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Avaliação Psicológica

versão impressa ISSN 1677-0471versão On-line ISSN 2175-3431

Aval. psicol. vol.13 no.1 Itatiba abr. 2014

 

 

Adaptação da Escala de Aceitação dos Mitos de Estupro: evidências de validade1

 

Adaptation of the Rape Myth Acceptance Scale: Evidences of validity

 

Adaptación de la Escala de Aceptación de los Mitos de Violación: evidencias de validez

 

 

Arielle Sagrillo Scarpati2; Valeschka Martins Guerra; Camila Nogueira Bonfim Duarte

Universidade Federal do Espírito Santo

 

 


RESUMO

Mitos de estupro são crenças estereotipadas sobre a violência sexual, suas vítimas e agressores. A escassez de informação sobre tais mitos no Brasil motivou esta pesquisa, cujos objetivos foram adaptar a Escala de Aceitação dos Mitos de Estupro, apresentando evidências de validade em uma amostra de estudantes de Direito; verificar a existência de diferenças com relação ao gênero dos respondentes e associações com a desejabilidade social, idade e religiosidade. Participaram 281 estudantes com idade média de 23,6, a maioria do sexo feminino. Eles responderam a Escala de Mitos de Estupro, a Escala de Desejabilidade Social e questões sociodemográficas. Os resultados indicaram a adequação de uma estrutura com quatro fatores, em detrimento da original, composta por sete. Foram observados resultados significativos com relação à religiosidade e ao sexo dos participantes. Conclui-se que a escala proposta apresenta parâmetros psicométricos aceitáveis para utilização em pesquisas sobre o tema.

Palavras-chave: mitos de estupro; violência sexual; validação; desejabilidade social.


ABSTRACT

Rape myths consist in stereotyped beliefs about rape, its victims and offenders. The scarcity of information about these myths in Brazil motivated this research, which aimed to validate the Rape Myth Acceptance Scale, presenting evidences of validity in a sample of Law undergraduate students and verifying the existence of possible differences regarding participants' gender, as well as associations with social desirability, age and religiosity. 281 students participated with a mean age of 23.6 years, mostly female. They answered the Rape Myth Acceptance Scale, the Social Desirability Scale and socio-demographic questions. Results indicate four factors as an adequate structure, which did not confirm the original structure of the measure, represented by seven factors. Significant results were observed in relation to religiosity and participants' gender. The proposed scale presents acceptable psychometric parameters for use in research on the topic.

Keywords: rape myths; sexual violence; validation; social desirability.


RESUMEN

Los mitos sobre la violación consisten en creencias estereotipadas acerca de la violencia sexual, sus víctimas y victimarios. La escasez de información acerca de esos mitos en Brasil motivó esta investigación, cuyos objetivos fueron adaptar la Escala de Aceptación de los Mitos de Violación, la presentación de pruebas de validez en una muestra de estudiantes de Derecho, verificar posibles diferencias en cuanto al género de los encuestados y las asociaciones con la deseabilidad social, edad y religiosidad. Participaron 281 estudiantes de derecho, con una edad media de 23,6, en su mayoría mujeres. Ellos respondieron a la Escala de los mitos de la violación, la Escala de Deseabilidad Social y preguntas sociodemográficas. Los resultados indican la idoneidad de la estructura con cuatro factores, al contrario de la original, compuesta por siete factores. Los resultados más significativos se observaron con respecto a la religión y el sexo de los participantes. Se concluye que la escala propuesta tiene parámetros psicométricos aceptables para su uso en la investigación sobre el tema.

Palabras-clave: mitos de violación; violencia sexual; validez; deseabilidad social.


 

 

Apesar do número de campanhas educativas sobre a violência contra a mulher, resultado da luta dos movimentos feministas, o índice de vítimas de violência sexual se mantém em um nível considerado alarmante pelo mundo. Estudos longitudinais norte-americanos sugerem que cerca de 18% das mulheres já vivenciaram um estupro ou foram vítimas de uma tentativa de violência sexual (Rudman & Mescher, 2012). De acordo com Sudário, Almeida e Jorge (2005), com base em dados da Organização das Nações Unidas, cerca de um quarto de todas as mulheres do mundo serão vítimas de violência sexual pelo menos uma vez e que apenas nos Estados Unidos mais de 600 mil mulheres adultas são estupradas por ano (Drezett, 2002).

