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Revista Brasileira de Orientação Profissional

versão On-line ISSN 1984-7270

Rev. bras. orientac. prof vol.11 no.1 São Paulo jun. 2010

 

RELATO DE EXPERIÊNCIA PROFISSIONAL

 

Orientação profissional no contexto psiquiátrico: Contribuições e desafios

 

Vocational guidance in a psychiatric context: Contributions and challenges

 

Orientación profesional en el contexto psiquiátrico: Contribuciones y desafíos

 

 

Luciana Albanese Valore* 1

Universidade Federal do Paraná, Curitiba-PR, Brasil

 

 


RESUMO

Este estudo objetiva descrever e analisar os alcances e limites de uma intervenção em orientação profissional com pacientes psiquiátricas em vias de receber alta. Com foco na construção de um projeto de vida como ferramenta para a reintegração social, realizou-se um trabalho grupal, com quatro encontros de duas horas e meia cada, com dez pacientes psiquiátricos. Observou-se o favorecimento de um novo modo de relação com o futuro, a visualização de perspectivas para a vida pós alta e o resgate da autoconfiança quanto à possibilidade de sua concretização, corroborando a pertinência desse tipo de intervenção no contexto em questão. Mediante o relato e a avaliação do processo, espera-se contribuir para a discussão do tema.

Palavras-chave: Orientação vocacional, Paciente psiquiátrico, Projeto de vida, Saúde mental.


ABSTRACT

This study aimed at describing and analyzing the scope and limits of one intervention in vocational guidance with psychiatric patients just prior to their discharge from hospital. A group work, with four sessions of two hours and a half each, was done with ten psychiatric patients focusing the construction of a life project as a means of social inclusion. A new way of relationship with the future, the visualization of perspectives of life after discharging, and rescueing of self-confidence were observed to occur, thus corroborating the pertinence of such approach in the context studied. By means of the description and evaluation of that practice, we hope to contribute with discussions about the range and limits of this approach.

Keywords: Vocational guidance, Psychiatric patients, Life project, Mental health.


RESUMEN

Este estudio pretende describir y analizar los alcances y límites de una intervención en orientación profesional con pacientes psiquiátricos en vías de recibir alta. Teniendo como fin la construcción de un proyecto de vida, como herramienta para la reintegración social, se realizó un trabajo grupal con cuatro encuentros de dos horas y media cada una con diez pacientes psiquiátricos. Se observó la aceptación de un nuevo modo de relación con el futuro, la visualización de perspectivas para la vida después del alta y el rescate de la autoconfianza en cuanto a la posibilidad de su concreción, corroborando la pertinencia de este tipo de intervención en el contexto en cuestión. Mediante el relato y la evaluación del proceso, se espera contribuir a la discusión del tema.

Palabras clave: Orientación vocacional, Paciente psiquiátrico, Proyecto de vida, Salud mental.


 

 

A incursão pela história da orientação profissional brasileira evidencia um cenário de constantes transformações (Carvalho, 1995; Sparta, 2003; Sparta & Lassance, 2003; Melo-Silva, Lassance, & Soares, 2004; Soares, Krawulski, Dias, & D’Avila, 2007). Se, em seus primórdios, vinculava-se às práticas de seleção nas escolas e organizações, segundo o princípio de alocar “o homem certo para o lugar certo”, atualmente, dadas as complexas demandas da sociedade globalizada, depara-se com o desafio de auxiliar um homem incerto para uma era de incertezas. Concomitantemente, a proliferação de discursos focados no compromisso social da atuação do psicólogo vem estendendo também a este campo a preocupação com sua democratização e com seu uso como estratégia de promoção da saúde, da transformação e da inclusão social (Bock & Aguiar, 1995; Lehman, 1995; Oliveira, 2000; Holanda, 2000; Varjal, Medeiros, & Oliveira, 2000; Lisboa, 2002; Sparta & Lassance, 2003; González Bello, 2008). Tal preocupação tem estimulado a realização de intervenções em contextos ainda pouco explorados, como o hospital psiquiátrico, local em que se desenvolveu a experiência aqui relatada.

O desafio de um processo de orientação profissional com pacientes psiquiátricos não se esgota em lidar com suas limitações. Há que se considerar, igualmente, que o adoecimento psíquico, dentre outras razões, pode ser provocado pelas condições ou relações de trabalho (Dejours, Abdoucheli, & Jayet, 2007). Nesse sentido, propor a “cura” através do mal que eventualmente possa ter desencadeado a doença demanda cuidado. Apesar disto e embora pouco frequentes, algumas iniciativas têm sido registradas corroborando sua necessidade e relevância, sobretudo quando conduzidas em grupo.

Como pioneiras na área, destacam-se as valiosas contribuições de Ribeiro (1998). Em seu relato de um atelier para psicóticos, a partir de um entendimento do trabalho como elemento estruturante da subjetividade, o autor configura a orientação profissional como etapa intermediária entre a superação da crise e a ressocialização. Objetivando resgatar o poder de escolha, propôs o grupo, com usuários de um ambulatório de saúde mental da rede pública de São Paulo, como espaço transicional entre o domínio da doença (protegido pela instituição psiquiátrica) e o domínio da vida, via trabalho. Com vistas à construção da autonomia dos participantes, planejou os encontros num conjunto de cinco fases, com duração aproximada de seis meses, focando-os em tarefas estruturadas, seguidas de reflexão, pesquisa de possibilidades concretas de ação (como a busca de um emprego) e elaboração de um projeto de vida. Os avanços observados foram gradativos e consistiram em reconstruir a história individual, compartilhar experiências e soluções para problemas, superar a impotência diante da doença e o medo da mudança, fortalecer a vontade de ação, visualizar opções profissionais concretas e elaborar um projeto de vida com confiança e sustentação realista. Ainda neste artigo, Ribeiro (1998) tece considerações quanto à diferenciação da orientação profissional dos demais trabalhos desenvolvidos na instituição. Para tanto, dentre outros aspectos, destaca a constante reflexão sobre a ação e a não obrigatoriedade da participação.

