobreza se apresentam no cotidiano das mulheres beneficiárias do Programa Bolsa Família e de mulheres em situação de rua.
GÊNERO, RAÇA E PRÁTICAS DE EXCLUSÃO
A violência é de uma categoria complexa e multifacetada, estruturada em diversos níveis sociais. Para Ignácio Martín-Baró (2005), a violência é alimentada pelo interesse de classe e privilegia um determinado grupo hegemônico, que se torna responsável pela organização social de acordo com seus interesses, logo, trata-se de uma construção sócio-histórica. Nesse sentido, é válido ressaltar que a violência também deve ser observada pela perspectiva das relações de poder, logo, as questões de gênero, classe e raça são variáveis que devem ser consideradas ao se analisar essa dinâmica.
De acordo com Saffioti (2015), a violência de gênero ocorre com as práticas de exclusão e discriminação dos homens contra as mulheres. Este fator é fortalecido pela cultura patriarcal, que privilegia e impõe uma hierarquia de poder baseada no sexo e no gênero, portanto, masculino sobre o feminino. Para Saffioti (2015), a violência contra as mulheres pode ocorrer através de violência sexista, violência simbólica, violência doméstica e familiar, violência urbana, violência sexual: assédio, abuso ou exploração sexual e pelo tráfico de mulheres. Assim, o patriarcado impõe às mulheres o lugar de "objetos da satisfação sexual dos homens, reprodutoras de herdeiros, de força de trabalho e de novas reprodutoras" (Saffioti, 2015, p. 112). Esta relação supõe às mulheres um lugar de dominadas, exploradas e oprimidas. Martín-Baró (1990) pontua que o machismo atua na sociedade como uma perspectiva compensatória em que os homens agem em seu cotidiano com o sentimento social de senhores do lar.
A questão da violência estruturante e histórica em um sistema patriarcal assevera às mulheres uma condição de subalternidade difícil de ser combatida e cria formas distintas de opressão até mesmo com as suas características físicas, com os seus próprios desejos, como sobre o que elas querem para si, como gostariam de trabalhar, de se vestir, de falar e de expressar-se em seus comportamentos. Para Naomi Wolf (2019), a conquista de alguns espaços públicos pelas mulheres e do mercado de trabalho acarretou no crescimento acelerado de transtornos alimentares com o público feminino, de maneira que a sociedade se encontra impregnada de rituais de beleza que escravizam as mulheres em busca de responder ao mito da beleza, se distanciando do envelhecimento. Wolf (2019) afirma que foi o mito da beleza, no cenário capitalista, o que construiu a ideia de competição entre mulheres. Essa questão se torna mais grave, quando questionamos que mulheres vivenciam essas demandas e como elas são atravessadas pelas questões de classe e raça.
bell hooks (2019) critica o lugar de representação dos corpos das mulheres negras, corpos associados ao sexo, o corpo considerado hipersexualizado ou bizarro, uma herança violenta para as mulheres negras desde meados da escravidão, quando eram expostas nuas ou seminuas para entreter homens brancos e ricos ou para serem usados como objeto de estudo. Ao atualizarmos esse comportamento, deparamo-nos com a exposição de corpos negros no carnaval ou em revistas de moda, onde o corpo da mulher não é mostrado para exaltar a beleza negra, mas apenas para mostrar que a revista não compactua com o racismo (hooks, 2019). Dessa forma, gênero e raça se interseccionam de maneira excludente nas relações de poder.
Para Gayatri Sipvak (2010), a questão de gênero nas relações de poder se torna ainda mais complexa, uma vez que ocorreu a marginalização das mulheres no cenário de produção colonial dominado pelos homens. Assim, ainda é necessário observar em quais aspectos e constructos as mulheres se encontram, pois a questão da intersecção mulher-pobreza-negritude seria também fator que subalterniza o gênero. Davis (2016), ao analisar historicamente o lugar das mulheres negras durante o sufrágio nos Estados Unidos, chama a atenção para o fato de que a luta das mulheres pelo voto não significou que negras e brancas tivessem os mesmos direitos, ao contrário, quando a décima nona emenda norte-americana foi aprovada, as mulheres negras foram proibidas violentamente de exercerem a conquista, sendo mais uma vez silenciadas, invisibilizadas e marginalizadas.
