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Psic: revista da Vetor Editora

versão impressa ISSN 1676-7314

Psic v.6 n.1 São Paulo jun. 2005

 

ARTIGOS

 

Avaliação psicológica de crianças vítimas de violência doméstica por meio do teste das fábulas de Düss

 

Psychological evaluation of children victims of domestic violence by düss test

 

Evaluación psicológica de niños víctimas de violencia doméstica por medio del test de las fábulas de Düss

 

 

Leila Salomão de la Plata Cury TardivoI, 1; Antonio Augusto Pinto JuniorII, 2; Márcia Regina dos Santos3

I Universidade de São Paulo
II Centro Universitário de São Paulo – Lorena

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A violência doméstica contra a criança e o adolescente tem sido, nos últimos anos, alvo de interesse e preocupação dos pesquisadores do desenvolvimento infantil, principalmente no que se refere às conseqüências e seqüelas psicológicas. No processo de identificação e entendimento do fenômeno, o psicodiagnóstico, com todas as suas técnicas, mostra-se essencial para avaliar o impacto, o grau de risco, bem como o funcionamento psíquico da vítima e da família incestogênica. Entre os instrumentos utilizados em um processo diagnóstico destacam-se as técnicas projetivas. O objetivo deste trabalho é discutir o uso do Teste das Fábulas de Düss como um instrumento projetivo e diagnóstico de crianças vítimas de violência sexual doméstica, no estudo dos aspectos psicodinâmicos. O teste das Fábulas de Düss foi aplicado em 13 crianças (8 meninos e 5 meninas), entre 4 e 11 anos, vitimas de violência doméstica física e/ou sexual. Com base nos dados colhidos neste estudo piloto, podemos verificar que o teste das Fábulas de Düss se mostra uma técnica eficaz para o desvelamento do funcionamento psíquico mais profundo do paciente, com ênfase nos casos de crianças que sofrem algum tipo de violência doméstica.

Palavras-chave: Violência doméstica, Abuso sexual, Técnicas projetivas, Fábulas de Düss.


ABSTRACT

In the last years, the domestic violence against child and adolescent has been a subject of interest and concern of the researchers of the infantile development, mainly as for the psychological consequences and sequels. In the process of identification and agreement of the phenomenon, the psychodiagnostic, whit all its techniques, is essential to evaluate the impact, the risk degree, as well as the psychic functioning of the victim and the incest family. Amongst the instruments used in a diagnostic process, the projective techniques are distinguished. The objective of this work is to discuss the use of the Düss Test as a projective and diagnostic instrument of children victims of domestic sexual violence, in the study of the psycodynamic aspects. The Düss Test was applied to 13 children (8 boys and 5 girls), among 4 and 11 years, victims of physical and/or sexual domestic violence. From the data in this pilot study, we can verify that the Düss Test is an efficient technique for the diagnostic of the patient’s psychic functioning, with emphasis in the cases of children who suffer some kind of domestic violence.

Keywords: Domestic violence, Sexual abuse, Projective techniques, Düss Test.


RESUMEN

La violencia doméstica contra los niños y adolescentes ha sido en los últimos años objetivo de interés y preocupación de los investigadores del desarrollo infantil, principalmente en relación a las consecuencias y secuelas psicológicas. En el proceso de identificación y entendimiento del fenómeno, el psicodiagnóstico, con todas sus técnicas, se muestra fundamental para evaluar su impacto, el nivel de riesgo, así como el funcionamiento psíquico de la víctima y de la família incestuosa. Entre los instrumentos utilizados en un proceso diagnóstico se destacan las técnicas proyectivas. El objetivo de este trabajo ha sido discutir el uso del Teste das Fábulas de Düss como un instrumento proyectivo y diagnóstico de niños víctimas de violencia sexual doméstica, en el estudio de los aspectos psico-dinámicos. El test de las Fábulas de Düss se ha mostrado una técnica eficiente para descubrir el funcionamiento psíquico más profundo del paciente, enfatizando los casos de niños que sufren algun tipo de violencia doméstica.

Palabras clave: Violencia doméstica, Abuso sexual, Técnicas proyectivas, Fábulas de Düss.


