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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito v.6  Salvador  2004

 

O PSICANALISTA

 

Psicanálise e convênio: uma parceria possível?

 

 

Jacqueline Kruschewsky Duarte Raphael*

 

 


RESUMO

A autora questiona a possibilidade da parceria entre psicanálise e convênio, a partir de pontos como o tempo, transferência e pagamento, tendo em vista que as condições determinadas pelas instituições prestadoras de serviços tendem ao conflito com a ética e a técnica da psicanálise.

Palavras-chave: Contemporaneidade, Psicanálise, Convênio, Tempo, Transferência, Pagamento.


 

 

Contemporaneamente, vem acontecendo uma possibilidade de atendimento psicoterápico, através de uma nova organização assistencial em saúde, os convênios, que oferecem assistência médica e psicológica aos seus usuários.

Esta experiência clínica vem suscitando vários questionamentos em relação à possibilidade da parceria psicanálise e convênio, o que nos leva a indagar: como situar a prática psicanalítica como prática psicoterápica, desde que autorizado, apenas, é um tratamento psicoterápico, e não especificamente psicanalítico?

Se, de um lado, a psicanálise possui seus princípios, por outro, o convênio tem normas e regras a serem seguidas. Pode a psicanálise moldar sua prática às exigências de um plano de saúde? Seria isto fazer psicanálise? Como fica a identidade do psicanalista num caso desse?

Ao pensarmos as questões que especificam a psicanálise, encontramo-nos diante do impasse em responder se há possibilidade de tratamento psicanalítico com pacientes de instituições conveniadas.

Segundo Lacan, em “A Direção do Tratamento”, o que determina a psicanálise são seus princípios, e temos como primeiro o de que o analista deve dirigir o tratamento. Se pensarmos nas normas e regras estabelecidas pelos convênios, estaremos diante da questão do convênio dirigir o tratamento.

Se o profissional psicólogo, credenciado ao convênio, tem formação em psicanálise, aí se situa o impasse, já que as condições de trabalho determinadas pela instituição podem ferir a técnica e a ética da psicanálise.

Podemos citar inúmeros elementos técnicos que tensionam com a psicanálise, quando pensamos nessa parceria. Entre os mais significativos destaco o tempo, a transferência e o pagamento.

 

O TEMPO

Os convênios, na sua grande maioria, preestabelecem o tempo da sessão e o tempo do tratamento. Se uma análise sofre esta interferência técnica, como fica a ética que rege a sua práxis?

No progredir da história, o percurso de uma análise tem-se mostrado cada vez menos pré-determinado.

Lacan se refere ao tempo do analisando de uma maneira lógica, um tempo como função subjetiva, onde ele nos faz refletir que o sujeito decorre da lógica do inconsciente e esta inclui o tempo. No processo da associação livre, entre o dizer e o dito, o tempo cronológico cede lugar ao tempo lógico que é o tempo do inconsciente. Por isso é que o tempo de um tratamento psicanalítico não pode ser pré-determinado. É o tempo de cada um, intrínseco ao seu processo de análise.

Nesse processo, o analista ocupa o lugar do Outro, através do endereçamento da demanda do analisando quando se constitui a transferência. Por intermédio do seu discurso o analisando vai construindo sua história pela cadeia de significantes, buscando um sentido para seu enigma. De quando em quando um outro sentido se confere, fazendo surgir uma significação. É esse processo de novas re-significações que permitirá ao sujeito se inserir na sua história.

Cabe ao analista orientar o tratamento a partir da fala do analisando e é importante que esse trabalho não se limite a um tempo cronológico. Segundo Colette Soler, o trabalho do inconsciente não está localizado exclusivamente dentro do tempo da sessão, sendo este um momento de acolhida. Podemos entender com isto que, quando o analista intervém, interrompendo a fala do analisando, ele está possibilitando o advento da significação inconsciente, a verdade entendida como significação, que coloca em funcionamento o deslizamento dos significantes também para fora da sessão analítica. Daí o corte da sessão, como ato analítico, ter uma função de interpretação, levando à produção de significantes, fazendo surgir a dimensão do desejo como questão.

Quando Lacan se referiu a sessões curtas, baseado no tempo lógico, ele se referenciou na lógica da pressa, ou seja, se temos pouco tempo para realizar uma tarefa, nos apressamos em fazê-la no curto tempo disponível, visando precipitar a sua conclusão. Quando o analista suspende a sessão em um determinado momento, este corte tem uma estrutura de escansão, que quer dizer pontuar, sublinhar, destacar algo significativo e tem o valor de uma intervenção para precipitar o momento de concluir.