Davis (2017) ressalta que as mulheres pertencentes à classe trabalhadora, principalmente aquelas que representam as minorias étnicas, enfrentam a questão do sexismo de uma forma que a sua realidade denuncia as opressões nas quais elas se encontram, como a questão econômica, racial e sexual, sendo estas características distintas da experiência que mulheres de classe média e rica vivenciam. Portanto, as trabalhadoras vivem suas realidades através da dinâmica de exploração do trabalho sexista e as negras vivenciam a opressão do gênero num contexto racial.
Segundo Biroli (2018), a divisão sexual do trabalho produz o gênero, que é construído no formato de exploração do trabalho das mulheres e sobre a vulnerabilidade que recai sobre elas. Isso significa que existem tarefas consideradas femininas, como o trabalho doméstico, porém não significa que todas as mulheres realizam essas atividades, mas principalmente as pobres e negras que ocupam o âmbito doméstico de muitas casas para que outras possam acessar distintas configurações trabalhistas. Dessa forma, é importante observar que a remuneração das mulheres trabalhadoras irá basear-se de acordo com a posição na qual elas se encontram - gênero, classe e raça. Assim, as mulheres estão localizadas em uma sociedade sexista, racista e classista, que se somam a outras opressões, que as distanciam de e nas posições de privilégios.
Conceição Nogueira (2017) acrescenta que o gênero não é um componente isolado da identidade social, mas se constrói associado a outras dimensões como a raça, a nacionalidade, a orientação sexual e até mesmo a capacidade física dos sujeitos. Logo, a Teoria da Interseccionalidade (Crenshaw, 2002) torna-se uma ferramenta metodológica de extrema relevância para a busca de respostas que visem a fortalecer as políticas públicas para mulheres e a destacar as questões específicas de cada grupo, dentro da experiência de cada uma delas, experiências sujeitas a múltiplas formas de subordinação (Nogueira, 2017), sejam elas de caráter público ou privado.
Entende-se assim, que o cenário social e familiar patriarcal pode ser agressivo com o desejo das mulheres de transgredir as normas, é o que afirma Biroli (2018) ao destacar que as relações familiares são atravessadas por apoio e exploração de trabalho, onde a discussão do tema família é permeada pelas dimensões controles, privilégios e desigualdades, em que os controles têm por função definir as fronteiras entre homens e mulheres, o que é aceitável, valorizado e demarca "ideais de sucesso na regulação das relações, como a domesticidade feminina, da maternidade e do amor romântico" (Biroli, 2018, p. 92). Isso estabelece um conjunto de heteronormatividade que localiza a mulher numa posição de submissão e consequentemente a distancia de lugares de privilégios.
De acordo com Natacha Xavier (2019), as dimensões de privilégios e desigualdades corroboram para a exclusão de laços e desenhos práticos de organização familiar, que são consideradas formas de violência contra os direitos das mulheres. Quanto a essa questão, Pierre Bourdieu (2017) afirma que ocorre uma dinâmica social e historicamente construída nas relações de opressão homem-mulher, de ordem simbólica que atua na manutenção da submissão e da resignação feminina frente aos homens, na ideia de amor romântico e no casamento inabalável, fator que acarreta na manutenção de relacionamentos abusivos e violentos, dificultando que as mulheres os rompam.
De acordo com Wânia Pasinato (2015), é necessário pensar a violência contra a mulher como um aspecto de alta complexidade em relação ao seu cotidiano, considerando ainda as ações intersetoriais e transdisciplinares. Essas ações devem envolver seguimentos, como a saúde, a educação, a segurança pública, a assistência social, o poder judiciário e as organizações não governamentais. Xavier (2019) afirma que a mulher vítima de violência conjugal, está inserida numa realidade de humilhação pelo ato de violência e pelo julgamento moral de sua relação com o agressor, logo, ela sente-se desvalorizada diante da situação, fator que acarreta a produção de estigmas e na redução de sua rede de apoio. Neste contexto de violência, o sentimento de culpa pela violência sofrida e sua culpabilização externa promovem um amplo processo de humilhação e vergonha para estas mulheres. Outro fator agravante são os dados de feminicídio, que têm aumentado consideravelmente. De acordo com o Mapa da Violência (Júlio Waiselfisz, 2015), a média nacional de assassinatos é de 4,6 por 100 mil mulheres, onde sua maioria são negras e pobres.
