SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.3 número4Três questões sobre as psicoses: uma leitura de O Anti-ÉdipoA formação do analista e o sonho eterno da regulamentação índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental v.3 n.4 Barbacena jun. 2005

 

ARTIGOS

 

Desvelando o sentido da deficiência mental: uma leitura psicanalítica

 

Clarifying the meaning of the mental deficiency: a psychoanalytical interpretation

 

 

Alessandra Santos Silva*

Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Com o presente artigo pretende-se desvelar o sentido da deficiência mental, segundo a abordagem da teoria psicanalítica. Discutir o sentido da deficiência mental representa um grande desafio para os profissionais que atuam diretamente com seus portadores. Contudo, não pretendemos fazer da deficiência mental ou dos deficientes mentais, entidades isoladas, mas colocá-los no movimento do sujeito em "devir", de um sujeito dividido pelo inconsciente.

Palavras-chave: Deficiência mental; Teoria psicanalítica; Inconsciente.


ABSTRACT

The present article intends to go further in the meaning of mental ilness acording to the psychoanalytic theory approach. Discuss the sense of mental illness represents a challenge to the professionals who deal directly with the people affected by it. However, it´s not our intention to consider the mental illness or the mental ill as na isolated entity but include them in the person´s "willcome" movement, a self divided by the unconscious.

Keywords: Mental illness, Psychoanalical theory, Unconscious.


 

 

A deficiência mental costuma ser um assunto malquisto, um tabu, que interessa somente aos especialistas ou àquelas pessoas ligadas a ela por laços familiares e de convívio obrigatório. Sabemos que há uma escassez de estudos a esse respeito, especialmente na literatura nacional, mas não é difícil levantarmos hipóteses em torno da questão. O ser humano prefere olhar o seu lado forte e sem faltas e falhas a deparar-se com sua exacerbada fragilidade.A deficiência, em particular a mental, incomoda muito por levar o homem a ver seus aspectos imperfeitos, o que gera um imenso desprazer.

Com este artigo propõe-se discutir a deficiência mental, segundo a teoria psicanalítica. O que tentaremos fazer se parece mais com uma reflexão sobre a inteligência e a debilidade, a partir de uma concepção psicanalítica do sujeito. Ao contrário de uma concepção psicológica, que faz da inteligência uma função entre outras, como, por exemplo, o pensamento e a linguagem, abordaremos a inteligência e a debilidade por meio de um conjunto de operações que comandam o nascimento do sujeito.

É de suma importância discutirmos a deficiência mental, pois vemos que ela afeta o sujeito em sua totalidade. O deficiente mental sofre, ao mesmo tempo, a desestima na qual está preso por não estar à altura de suas aspirações, a depreciação e o desprezo que lê no olhar dos outros. A deficiência atinge o ser psíquico e o ser social do indivíduo.

A deficiência mental é uma questão complexa cujas causas são múltiplas e diversas; algumas estão ligadas à própria estrutura do sujeito e outras a questões lesionais. O fato de as causas se intricarem e agirem umas sobre as outras não ajuda na compreensão do fenômeno, pois o resultado disso é que cada um projeta seus fantasmas e inventa remédios.

É o que Alfredo Jerusalinsk nos diz em seu livro Psicanálise e Desenvolvimento Infantil. Para o autor, "Se na antiguidade grega, as crianças deficientes eram lançadas desde as alturas do monte Taigeto, em nossa civilização ocorre serem igualmente lançadas a um vazio de significância desde as alturas da Ciência." (JERUSALINSK, 1999, p. 110.)

Podemos definir "debilidade" como limitação das faculdades intelectuais e dificuldade de compreensão, cujos sinônimos são: burrice, imbecilidade, estupidez e "connerie" - palavra francesa intraduzível, altamente injuriosa, que indica imbecilidade, absurdidade e total inépcia (CORDIÉ, 1996, p.127.).