Pensando nesse modo de dirigir o tratamento percebemos, com relação ao paciente de convênio, uma grande interferência.

Na conclusão do trabalho monográfico que inspira essa comunicação trago uma proposta, à qual retornarei ao final desta explanação, que busca administrar essa interferência visando tornar possível essa parceria.

Nesse momento passo a falar do segundo elemento, que é a transferência.

 

A TRANSFERÊNCIA

Temos a transferência como um conceito fundamental da psicanálise, já que a análise só acontece sob transferência. Podemos então nos questionar: como fica o vínculo transferencial via convênio, e qual o tempo que temos para manejar a transferência?V Se pensarmos no atendimento de pacientes de convênios, será que conseguimos transpor o tempo das entrevistas preliminares? Estaria essa transposição dentro ou fora do tempo cronológico oferecido pelo convênio?

A cada sessão e ao longo do percurso, o analista vai fazendo o manejo da transferência, situando a sua ação na perspectiva do imprevisível, o que requer um tempo.

Quando alguém busca uma análise dizendo que quer se desvincular de um sintoma, se vê diante de um enigma o que faz com que suponha um saber a um Outro, e isso é uma condição para a entrada em análise. É o que constitui o sujeito suposto saber significando que a transferência já está estabelecida. Esta demanda dirigida ao analista apresenta-se como demanda de amor ao saber. O amor, na relação transferencial está vinculado ao saber, sendo o sujeito suposto saber, para Lacan, o pivô de onde se articula tudo que é da transferência.

Trata-se de uma suposição, portanto um erro subjetivo, porque o analisando acredita, mas também, duvida, de que o analista realmente saiba. Por meio de sua fala, o analisando se escuta num lugar que lhe é estranho e familiar simultaneamente. Esta outra dimensão de suposição que provoca a fala atesta a existência do inconsciente, sendo o sujeito suposto saber uma produção do dispositivo analítico.V Na teoria psicanalítica, a transferência tem a ver com a estrutura da situação analítica que coloca o analista na posição de escuta. Sua fala, sua interpretação, seu silêncio, possibilitam que o analisando decida o sentido do seu dito.

A estrutura da análise, vista desta forma, aponta para a dês-suposição de saber ao analista como meta do trabalho de transferência. No entanto, essa instituição de sujeito suposto saber é essencial, já que o analista precisa desse dispositivo operatório, a fim de que, assegurando a não aceitação dessa posição, favoreça que a análise ocorra.

Essa realidade se modifica e se torna complexa quando pensamos na relação psicanálise e convênio.

Esse tipo de parceria implica, no primeiro momento, um vínculo do paciente com o convênio. É ao convênio que ele vai inicialmente direcionar um pedido de ajuda, de alívio para sua dor, seu sofrimento.

O que ocorre, muitas vezes, como conseqüência desse primeiro endereçamento, é que o vínculo, que é transferencial.

Este precisará lidar com essa dificuldade inicial. A partir daí, ele precisa ser colocado pelo paciente num lugar de saber, para que possa operar.

A entrada do psicanalista nesse “cenário” é, na verdade, a instalação de um discurso, que implica em distanciar a transferência com o convênio, para possibilitar um outro vínculo, o que, conforme verificado na experiência é possibilitado por uma articulação significante não constituindo, nesse caso, impedimento para que o trabalho aconteça.

Passamos agora para o terceiro elemento, o pagamento.

 

O PAGAMENTO

Por que o analista precisa cobrar? Por que o analisando precisa pagar? Por que em psicanálise pagar é fundamental?

Já que é assim, cabe assinalar que na modalidade de trabalho via convênio é este que paga ao profissional através de um faturamento. Isto é prejudicial ao tratamento, principalmente pelo fato de que a relação com o dinheiro passa pelo investimento, que é a forma como cada um se relaciona com sua energia libidinal. Quando dizemos que na psicanálise é fundamental que o trabalho seja pago, isso a diferencia de algumas modalidades de tratamento, considerando que no trabalho analítico o sujeito paga para perder, e não para ganhar bens. Como lembra Ana Cristina Figueiredo em seu livro “Vastas Confusões e Atendimentos Imperfeitos”, sem alguma forma de pagamento uma análise não anda. Pode-se chegar até certo ponto, mais ou menos avançado do trabalho de elaboração, mas há sempre um momento em que pagar (ou não) entra em jogo como um poderoso fator de resolução da transferência.