Nesse sentido, pela soma da construção do que é ser mulher, rica ou pobre, branca ou negra, numa sociedade machista e patriarcal, que tem a violência, em todas as suas formas, como reguladora do espaço público e privado, significa pensar que as estratégias de enfrentamento às violações dos direitos das mulheres podem ser construídas através de uma leitura interseccional. Para Nogueira (2017), a análise interseccional possibilita a não essencialização das categorias gênero, raça e classe.
Luís Fernando Miguel e Flávia Biroli (2014) reforçam que os direitos das mulheres devem ser pensados a partir da atribuição do feminismo como um modo político de transformação e assinalam a impossibilidade de se pensar a teoria política negando a teoria feminista, pois este "é um pensamento que parte das questões de gênero, mas vai além delas, reorientando todos os nossos valores e critérios de análise" (p. 17). Logo, é de extrema importância que sejam colocados em xeque os determinantes sociais concedidos às mulheres ao longo da história da humanidade, de modo que a liberdade de ser quem quer que elas desejem seja o principal norte de cada mulher, parafraseando Simone de Beauvoir (2016), que o tornar-se mulher seja de cada uma, sem a violenta limitação imposta pelo sistema patriarcal.
A MULHER NO PROGRAMA BOLSA FAMÍLIA
As questões de gênero reproduzem de forma manifesta no cotidiano e influenciam diretamente as relações humanas, sejam elas de esferas trabalhistas, familiares ou amorosas. Martín-Baró (2014) afirma que a o caráter biológico se converte em destino na vida de parte considerável das mulheres latinoamericanas. A pobreza, enquanto uma questão social, também evidencia fortes questões de gênero. De acordo com Araújo et al. (2018), o desemprego e a crise econômica penalizam de modo mais incisivo as mulheres, tornando os fenômenos de pauperização predominantemente femininos.
Dessa forma, o gênero é um importante marcador de vulnerabilidade econômica. Para Martín-Baró e Lacerda (2014), os sistemas socioeconômicos dominantes constituem ordens discriminantes que prejudicam os setores mais frágeis, como o feminino. O fenômeno da feminização da pobreza é definido como um aumento dos níveis de pobreza entre casas chefiadas por mulheres (Medeiros & Costa, 2008). A feminização da pobreza é um processo global, de acordo com relatório da Oxfam (2020), 42% das mulheres em idade ativa estão fora do mercado de trabalho frente a 6% dos homens em todo o mundo. Além disso, a diferença de renda entre homens e mulheres é mais pungente no auge da idade produtiva feminina posto que haja o esgotamento do tempo da mulher para a dedicação às atividades assalariadas.
Neste sentido, o simples fato de se nascer mulher diminui as possibilidades e as facilidades de acesso a recursos, capacidades ou liberdades. De acordo com Silva Federici (2017), a feminização da pobreza encontra-se intrinsecamente relacionada ao desenvolvimento das relações capitalistas sobre a vida das mulheres e demarca a passagem do período feudal para as relações de produção de forma que a privatização das terras comunais, a separação entre espaço de produção (fábricas) e espaço de reprodução (lares) aumentou a pauperização feminina.
Mesmo antes da ascensão das relações capitalistas de produção, já havia uma divisão social do trabalho, entretanto, as atividades domésticas nem sempre foram relacionadas à fragilidade e à subalternidade. De acordo com Davis (2016), as mulheres foram trabalhadoras produtivas dentro da economia doméstica, sendo o seu trabalho tão respeitado como o dos homens. Quando a manufatura se deslocou dos lares para o chão das fábricas, ampliou-se a ideologia da natureza feminina, que evidenciava os ideais das mulheres, enquanto esposas e mães, apêndices dos homens e veículos passivos para o reabastecimento da vida humana.
O trabalho doméstico teve sua importância social subestimada obscurecida com o advento das relações capitalistas de produção, quando o salário passou a ser um marco valorativo das relações sociais. Davis (2016) também destaca que, junto à responsabilização da mulher no sustento de seus dependentes, encontram-se subjacentes o trabalho invisível relativo à vivência da maternidade, do cuidado com a casa e com os familiares, o que aumenta as barreiras de acessibilidade ao mercado formal de trabalho ao mesmo tempo em que não são remunerados.