Motivado pela falta de modelos de intervenção neste contexto, em sua tese de doutoramento Ribeiro (2004) retoma o tema e a experiência do atelier, com uma proposta similar de orientação profissional para pessoas psicóticas. Inspirado nas proposições winnicotianas, propõe o trabalho grupal como um ambiente de sustentação psicológica (holding) e de elaboração de estratégias identitárias, em que o indivíduo poderia reinvestir em vínculos com o social, consolidando sua identidade profissional e reativando o desenvolvimento de sua carreira. Dentre as principais dificuldades encontradas pelo autor na realização do atelier, vale registrar a ambivalência e a resistência à mudança em relação aos discursos instituídos sobre a doença e a falta de perspectivas de futuro das pessoas psicóticas. A possibilidade de sua superação, todavia, consolidou avanços já observados na experiência de 1998. Dentre eles, Ribeiro pôde constatar: a desconstrução do conceito de louco, com a criação de projetos e de novos modos de relação com o mundo; a transformação do sofrimento com a doença em aprendizado sobre a vida, em seu movimento contínuo de sucessos e fracassos; o confronto real na busca por um local extra-instituição para o exercício de uma ocupação. Sobre este último aspecto, o autor ressalta a importância do compromisso da sociedade em reabrir um espaço de experimentação para acolher essas pessoas, pois “sem isto, o efeito da ação desse programa seria apenas de um esforço subjetivo (psicológico)” (Ribeiro, 2004, p. 284).

Fundamentadas numa visão existencial fenomenológica, Varjal, Medeiros e Oliveira (2000) desenvolveram uma experiência com usuários e ex-usuários do Núcleo de Atenção Psicossocial de Pernambuco, cujo enfoque, apesar de a abordagem teórica ser diferente, parece aproximar-se da proposta de Ribeiro (1998). Através de uma Oficina para o Trabalho, buscaram despertar as potencialidades para a aquisição de uma ocupação e superar a impotência gerada pela incorporação dos estigmas sociais, com vistas a resgatar a tendência à autoatualização. Nessa perspectiva, o trabalho de orientação profissional, como um espaço de ação, de reflexão sobre a ação, de reconstrução da história de vida e de articulação de um outro tipo de relação com o mundo tendo o trabalho como mediador, serviria ao propósito de reestruturação do “mundo fragmentado característico das vivências psicóticas” (Ribeiro, 1998, p. 191) e da própria vida. Dentre os principais resultados elencados pelas autoras, destacam-se: a troca de experiências de vida (sem focarem-se, exclusivamente, no tema da doença) e o aumento da credibilidade pessoal.

Holanda (2000) relata que a re-orientação vocacional ocupacional em hospitais psiquiátricos é definida como um “renascimento” que proporciona ao sujeito o reencontro consigo mesmo e a identificação de seu potencial. Tal perspectiva, ao ir além da busca de uma ocupação, permitiria o reconhecimento de si como alguém capaz de reformular o presente e planejar o futuro, levando em conta o desejo pessoal.

Os princípios que nortearam estas iniciativas e os resultados nelas obtidos embasaram e impulsionaram a experiência descrita neste artigo. Conceber um trabalho de orientação no contexto psiquiátrico, segundo estes princípios, pareceu bastante produtivo e condizente com a perspectiva teórico-metodológica adotada: a estratégia clínica de Bohoslavsky (1977/2003), em que o orientando é visto como um sujeito de escolhas.

Como parte constituinte de um estágio de 5º ano em Psicologia, a experiência em questão surgiu do interesse de duas estagiárias e sua supervisora em se aventurarem por terras pouco desbravadas pela orientação profissional (OP): os muros de um hospital psiquiátrico. Entendendo-se esta prática como ferramenta para o aprendizado de uma escolha (Müller, 1988) e, mais do que isto, para a construção de um projeto de vida (Andrade, Meira, & Vasconcelos, 2002; Bardagi, Arteche, & Neiva-Silva, 2005) e concebendo-a como uma oportunidade de mudança, não apenas das relações sociais, mas, sobretudo, das relações consigo mesmo, perguntava-se: seria viável implementar um projeto de OP ou, no limite, uma proposta de sensibilização para o tema, em tal contexto? Como seriam construídos os projetos de vida numa população usualmente vista mais em suas limitações do que em suas potencialidades? Que imagens de futuro, e de si mesmos nesse futuro, teriam essas pessoas? Que contribuição poderia ser lhes dada em seu processo de reintegração social?

O desejo de buscar respostas a estas questões e de encontrar referências para a execução da tarefa motivou a revisão de literatura. A escassez de estudos e experiências similares, em âmbito nacional, longe de desmobilizar a iniciativa, serviu como estímulo a aprofundar o conhecimento na área, por reconhecer sua relevância não apenas para os profissionais da OP, mas também para aqueles que, engajados na luta antimanicomial, têm apostado na reinclusão. O presente relato visa, pois, a descrever os principais aspectos do trabalho desenvolvido, com o objetivo de analisar seus alcances e limites, tendo em vista a especificidade da clientela atendida e do contexto de intervenção.

 

Relato da experiência

A proposta de OP foi aceita pelo diretor geral e equipe técnica da instituição - um hospital psiquiátrico público, em transição do sistema manicomial para o de internamento máximo de 45 dias- mediante condições: não poderia se estender por mais de três semanas; os critérios de participação consistiriam em “maior consciência”, capacidade de verbalização e alta não prevista para o período estipulado; a escolha dos participantes seria feita junto à psicóloga da unidade. A receptividade da proposta, por parte de uma delas, levou a selecionar sua unidade, composta por trinta pacientes do sexo feminino, como contexto possível da orientação.