O dinheiro, fazendo as vezes do objeto perdido, entra em cena desde a primeira hora como o que se perde para garantir uma perda de gozo do sintoma, já em questão quando se procura um analista. Aí, podemos nos interrogar: Se é o outro (a instituição) que paga, e não o próprio sujeito, o gozo do sintoma se mantém?

Observamos muitas vezes que os pacientes de convênio, em determinados momentos da análise, sentem a necessidade de “pagar”, presenteando o analista, o que faz uma diferença no seu pagamento, individualizando-o, já que o valor pago pela sessão de convênio é igual para todos. Podemos considerar esse tipo de movimento como uma conseqüência da desestabilização do gozo do sintoma.

É exatamente por isso que o sujeito precisa pagar, já que o dinheiro serve para amoedar o capital da libido e esse preço não pode ser negligenciado, questão para a qual Freud chamava atenção desde o início da psicanálise. Para ele, o sintoma seria uma satisfação libidinal substitutiva, aliás, o melhor investimento do capital do sujeito, para quem, ficar doente é obter alguma vantagem. Há um benefício secundário, além da satisfação pulsional que o sintoma proporciona, onde o sujeito lucra com isso, que é o que Lacan chama de gozo do sintoma.

Dentre outras coisas, o benefício do sintoma está vinculado à questão do dinheiro. Na análise, através da transferência de capital, do sintoma, para um objeto que é o analista, há um corte na economia de gozo do sujeito incluído na “doença”, e não é fácil abrir mão desse gozo, o que acarreta dificuldades para o analista no manejo da resistência.

 

CONCLUSÃO

A partir dessa reflexão observamos como as questões tempo, transferência e pagamento se relacionam e como sofrem a interferência das determinações da instituição convênio, já que, de acordo com sua necessidade, o dinheiro é contabilizado, o tempo é determinado a depender da disponibilidade financeira, e a direção dessas questões “necessita” ser feita por ela, o que interfere na relação transferencial do paciente com o analista.

Será que estaríamos dizendo com isso que a análise não pode se dar nessa parceria?

Em primeiro lugar, essa parceria não existe quando pontuamos que o contrato de convênio é efetuado com a psicoterapia e não com a psicanálise. Embora para o entendimento geral, a psicanálise não seja mais do que uma forma de psicoterapia, fazer psicanálise não é fazer psicoterapia. Pensar o contrário faz problema e, em particular, ameaça a psicanálise, pois contribui para dissolver a sua especificidade, afetando a identidade do analista.

Acreditamos que essa questão do psicanalista atender pacientes de convênio, com um registro de que faz psicoterapia, é uma conseqüência dessa antiga imprecisão, onde nós, enquanto profissionais credenciados, nos deixamos “anular” como psicanalistas.

Trabalhar dentro dessa modalidade, com pacientes de convênio é possível sim, a partir do momento e do princípio de que possamos atuar priorizando o sujeito, para que as questões fundamentais da psicanálise possam operar no dispositivo produzindo efeitos.

A reflexão sobre esses pontos de tensão nos leva a idéia de propor aos convênios modificações, no sentido de que o credenciamento possa ser direcionado para a psicanálise. Esse é um ponto que pretendo levar a discussão com psicanalistas interessados nessa perspectiva de trabalho e já considero neste espaço a oportunidade de lançar este desafio.

As alterações que precisam ser viabilizadas, a princípio, são as seguintes: Em se tratando do tempo para o tratamento proporíamos que ele passasse a ser variável, para que o próprio analista pudesse direcioná-lo conforme solicitação do dispositivo. Quanto ao pagamento, seria interessante que o analista tivesse liberdade para estipular o valor levando em consideração não um preço pré-fixado para todos, mas o que o sujeito pudesse e devesse pagar pelo seu investimento. Conseqüentemente a essas modificações, a questão da transferência já passaria a ser mais direcionada para a figura do analista.

Mas vale lembrar que, embora essas alterações se façam necessárias, o que vai de fato possibilitar essa parceria é a presença do analista. Condição suficiente para tornar possível uma análise.

 

BIBLIOGRAFIA

MILLER, Jacques – Alain. A Erótica do tempo. Seminário proferido durante o X Encontro Brasileiro do Campo freudiano: Os circuitos do desejo na vida e na análise, abril de 2000, Rio de Janeiro.

RAPHAEL, Jackeline Kruschewsky Duarte. Psicanálise e convênio: Uma parceria possível? 2003. 57 f. Monografia (Especialização em Teoria da Clínica Psicanalítica) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador.        [ Links ]

 

 

NOTAS

*Psicóloga. Psicanalista. Especialização em Teoria da Clínica Psicanalítica – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, UFBA

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