As mulheres são instrumentos diretos das políticas públicas brasileiras, enquanto mães, esposas, cuidadoras e filhas. Dessa forma, faz-se necessário o debate sobre os pressupostos subjacentes ao principal programa de transferência de renda direta com condicionalidades do Brasil, o Programa Bolsa Família, evidenciando seus conteúdos implícitos e explícitos. As mulheres pobres são preferencialmente as escolhidas como responsáveis familiares (Lei n° 10.836, 2004). Elas serão oficialmente responsáveis pelo desempenho da família em relação ao PBF no cumprimento de condicionalidades na área da saúde e da educação e receberão mensalmente um valor calculado a partir da sua renda, da quantidade de dependentes e do período do ciclo de vida de cada membro da família. O dinheiro deve se converter em benesses necessárias à sobrevivência de seu coletivo.
Antes de ser um discurso neutro, a política pública reflete conflitos sociais de sua época, reforça papéis sociais associados a estereótipos e pode contribuir na manutenção de relações de poder. Para Martin-Baró (2014), a Psicologia precisa partir de uma consciência dos condicionamentos sociais do que é político, analisar o que há de psíquico na prática política de nossa sociedade. Em especial, o PBF incide de forma direta e imediata no cotidiano das mulheres pobres. Por um lado, as beneficiárias, que já eram mães, esposas, cuidadoras e gestoras da casa, podem ter uma segurança financeira para atenuar situações emergentes de vulnerabilidades. Entretanto, o PBF é um reforçador do trabalho reprodutivo, posto que nele encontra-se explícito uma relação de troca: as mulheres garantem o recurso para alívio imediato da pobreza da sua família à medida que cumpram determinadas condições, todas vinculadas à domesticidade feminina. É necessário que a mãe garanta que o filho esteja matriculado, frequentando a escola e em dias com as obrigatoriedades de saúde.
Caso a responsável não garanta as metas supracitadas, pode ser penalizada com advertência, suspensão e até cancelamento do benefício. Tais exigências recaem sobre a mulher sob penalidade de perda do PBF sem que sejam fornecidos espaços para promoção de processos emancipatórios próprios. Dessa forma, evidenciamos o caráter de centralidade desta política pública na criança e no adolescente, inexistindo uma agenda para o desenvolvimento feminino. A mulher pobre ao ser beneficiada por um programa de alívio a pobreza é colocada simbólica e legitimamente como guardiã dos filhos e administradora nata do gerenciamento de recursos escassos no espaço doméstico. Por outro lado, há indiretamente ganhos próprios na ampliação de possibilidades de existências, de alimentação da prole como direito, ainda que o valor seja insuficiente.
A segurança de um repasse financeiro mensal prioritariamente para a mulher pode aumentar seu poder de decisão feminino sob o uso do dinheiro e proporcionar melhorias de vida da titular como divórcios pelo aumento do poder de barganha dentro de relações violentas (Lavinas, Cobo, & Veiga, 2012). Dessa forma, o gênero feminino no contexto de pobreza conquista novos espaços dentro de sua família ao mesmo tempo em que precisa manter sua condição de mulher-do-lar. Sendo assim, para Letícia Bartholo, Luana Passos e Natália Fontoura (2017), a preferência pelo sexo feminino também pode reproduzir lugares sociais que se configuram como barreiras à emancipação como a primazia do trabalho doméstico, naturalizando papéis de gênero consagrados pela tradição e pelo costume. Para Davis (2016), o trabalho doméstico é intrínseco à história humana e ainda hoje fundamenta a manutenção dos modos de produção. Apesar de sua relevância, seu potencial não inventivo, criativo e não assalariado coloca as atividades no lar como um não-trabalho e posiciona a mulher em maiores situações de privações caso comparada ao sexo oposto. A responsabilização feminina pela hegemonia do cuidado de sua família tanto dificulta a entrada no mercado formal, quanto tira a mulher o poder de agenciar sua própria existência.
Neste sentido, o Estado não apenas legitima papéis de gênero, como penaliza as mulheres ao responsabilizá-las pela manutenção do PBF no que diz respeito a tarefas tradicionalmente domésticas, deixando as questões de gênero no âmbito privado e não levando ao debate público. De acordo com Chiara Saraceno (2005), é esperado que as mulheres invistam mais na família ao mesmo tempo em que a reciprocidade masculina não é interrogada. Neste sentido, as opressões de gênero não estão presentes apenas nas relações interpessoais, como também, manifestam-se estruturalmente através de aparatos legais e políticas estatais.