Uma vez aprovado pelo Comitê de Ética do hospital, iniciou-se o projeto com a visita à unidade selecionada e a participação das estagiárias no grupo terapêutico coordenado semanalmente pela psicóloga. Através da observação e conversa com as pacientes e, com o auxílio da avaliação da psicóloga, chegou-se ao consenso em relação à composição do grupo de orientação, o qual lhes foi apresentado como um espaço para pensar na vida após a alta. Seriam feitas duas entrevistas individuais (inicial e devolutiva) e quatro encontros grupais, de duas horas e meia cada, com quem, dentre as pacientes selecionadas, se dispusesse a participar. Como bem observou Ribeiro (1998), a escolha pessoal, ao representar o alvo do processo de orientação deveria caracterizar também seu ponto de partida.

Cientes de que esse espaço configuraria uma sensibilização para a reflexão sobre o futuro, mais do que uma OP propriamente dita (no sentido de visar à escolha de uma profissão), as estagiárias convidaram as dez pacientes escolhidas para agendarem as entrevistas individuais. Apenas uma recusou-se a participar, alegando: “Eu vou sair daqui e vou ficar com minha mãe e meu tio mesmo. Só vou pensar nisso (futuro) depois que eles morrerem.” À exceção de duas delas, “E” e “R” (por estarem dormindo no horário), as demais compareceram pontualmente. Por ocasião do 1º encontro grupal, uma nova paciente “A”, não selecionada previamente, solicitou sua inclusão no projeto, o que foi aceito, fechando-se o grupo em dez integrantes. Na entrevista, após retomados os esclarecimentos sobre a proposta, garantido o sigilo quanto à identificação e obtidos os consentimentos, as pacientes eram solicitadas a contar sua história e a escrever uma pequena redação sobre o que desejavam para o futuro e que chances imaginavam ter para concretizá-lo. Apresentam-se abaixo as características descritas em seus prontuários e alguns dados referentes aos seus desejos em relação ao futuro:

- E. 17 anos, síndrome de dependência química de múltiplas drogas, moradora de rua. Internada sob ordem judicial, casou-se aos 13 anos, parou de estudar, teve uma filha e separou-se.

- R.18 anos, transtorno esquizoafetivo tipo misto, muito agressiva e infantil, foi internada devido a delírios persecutórios e alucinação auditiva e visual.

- A. 20 anos, síndrome de dependência química de múltiplas drogas. Internada pela sétima vez, verborreica com idéias suicidas e homicidas.

- P. 16 anos, síndrome de dependência química de múltiplas drogas, prostituía-se. Internada pela segunda vez, deseja dar felicidade aos pais e sair das drogas, que a impedem de concretizar seu sonho de infância: ser modelo. Pensa em voltar a estudar e em entrar no CAPS e isto “lutando com minhas forças e com minha sabedoria.”

- V. 17 anos, síndrome de dependência química de múltiplas drogas, prostituía-se. Internada sob ordem judicial para reabilitação é descrita com uma postura infantilizada e crítica rebaixada. Separada, após a alta pretende trabalhar como secretária e voltar a estudar. Pensa em ser psicóloga e trabalhar com tratamento de drogadição na Casa Lar (onde morou dos 11 aos 17 anos) “porque compreendo o que é viver na rua, ficar longe da família”. Afirma que este é um sonho impossível e que não consegue imaginar seu futuro por se achar incapaz de alcançar as coisas.

- M. 17 anos, transtorno afetivo bipolar, episódio atual maníaco com sintomas psicóticos. Internada devido à insônia, apresenta fala desorganizada e delírios religiosos. Com depressão desde os 14 anos, gostaria de casar e voltar a estudar para ser “Agrônica” (sempre adorou trabalhar na roça) ou “zoladora”. Após a alta, quer visitar sua família e conversar muito com seus amigos:“Aqui as amigas chegam e vão embora...daí só sobra eu.” Para realizar seus sonhos, “tem que tomar melhoril” para se curar.

- L. 32 anos, transtorno depressivo maior, quatro tentativas de suicídio em 20 meses, internou-se por vontade própria. Separada, quatro filhos, não queria sair do hospital, nem pensar no futuro. Pediu para escrever a redação em outro momento, alegando estar dopada. Quando o fez, registrou seus planos: terminar o tratamento e transformar-se “completamente a ponto de ser outra pessoa”, “poder cuidar direito das minhas filhas, mudar de cidade, trabalhar e cuidar de mim”. Quanto às suas chances, “só depende de mim”.

- N. 37 anos, transtorno esquizoafetivo tipo maníaco, internada várias vezes, buscou espontaneamente o hospital há dois meses, devido à “confusão de idéias”. Na entrevista, numa fala bastante desorganizada, relata ter feito vários cursos técnicos e trabalhado em várias empresas. Para o futuro, “quero sossego e paz... Quero comprar um computador para ser voluntária e fazer artesanato, ensinar as mulheres no fundo de casa, tenho que comprar um microondas. Quando sair daqui quero conquistar os filhos mas vai ser trabalhoso”. Pretende casar novamente e ter outro filho. Deseja voltar a trabalhar, mas “só se for estágio porque se ganhar dinheiro, vão roubar”. Diz que fará tudo isso só se a mãe deixar.

- J. 38 anos, transtorno depressivo recorrente, casada com cinco filhos, internada contra a vontade familiar, devido a tentativas recorrentes de suicídio. Desde os seis anos “só queria morrer, não fantasiava nem imaginava um futuro”. Afirma ter começado a fazê-lo no momento da entrevista, tendo o sonho de voltar a estudar e recomeçar a vida: “quero dar o melhor para minha filha mais nova, dar tudo o que não tive”.

- D. 45 anos, transtorno esquizoafetivo tipo maníaco, crises de agitação psicomotora com agressividade, alucinações auditivas e visuais, delírios persecutórios. Vários internamentos. Viúva, 3 filhas, quer retomar os estudos e ter uma casa melhor, mas antes “preciso sarar”.

A intervenção foi conduzida segundo os pressupostos da modalidade clínica de Bohoslavsky (1977/2003) e inspirada nas etapas sugeridas por Torres (2001), com as devidas adaptações. Os encontros foram programados à medida que eram realizados, buscando-se atender à dinâmica do grupo e, na medida do possível, aos objetivos propostos pelos autores reportados anteriormente. O grupo foi coordenado por uma das estagiárias, e co-coordenado pela outra estagiária e pela psicóloga da unidade, as quais eram responsáveis pelo registro dos atendimentos. As participantes compareceram a todos os encontros. O relato resumido de cada sessão é apresentado a seguir.

