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Cógito

versão impressa ISSN 1519-9479

Cogito vol.12  Salvador  2011

 

O sem-tempo

 

Non-time man

 

 

Sônia Vicente*

Escola Brasileira de Psicanálise - Seção Bahia

 

 


RESUMO

A sessão analítica é um lapso de tempo que visa um ponto singular no discurso que possibilite ao sujeito uma retificação do sentido e da modalidade lógica da sua existência enquanto falasser. Este artigo tem como objetivo evidenciar que a experiência analítica é essencialmente um manejo do tempo. Uma revisão de literatura apoia o relato de um caso clínico que se dirige à análise no momento de concluir sua vida. A manobra do tempo, na transferência, revela a função de relançamento que uma interpretação deve ter, restituindo ao ato suas duas dimensões: corte e infinito. O ato revela a dimensão assemântica do inconsciente, o que faz supor que ele resulta da temporalidade da sessão analítica. Nessa via, a direção do tratamento desse sujeito, com sessões de tempo variável, o conduz a retificar seu sintoma como modo de gozar do inconsciente, descolando-se da sua fantasia de eternidade para aí começar a viver.

Palavras-chave: inconsciente; tempo; sessão analítica; transferência; interpretação.


ABSTRACT

The analytic session is a lapse in time aimed at a singular point in the discourse that enables the subject, while a falasser, to a rectification of his existence’s meaning and logic mode. The purpose of this article is to show that the analytic experience is, essentially, a time management. A review of the literature supports the report of a clinical case which heads to analysis by the time his life is thought to be almost through. The maneuver of time, in the transference, reveals the reinsertion function which an interpretation must have, readdressing to the act its two dimensions: cut and infinity. The act reveals the non semantic dimension of the unconscious, which suggests that it is a timely result of the analytical session. In this way, the direction of the treatment of this subject, with sessions of variable durations, leads him to rectify his symptoms as a way to the unconscious satisfaction, dislocating himself from his fantasy of eternity to, so, start living.

Key words: unconscious; time; analytic session; transference; interpretation.


 

 

A análise é uma experiência intrinsecamente ligada à noção de tempo. Qual seria, então, a relação entre inconsciente e tempo? Desdobrando um pouco mais essa pergunta: qual a relação entre inconsciente e sessão analítica? Desde sempre, vimos Freud enunciar: “o inconsciente, não conhece o tempo”, concebendo-o como eterno, como inalterável, qualificado de atemporal, o que quer dizer que os processos inconscientes não seriam nem ordenados, nem modificados pelo tempo. É preciso que se fique advertido de que Freud1 , ao fazer essas afirmações, baseava-se na “hipótese do inconsciente”, sendo este, então, inferido como “já estando lá” e, também, a partir de defeitos desorganizadores com os quais o sujeito tinha de lidar, não conseguindo dar conta pela decifração. Isso nos deixa entrever a dimensão real do inconsciente já aí conotada2.

No seu retorno a Freud3 , Lacan faz uma nova leitura da noção do tempo, quando nos envia ao Nachträglich freudiano4 , ao só-depois, formalizando o “tempo reversivo” como tempo lógico5 . Falar da existência do inconsciente implica, necessariamente, remeter ao só-depois, que indica a hiância entre os instantes temporais e demonstra a impossibilidade de um instante ser igual a si mesmo.

O instante do tempo faz advir a necessidade lógica sob a forma simultânea de fazer o tempo presente inscrever-se no passado, ganhando o sentido inconsciente de ter sido escrito antes e o passado retornar ao presente, tendo como “pivô” o Sujeito suposto Saber, significação que opera reduplicando e escandindo a cadeia significante. Nessa via, é a transferência, que permite ter acesso e introduz retificações que mudam a relação com o que há de real no inconsciente, o que faz supor que este resulta da temporalidade da seção analítica. Portanto, para ele, o inconsciente tem uma afinidade essencial com o tempo, enquanto se inscreve como acontecimento na sua trama6 .