No Brasil, no entanto, como apontam Souza e Adesse (2005), os crimes de ordem sexual são pouco denunciados, o que dificulta a divulgação de estatísticas coerentes com a realidade. Estima-se que o número real de casos seja muito superior à quantidade notificada tanto à Polícia quanto ao Judiciário, na medida em que estudos indicam que apenas uma margem de 10% a 20% dos casos chegam às autoridades competentes (Drezett, 2002; Pandjiarjian, 2002; Souza & Adesse, 2005).

Essa subnotificação dos casos está relacionada a diferentes questões (Villela & Lago, 2007). Como aponta Vargas (2008), a vítima pode desistir de prestar queixa devido à vergonha e sentimento de culpa; medo do agressor; desejo de preservação da família ou, até mesmo, da relação com o agressor; desestímulo e falta de apoio por parte das autoridades, bem como ceticismo em relação à Polícia e ao Poder Judiciário.

Uma das propostas encontradas na literatura para compreender esse fenômeno é a teoria de Mitos de Estupro (Burt, 1980). Introduzido na literatura científica na década de 1970 por sociólogos e feministas como Schwendinger e Schwendinger (1974) e Brownmiller (1975), foi apenas na década de 1980 que o conceito de mitos do estupro passou a ser utilizado para compreender o estupro como um fenômeno cercado por crenças estereotipadas (Peterson & Muehlenhard, 2004). Tais crenças se relacionam a estereótipos de gênero que causam uma desconfiança de um sexo para com o outro, além de aceitação ou tolerância da violência sexual contra as mulheres (Payne, Lonsway, & Fitzgerald, 1999; Peterson & Muehlenhard, 2004).

Os mitos de estupro são definidos como crenças preconceituosas, estereotipadas, ou falsas sobre o estupro, suas vítimas e agressores. Tais crenças contribuem para a criação e manutenção de um clima de hostilidade para com as vítimas desse tipo de violência (Burt, 1980). Payne et al. (1999) sugerem que essa hostilidade está associada à percepção de que a vítima é, na verdade, culpada pela violência sofrida, o que absolve ou reduz a responsabilidade do agressor e, consequentemente, minimiza ou justifica a agressão contra a mulher.

Esses mitos têm funções distintas para homens e mulheres. Segundo Payne et al. (1999), os homens tendem a usá-los para justificar ou minimizar sua responsabilidade sobre a agressão cometida, enquanto as mulheres tenderiam a usá-los para negar, para si mesmas e para os outros, sua própria vulnerabilidade. Conforme Peterson e Muehlenhard (2004), justificar ou negar a violência sexual ou ainda negar a vulnerabilidade pessoal reduz o espectro de comportamentos considerados como estupro, responsabilizando as vítimas por sua própria vitimização. Nesse sentido, quando se trata de violência sexual, autores como Pollard (1992) e Brown e Testa (2008) apontam a importância de se considerar o sexo uma variável de análise, na medida em que ele tende a influenciar a maneira como este tipo de violência e as pessoas envolvidas nela são vistos.

Essa teoria tem sido muito utilizada em diversas pesquisas ao redor do mundo, demonstrando sua aplicabilidade (Allen, Emmers, Gebhardt, & Giery, 1995; Buddie & Miller, 2001; Bohner, Eyssel, Pina, Siebler, & Viki, 2009). Horvath e Brown (2009) sugerem que ela pode auxiliar na compreensão de diversos aspectos da violência sexual, como a influência da mídia, a presença de álcool e drogas nos casos de violência sexual, a percepção de policiais a respeito do depoimento da vítima, entre outros.

No entanto, estudos sobre o tema no Brasil são inexistentes, assim como instrumentos válidos para avaliá-lo. O presente estudo teve como principal objetivo a adaptação de uma medida de aceitação dos mitos de estupro para o contexto brasileiro. Especificamente, pretende-se avaliar sua estrutura fatorial e consistência interna em uma amostra específica de estudantes do curso de graduação em Direito. Adicionalmente, buscou- se verificar a existência de associações desse construto com a desejabilidade social e a religiosidade, além de possíveis diferenças de gênero. No entanto, é necessário apresentar brevemente alguns dos instrumentos desenvolvidos com o objetivo de investigar a aceitação dos mitos de estupro.