O primeiro encontro objetivou a criação de vínculo, entre os participantes do grupo e com a tarefa, o autoconhecimento (discriminação de gostos e interesses) e o estabelecimento do contrato de trabalho. Após a retomada dos propósitos do grupo, iniciou-se a apresentação pessoal e a discussão sobre as regras de funcionamento do mesmo, com a aplicação da técnica “Teia Grupal” (adaptada de Soares, 2002). Ao receber o barbante, cada participante deveria dizer o que queria receber do grupo e, ao devolvê-lo, o que queria dar. Os desejos mais recorrentes foram de carinho, atenção e amizade. Entusiasmadas com a formação da teia, disseram que se tratava de uma atividade diferente e que, também por isso, estavam interessadas em cooperar. Conversou-se sobre a importância do comprometimento pessoal e a psicóloga observou-lhes que haviam sido escolhidas pelo aproveitamento que poderiam ter.

A seguir, aplicou-se a técnica “Gosto/Não gosto” (adaptada do “Gosto e faço”, Lucchiari, 1993). V, A, D e L reclamaram da dificuldade em pensar sobre os seus gostos, sendo mais fácil descrever o que não gostam. Para V: “quando se está no vício das drogas, não importa se gosta ou não gosta de algo” ao que L. contrapôs dizendo-lhe que deveria pensar porque só pensava em algo após já tê-lo feito e que era preciso “saber a diferença entre querer, poder e dever”, assertiva que obteve a concordância das colegas. P afirmou ser preciso força de vontade para alcançar qualquer objetivo, como ela que queria largar das drogas. N afirmou gostar do internamento porque tinha um tempo para poder ficar pensando somente nela. A coordenadora incentivou-as a pensarem em atividades que gostavam e que poderiam resgatar numa ocupação após a alta. Algumas delas relacionaram alguns interesses, porém N interrompeu-as direcionando a discussão para o medo que sentia quanto ao futuro e à reação das pessoas diante de sua doença, tema que ocupou o tempo restante da atividade.

O segundo encontro focou a integração e a projeção no futuro. V hesitou em prosseguir, negociando sua permanência por um telefonema ao seu psicólogo particular, o que foi negado pela psicóloga que reafirmou a importância de sua presença, mas observou-lhe a liberdade de escolha. V decidiu ficar, mas não participou da primeira atividade, a qual consistiu na escolha de um nome para o grupo. Depois de duas rodadas de votação, “a felicidade” foi o nome eleito. Em seguida, aplicou-se a técnica “Viagem ao passado, presente e futuro” (Lucchiari, 1993) acompanhada de relaxamento e música apropriada. Algumas assumiram a posição fetal, J, L e A choraram muito e A pediu para sair do grupo. Todavia, após conversarem sobre o fato de que aquele espaço servia para pensarem no que não pretendiam repetir do passado, acalmou-se e resolveu permanecer. O comentário geral foi de que o exercício “mexeu muito com os sentimentos”. Foi lhes explicado que entrar em contato com os sentimentos não é tarefa fácil, todavia, se elas se dessem uma oportunidade, conseguiriam. A coordenadora colocou-se à disposição para conversas individuais após o encontro, o que não foi solicitado.

Por fim, em dois subgrupos, realizou-se uma colagem com o tema “Como me vi no futuro e o que quero para mim”. Na discussão, relataram que a tarefa foi mais fácil do que a anterior, apesar de V, M e E expressarem a dificuldade de pensar no presente, pois sentiam-se presas ao passado. As figuras mais recorrentes representavam o desejo de ter uma família feliz. Chamou atenção o cartaz de V, dividido em “eu” (com palavras como “drogas”, “roubo”, “menores infratores”) e “mundo” (onde aparecem “destruição”, “aquecimento global” e uma grande figura com a palavra “socorro”). Encerrou-se o encontro pedindo, como tarefa de casa, o preenchimento de um quadro, dividido em três colunas “amor”, “família” e “trabalho”, nas quais deveriam responder como se viam hoje, o que queriam para o futuro e o que, concretamente, seria preciso fazer.

No terceiro encontro visou-se a aprofundar o autoconhecimento, a reconhecer as eventuais dificuldades na reintegração após a alta e a visualizar as ações necessárias para conseguirem concretizar seus sonhos. Iniciou-se com a discussão da tarefa de casa, a qual demandou o auxílio da psicóloga no dia anterior, uma vez que as orientandas encontraram dificuldades em pensar sobre o futuro, especialmente sobre o que seria necessário fazer para poderem concretizar seus sonhos. Estes foram assim enunciados: L gostaria de montar uma oficina de artesanato; V, trabalhar e voltar a estudar; N, reconstruir a relação com os filhos; A, contar com o apoio da família e ter um trabalho (sem conseguir visualizar qual seria); J, ser feliz; D, ter saúde, ganhar mais dinheiro e ser uma voluntária “igual àquela que eu vi na igreja”; P, ser modelo, sair das drogas e trabalhar com cosméticos; R, ser professora de educação física, ter muito dinheiro e ser feliz; M (com muita dificuldade em organizar sua fala), ter filhos, casar, comprar uma casa e trabalhar na roça, mas comenta “quero tudo isso pra agora!”. As condições reconhecidas como requisitos para o sucesso consistiram em esforçarem-se muito, principalmente no tratamento, voltarem a estudar e poderem contar com o apoio familiar. Os receios em relação ao futuro giraram em torno do preconceito social e da recaída nas drogas. Reforçou-se ao grupo a importância do que disseram, mostrando-lhes que, embora inicialmente tivessem falado da dificuldade da realização da tarefa, haviam conseguido.