Já "inteligência" pode ser definida como: faculdade de conhecer, aptidão de compreender, faculdade de compreender as relações existentes entre os elementos de uma situação e inventar o meio de chegar a seus fins, o instrumento mais geral de sucesso e de eficácia, instrumento de abstração, faculdade de adaptação a situações novas e, também, instrumento de combinação e síntese.

Etimologicamente, inteligência vem do latim legere, que significa escolher. Jaques Lacan dá o sentido de inter-legere de 'ler entre as linhas'. O que isto significa? Que o entendimento se situa além das palavras. Para Lacan, ser inteligente é saber ler entre as linhas; é entender o que é dito além das palavras.

Para compreender é necessário estabelecer laços. É o que a criança faz desde o primeiro dia de vida: estabelece vínculos, religa as informações que lhe chegam por meio da percepção, da sensação ou da palavra, como, por exemplo, durante a mamada, o bebê associa ao prazer interno de saciamento da fome, o rosto da mãe, a expressão de seu olhar e as palavras pronunciadas.

Porém, sabemos que não é necessário somente estabelecer laços, mas também saber separar, triar, classificar e fazer escolhas. Esse banho de estímulos, na qual a criança é mergulhada a acompanha bem antes de seu nascimento e vai determinar sua maneira de apreender seu corpo, de olhar o mundo e de construir seu ser de sujeito. Portanto, estabelecer laços e separá-los torna-se imprescindível para sair desse caos primitivo (Apud, CORDIÉ, 1996, p. 128-129).

Pensamos, então, que para existir, isto é, para sair do caos e se desvencilhar desse Outro que enleia o deficiente nas redes de seu desejo, o deficiente mental tem que compreender o significado de si mesmo e o sentido de sua vida, ou seja, encontrar a ordem do mundo e o caminho de seu próprio desejo. O Outro aqui, segundo a teoria psicanalítica seria o pai, a mãe ou qualquer ser humano que mantenha um vínculo afetivo próximo com a criança. Podemos pensar este Outro como figuras reais e concretas, mas também como imagens internas do psiquismo da criança.

Compreender é, pois, uma operação que toca no mais essencial da constituição do ser, é parte integrante da pulsão de vida da qual falava Freud, e, por essa razão, pode se tornar uma paixão, a paixão de saber. Ao inverso, pode existir a paixão à ignorância, que diz respeito à pulsão de morte. Pois, segundo Freud, o ser humano é regido por dois princípios: a pulsão de vida, que diz respeito à conservação da vida, e a pulsão de morte, que diz respeito à morte, à inércia.

A situação do deficiente mental teve uma evolução, embora restrita, e parece ser alvo, nos últimos anos, de uma retomada de interesses. Nesse sentido temos os trabalhos de Anna Freud, Melaine Klein, Françoise Dolto, Maud Mannoni, Octave Mannoni, Catherine Millot, Anny Cordiè, Alfredo Jerusalinsky e, no Brasil, Maria Cristina Machado Kupfer. O tema tornou-se uma questão para todas as áreas de tratamento que, de alguma forma, estão ligadas à Educação.

O sentido da deficiência mental é do interesse da Psicologia, da Psicanálise, da Pedagogia, da Psiquiatria e da Neurologia. Entretanto, as diversas contribuições das várias áreas de conhecimento têm em comum um ponto: o de que este indivíduo, o deficiente mental, traz uma interdição em relação ao saber.

Segundo Santana (1995), a conceituação da deficiência mental vem sustentada por uma avaliação médica. A deficiência como termo de origem médica e, por este motivo, dita orgânica não encontrou amparo dentro da Psicanálise.

Freud deu sua contribuição na pesquisa do deficiente mental ao determinar um lugar para ele, a partir dos estudos sobre a sexualidade infantil. Freud delimitou esse saber ao propôr uma clínica em que, mesmo com as dificuldades vinculadas ao corpo, ocorria uma possibilidade via escuta. Ele não se situou diante da deficiência, mas perante a um ser de palavras, detendo uma verdade que lhe era escondida, subtraída, ou que não lhe pertencia mais.