Instrumentos para Avaliar Mitos de Estupro

A teoria de mitos de estupro proposta por Burt (1980) proporcionou o desenvolvimento de diversas pesquisas em uma nova linha de investigação para a época, procurando compreender aspectos cognitivos, afetivos e comportamentais associados a este tipo de violência sexual. Diversas escalas de atitudes frente ao estupro podem ser encontradas na literatura. O primeiro instrumento publicado é a Attitudes Toward Rape Scale (ATRS), desenvolvida por Feild (1978), que busca avaliar atitudes relacionadas ao ato de violência em si. Composta por 32 itens, divididos em oito fatores e desenvolvida com uma amostra de 1448 participantes, que incluiu policiais, estupradores e adultos de comunidades rurais e urbanas, essa escala apresenta um índice de consistência interna relativamente baixo para a quantidade total de itens (0,62). Não foram encontradas informações acerca dos índices de consistência interna de cada fator individualmente. No entanto, para Deitz, Blackwell, Daley e Bentley (1982), apenas cinco dos oito fatores realmente medem atitudes frente ao estupro.

Dois anos depois, Burt (1980) publicou a Rape Myth Acceptance Scale (RMAS), que é até hoje a escala mais utilizada em pesquisas sobre o tema. Composta por 19 itens distribuídos em quatro fatores, a RMAS foi desenvolvida com base em uma amostra de 598 adultos estadunidenses e a autora apresenta um índice de consistência interna para a escala geral de 0,87. Novamente, não foram encontradas informações acerca da consistência interna individual de cada fator. Essa escala já recebeu diversas críticas, como por exemplo, a presença de itens ambíguos (Lonsway & Fitzgerald, 1994) ou por seu conteúdo ultrapassado (Payne et al., 1999).

Com um foco diferenciado dos instrumentos anteriores, a Rape Empathy Scale [RES] (Deitz et al., 1982) tem como objetivo avaliar o nível de empatia frente à vítimas de estupro. A Rape Myth Scale (RMS), de Lonsway e Fitzgerald (1994, 1995), é uma escala composta por 19 itens, que objetiva ser uma alternativa para a RMAS (Burt, 1980). Desenvolvida com base em uma amostra de 200 estudantes universitários, inclui quatro dimensões que avaliam falsas alegações de estupro, o desejo da vítima pelo estupro, a precipitação da vítima em alegar estupro e a trivialização da violência. O estudo original apresenta um alfa de Cronbach de 0,89 para o conjunto total de itens, não sendo fornecidas informações acerca da fidedignidade dos fatores individuais.

Tomando como base as críticas presentes na literatura, Payne et al. (1999) desenvolveram a Illinois Rape Myth Acceptance Scale, que busca avaliar não apenas mitos sobre o estupro, mas outras dimensões que enfatizam os agressores e o contexto em que o estupro ocorre. Por ser a escolhida para a adaptação ao contexto brasileiro, essa escala será apresentada de forma mais detalhada a seguir.

Escala de Aceitação dos Mitos de Estupro (IRMA)

Com o objetivo de investigar o nível de concordância dos sujeitos com relação aos mitos de estupro, Payne et al. (1999) desenvolveram um instrumento no contexto estadunidense denominado Escala de Aceitação dos Mitos de Estupro (Illinois Rape Myth Acceptance Scale, IRMA). Composta por 40 itens analisáveis e cinco 'filler' itens (que não avaliam atitudes frente aos mitos), testados em uma amostra de 604 estudantes universitários, a IRMA se propõe a avaliar sete dimensões dos mitos de estupro. A primeira dimensão, denominada She asked for it (SA – Ela pediu por isso) é definida como a percepção de que a mulher é de alguma forma responsável pelo estupro, seja pelo comportamento apresentado ou pelas roupas que usava, por exemplo. É composta por oito itens e apresenta um alfa de Cronbach de 0,84 no estudo original.