Após um momento de descontração, através da técnica “modos diferentes de andar” (Lucchiari, 1993), solicitou-se que conversassem em duplas sobre as dificuldades que iriam enfrentar após a alta, elegendo uma situação. Em seguida, pediu-se que montassem uma cena sobre a mesma. Após alguns ensaios e auxílio das orientadoras, as duplas deram início ao “teatro das dificuldades”, nome atribuído por elas à atividade. P interpretou a si mesma pedindo à mãe para sair com os amigos. Esta, alegando que eles usavam drogas, não deixou, ao que P respondeu “tudo bem, mãe”. M conversou com o pai pedindo para trabalhar na roça. Este negou e ela insistiu dizendo que era importante. O pai aceitou. N conversou com a sogra e pediu para ver seu filho, que morava com esta. À negação do pedido, respondeu que precisava muito ver seu filho. Frente à nova negativa, retrucou agressivamente: “Ah é? Então a gente se vê no tribunal!” A . estava em casa e um traficante chamou-a para consumir drogas, mas ela recusou dizendo que não faria mais isso. No entanto, ele insistiu e A calou-se. J conversou com seu filho dizendo que o amava e que ele era muito importante para ela. Chorou bastante durante a cena.

Cada encenação foi seguida de palmas e elogios, rendendo uma rica discussão sobre as dificuldades apresentadas e a importância de se prepararem, desde então, para enfrentá-las. Recomendou-se que continuassem a pensar a respeito e pediu-se que, antes de irem embora, escrevessem em um papel quais profissões gostariam de conhecer melhor. Terminado o grupo, as estagiárias encontraram N conversando com a mãe no corredor. Esta lhe pedia para ir embora, pois tinha acabado de receber alta, ao que N, sorrindo para as estagiárias, retrucou: “Não mãe, eu preciso terminar meu curso, depois vou pra casa.”

O último encontro foi dedicado aos temas: projeto de futuro, autoestima e desligamento do grupo. Optou-se por realizá-lo de forma festiva, incluindo um piquenique numa represa situada próxima ao hospital. Ao chegarem na unidade, as estagiárias encontraram as participantes muito bem vestidas e maquiadas. Todas estavam muito sorridentes e falantes. Começou-se relembrando do encerramento do grupo e dos projetos de futuro relatados no atendimento anterior. Em seus depoimentos, destacaram a retomada dos estudos, como condição para concretizarem seus planos profissionais, e o trabalho como um modo de “ocupar a mente” e, com isto, manterem-se afastadas das drogas e da depressão. A coordenadora distribuiu, então, o material informativo, elaborado em função das profissões que haviam escrito no encontro anterior, convidando-as a pesquisarem sobre profissões, duração e tipos de cursos, salário, etc. Iniciaram-se, assim, a pesquisa e o piquenique, com V mostrando-se muito interessada e perguntando sobre vários cursos: “Nunca imaginei que precisaria ficar 5 anos estudando Psicologia!” A coordenadora explicou-lhes que esse era o tempo usual de uma graduação, mas que existiam cursos técnicos mais rápidos, o que levou algumas delas a buscarem mais informação: V pesquisou sobre secretariado e assistência social; L, sobre a área de Administração em Recursos Humanos; J, sobre os cursos de manicure e pedicure, podóloga e design e P, sobre farmácia e revenda de cosméticos. As outras leram rapidamente os guias. Entretanto, mesmo instigadas a pesquisar, demonstraram maior interesse no lanche.

Em seguida, aplicou-se a técnica “Mímica das Profissões” (Lucchiari, 1993) e as profissões escolhidas por elas foram: agricultora, professora, empregada, telefonista, médica e secretária. Após muitos risos e agitação, a coordenadora comentou que havia lhes trazido um presente e que este era o “maior tesouro do mundo” (uma caixa decorada com um espelho colado no fundo). Cada uma iria abri-lo, sem fazer qualquer comentário para preservar a surpresa. Na seqüência, à pergunta sobre o que haviam entendido do tesouro, A respondeu: “é, o espelho é algo muito importante para a mulher”. O grupo riu e V explicou: “é que o maior tesouro é a gente mesmo”. M complementou “nós somos tesouros porque somos valiosas”. Conversou-se então sobre o quão precioso era este tesouro e como precisaria ser cuidado para que pudessem realizar seus sonhos. Por fim, fez-se uma avaliação do processo, com agradecimentos e depoimentos entusiasmados acerca de suas contribuições. Dentre elas destacaram-se a oportunidade de pensarem na vida e no futuro, algo assumido como raramente feito até então, e a importância de terem recebido esperança e de poderem perceber que eram “pessoas valiosas”.

Uma semana após o encerramento do grupo realizaram-se as entrevistas devolutivas que consistiram na avaliação dos avanços de cada participante e na discussão de seus planos concretos para a vida pós alta. Ao todo, cinco integrantes participaram, pois duas delas alegaram não estar dispostas naquele momento e três haviam tido alta na semana que sucedeu ao término dos encontros. Abaixo, uma síntese de seus comentários:

Para V, o grupo mexeu com o seu “eu”, obrigando-a a pensar sobre o que já tinha feito na vida e sobre o futuro, o que “nunca tinha feito antes, foi difícil”. Antes do grupo, não queria saber de trabalhar, mas agora “determinou” que quer estudar e ser alguém na vida: “Pode ser que não seja o que eu sonho, mas vou ser alguém na vida para poder tirar todos os cabelos brancos que dei para minha mãe”. Reconheceu que precisava curar-se do vício para poder voltar a estudar no supletivo, de modo a concluir o ensino fundamental. Mesmo considerando difícil, sinalizou seu desejo de fazer um curso de computação (assumido como mais viável do que o de psicologia) e de voltar a fazer teatro. Para ela “o grupo serviu para espairecer a cabeça, esquecer a perturbação e me fixar no que estou fazendo”.

R gostou do grupo, mas diz que “não mudou nada, serviu porque foi uma atividade divertida”. Na sequência, porém, reconheceu ter podido pensar em ter uma vida e que seria possível alcançar seus sonhos. Seu plano imediato consistia em voltar a estudar e arrumar um emprego. Além do sonho de ser professora, também gostaria de ser cantora, o que a levava a considerar a possibilidade de inscrever-se no coral da igreja do bairro após a alta. Quanto à saúde, afirmou querer se cuidar, fazendo o tratamento no CAPS.