 

 

Introdução

As últimas décadas têm sido marcadas por um notável interesse pela investigação e pelo estudo do fenômeno da violência doméstica contra crianças e adolescentes. Atualmente, a violência doméstica está sendo reconhecida não só como um importante problema social, mas também como um problema de saúde pública.

Segundo Azevedo e Guerra (1998, p. 177), a violência doméstica contra crianças e adolescentes é:

Todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis contra crianças e/ou adolescente que – sendo capaz de causar dano físico, sexual e/ou psicológico à vítima – implica de um lado numa transgressão do poder/dever de proteção do adulto e, de outro, numa coisificação da infância, isto é, numa negação do direito que crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento.

Considerando a violência doméstica contra crianças e adolescentes um fenômeno configurado na família (essa um espaço privado), numa esfera micropolítica, e também um problema de relações sociais de gênero e geração, numa esfera macropolítica, torna-se necessário considerar alguns pressupostos epistemológicos para uma visão não reducionista do fenômeno. O abuso–vitimização contra a criança e o adolescente decorre da interação de vários grupos de fatores: socioeconômicos, culturais e psicológicos das pessoas envolvidas. Além desse pressuposto, outros fatores também devem ser considerados para uma maior compreensão do fenômeno de violência doméstica contra crianças e adolescentes: é um fenômeno universal e endêmico; nenhuma etnia, classe social ou religião está imune; não é característico da pobreza; é estatisticamente significativo e não marginal; pode envolver de forma cíclica várias gerações em sua reprodução; tem como característica a reiteração.

Embora extremamente relevante para o estabelecimento de políticas públicas de atendimento, é difícil definir com rigor a incidência da violência doméstica contra a criança e o adolescente. Primeiro porque depende da própria definição, que muitas vezes, é controversa, parcial e não consistente. Segundo, a presença da cifra negra, quando se trabalha apenas com os casos notificados, não considerando a existência de diversos outros que não chegam aos órgãos competentes e que com certeza poderiam aumentar os índices encontrados nas estatísticas. Além disso, a maioria dos estudos estatísticos na área representa extrapolações de pesquisas clínicas ou de pesquisas muito localizadas, havendo poucos estudos com a população em geral.

Segundo Marcelli (1998, p. 349), baseando-se no relatório geral da saúde na França (novembro, 94):

40.000 crianças são anualmente apontadas e assumidas pela justiça ou pela ajuda social à infância. Os maus-tratos ocasionam 600 mortes por ano e um número significativo, ainda que dificilmente estabelecido numericamente, de incapacidade física e, mais ainda, de distúrbios significativos do desenvolvimento afetivo.

Ainda, de acordo com o mesmo autor, os meninos são vítimas mais freqüentes que as meninas de violência física, porém, no que se refere à violência sexual, as vítimas mais freqüentes são as meninas (3 a 4 meninas para um menino). Marcelli (1998) afirma, ainda, que muitas vezes violência sexual e violência física costumam aparecer juntas.

Nos Estados Unidos, segundo Azevedo e Guerra (1998b), em 1990, encontra-se a cifra de 1.700.000 casos, envolvendo 2.700.000 vitimas. De acordo com tais dados, as estatísticas revelam a existência, nesse país, de violência de caráter físico, sexual, psicológico e a negligência. Dos casos notificados, 52% pertencem ao sexo feminino, cerca de 3/4 referem-se aos pais biológicos como agressores e a idade média das vítimas era em torno de 7 anos.

As estatísticas nessa área, no Brasil, mostram-se escassas e a maior parte delas refere-se a casos notificados a órgãos governamentais e/ou não governamentais e originam-se de pesquisas acadêmicas. Estudos brasileiros, no entanto, têm indicado que, no Brasil, a violência mais praticada é a física. Numa pesquisa em Campinas, no período de 1988-1992, denotou-se que a violência física apareceu em 43,1% dos casos atendidos, seguida pela negligência (23,5%), psicológica (16,4%) e a sexual (7,7%) (Violência contra a criança e o adolescente, 1993).