Para Lacan7 , o inconsciente estruturado como uma linguagem tem uma temporalidade pulsátil, sendo da ordem do não realizado, do que está por se realizar, o que lhe confere o estatuto ético de “querer ser”. Entretanto, o último ensino de Lacan faz avançar a experiência analítica, apresentando uma concepção do inconsciente cuja referência é uma dimensão assemântica. Ao apostar no significante Um, diz-nos que só com essa redução pode aparecer um momento em que se é convocado a julgar e a concluir. Constatamos, então, que, para Freud, a referência fundamental do inconsciente é o passado; para Lacan, é o futuro contingente8.

Sendo assim, se a sessão analítica tem sua regularidade, se nela existe algo de invariável, é somente para possibilitar o surgimento de uma manifestação sintomática do inconsciente. É nessa lógica que a sessão deve ter tempo variável, ou seja, comportar a manobra do que chamamos ponto suplementar, um ponto de basta que, por não ser homogêneo aos outros, pode ser inserido onde quisermos, o que faz o término da sessão, por estrutura, irregular, fazendo surgir o imprevisível.

Em outras palavras, essa manobra é o que expressa a função de relançamento, que tem uma interrupção, ao devolver ao ato suas duas dimensões: de corte e de infinito9 . A escansão inesperada dá a cada sujeito que nos demanda tratamento a esperança de um encontro desde sempre adiado. É preciso ressaltar que esse ponto marca uma das principais inovações trazidas por Lacan na direção do tratamento, pois, ao introduzir a associação entre tempo e interpretação, praticamente reduz a interpretação a um corte na temporalidade do discurso do analisando.

Em Subversão do Sujeito e Dialética do Desejo, Lacan10 diz que o neurótico é um Sem-Nome, por negar com todas as forças a castração, que lhe permitiria aceder ao desejo. Nessa via, vou seguir Lacan com o caso de um sujeito que se nomeia um Sem-Tempo. O percurso analítico atesta que o que faz a diferença na relação do sujeito com o uso do tempo é a presença do analista.

“Quero saber qual é o meu tempo.” Esse foi o primeiro enunciado de F no encontro com o analista, ficando à espera de uma resposta. A despeito de imediatamente pensar que estava diante de um sujeito que iria questionar o “tempo lacaniano” das sessões, o analista fez silêncio, ao levar em conta que o princípio dessa experiência é uma manobra de tempo, deixando-o em espera para fazer com que ofertasse seu objeto.

Após alguns segundos de reflexão, o sujeito enuncia: “Não posso esperar; agora não tenho mais tempo.” E por que veio? Surgiu uma interrogação de forma incisiva. Surpreso, retrucou: “Preciso me modificar para começar a viver.”

Esse sujeito referia-se ao diagnóstico que acabara de receber de uma doença autoimune. Mostrava-se incrédulo, apesar de, por anos a fio, ter mantido relações com os mais variados parceiros, sem tomar nenhuma precaução. “Como isso pôde acontecer?” repetia.

Sabia que estava arcando com a responsabilidade de seus atos, expressa num estudar de forma compulsiva tanto os assuntos da sua profissão quanto da sua doença. Queria saber tudo que não entendia. A doença interrompeu a sua “rota”, marcada por um não querer saber, e agora só tinha de consistente o conhecimento. A ciência, a princípio, era a solução, pois a procura desse conhecimento criou a fantasia de poder dominar seu tempo.

Nessa perspectiva, F desenvolveu rituais obsessivos de contagem de elementos alimentares e intelectuais, que devia ingerir, na tentativa de ter controle sobre a morte. Dizia-se com muita pressa, correndo atrás do tempo, sempre acompanhado do pensamento “se estiver vivo até lá”. Então você quer estar vivo, até lá? A ciência, ao marcar a data da sua morte, instala a função da pressa, precipitando-o na insistência em recuperar o não realizado, revisando o passado. O corte, marcando o tempo futuro, relança a possibilidade de viver, não mais “desperdiçando o tempo”.

Conduzia a vida, usufruindo de sua imagem, fazendo da beleza seu trunfo, seu único valor. “Os belos podem tudo. Só os gênios e a beleza são infalíveis. Falha é para os mortais”, afirma. Ficou sempre na busca da perfeição, não sabendo lidar com o que denominava “um corpo velho” que o aproximava da possibilidade do encontro com a morte, fazendo surgir a angústia.