Para D o grupo ajudou a pensar e deu-lhe ânimo. Informou-se na igreja e, para ser voluntária, “precisa de estudo”. Se não pudesse retomar a escola, voltaria a ser doméstica e, se não conseguisse emprego (tinha receios devido à idade), voltaria a fazer tapetes, coisa que sempre gostou. Também queria “sarar melhor e se animar”.

A. considerou que os encontros serviram “para clarear a mente, refletir, desejar coisas nem tão pequenas nem tão grandes, mantendo os pés no chão e a mente calibrada”. Disse ter conseguido colocar prioridades na vida, como começar a trabalhar e matricular-se num curso supletivo. Afirmou que, se ouvisse um “não”, não iria recair nas drogas, pois tinha que continuar tentando: “A vida não pode ser feita somente de nãos, alguma hora, tem que ter um sim!”. Explicou que, durante o grupo, pensou em ser feliz e ter uma família e que as atividades ajudaram-na a mudar de percepção e de perspectiva. Logo após o internamento pretendia encontrar um emprego e fazer um curso de telemarketing. Gostaria de fazer um curso de fotografia, mas informou-se sobre a necessidade de ensino médio completo. Considerou-se uma mulher batalhadora: “venci na luta!” Gostou da iniciativa de fazer um grupo de OP no hospital, sobretudo das músicas que “pareciam tocadas com harpas do céu”. Nestes momentos, lembrava do que já havia feito e do que não tinha feito.

P. gostou do grupo para se distrair e tirar dúvidas. Já pensava sobre o futuro, mas sentiu-se mais segura. Após a alta iria participar de um CAPS e procurar um emprego e, no próximo ano, voltar a estudar. Comentou que queria fazer muitas coisas para “ocupar a cabeça”, como trabalhar com cosméticos, um sonho alimentado desde a infância. Sua irmã trabalhava com isto e talvez pudesse ajudá-la.

 

Avaliando a experiência

Ainda que viável, a experiência em questão lançou muitos desafios. A fala tímida ou desorganizada de algumas pacientes, seus históricos pesados de vida (em que, dadas suas condições socioeconômicas, a exclusão social já se fez presente antes mesmo do surgimento da doença), a intimidação provocada por seus diagnósticos e a inexperiência em orientação profissional com essa clientela exigiram flexibilidade e avaliação contínuas. Somando-se a isto, a limitação de tempo para realizar o trabalho e a impossibilidade de aprofundá-lo, nos moldes concebidos pelos autores pesquisados, demandaram ampliar a tolerância à frustração e exigiram o constante redimensionamento de objetivos e expectativas para que não se incorporasse o sentimento de impotência que se buscava combater. Por outro lado, e talvez justamente por isto, a riqueza do aprendizado foi incomensurável para todos os que dele participaram.

Cada uma das participantes, a sua maneira, saiu do processo de modo diferente, agregando ao seu sofrido histórico um pouco mais de confiança, na vida e em si mesma (o que pode ter sido favorecido, em algumas delas, também por sua pouca idade). Seus sonhos, timidamente esboçados na primeira entrevista, adquiriram contornos mais nítidos. Ainda que muito caminho precise ser trilhado e que o trabalho empreendido tenha ficado bastante aquém das metas usualmente prospectadas numa orientação profissional, pode-se afirmar que os principais objetivos foram atingidos, o espaço tendo funcionado, lado a lado ao tratamento realizado pelos profissionais de saúde do hospital, como uma oportunidade de ampliação das possibilidades de vida destas pessoas, e o grupo, como um holding (Ribeiro, 2004). Favoreceram-se o exercício da troca grupal, a oportunidade de escuta de si e do outro (com alguns feedbacks dados, pelas participantes, umas às outras), o reconhecimento de habilidades e interesses, a reflexão sobre o futuro (sonhos, planos e receios) e a visualização de algumas ações para a vida pós alta. Evidentemente, muitos aspectos poderiam ter sido aprofundados, com vistas a uma maior instrumentalização para a escolha profissional e à reflexão sobre a ação concreta. Neste sentido, um trabalho de OP, na modalidade clínica, em contexto psiquiátrico, em muito se beneficiaria com a continuidade, quer através de uma maior duração dos atendimentos, quer mediante o acompanhamento dos pacientes após a alta (o que, no presente caso, não foi possível). Igualmente produtiva viria a ser a modificação da metodologia utilizada, incluindo a pesquisa de possibilidades concretas de ação (Ribeiro, 1998), com a procura de empregos e a consequente oportunidade de elaboração desta experiência. Certamente, tal exercício motivaria a busca de informações profissionais, atenuando o desinteresse manifestado por algumas pacientes.

Avalia-se que as dificuldades enfrentadas na condução deste grupo derivam dos desafios impostos pelas condições de saúde mental – e, mesmo, por suas condições prévias de vida – das participantes. Paralelamente às proposições feitas acima, entende-se que tais dificuldades, demandariam um estudo preliminar aprofundado, no sentido de compreender a complexidade dos determinantes sociais/individuais dos distúrbios psiquiátricos e de avaliar a metodologia mais adequada para um trabalho de OP com esta população. Entretanto, em que pesem estas limitações, e a considerar a avaliação feita pelas participantes, acredita-se que um primeiro passo foi dado para o processo de reintegração social. Mesmo no caso da participante que, na devolutiva, afirmou que o grupo não havia “mudado nada”, pode-se supor, de acordo com a sequência de seu depoimento, que os encontros auxiliaram-na a pensar em ter uma vida futura, na qual seus sonhos poderiam ser alcançados. O espaço oferecido, assumido por elas como uma “atividade diferente na instituição”, posto que centrado na vida mais do que na doença, auxiliou na desconstrução do conceito de “doente”, corroborando as proposições dos autores consultados. Além disto, cabe observar que, dentro das possibilidades concretas de cada uma (experiência profissional anterior, idade, nível de escolaridade, condição socioeconômica), alguns projetos ocupacionais puderam ser vislumbrados, aparentemente com maior segurança do que quando esboçados nas entrevistas iniciais.