Nussbaum (2000) parte do pressuposto de que todo cidadão deve ser digno de preocupação e de respeito, inclusive as mulheres. O PBF, como um programa estabelecido dentro de uma conjuntura sociopolítica, reproduz as desigualdades de gênero de sua época e carrega em seu campo uma série potencialidades e contradições ao posicionar a mulher como instrumento de desenvolvimento familiar sem propostas que promovam seu concomitante agenciamento. Além disso, há a garantia de uma segurança de renda mínima apenas enquanto sua beneficiária permanecer executando funções historicamente a ela destinada, ainda não concebendo a titular fora da coletividade família como um sujeito que deseja, raciocina, idealiza e busca realizar-se.
O Estado centraliza na mulher expectativas de que ela reforce o laço social e satisfaça necessidades de seus coletivos. A subordinação do repasse financeiro ao cumprimento satisfatório de determinadas condições de saúde e de educação aponta para uma concepção de moral subjacente de que a mulher, de forma deliberada, não cuida de sua prole merecendo por isso ser punida. Mani Marins (2018) evidencia que implícita à lógica das condicionalidades há um incentivo ao processo de individualização posto que caberia ao indivíduo se livrar da sua situação de precariedade social, cumprindo de maneira responsável as contrapartidas da política.
Sendo assim, pouco se questiona situações de vulnerabilidade e de exclusões tácitas contidas na suposta escolha em não promover a apresentação dos filhos à escola, em não cuidar da saúde no puerpério ou não conduzir os filhos até a Unidade Básica de Saúde mais próxima para pesagem, vacinação e acompanhamento médico. A impossibilidade da família de dar sua contraparte aponta para situações de vulnerabilidades sociais e de violação de direitos fundamentais que podem ser superados com o auxílio da rede de assistência social.
Para Nussbaum (2000), a mulher não deve ser agente da prosperidade geral de uma família e sua missão no mundo não é executar o plano de vida de outra pessoa. A autora defende uma orientação ética e política direcionada a tratar cada ser humano como fonte de ação e valor próprio, com seus próprios planos e vidas para serem vividas, portanto, como merecedoras de todo o apoio necessário do poder público. Dessa forma, a exigência das condicionalidades reedita a representação simbólica do espaço doméstico como território habitualmente feminino e a primazia da família sob qualquer projeto pessoal de vida para sua responsável.
É inegável a importância da segurança de um repasse financeiro como direito no alívio imediato das violências provocadas por um cotidiano de negação de direitos, de fome e de miséria da população pobre do país. Entretanto, reconhecendo que o gênero intensifica e reverbera na pobreza, faz-se necessária a construção de políticas públicas que se comprometam com a autonomia e com as causas das mulheres. O Estado não é neutro diante da problemática do gênero, tornando-se agente reprodutor de questões históricas, políticas e culturais relacionadas à exploração do patriarcado, termo definido por Saffioti (2015) como o regime de dominação e de exploração do gênero masculino sob o feminino, cuja estrutura contamina toda a sociedade e impregna nos aparelhos estatais.
As atribuições das mulheres nas políticas públicas dentro do contexto de pobreza reforçam seu papel de subalternidade e de apêndice do desenvolvimento de outrem em detrimento do próprio, seja a da família como um núcleo, seja o do Estado como um projeto político. Defendemos a importância do afeto, do cuidado e da educação como base fundante do processo civilizatório e na manutenção da sociedade. Contudo amar, cuidar e educar não é uma função nata e exclusivamente feminina.
Saffioti (2015) destaca que o espaço íntimo e o espaço público encontram-se profundamente ligados e parcialmente mesclados. A partir dessa perspectiva, evidenciamos o caráter político das relações familiares e compreendemos que no campo pessoal se reproduzem diferenças de gênero, que são diferentemente valoradas trazendo a debate a sobrecarga feminina como dona-de-casa, cuidadora e provedora familiar. Essas funções se somam, mas não se dividem adequadamente, por exemplo, com cursos para o desenvolvimento profissional feminino, berçários junto aos setores privados e creches públicas de período integral. Sendo assim, ao ratificar a generificação das políticas públicas, defendemos uma agenda de desenvolvimento feminista, que inclua a socialização do cuidado, o aprofundamento das questões que permeiam a falta de acesso à saúde e à educação de qualidade e o reconhecimento da função social das tarefas reprodutivas no desenvolvimento da nossa sociedade.