A segunda dimensão, It wasn't really rape (NR – Não foi realmente estupro; alfa de Cronbach no estudo original = 0,77), é composta por cinco itens e pode ser definida a partir da percepção de que foi estabelecida uma relação consensual. Essa percepção considera que uma mulher adulta saberia se defender de uma investida masculina e que sem hematomas ou graves machucados, não se poderia pensar em violência sexual.

A terceira dimensão, He didn't mean to (MT – Ele não tinha a intenção), traz a noção de que o homem não tinha a intenção de agredir a mulher e que, se isto aconteceu, o ato é consequência de algo da ordem do biológico, o dito 'instinto masculino'. Composta por cinco itens, apresentou no estudo original um alfa de Cronbach de 0,74. A quarta dimensão, She wanted it (WI – Ela queria isso), é composta por cinco itens que apresentaram um alfa de 0,84 no estudo original. Agrupa questões que alegam que mulheres gostam do uso da força em relações sexuais e que, portanto, a suposta vítima queria ser tratada com violência. A quinta dimensão, denominada She lied (LI – Ela mentiu), é definida a partir da ideia de que a mulher fez uma falsa alegação de estupro para se vingar de um antigo parceiro, por exemplo. Também composta por cinco itens, apresentou um alfa de Cronbach de 0,84 no estudo original.

A sexta dimensão, Rape is a trivial event (TE – O estupro é um acontecimento trivial), é constituída por itens alegando que o estupro não é tão grave e que mulheres tendem a exagerar sobre as consequências do mesmo em sua vida. Composta por cinco itens, apresentou um alfa de 0,74. Por fim, a sétima dimensão, Rape is a deviant event (DE – O estupro é um acontecimento anormal), apresenta itens com o conteúdo alegando que o estupro não ocorre com frequência e dificilmente será cometido por parceiros ou pessoas conhecidas da vítima, por exemplo. Composta por sete itens, o estudo original apresenta um alfa de 0,76 para essa subescala.

No entanto, a estrutura com sete fatores foi observada apenas no estudo original. Bohner e Lampridis (2004) observaram uma única dimensão, incluindo 38 dos 40 itens. Ao propor uma versão reduzida dessa escala, a Updated IRMA (McMahon & Farmer, 2011), composta por 22 itens, os autores apresentam uma estrutura fatorial composta por quatro dos fatores originais da IRMA (SA, NR, MT, LI). Os índices de consistência interna (alfa de Cronbach) dos quatro fatores variaram entre 0,64 e 0,80, em uma amostra de 951 universitários estadunidenses.

Apesar das diferentes estruturas teóricas observadas na literatura, a IRMA apresentou índices adequados de confiabilidade, além de itens claros que facilitam sua tradução e consequente adaptação a outros contextos. O grande número de itens na escala original também permite a seleção dos itens mais apropriados para o contexto em questão. Nesse sentido, este trabalho tem como objetivo principal a adaptação da IRMA para o contexto brasileiro utilizando, para isto, uma amostra de estudantes do último ano do curso de Direito.

 

Método

Participantes

Participaram deste estudo 281 estudantes do último ano do curso de Direito, de universidades públicas (8,2%) e privadas (91,8%), no estado do Espírito Santo. A idade dos respondentes variou de 20 a 46 anos (M=23,6; DP=3,78), sendo a maioria do sexo feminino (57,6%), de religião católica (52,7%) e solteira (89,5%). Os participantes apresentaram nível de religiosidade moderado (M=3,09; DP=1,25).

Instrumentos

Escala de Aceitação dos Mitos de Estupro (Illinois Rape Myth Acceptance Scale, IRMA): desenvolvida por Payne et al. (1999), contém 40 itens analisáveis que devem ser respondidos em uma escala tipo Likert de cinco pontos, variando de 1 = Discordo a 5 = Concordo. Nesse sentido, quanto maior a média, maior a concordância com os mitos em questão. Essa escala foi traduzida para o Português brasileiro mediante um "comitê bilíngue" (Van de Vijver & Leung, 1997), composto por três psicólogos bilíngues. Cada item foi traduzido pelo comitê, que discutia a melhor forma de apresentar seu significado original. A escala traduzida foi apresentada a um grupo de 15 estudantes universitários, que foram solicitados a responder os itens e sugerir modificações para itens confusos ou pouco objetivos. Nenhuma modificação foi feita, sendo a escala incluída no questionário final.