Tais dados, na realidade, não representam um retrato fidedigno da ocorrência do problema, pois, como dito anteriormente, a grande maioria dos casos nunca é notificada aos órgãos competentes, permanecendo oculta e mascarada pelo complô do silêncio compartilhada pela família, pelos profissionais, pelos vizinhos e pela sociedade. Assim, a violência doméstica denunciada representa somente a ponta de um iceberg, cuja real dimensão só poderemos reconhecer quando desvelarmos a cifra oculta dos casos não notificados. De qualquer maneira, porém, podemos afirmar que a violência doméstica contra a criança e o adolescente está longe de ser uma ocorrência marginal.

A violência contra a criança, seja ela física, sexual ou psicológica, pode representar um verdadeiro fator de risco ao processo de desenvolvimento. A transgressão da proibição do incesto, no caso da violência sexual, e/ou os maus-tratos, no caso da violência física, podem trazer sérias conseqüências para a vítima, implicando perturbação da noção de identidade e outros distúrbios de personalidade e de adaptação social.

Por se tratar de um fenômeno que, ao longo de toda a história da humanidade, é cercado de mitos e tabus, a identificação da violência doméstica é quase sempre problemática e difícil. Sua abordagem apresenta várias dificuldades em função de ser um fenômeno que se manifesta de maneira sigilosa, configurando um segredo familiar, e de estar envolvida por aspectos ideológicos arcaicos. Assim, o enfrentamento eficaz do fenômeno exige a compreensão ampla e profunda da temática e da sistematização nos passos para identificar o processo de vitimização infantil. Desvelar a violência doméstica representa romper um complô do silêncio e deparar-se com a vítima, o agressor, e a família em um mesmo e único núcleo com uma dinâmica perigosa e destrutiva.

No processo de investigação, o papel do psicólogo é de vital importância, pois a ele cabe levantar as evidências sobre a possibilidade da violência sofrida e sua natureza. O psicólogo deverá avaliar a gravidade do acontecimento, seu impacto sobre a vítima e os demais membros da família, buscando investigar o risco e o funcionamento psíquico dessa vítima.

Assim, todo o processo de psicodiagnóstico, com todas as suas técnicas, mostra-se essencial e desempenha um papel fundamental para a compreensão e entendimento da vitimização infantil.

A adequada descrição do mundo (externo e interno) da criança vitimizada em um processo de psicodiagnóstico deverá apoiar-se em uma aproximação que busque apreender a vivência dessa criança em sua totalidade, fundamentando-se em critérios de coerência e instrumentos que facilitem o desvelamento da situação abusiva, propiciando, assim, um lugar de singularidade para o sujeito e sua subjetividade.

Entre os instrumentos utilizados em um psicodiagnóstico destacam-se as técnicas projetivas. Segundo Grassano (1996), a técnica projetiva é uma criação que expressa a maneira pela qual o indivíduo estabelece contato com a realidade interna e externa. Assim, as instruções ou os estímulos desses instrumentos atuam como mediadores das relações vinculares que mobilizam variados aspectos na vida emocional. Nas palavras da autora:

Na realidade, o teste projetivo nos permite obter em curto período de tempo informação precisa sobre os distintos níveis de funcionamento mental (...) É um meio adequado de conhecer o paciente na medida em que o coloca diante de aspectos de uma realidade com características desestruturadas ou de estruturação pouco usual, a qual deve organizar, apelando para modelos internos (Grassano, 1996, p. 19-20).

Dessa forma, diante de certas situações, em geral figuradas por imagens possivelmente relacionadas com conflitos vividos, o sujeito descreve as situações (estímulos) em função dos próprios problemas, dando livre curso às idéias inconscientes. Especificamente ao referirmos às crianças vítimas de violência doméstica, o uso dos testes projetivos pode ser um procedimento viável para a revelação abusiva quando essas crianças não possuem a linguagem e/ou a maneira mais adequada para contar o que não pode ou tem medo de contar.

A comunicação da violência doméstica, por ser demasiadamente ansiógena e desencadear sentimentos de medo e de culpa, pode ser mais facilmente estabelecida por meio de personagens de jogos ou de técnicas projetivas em vez de ser feita diretamente com a criança. Entre as técnicas projetivas, destaca-se o Teste das Fábulas Düss. Esse teste foi criado pela psicanalista suíça Louise Düss, em 1940. Trata-se de um teste utilizado no processo de diagnóstico psicológico, como verificação experimental e uma forma de explorar o fenômeno da resistência. Pode-se aplicar em crianças a partir dos 3 anos e eventualmente em adultos.