QUANDO A CASA E A RUA SE ENCONTRAM
A experiência de se construir como mulher é vivida de maneiras diversas e é composta pela combinação de lugares, identidades, corpos e trajetórias que assinalam quem somos, mesmo que haja um padrão ideal em que estão marcadas expectativas sobre como ser mulher, e isso define um paradigma de comportamento, de convivência e espaço na sociedade. Contudo, este padrão está longe de expressar a complexidade e a multiplicidade de nossas vivências. Ao longo de nossa história, o trabalho reprodutivo foi sendo cada vez mais responsabilidade feminina, o que coloca a casa como seu domínio. Mas o que dizer das mulheres que não têm casa e fazem das vias públicas o seu lar e que, embora se diga que a rua não é o seu lugar, é lá que elas moram?
A casa é o lugar onde a vida é protegida das intempéries, das ameaças, perigos reais e da exposição do cotidiano. As paredes e muros conformam a fronteira entre o mundo privado e o domínio público. Nos espaços públicos, estamos de passagem, no trânsito entre diferentes lugares, todavia há quem confronte a regra geral e permaneça nesses espaços e os transforme em lugar de moradia, mantendo as rotinas da vida privada nas praças, calçadas, viadutos e imóveis abandonados. Para Sarah Escorel (1999), o fenômeno no qual o lar convive com o espaço público, reflete o desafio a determinados princípios básicos de organização social e enfatiza que processos de exclusão são responsáveis por produzir este fenômeno. Izalene Tiene (2004) relaciona estes processos de exclusão a uma imposição da sociedade de classes, na qual a mercadoria e o mercado se sobrepõem à pessoa e à vida.
Estar em minoria particulariza a experiência das mulheres que moram e sobrevivem nas e das ruas. Pesquisa realizada pelo extinto Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) identificou que apenas 18% das pessoas em situação de rua são mulheres (MDS, 2009), um número bastante reduzido, principalmente se considerarmos que as mulheres representam, de acordo com o Censo Demográfico 2010 (IBGE, 2010), mais de 50% da população brasileira. Talita Gonçalves (2019) menciona como os limites das estruturas que definem papéis de gênero vão sendo afrouxados com a presença das mulheres num mundo predominantemente masculino e demonstra que o fato destas mulheres se encontrarem em situação de rua suscita uma subversão a um modelo prescrito para o que é feminino.
Ao evidenciar o caráter de subversão na existência de mulheres vivendo em contexto de rua, não desconsideramos as dificuldades impostas por esse cenário, tampouco pretendemos desprezar as circunstâncias opressivas que compõe o percurso traçado até aí. Ao contrário, consideramos evidenciar que o processo de saída para as ruas é permeado por situações que, envolvendo conflitos familiares, dentre os quais tem-se marcadamente a violência doméstica, a separação e/ou conflitos conjugais e familiares (Rosário, 2015; Tiene, 2004). Ana Lúcia Spiassi (2016) revela a fragilidade do ideal casa/lar como espaço seguro ao mostrar que independente da condição de raça, idade e escolaridade, as mulheres que participaram de sua pesquisa estiveram submetidas a circunstâncias de violência ocorridas antes ou depois da situação de rua.
Andréa Esmeraldo Câmara (2019) ressalta que ao atravessarem a fronteira da casa e irem para as ruas, as mulheres podem experimentar sentimentos que vão desde o alívio pelo rompimento com a violência até medo e desamparo e, estando nas ruas, tecem seus modos de vida à medida em que constroem suas relações com esse novo território. Gilderlândia Kunz, Ana Lucia Heckert e Silvia Carvalho (2014) e Escorel (1999) acentuam a importância das redes de apoio que contribuem para as necessidades das pessoas em situação de rua e mostram que estas redes podem conduzir a mobilidade das pessoas e a atribuição de significados aos territórios em que mantém relações de modo que é possível afirmar que as redes de apoio atuam na estruturação dos modos de vida de pessoas em situação de rua. Ao afirmar que a mobilidade de quem vive nas ruas é norteada em razão das relações interpessoais, Tiene (2004) ressalta que as relações estabelecidas no universo das ruas podem ser transitórias, assim haveria deslocamentos territoriais em razão de novas relações promotoras de apoio. No caso das mulheres, o processo de invisibilidade de sua presença nas ruas faz com que não haja políticas públicas ou benefícios assistenciais que contemplem suas necessidades, o que coloca esta rede de apoio no lugar de suma importância.