Escala de Desejabilidade Social de Marlowe-Crowne (EDSMC-20): desenvolvida originalmente por Crowne e Marlowe (1960). Utilizou-se sua versão reduzida e validada no Brasil por Gouveia, Guerra, Sousa, Santos e Costa (2009), composta por 20 itens que descrevem tanto comportamentos tidos como aceitáveis ou inaceitáveis socialmente. O participante responde as questões assinalando verdadeiro (1) ou falso (0), de acordo com seu comportamento cotidiano (Ex.: Meus modos à mesa, quando estou em casa, são tão bons como quando estou em um restaurante; Às vezes, gosto de fazer fofoca).

Questionário sociodemográfico: questões como idade, sexo, estado civil, religião e nível de religiosidade, visando caracterizar a amostra. Os participantes foram solicitados a responder uma questão sobre seu grau de religiosidade, de acordo com uma escala tipo Likert de 5 pontos, em que 0 = Nada religioso e 4 = Muito religioso.

Procedimento

Foram contatadas todas as instituições de ensino superior da região da Grande Vitória que ofereciam o curso superior de Direito e, após autorização para realização da pesquisa no local, foram agendadas as visitas para aplicação dos instrumentos. Na data programada, o pesquisador acompanhado de um ou mais colaboradores previamente treinados aplicaram o questionário em ambiente coletivo de sala de aula. Os participantes foram informados dos objetivos, do caráter voluntário da pesquisa, bem como da aprovação da mesma pelo Comitê de Ética da instituição de origem. Foi assegurada, também, a confidencialidade e o tratamento estatístico e coletivo de suas respostas, sendo todas as informações disponibilizadas por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), que foi assinado pelos respondentes. O questionário foi, então, respondido de forma individual pelos participantes, com duração média de 40 minutos.

Análise de Dados

Os dados foram digitados e analisados com o software SPSS (versão 19). Foram realizadas análises para testar a normalidade dos itens na amostra, de forma a escolher a melhor análise fatorial exploratória a ser realizada, além de análises de alfa de Cronbach. No que diz respeito aos objetivos secundários da pesquisa, foram realizadas análises de correlação de Pearson e teste t de Student para grupos independentes.

 

Resultados

O presente estudo teve como principal objetivo a validação da Illinois Rape Myth Acceptance Scale (IRMA), proposta por Payne et al. (1999), a partir de uma população específica: estudantes do último ano do curso de Direito. Este trabalho se centrou principalmente nos aspectos da validade de construto (estrutura fatorial e consistência interna), e se propôs, ainda, a verificar uma possível associação com o nível de desejabilidade social dos participantes e diferenças com relação ao gênero e à religião.

Inicialmente, foi realizado um teste do poder discriminativo dos itens para selecionar os mais adequados para a análise fatorial. Adotou-se a mediana empírica de todos os itens (Mdn=1,85) para definir os grupos-critério superior e inferior em função das pontuações totais dos participantes (Gouveia, Medeiros, Mendes, Vione, & Athayde, 2010). Em seguida, foi feita uma comparação das médias de respostas aos itens dadas pelos grupos-critério; aqueles itens que não apresentassem diferenças significativas entre as pontuações dos grupos seriam excluídos de futuras análises. Os resultados indicaram que os 40 itens apresentaram poder discriminativo satisfatório (p<0,05).

Com relação à fatorabilidade dos dados, analisaram- se os resultados do teste de adequação da amostra de Kaiser-Meyer-Olkin (KMO), que foi considerado adequado com resultado de 0,81, assim como o teste de esfericidade de Bartlett, cujo resultado foi significativo, χ2 (780) = 2430,23, p<0,001. As análises sugerem, então, a adequação dos dados à análise fatorial.

Em seguida, os itens da escala foram submetidos a um teste de Kolmogorov-Smirnov (K-S) para verificar se estes apresentavam distribuição normal na amostra. Os resultados indicaram que todos os testes K-S realizados foram significativos (p<0,05), sugerindo que os itens da escala não apresentavam distribuição normal. Nesse sentido, foi realizada uma Análise dos Eixos Principais (PAF), pois de acordo com Damásio (2012), esta é a melhor análise exploratória a ser realizada nesse caso.