O teste é composto de dez fábulas, pequenas, de fácil compreensão às crianças, cada uma delas referindo-se a um complexo específico. Segundo Tardivo (1998), é uma prova que pode auxiliar o psicólogo ou psicanalista na detecção rápida do complexo ou do conflito presente na criança.

Por meio das fábulas, as crianças podem expressar seus desejos, seus temores, suas necessidades e seus pensamentos como se na realidade não lhes pertencessem. Nessas situações elas podem atribuir certos sentimentos ou pensamentos não aceitáveis aos personagens das fábulas.

Assim, o teste das Fábulas de Düss, por se tratar de uma técnica projetiva, propicia uma investigação profunda sobre os conflitos vivenciados pela criança e da forma como avalia a relação intrafamiliar. Nesse sentido, sua inclusão no processo psicodiagnóstico de crianças revela-se extremamente rica para o conhecimento e entendimento do funcionamento mental dos sujeitos, mostrando-se eficaz na investigação clínica de crianças vítimas de violência doméstica.

 

Método

Participantes

O presente estudo foi desenvolvido em uma instituição de atendimento a crianças vítimas de violência doméstica no município de Guaratinguetá, SP. O teste das Fábulas de Düss foi aplicado a 13 crianças (8 meninos e 5 meninas), entre 4 e 11 anos, vitimas de violência doméstica física e/ou sexual. Todos os sujeitos apresentam diagnóstico confirmado de vitimização e foram encaminhados para psicoterapia pelo Conselho Tutelar ou pela Vara da Infância e Juventude do município.

Critérios de análise

Para a análise do material foi utilizado o referencial proposto por Tardivo (1998). A autora propõe algumas categorias de análise para cada fábula, procurando abranger o significado mais latente das respostas do sujeito. As categorias para cada fábula são as seguintes:

Fábula 1 – Pássaro

1. Relação com a Figura Materna; 1 a) dependência e passividade; 1 b) independência e atividade.

2. Relação com a Figura Paterna; 2 a) dependência e passividade; 2 b) independência e atividade.

3. Independência e Autonomia; 3 a) realista; 3 b) onipotente

4. Total impotência – Morte

Fábula 2 – Aniversário de casamento

5. Relação de agressividade e hostilidade diante da cena primária; 5 a) hostilidade manifesta; 5 b) hostilidade latente.

6. Relação de aceitação e mais realista diante da cena primária.

7. Total impossibilidade de lidar com a situação de cena primária; 7 a) rejeição completa da fábula; 7 b) respostas ilógicas.

Fábula 3 – Carneirinho

8. Desmame vivido de forma esquizoparanóide.

9. Desmame vivido de forma depressiva.

10. Rivalidade fraterna; 10 a) agressividade e hostilidade manifestas; 10 b) agressividade e hostilidade latentes.

11. Aceitação em relação à figura fraterna.

12. Total impossibilidade de lidar com a situação de desmame ou morte.

Fábula 4 – Enterro

13. Relação com a figura paterna – desejos destrutivos.

14. Relação com a figura materna – desejos destrutivos.

15. Respostas adequadas à realidade.

16. Outros não significativos.

17. Autodestruição.

18. Velhice.

19. Doença; 19 a) coração; 19 b) outras.

20. Provocadas por outros.

21. Acidental.

Fábula 5 – Medo

22. Medo de Objetos Internos; 22 a) masculinos; 22 b) femininos; 22 c) sem definição clara de sexo.

23. Medo de objetos externos reais.

24. Medo de autodestruição.

Fábula 6 – Elefante

25. Presença de angústia ligada ao complexo de castração; 25 a) transformações causadas pela própria criança; 25 b) transformações provocadas por outros.

26. Superação do complexo de castração.

27. Total impossibilidade de lidar com o complexo de castração.

Fábula 7 – Objeto fabricado

28. Presença do caráter possessivo na relação com a figura materna.

29. Ausência do carater possessivo na relação com a figura materna; 29 a) espontâneo; 29 b) por imposição.

Fábula 8 – Passeio com o pai ou com a mãe

30. Complexo de Édipo vivido de forma angustiante; 30 a) figura paterna do mesmo sexo da criança com sentimentos de raiva e inveja; 30 b) figura paterna do mesmo sexo da criança com sentimentos depressivos; 30 c) presença de angústia persecutória na criança; 30 d) presença de culpa depressiva na criança.