Além de maior dependência em relação à rede de apoio para manutenção de suas necessidades cotidianas, as mulheres em situação de rua estão mais expostas à violência do que os homens nesta mesma situação. Para Anderson Rosa e Ana Brêtas (2015), nas ruas, as mulheres estão sujeitas a diversas formas de violência, mas a violência física é a que atinge de forma mais intensa as mulheres, que relatam situações de agressão e morte. Os autores classificaram em ordem de incidência os agentes das violências, em primeiro lugar, está a violência praticada por pessoas intolerantes com as pessoas em situação de rua, em segundo lugar, está a violência praticada pelas próprias pessoas que estão no cenário das ruas, as quais têm como motivação, principalmente, dívidas com traficantes, disputas pessoais por espaço e por parceiros, além de desavenças pessoais, e, em terceiro lugar, está a violência de cunho higienista praticada por agentes de segurança.
Em virtude de que a violência de gênero, corrente no contexto das ruas, evoca a ideia de fragilidade feminina e, consequentemente, a de supremacia masculina, é preciso atentar para compreensão desse processo como uma construção social, no qual o patriarcado sustenta a educação feminina a partir da ideia de docilidade. Como alerta Saffioti (2015), a diferença sexual convertida em diferença política contribui para que as violências perpetradas contra as mulheres sejam naturalizadas. Assim, na situação de rua, o medo surge como um sentimento que se faz constante para estas mulheres.
Para além das expressões das violências, propriamente ditas, são evidenciadas as relações estabelecidas em função das assimetrias de gênero que, no cenário das ruas, reproduzem as experiências da vida doméstica e onde a divisão sexual do trabalho orienta as rotinas de homens e mulheres, fazendo com que elas sejam as principais responsáveis pelo trabalho reprodutivo de cuidado, tanto de seus parceiros, como de todo o grupo, ainda que, assim como os demais, realizem atividades para aquisição de alimentos, roupas e dinheiro. Para Rosário (2015), esta realidade revela um modelo de submissão que vai da casa para a rua. Para Saffioti (2015), o patriarcado conduz a uma supremacia masculina, ao mesmo tempo em que educa mulheres para a resignação e obediência. Biroli (2018) analisa a divisão sexual do trabalho considerando seu papel estruturante, já que para a autora estas relações organizam a sociedade atribuindo de forma desigual as responsabilidades entre homens e mulheres, que ocupam um lugar subalterno a serviço dos demais.
Mesmo que a relação entre homens e mulheres na rua seja permeada por essa desigualdade estrutural, muitas vezes, as mulheres recorrem à presença masculina como forma de proteção, pois se acredita que as mulheres sozinhas estão mais expostas às violências (Tiene, 2004; Bortoli, 2017). Além da proteção, a relação com um parceiro é construída a partir de afetividade. Não é raro que algumas mulheres estejam nas ruas acompanhadas dos parceiros com quem já estavam antes dessa vivência, ou que constituam relações com homens que também estejam nesta situação. Kunz, Eckert e Carvalho (2014) e Bortoli (2017) contam histórias de casais que foram juntos para as ruas e mantiveram-se nesta relação, mesmo após um certo tempo de moradia na rua.
O lugar-comum e a padronização, seja das pessoas ou das ações, não coadunam com a vida nas ruas. Tiene (2004) avalia que em virtude das histórias e experiências de cada mulher que vive nas ruas, suas formas de viver não podem ser uniformes. Estas mulheres são capturadas pelo significado social que é atribuído à rua, como se estar ali fosse a única vivência que as identificam sobre elas pesam estigmas e preconceitos que medeiam seus modos de vida. Segundo Richard Parker (2013), estigmas e preconceitos configuram processos que representam estruturas de poder e de dominação mantenedores de desigualdades sociais, portanto processos opressivos. A marca da rua é a diversidade, no entanto, o olhar que se lança sobre ela uniformiza as mulheres em rótulos que, de um lado as fragilizam e as vitimizam, de outro, as culpam e as demonizam. Bortoli (2017) assinala que os preconceitos podem limitar as possibilidades das mulheres em situação de rua, enquanto Rosário (2015) destaca que as mulheres criam estratégias de sobrevivência frente aos preconceitos e discriminações.