De forma a garantir a qualidade dos itens incluídos na adaptação, solicitou-se que os itens apresentassem cargas fatoriais iguais ou superiores a |0,40| e fossem organizados em sete fatores, porém esta solução não foi considerada adequada. Para definir o número de fatores a ser mantido, foi realizada uma análise paralela utilizando uma sintaxe do SPSS. Assim, foram comparados os eigenvalues dos dados reais com aqueles observados em dados aleatórios gerados pela análise. Assim, os fatores a serem retidos são aqueles que apresentam eigenvalues superiores a 1 nos dados reais e superiores aos apresentados nos dados aleatórios. Essa análise sugeriu a existência de quatro fatores, considerando 95% do intervalo de confiança.

Uma nova PAF foi realizada, solicitando os quatro fatores observados na análise, com rotação ortogonal (Promax) e cargas fatoriais iguais ou superiores a |0,40| (Tabela 1). Nessa nova análise, os quatro fatores explicaram conjuntamente 24% da variância. Do total de itens analisados, treze (04, 07, 13, 20, 24, 26, 28, 33,34, 35, 37, 38 e 41) foram excluídos por não apresentarem cargas fatoriais superiores a |0,40|. Além disso, os itens 02 e 12 foram excluídos por apresentarem cargas fatoriais acima de 0,40 em mais de um fator.

 

 

Após essas exclusões, os índices de consistência interna (Alfa de Cronbach) foram calculados, variando de 0,64 (Fator 4) a 0,74 (Fator 1), sendo considerados aceitáveis para pesquisas exploratórias (Hair, Tatham, Anderson, & Black, 2009). Em função do reagrupamento dos itens, novas denominações e descrições foram propostas, a saber:

Fator 01 – Responsabilização da mulher (RM): este fator agrupa 06 itens que atribuem à mulher a responsabilidade pela violência da qual foi vítima, seja por sua postura, comportamento, roupas ou hora e local onde estava no momento. Esse fator apresentou um índice de consistência interna α=0,74, sendo considerado adequado. Os itens apresentam correlações item-total variando entre 0,38 e 0,59, com correlação média de 0,48.

Fator 02 – Minimização da gravidade (MG): agrupa 08 itens com discursos sugerindo menor gravidade do estupro, fazendo-o parecer um evento que não requer atenção e problematização social. Esse fator apresentou um índice de consistência interna α=0,68, sendo considerado aceitável. Os itens apresentam correlações item-total variando entre 0,32 e 0,47, com correlação média de 0,38.

Fator 03 – Desculpa feminina (DF): agrupa 07 itens com a noção de que a mulher deseja se relacionar sexualmente com outra pessoa, mas, por quaisquer razões, não é capaz de assumir seu desejo e usa o estupro como uma desculpa. Esse fator apresentou um índice de consistência interna adequado (α=0,71). Os itens apresentam correlações item-total variando entre 0,27 e 0,54, com correlação média de 0,42.

Fator 04 – Instinto masculino (IM): agrupa 04 itens que apontam para uma falta de controle instintiva da sexualidade por parte dos homens. Esses itens acabam tirando a responsabilidade do agressor ao justificar o comportamento violento por meio de um discurso naturalizante e a-histórico da masculinidade. Esse fator apresentou um índice de consistência interna α=0,64, considerado baixo, mas dentro do limite aceitável para sua utilização em pesquisa (Hair et al., 2009). Os itens apresentam correlações item-total variando entre 0,36 e 0,49, com correlação média de 0,41.

Relação com a Desejabilidade Social, Idade, Religiosidade e Gênero

Os escores médios para os quatro fatores da escala foram calculados. Em seguida, buscou-se verificar a associação deles entre si e com as médias de desejabilidade social, idade e nível de religiosidade dos participantes. Os resultados apresentados na Tabela 2 indicam a relação consistente das dimensões dos mitos de estupro entre si, com correlações que variam de 0,33 a 0,48 entre os fatores. No entanto, tais dimensões não apresentam correlações significativas com a desejabilidade social ou com a idade dos participantes.