31. Complexo de Édipo superado.

Fábula 9 – Notícia

32. Desejos – notícias agradáveis.

33. Temores – notícias desagradáveis.

Fábula 10 – Sonho mau

34. Relação com circunstância difícil.

35. Relação com figuras fantásticas.

36. Relação com pessoas reais.

37. Relação com autodestruição.

Os protocolos das crianças vitimizadas foram analisados por meio das categorias citadas anteriormente e comparados com aqueles da população normal da pesquisa de Tardivo (1998), sem suspeita de abuso ou de maus-tratos infantis.

 

Resultados

Apresentamos a seguir os principais resultados com base na análise das categorias de cada fábula.

Na Fábula 1, Pássaro, as categorias com maior incidência foram as de relações de dependência e passividade em relação à figura materna, dependência e passividade em relação à figura paterna e de relação de independência e atividade em relação à figura paterna. Na população normal verificou-se que a categoria que mais apareceu foi a de independência e autonomia.

Esses dados sugerem que ao mesmo tempo em que a criança vitimizada se revela dependente da figura materna, mostra o desejo de independência dessa figura. O fator determinante nesse caso parece ser a forma como a relação mãe/criança é estabelecida, ou seja, protetiva ou abusiva. As crianças vitimizadas pela figura materna apresentaram maior número de respostas que sugerem o desejo de maior independência da mãe. Por outro lado, os sujeitos vitimizados pela figura paterna revelaram maior número de respostas associadas à categoria de dependência à figura materna e desejo de independência com relação à figura paterna. Na realidade esses dados indicam que a criança vitimizada no lar tende a se afastar da figura abusiva e vitimizadora, provavelmente pelo perigo que essa pessoa representa à sua integridade física e/ou psicológica.

Verificamos que na Fábula 2, Aniversário de casamento, a resposta mais freqüente em nossa amostra foi a reação de total impossibilidade de lidar com a cena primária. Na população normal, por sua vez, a categoria que mais apareceu foi a de aceitação e atitude realista diante da cena primária. Esses dados nos mostram o quanto a relação parental é percebida de forma negativa pela criança vitimizada, principalmente por aquelas vítimas de abuso sexual.

Em nossa amostra verificamos que a categoria mais freqüente na Fábula 3, Carneirinho, foi a do desmame vivido de uma maneira depressiva. Já na população normal a categoria que predominou foi a aceitação da figura fraterna. Percebemos que a grande maioria das crianças vítimas de violência doméstica vivencia constantemente negligência por parte das figuras parentais. Por isso mesmo, tendem a manifestar comportamentos depressivos e de carência afetiva.

Na Fábula 4, Enterro, a categoria que prevaleceu foi a de desejos destrutivos para com a figura paterna. Na população normal verificamos que a maior incidência foi a de outros não significativos.

A predominância de respostas que enfocam a figura paterna como objeto dos desejos de destruição da criança nos parece muito coerente pelo fato de que, na grande maioria dos casos, o pai é a figura abusadora e/ou agressora de seus filhos.

A Fábula 5, Medo, as crianças de nossa população revelaram medo tanto de objetos internos masculinos e objetos internos femininos, quanto de objetos externos e reais. Da mesma maneira, percebemos também o medo de autodestruição. Para a população normal, a categoria mais freqüente foi a de medo de objetos externos e reais.

A criança vítima de violência doméstica, seja ela física ou sexual, vivencia (no plano simbólico e no real) o medo de forma intensa e reiterada. As pessoas que supostamente deveriam protegê-la são aquelas que colocam sua vida física e psíquica em risco. Dessa forma, tanto a figura materna quanto a figura paterna são percebidas como ameaçadoras e geradoras de medo.

Na Fábula 6, Elefante, verificamos que a categoria mais observada foi a que englobou respostas referentes à presença de angústia ligada ao Complexo de Castração, o que coincidiu com a população normal. Assim, tanto para a população de crianças vitimizadas, quanto para aquelas não vitimizadas percebemos que o Complexo de Castração é alvo de angústia.