Com a releitura das obras de Sigmund Freud, Jacques Lacan afirma, como já foi dito, que ser inteligente é saber ler entre as linhas, entender o que é dito além das palavras. Ou parafraseando Lacan, ser inteligente depende, também, da capacidade de acessar o saber inconsciente, o saber que não se sabe. Em relação aos deficientes mentais, acreditamos que este saber inconsciente é o único saber que detêm e que os sustentam porque não se desprendem do sentido concreto das palavras; o equívoco permanece inacessível para eles que possuem como recurso o formalismo, sem conhecer a metáfora.

Segundo Lacan, o psíquico se estrutura a partir de uma alienação entre mãe e filho, ou entre a pessoa que ocupa o lugar de mãe, o que é necessário num determinado momento para que haja um investimento de desejo na criança (DOR, 1989, p.77).

A partir disso temos o Estádio do Espelho. O Estádio do Espelho ordena-se essencialmente sobre uma experiência de identificação fundamental, durante a qual a criança faz a conquista da imagem de seu próprio corpo, o que irá promover a estruturação do eu.

No primeiro tempo da experiência do Estádio do Espelho, há uma confusão entre si e o outro. Essa confusão atesta, sem equívoco, que é sobretudo no outro que ela se vivencia e se orienta no início. Este primeiro momento da fase do espelho evidencia claramente o assujeitamento da criança ao registro do imaginário, onde a característica fundamental é a simbiose, tão exacerbada nos deficientes mentais.

O segundo momento constitui uma etapa decisiva no processo identificatório. Com efeito, a criança é levada a descobrir que o outro do espelho não é um outro real, mas uma imagem. Além dela não mais procurar apoderar-se da imagem, no geral, seu comportamento indica que ela sabe distinguir a imagem do outro, da realidade desse outro.

O terceiro momento estabelece uma relação dialética entre as duas etapas precedentes, não somente porque a criança está segura de que o reflexo do espelho é uma imagem, mas sobretudo porque adquire a convicção de que não é nada mais que uma imagem, e que é a dela própria. Vale pontuar que esse espelho não é um espelho real, mas um registro psíquico que se inicia na relação especular, simbiótica, mantida com a mãe ou com quem ocupa este lugar para a criança. Ao reconhecer-se através desta imagem, a criança recupera a dispersão do corpo esfacelado, fragmentado numa totalidade unificada, que é a representação do próprio corpo. A imagem do corpo é, portanto, estruturante para a identidade do sujeito que, por meio dela, realiza sua identificação primordial.

Na deficiência mental ocorre, além do déficit cognitivo, o déficit das fases, denominadas por Jaques Lacan como Estádio do Espelho, nas quais a criança se estrutura como humano, ao sair do registro do real e do imaginário e estabelecer-se no registro do simbólico. Nessa etapa, a criança se situa numa relação de indistinção psíquica entre ela e a mãe, de uma forma submetida ao registro do imaginário, cuja principal característica é a simbiose mãe-filho. Entendemos como real, imaginário e simbólico aquilo que corresponde, segundo Lacan, ao indizível (inconsciente), à relação simbiótica com a mãe e ao registro da lei, da ordem que é o simbólico.

Ao sair da fase identificatória do Estádio do Espelho, a criança, em quem já se esboça um sujeito, nem por isso deixa de estar em uma relação de indistinção quase fusional com a mãe. Essa relação fusional é suscitada pela posição particular que a criança mantém junto à mãe, na qual busca identificar-se com o que supõe ser o objeto de seu desejo. Os primeiros cuidados e a satisfação das necessidades básicas coloca a criança em situação de se fazer objeto do que é suposto faltar à mãe - o falo, aqui entendido como símbolo de poder e de desejo do outro. A criança quer, então, constituir-se ela mesma como o falo materno. Assim, pode-se falar de uma indistinção fusional entre a criança e a mãe, uma vez que a criança e mesmo o deficiente mental tendem a identificar-se com o único e exclusivo objeto do desejo da mãe, o falo.