A acolhida e o aproveitamento do projeto pelas pacientes chamaram a atenção. Algumas, em particular, dados seus quadros sintomáticos, causavam preocupação quanto ao entendimento e à realização das atividades. No entanto, especialmente para as pacientes com transtornos esquizoafetivos, o trabalho grupal, em conjunto com o trabalho realizado pela equipe do hospital na superação do quadro agudo que motivou a internação, parece ter contribuído como mais uma ferramenta de organização psíquica: de um momento inicial prenhe de dispersão, em que os desejos pareciam habitar um território longínquo e quase inalcançável, parece ter se alcançado um outro, em que a aproximação do futuro, seu planejamento e, principalmente, a esperança em “chegar lá” tornou-se uma possibilidade.

Em relação às cinco participantes que apresentavam dependência química, adolescentes de 16 a 19 anos, alguns benefícios também puderam ser observados. Redimensionar seu foco no prazer imediato do aqui e agora para gratificações a médio e curto prazo foi o principal desafio. Para a maioria, aproximar o sonho da realidade parecia uma tarefa impossível, A. é um exemplo. Com uma fala repetida de confiança e vontade durante os encontros, quando questionada sobre o que fazer para concretizar seus planos, afirmava não saber e “não parar para pensar nisso”, relutando em sair do universo da fantasia. Na entrevista devolutiva, porém, sinalizou avanços. De modo geral, apesar das dificuldades, observou-se que puderam perceber o quanto o retorno às drogas impediria a concretização de seus sonhos e, nas devolutivas, mostraram-se esperançosas quanto ao seu êxito. Mais uma vez, cabe ressaltar que esta conquista, como as demais observadas, não se deve exclusivamente ao grupo de OP e, se este representou algum auxílio, foi no sentido de possibilitar o reconhecimento de desejos para a vida futura (como o de serem boas filhas, boas mães e pessoas felizes) e a emergência de novas possibilidades de subjetivação. Se, habitualmente, a adolescência representa um período de conflitos, e o uso de drogas pode vir a ser um dos modos encontrados para suportá-los, dentre outras formas de intervenção, a oferta de um espaço auxiliar de estruturação de sonhos, como alavanca para a construção de uma identidade profissional, pode vir em auxílio.

Como observado por Ribeiro (1998), após o surto psicótico ou, no caso das dependentes químicas, o período de abstinência, o medo do fracasso, aliado ao descrédito em relação à receptividade da sociedade, torna-se significativo. Especialmente no início, observou-se que tal medo, incorporado como desconfiança em relação a si mesmas, estancava a possibilidade de pensar e de se projetar no futuro. Assim, objetivou-se propiciar-lhes uma oportunidade de enfrentá-lo, de modo a reapropriarem-se da vida. Com Ribeiro (1998, p. 19), apostou-se na idéia de que isto proporcionaria “mais confiança ao sujeito, fazendo com que ele resgate sua capacidade de escolha e decisão, e siga vivendo”. Efetivamente, se estas dez mulheres terão sucesso em concretizar seus projetos, é uma questão que permanece em aberto. Todavia, arrisca-se dizer que as atividades realizadas permitiram a produção de novas imagens de si. Se um “eu” que “antes não pensava nisso” pôde dar lugar a um “eu” capaz de pensar no futuro, supõe-se que o fato de alguém ter dado crédito a essa possibilidade favoreceu o reconhecimento de si nesta condição. Assim, embora a doença ainda assombrasse seus discursos, abriu-se um espaço para a experimentação de um outro lugar subjetivo, configurando a orientação profissional também como estratégia de produção de novos modos de subjetivação na relação com os discursos socialmente instituídos.

Um outro aspecto a considerar remete à participação da psicóloga da unidade no projeto. Fazendo-se um paralelo com a análise empreendida por Ribeiro (2004), poder-se-ia supor que, ao participar do grupo de orientação, a referida psicóloga, na condição de intermediária entre as estagiárias e a instituição, representaria uma forma de controle do trabalho desenvolvido. Percebeu-se, porém, que sua presença no grupo foi fundamental para o estabelecimento do vínculo, bem como sua acolhida inicial para a apresentação do projeto e contato das estagiárias com as internas, no grupo terapêutico por ela coordenado. Interessante observar que a participação de algumas pacientes e da psicóloga em ambos os grupos, terapêutico e de OP, não comprometeu a compreensão dos objetivos deste último (poderia ocorrer, por exemplo, alguma confusão entre o que seria trabalhado no grupo terapêutico e o que seria tratado no grupo de orientação). Entende-se que isto se deve à constante retomada do propósito do mesmo, também por parte da psicóloga, o que possibilitou o reconhecimento daquele espaço como uma atividade diferente. Em contrapartida, a aproximação entre um universo e outro se deu em relação ao modelo clínico utilizado em ambos os grupos, o que potencializou a orientação profissional em sua condição de espaço de fala e de escuta, do outro e de si, permitindo articular o âmbito racional e concreto ao âmbito do desejo e das motivações pessoais no planejamento do projeto de vida. Deste modo, pôde-se aproximar o trabalho à estratégia clínica proposta por Bohoslavsky (1977/2003) e corroborar a proposição de Varjal, Medeiros e Oliveira (2000) referente ao fato de que o trabalho de OP não exclui o tratamento medicamentoso, psicoterápico e nem invalida os objetivos dos outros grupos já empreendidos na instituição. Ao contrário, lança mais um desafio aos profissionais da OP: o de articular seu trabalho às demais práticas de assistência à saúde mental.

Por fim, ressalta-se a necessidade de aprofundamento teórico sobre as problemáticas enfrentadas. A busca de referenciais específicos sobre os transtornos psicoafetivos e a dependência química, a investigação de suas condições prévias de vida, o conhecimento dos princípios e das ações preconizados pelo novo paradigma em saúde mental, muito têm a contribuir no aprimoramento da OP neste contexto. Descortina-se, pois, um amplo horizonte para novas pesquisas.