Os contextos opressivos, a que estão submetidas as mulheres em situação de rua, são entremeados por sua condição de gênero, assim como pela pobreza e pelos significados que a rua carrega. Escorel (1999) identifica a exclusão e a desigualdade como processos nos quais, para além da limitação de acesso aos bens, são definidos lugares sociais para as pessoas que vivem nas ruas e destaca como a naturalização da pobreza e a culpa atribuída às pessoas pobres por sua condição impactam na exclusão social. Já Rosário (2015) alerta que é exatamente a condição de pobreza uma propulsora para a trajetória de rua. Entretanto, é necessário reconhecer que a pobreza tem expressões distintas e atinge de formas diferentes estes grupos de pessoas, mostrando uma face muito mais dura para as mulheres. Para Anistia Internacional (2009), as mulheres pobres estão mais sujeitas à violência e à discriminação, tanto que homens pobres, como em relação às mulheres de outras classes sociais, e tem seus direitos à saúde, educação e alimentação limitados.
Contudo, em meio a processos opressivos, as mulheres em situação de rua constroem processos de resistências, e o fato de estarem vivas num cenário em que estão tão expostas à violência escassez é sinal de resistência. Kunz, Heckert e Carvalho (2014) mostram como é necessário o desenvolvimento de táticas e astúcias para dar novos significados aos espaços da rua para com isso construir possibilidades de manutenção de sua integridade. Enfrentando as vicissitudes do ser mulher (gênero), da pobreza e da rua, estas mulheres mostram que são autoras da própria história e da própria vida.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Compreender as categorias gênero e pobreza, no cotidiano de mulheres que são beneficiárias do PBF e das mulheres que vivem em situação de rua é um desafio que nos convoca de antemão a renunciar à essencialização de uma identidade cristalizada dadas às mulheres numa sociedade pautada pela lógica patriarcal, que não foi pensada para acontecer com as mulheres ocupando os espaços públicos, de poder e de emancipação. Nesse sentido, as práticas de exclusão social, analisadas através da leitura interseccional de gênero e pobreza, nos direcionam a um tensionamento urgente, na tentativa de reflexão, análise e superação da lógica universal sobre os modos de vida das mulheres e que também nos convoca a repensar as políticas públicas de atenção a elas, uma vez que as necessidades a serem vistas são as mais diversas possíveis.
As mulheres em situação de rua, ao ocupar o espaço público e criar novos modos de vida neste contexto adverso, através de processos de resistência, nos provocam a olhar para este lugar de uma maneira criadora em que elas podem e devem ser autoras de suas escolhas, porém, com a demanda de efetivação de políticas públicas que sejam capazes de conceder e garantir bens essenciais como trabalho, educação, saúde, entre outros, que visem a sua dignidade, bem como a superação de um lugar de opressão.
Essa mesma lógica, de um olhar interseccional, dentro do recorte de gênero e pobreza, com as mulheres beneficiárias do PBF, também nos dá pistas de como não naturalizar o espaço que elas ocupam de forma que o benefício social não deve ter um caráter assistencialista, mas que junto dele os equipamentos e profissionais envolvidos neste processo possam promover espaços dialéticos e de conscientização em que sejam dadas possibilidades de reflexão quanto ao cuidado que as mulheres dedicam às suas famílias e ao lar em que vivem, de modo que esta ocupação também seja percebida como um trabalho que precisa ser repensado na agenda das politicas de atenção às mulheres e reconhecidas com a sua real função social.
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Submissão: 06/07/2020
Revisão: 13/02/2021
Aceite: 14/02/2021
Financiamento Verônica Morais Ximenes - Bolsista CNPq PQ 1D Renata Cristina Façanha de Meneses - Bolsista de Mestrado da CAPES
Contribuição dos Autores:
Concepção: RM; AE; NX; VX
Coleta de dados: Não se Aplica
Análise de dados: Não se Aplica
Elaboração do manuscrito: RM; AE; NX; VX
Revisões críticas de conteúdo intelectual: RM; AE; NX; VX
Importante: Aprovação final do manuscrito: VX
Consentimento de uso de imagem: Não se Aplica
Aprovação, ética e consentimento: Não se Aplica