 

 

Todas as outras correlações significativas observadas indicam uma associação fraca das dimensões dos mitos de estupro com os construtos propostos. A dimensão Responsabilização da Mulher apresentou uma correlação positiva com o nível de religiosidade. Tais resultados sugerem que quanto maior a religiosidade do participante, maior a probabilidade de responsabilizar a mulher pela violência sofrida. A desejabilidade social ainda apresentou associações significativas com o nível de religiosidade e com a idade dos participantes. Como esperado, quanto maior o nível de religiosidade e a idade dos participantes, maior a desejabilidade social.

Ademais, foram realizadas análises para investigar possíveis diferenças de gênero com relação à aceitação dos mitos de estupro. A Tabela 3 apresenta as médias de homens e mulheres nos quatro fatores da escala e na média geral de aceitação dos mitos.

 

 

No geral, homens e mulheres discordaram dos mitos de estupro, apresentando médias abaixo de 3,0 para as quatro dimensões. No entanto, diferenças significativas foram observadas em três fatores. As mulheres apresentaram pontuações médias significativamente menores nos fatores Minimização da Gravidade, Desculpa Feminina e, por fim, Instinto Masculino. No que tange à atribuição de responsabilidade à vítima, homens e mulheres não diferem em suas respostas.

 

Discussão

Como apontado anteriormente, este estudo objetivou a validação da escala Illinois Rape Myth Acceptance Scale – IRMA (Payne et al., 1999) para o contexto brasileiro em uma amostra de estudantes de Direito, a associação destes mitos com o nível de desejabilidade social, idade e religiosidade dos participantes, bem como possíveis diferenças com relação ao gênero. A estrutura original composta por sete dimensões (Payne et al. 1999) não foi observada nos dados coletados nesta amostra, sendo esta uma das principais limitações da pesquisa. Os dados sugeriram uma estrutura de quatro fatores, na qual os itens da subescala SA ('she asked for it') se uniram aos da subescala WI ('she wanted it'), criando um fator sobre a responsabilização da mulher pela violência sofrida; os itens da subescala TE ('rape as a trivial event') uniram-se aos da subescala DE ('rape as a deviant event'), gerando um fator sobre a minimização da gravidade do estupro. Da mesma forma; os itens da subescala NR ('it wasn't rape') e da subescala LI ('she lied') criaram um fator acerca do estupro como uma desculpa feminina, incluindo itens que acusam a mulher de falsas alegações de estupro; e finalmente, o fator MT ('he didn't mean to') permaneceu sozinho, incluindo itens que associam a violência ao instinto masculino. Embora essa reorganização seja diferente da original, agrupa os itens de maneira mais concisa e coesa, distribuindo-os em função de seu conteúdo, e corrobora a estrutura observada por McMahon e Farmer (2011), em sua versão reduzida e atualizada da escala IRMA. A redução no número de itens também pode ser considerada uma das limitações da pesquisa. Contudo, a exclusão de itens que apresentam pouca relação com a escala total garante uma maior qualidade e a apresentação de um instrumento mais parcimonioso para utilização em pesquisa.

Uma segunda limitação que deve ser enfatizada é o caráter não probabilístico da amostra. Apenas finalistas do curso de Direito foram convidados a responder o questionário, configurando um grupo seleto de indivíduos, provavelmente provenientes de classe socioeconômica média-alta. Nesse sentido, os resultados apresentados aqui não podem ser generalizados para outras amostras do país ou mesmo do estado. Assim, faz-se necessária uma reavaliação da escala em caso de utilização em outra população.

Finalmente, uma última limitação diz respeito aos valores observados no alfa de Cronbach de dois dos fatores retidos. O fator Minimização da gravidade (α=0,68) e o fator Instinto Masculino (α=0,64) apresentaram valores considerados 'questionáveis' por Damásio (2012). Hair et al. (2009), no entanto, indicam que tais valores podem ser considerados aceitáveis para utilização do instrumento em pesquisas exploratórias, mas não para critério diagnóstico.