Na Fábula 7, Objeto fabricado, em relação ao caráter possessivo, percebemos que o mais predominou foi a ausência do mesmo, tanto para a amostra de crianças vitimizadas, quanto para a população normal.

Pelo que pudemos verificar na Fábula 8, Passeio com o pai ou com a mãe, a categoria mais presente entre as crianças vitimizadas, principalmente entre as meninas abusadas sexualmente, foi o sentimento de raiva e inveja na figura paterna do mesmo sexo. Já na população normal, a categoria mais freqüente foi a de angustia persecutória. A respeito desses dados, pesquisas sobre o tema do abuso sexual têm mostrado que freqüentemente as mães se posicionam como rivais de suas filhas, disputando com elas o amor do marido.

Com relação à Fábula 9, Notícia, tanto no grupo de crianças vitimizadas quanto o da população normal predominou a categoria referente às notícias agradáveis ou desejos, o que indica não haver diferenças entre os dois grupos.

Na Fábula 10, Sonho mau, houve predomínio da categoria autodestruição, em nossa amostra. Já na população normal, prevaleceram as categorias Circunstância difícil e Figuras fantásticas. Mais uma vez surge em nosso grupo de crianças vitimizadas o temor da autodestruição. Embora na população normal essa categoria tenha aparecido, na amostra de crianças vítimas de violência doméstica foi uma característica constante.

 

Conclusão

Como pontuado anteriormente, crianças vitimizadas no lar, por causa de angústias e medos diversos, dificilmente conseguem falar diretamente sobre o que sentem e vivenciam internamente. Contudo, por meio de instrumentos projetivos, como o teste das Fábulas de Düss, podem comunicar simbolicamente o quão perigosa e danosa pode ser a experiência de violência doméstica para a saúde mental da vítima.

Com base nos dados colhidos neste estudo piloto, podemos verificar que o teste das Fábulas de Düss se revela uma técnica eficaz para o desvelamento do funcionamento psíquico mais profundo do paciente, com ênfase nos casos de crianças que sofrem algum tipo de violência doméstica.

Um novo estudo com a ampliação do número de sujeitos torna-se necessário para a confirmação dos dados aqui colhidos e para o levantamento de outros indicadores de violência doméstica para o teste das Fábulas de Düss.

 

Referências

Azevedo, M. A. & Guerra, V. N. A. (1998a). Infância e violência fatal em família. São Paulo: Iglu.        [ Links ]

Azevedo, M. A. & Guerra, V. N. A. (1998b). Infância e violência doméstica. Módulo 1A/ B. São Paulo: Lacri – IPUSP.        [ Links ]

Grassano, E. (1996). Indicadores psicopatológicos nas técnicas projetivas. São Paulo: Casa do Psicólogo.        [ Links ]

Marcelli, D. (1998). Manual de psicopatologia da infância de Ajuriaguerra. Porto Alegre: Artes Médicas.        [ Links ]

Tardivo, L. S. L. C. (1998). O teste da apercepção infantil e o Teste das Fábulas de Duss: respostas típicas na população brasileira e aplicações no contexto das técnicasprojetivas. São Paulo: Vetor.        [ Links ]

Violência contra a Criança e o Adolescente (1993). Proposta preliminar de prevenção e assistência à violência doméstica. Brasília: Ministério da Saúde.        [ Links ]

 

 

Endereços para correspondência
Leila Salomão de la Plata Cury Tardivo
E-mail: tardivo@usp.br

Antonio Augusto Pinto Junior
E-mail: cetepsi@uol.com.br

Márcia Regina dos Santos
E-mail: marcia.jarra@ig.com.br

Recebido: janeiro/2005
Reformulado: maio/2005
Aprovado: junho/ 2005

 

 

Sobre os autores:

1 Leila Salomão de la Plata Cury Tardivo é psicóloga clínica, Professora Livre-Docente do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.
2 Antonio Augusto Pinto Jr. é psicólogo clínico, Professor Doutor do Departamento de Psicologia do Centro Universitário de São Paulo – Lorena.
3 Márcia Regina dos Santos é psicóloga clínica, com especialização na área da Infância e Violência Doméstica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.