Apresentava-se como vítima da passagem do tempo e, portanto, marcado de todas as formas pela negatividade, ao ver-se decaído da sua fantasia de eternidade. Em consequência, desenvolveu um horror ao tempo, na medida em que este introduz o desgaste, o envelhecimento.

Paradoxalmente, essa fantasia de imortalidade surgia para esconder o desejo de que tudo terminasse logo, expresso numa percepção de que, atrás de uma vida aparentemente satisfatória, nada existia. “Tudo era encenação”. Não havia planejado o que estava lhe acontecendo; sempre pensou que morreria antes. Ressaltado o advérbio temporal antes, revelou que, desde sempre, sofria com a questão da transitoriedade, segundo a qual tudo é “[...] como uma luz que acende e apaga; nada antes e nada depois. Tudo vai mesmo se perder no esquecimento”. Tal construção evidencia a vertente atemporal do gozo narcísico. Vivia do pré-texto porque temia o texto inconsciente. Assim, glosava a sua própria existência.

O tempo passa e F não agrava a doença; entretanto, permanece imerso na queixa do envelhecimento, até trazer um sonho que se repete, indicando, conforme Freud, um trauma. Está num cemitério e um homem corre atrás dele. Quando o está alcançando, ele acorda berrando: “O que esse homem quer de mim?” Ao gritar, também na sessão, acrescenta: “O que devo a esse homem? Ele, morto, vem cobrar minha mãe?” Um morto vivo foi a interpretação, incidindo na hipótese do pai vivo, que o apavorava, por pensar que ele o destruiria.

Nesse sujeito, observamos a suspensão do gozo, projetando na sua história a eternização do amor insatisfeito, por meio do culto ao homem morto. Este traz como efeito o medo de que o morto volte para gozar do vivo. Trata-se, para F, do castigo do pai. Detido na demanda de um amor idealizado, pensando o amor somente pela via da pretensa perfeição, interrompia suas realizações e relacionamentos, evitando o momento de concluir. F destrói o Outro, marcando sua falta como forma de sentir-se vivo. Ironicamente, sem perceber a morte do desejo.

A instalação do Sujeito suposto Saber aparece na transferência, no que chama “sua loucura”. “Estou só, nada mais me interessa. O que me resta? Aí penso sem parar que só me resta você, para garantir minha vida, apesar de saber que isso é impossível”. Mais um corte, desta vez com um tom interrogativo: saber impossível? Sai tropeçando. O Sujeito suposto Saber opera a reversão temporal, a pura experiência do tempo vivida na sessão pelo sujeito, como inédita.

O corte, ao revelar sua busca incessante por um saber impossível, o real, do qual tinha horror, possibilitou uma conexão entre a atemporalidade do inconsciente e a temporalidade da interpretação, indicando, para ele, a necessidade de uma releitura do “seu texto original”. A interpretação inscreve-se no tempo, para provocar a espera de um encontro surpresa que irá permitir a irrupção inesperada do sem-sentido. Essa é a essência do ato analítico11.

Como manobra transferencial, na direção do tratamento, suas sessões foram de tempo variável, o que o deixava “sem rota”, num tempo regido por um ainda não saber. Os cortes visavam cernir um ponto singular na selva de significantes que ele produzia, na tentativa de se responder sobre a morte dita iminente. Assim, as sessões tornaram-se não um espaço de gozo, mas a ocasião de um reencontro com o inconsciente e com a verdade, que começa a se contextualizar, não mais como acúmulo de saber, mas como saber suposto. O amor ao saber levou F a se interrogar sobre sua verdadeira questão: “O que devo fazer para me manter vivo?”