 

Considerações Finais

Como visto na literatura, a passagem por uma instituição psiquiátrica não raro contribui para produzir, no imaginário social e nos próprios usuários, um conceito de si vinculado à idéia de incapacidade e de anormalidade, o qual pode resultar na paralisação de suas ações e possibilidades de escolha. Mesmo em casos de internamentos de curta duração (como na experiência relatada), há que se considerar que, não obstante as significativas transformações no paradigma de assistência à saúde mental e suas valiosas contribuições para a desconstrução desse conceito, muito ainda há por ser feito e não apenas em relação à representação social do transtorno psiquiátrico. O estudo de Vechi (2003), por exemplo, alerta para as marcas da iatrogenia no discurso de profissionais em hospitais-dia. Através da análise de entrevistas, com psicólogos e psiquiatras, sobre o primeiro atendimento de usuários desse sistema, o autor demonstra como a representação de “doente incurável”, presente em seus discursos, pode contribuir para “inscrever a clientela numa ordem predefinida de patologia com tendência a se conservar e numa condição que se assemelha àquela de ‘objeto’ do tratamento” (Vechi, 2003, p. 204).

Na situação específica das participantes do grupo de OP, pode-se conjecturar que, embora algumas já tivessem passado por várias internações, o fato de a maioria não ter vivenciado um atendimento no sistema manicomial constitua um aspecto protetor aos efeitos estigmatizantes implicados na vivência de um tratamento psiquiátrico. Ainda assim, acredita-se que, mesmo nesse caso, o movimento de reintegração social dessas pessoas, com o resgate de sua cidadania, o respeito à sua singularidade e o favorecimento de sua autonomia (Gonçalves & Sena, 2001) justifica-se. Evidentemente, como qualquer outra ação voltada à superação dos processos de exclusão, sua reinserção, pela via do trabalho, demanda, para além dos esforços dos agentes de saúde mental, um grande envolvimento, e projetos efetivos de inclusão social, por parte da comunidade mais ampla, no sentido de transformar a cultura vigente quanto à intolerância das diferenças. Lembrando Foucault (2001) não se trata apenas de mudar as verdades (no caso, sobre a dita normalidade), mas de mudar o regime político, econômico e institucional de sua produção. É neste ponto que a orientação profissional, em conjunto com outras práticas sociais, tem algo a contribuir, como o demonstram também os estudos de pesquisadores dessa área com populações provenientes de classes sociais desfavorecidas ou com adolescentes em situação de vulnerabilidade social, em que o estigma do fracasso configura uma restrição a mais no, já tão limitado, processo de inserção profissional. Sua prática, entretanto, requer enfrentar alguns desafios.

Tendo em vista as transformações provocadas pelas lógicas globais nos novos modos de viver, a inviabilidade de projetos de vida a longo prazo (Sennett, 2004) e as incertezas que transformam o navegar - tanto quanto o viver - em ações imprecisas, há que se supor que a escolha de uma carreira e a permanência no mundo do trabalho venha se tornando uma empreitada cada vez mais difícil, e isto não apenas para o recém saído de uma instituição psiquiátrica. Neste sentido, o instigante paralelo estabelecido por Ribeiro (2007), entre as experiências da psicose e do desemprego, quanto à ruptura biográfica que ambas instituem, leva a supor que a vivência de descontinuidade de si, atualmente, não se restrinja às pessoas inseridas nestas condições. A constatação da impossibilidade de uma identidade profissional concebida como permanência e continuidade, na sociedade de “curto prazo” (Sennett, 2004), convoca os orientadores profissionais ao que Lehman (1995, p. 246) denomina de “crise de lucidez”; ou seja, a necessidade de ampliar o campo de visão para “todos os conflitos de ordem social, institucional e psicológica que marcam nosso dia-a-dia” e que, de algum modo, também se apresentam no campo da orientação profissional.

Isto posto, há que se assumir que a tarefa de auxiliar na escolha de uma carreira e na construção de um projeto de vida implica o compromisso coletivo. O que tem remetido ao crescente debate, também no campo da OP, quanto à necessidade de expansão de políticas públicas em educação, saúde e trabalho. A considerar as condições de vulnerabilidade social, que geralmente acompanham o histórico de pacientes psiquiátricos de instituições públicas, projetos sociais articulados com ações de orientação profissional tornam-se particularmente relevantes, como bem o demonstram Bardagi, Arteche e Neiva-Silva (2005) ao tratarem de adolescentes em situação de risco. Além disto, há que se instrumentalizar a escola, pública em especial, no que concerne à educação para a carreira, para enfrentar e responder, de forma apropriada, às demandas e desafios colocados por esses jovens (Gavilán & Labourdette, 2006).

Como se tem discutido nos eventos científicos da área, expandir o acesso à orientação profissional constitui uma necessidade premente na realidade brasileira, continuamente marcada por processos de exclusão e de desigualdade social. Mais do que à mera adaptação ao mundo do trabalho, porém, deve-se visar, como observa Bohoslavsky (1997/2003), dentre outros, à apropriação da condição de autor da própria vida. Nesse sentido, a OP consiste numa tarefa ética que se produz na tensão entre o voltar-se a todos e a atenção às singularidades. Ética, também, por conceber o homem como sujeito de escolhas, por mais limitadas que estejam suas potencialidades.

 

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Recebido: 27/07/2009
1ª Revisão: 19/11/2009
Aceite final: 03/02/2010

 

 

1 Endereço para correspondência: Rua Emiliano Perneta, 195 ap. 81-A, 80010-050 , Curitiba-PR. Fone (41) 32229047. Email: luvalore@uol.com.br.

 

 

Sobre os autores
* Luciana Albanese Valore é psicóloga, professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Paraná. Doutora em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo, coordena projetos de pesquisa e extensão no campo da Orientação Profissional e da Análise Institucional do Discurso.

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