O valor do alfa de Cronbach é calculado tomando como base o número de itens e a correlação destes entre si (Damásio, 2012). Apesar de os resultados indicarem valores próximos das correlações médias dos fatores, aqueles que apresentaram maiores índices de consistência interna foram os fatores que incluíam itens mais correlacionados entre si. Tal limitação sugere o desenvolvimento de novos itens para os fatores com baixos índices, propondo uma versão do instrumento que inclua conteúdos próprios ao contexto cultural brasileiro. No entanto, mesmo com essas limitações, acredita-se que o objetivo de adaptar um instrumento de aceitação dos mitos de estupro para o contexto brasileiro tenha sido alcançado. Apresenta-se uma medida com parâmetros psicométricos aceitáveis para o uso em pesquisas da área.

No que diz respeito aos outros resultados, os participantes apresentaram uma tendência a discordar dos mitos apresentados pelo instrumento. Para Gerger, Kley, Bohner e Siebler (2007), tais resultados, encontrados com frequência na literatura, sugerem um processo de mudança com relação às crenças associadas ao estupro para abranger um conteúdo mais sutil. Esses autores propõem que as médias não necessariamente indicam um nível baixo de aceitação dos mitos de estupro, mas apenas uma tendência atual dos participantes a responder de forma politicamente correta a itens com conteúdo explícito. Os estudantes de Direito do sexo masculino apresentaram maior pontuação do que as do sexo feminino em três dos fatores propostos: Minimização da Gravidade (MG), Desculpa Feminina (DF) e Instinto Masculino (IM), não sendo observada diferença apenas com relação ao fator RM (Responsabilidade da Mulher).

Os resultados encontrados corroboram estudos anteriores (Burt, 1980; Lonsway & Fitzgerald, 1994), apontando que os homens tendem a concordar mais com os mitos de estupro. Esses resultados também podem ser relacionados aos apresentados por Cowan (2000) e Geiger, Fischer e Eshet (2004), sugerindo que mulheres que se percebem como portadoras de valores e comportamentos adequados socialmente tendem a apoiar discursos de responsabilização da vítima, apresentando um alto nível de hostilidade com mulheres que não apresentam os mesmos valores e ações.

Finalmente, sugerem-se estudos futuros com o objetivo de verificar outros tipos de validade da IRMA, como a validade de critério, e a associação dos mitos de estupro com outros construtos, tais como a preocupação com a honra, a representação social da mulher vítima de violência e valores humanos. Sugere-se, ainda, a realização de um novo estudo com o objetivo de testar a estrutura fatorial encontrada em uma análise fatorial confirmatória e compará-la com o modelo original proposto por Payne et al. (1999).

Além disso, é necessário investigar a compreensão acerca dos mitos de estupro de estudantes de outros cursos e áreas, bem como de profissionais que estejam, direta ou indiretamente, relacionados ao atendimento à vítima e/ou agressor sexual. O desenvolvimento de uma medida implícita de aceitação dos mitos de estupro seria outra indicação para estudos futuros, procurando controlar a influência do conteúdo explícito das atitudes.

 

Referências

Allen, M., Emmers, T., Gebhardt, L., & Giery, M. A. (1995). Exposure to Pornography and Acceptance of Rape Myths. Journal of Communication, 45, 5-26.         [ Links ]

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Recebido em janeiro de 2013
1ª reformulação abril de 2013
2ª reformulação setembro de 2013
Aprovado em outubro de 2013

 

 

Sobre os autores

Arielle Sagrillo Scarpati: é Psicóloga e Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo, bolsista CAPES.
Valeschka Martins Guerra: é Doutora em Psicologia Social pela University of Kent at Canterbury (Inglaterra). Docente da graduação e pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo.
Camila Nogueira Bonfim Duarte: é Graduanda do curso de Psicologia na Universidade Federal do Espírito Santo. É bolsista de Iniciação Científica, orientada pela Profa. Dra. Valeschka Martins Guerra.


1A presente pesquisa contou com o apoio da CAPES por meio de bolsa de Mestrado concedida à primeira autora. A terceira autora contou com bolsa de Iniciação Científica da UFES. As autoras agradecem a estas instituições.
2Endereço para correspondência: Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Av. Fernando Ferrari, 514, Campus Universitário de Goiabeiras, UFES, CEMUNI VI, 29075-910, Vitória-ES. Telefax: (27) 3335-2501. E-mail: arielle.psicologia@gmail.com