Vimos, nesse caso, a sessão analítica tomada não como uma prática de ritualizações, mas como uma experiência em ato que visa permitir que a atemporalidade do inconsciente possa emergir na temporalidade da sessão. Um lapso de tempo especial que aponta, pela interpretação, para um ponto do real singular no discurso do analisando, possibilitando uma retificação do sentido e da modalidade lógica de sua existência enquanto falasser12. Assim, podemos dizer: se o inconsciente não conhece o tempo, há uma temporalidade da libido, tanto no amor, quanto no desejo e no gozo.

Esse sujeito que tem sua neurose suspensa em um tempo infinito, somente quando o significante do fim emerge13, ele passa a contar o tempo que lhe resta, evidenciando como o que há de atemporal no gozo do sintoma se “temporaliza” ao se inscrever na lei do significante. Enfim, demonstra-nos que o que se pode contabilizar inscreve-se na ordem fálica e o que não é contábil, ou seja, hors-temps (fora tempo), inscreve-se no registro do real14.

Ao demandar uma análise no momento de concluir sua vida, teve a surpresa de a sessão analítica revelar-se como o lugar privilegiado em que se estabeleceu a possibilidade de retificar seu sintoma, como modo de gozar do inconsciente, descolando-se da fantasia de eternidade, para aí começar a viver. O percurso de uma análise seria o tempo necessário para que o sujeito conseguisse saber inventar um modo singular de lidar com o seu sofrimento e encontrar as decisões essenciais à sua vida, responsabilizando-se por seu modo de gozar.

Paradoxalmente, para isso, é preciso tempo...

 

 

Referências

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* Psicanalista. Membro da Associação Mundial de Psicanálise e da Escola Brasileira de Psicanálise - Seção Bahia. [ E-mail: soniavicente@atarde.com.br].
1 FREUD, Sigmund. A dinâmica da transferência [1912]. In: ______. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1977. v.XII, p.133-148.
2 MILLER, Jacques Alain. La nouvelle alliance conceptuelle de l’inconscient et du temps chez Lacan. Revue de Psychanalyse, Paris, n. 45, p.7-16, 2000b.
3 FREUD, Sigmund. Carta 52.2 [1896]. In: ______. Edição standard brasileiras das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1977. v.XII, p. 164-187.
4 GUÉGUEN, Pierre-Gilles. Le temps de Freud e celui de Lacan. Revue de Psychanalyse, Paris, n. 45, p.29-38, 2000.
5 LACAN, Jacques. O tempo lógico e a asserção de certeza antecipada [1945]. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro, Zahar, 1988. p.197-213.
6 MILLER, Jacques-Alain. La nouvelle alliance conceptuelle de l’inconscient et du temps chez Lacan. Revue de Psychanalyse, Paris, n. 45, p.7-16, 2000b; Los usos del lapso. In: ______. Los cursos psicoanalíticos. Buenos Aires: Ed. Paidós, 2004.
7 LACAN, Jacques. O inconsciente e a repetição [1964]. In: ______. O Seminário, Livro XI: os quatro conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Zahar, 1979b. p.23-65.
8 GUÉGUEN, Pierre-Gilles. Le temps de Freud e celui de Lacan, op.cit.; MILLER, Jacques-Alain. Los usos del lapso, op. cit.
9 MILLER, Jacques-Alain. A erótica do tempo. Rio de Janeiro: Escola Brasileira de Psicanálise, 2000a.
10 LACAN, Jacques. Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano [1960]. In: ______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p.807-864.
11LACAN, Jacques. A transferência e a pulsão [1964].In: ______. O Seminário, Livro XI: os quatro conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Zahar, 1979a. p.119-189; MILLER, Jacques-Alain. Pontuaciones sobre “La dirección de la cura”. In: ______. Conferencias porteñas: Buenos Aires: Ed. Paidós, 2009. t. II: Desde Lacan, cap IV: La cura analítica, p.175-228.
12MILLER, Jacques-Alain. A erótica do tempo, op.cit.; Los usos del lapso, op. cit.
13FREUD, Sigmund. História de uma neurose infantil [1918]. In: ______. Edição standard brasileiras das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1977. v.XVII, p.19-151.
14BRIOLE, Marie Hélène. Le temps de savoir. La Cause freudienne : Revue de Psychanalyse, Paris, n. 45, p.3-4, 2000.