Com efeito, só existe relação fusional com a mãe na medida em que nenhum elemento terceiro parece mediatizar a identificação fálica da criança com a mãe. A esse terceiro elemento, denominamos função paterna, algo radicalmente distinto da presença paterna, bem como de suas ocorrências negativas, tal a ausência, a carência e todas as outras formas de inconsistências paternas. Esta função é tomada por Jacques Lacan como procedente da determinação de um lugar, ao mesmo tempo em que este lugar lhe confere uma dimensão necessariamente simbólica que permite mediatizar a relação da criança com a mãe, e da mãe com a criança, o que não ocorre com os deficientes mentais (Apud, DOR, 1989, p.77-80). Nesse caso, como já foi dito, há uma fusão entre mãe e filho que impede o acesso ao registro do simbólico - permanecendo no imaginário e barrando, desta forma, o acesso às leis que regem o mundo (linguagem, conhecimento, saber).

Com a contribuição de Maud Mannoni, sabemos que o deficiente mental traz sempre um discurso coletivo; para este ser é muito difícil falar, pois ele é falado. De acordo com Mannoni, o deficiente mental cria uma situação dual, tornando-se objeto de um dos pais. Acaba-se formando, em certos momentos, entre o deficiente mental e sua mãe um só corpo, confundindo-se o desejo de um com o desejo do outro, impedindo-o, até certo ponto, de construir um conhecimento oriundo do outro (MANNONI, 1981, p.33).

Seguindo o pensamento dessa autora, a mensagem do pai, ou seja, a função paterna, nunca chega até o deficiente mental. Ele está fadado a permanecer numa certa relação fantasmática com a mãe que, pela ausência mesmo do significante paterno, deixa-o reduzido ao estado de objeto, sem esperança alguma de ascender ao nível de sujeito. Pelo contrário, a impossibilidade, para o deficiente mental, de estabelecer uma identificação significante, deixa-o sem defesa contra as situações de dependência dual. Ele não tem a possibilidade de se interrogar sobre a sua falta de ser, porque essa falta, tomada ao nível da realidade pelos que o rodeiam, vai levá-lo a não sofrer e a preencher um vazio, o seu vazio intelectual, escolar, sem que nunca se coloque a questão de saber se esse vazio real não se duplica, na mãe, pela sua própria falta de ser, cujo acesso se acha raramente barrado para a criança pelo significante paterno (MANNONI, 1981, p. 40).

Percebemos, então, que a leitura que a Psicanálise faz sobre a deficiência mental relaciona-se com um ser sem o saber intelectual, numa relação de evidência de nada compreender, mas é sustentada por um saber, denominado saber inconsciente.

Esse esclarecimento da dimensão inconsciente não é contrária à crença em uma debilidade inscrita nos genes, de um determinismo biológico, mas é indicativo do uso que o inconsciente faz desta inscrição genética. Uma vez que sabemos que, além de ser imperativo ressignificarmos o lugar do deficiente mental, devemos ressaltar que existe um lugar do pseudo-deficiente e não somente da deficiência inscrita no corpo físico.

Não encerrando, mas colocando reticências, entendemos que o homem não é dono de seu destino, que ele é movimentado por forças que não domina, que aquilo que tem de mais íntimo permanece estranho a ele para sempre; tudo isso depende de um paradoxo inaceitável para aquele que quer acreditar na supremacia da razão e da inteligência.

 

Referências

CORDIÉ, Anny. Os atrasados não existem: psicanálise de crianças com fracasso escolar. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.        [ Links ]

DOR, Joel. Introdução à leitura de Lacan. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989.        [ Links ]

FREUD, Sigmund. Edição Standart Brasileira das Obras Completas de Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976.        [ Links ]

JERUSALINSKY, Alfredo (Org.). Psicanálise e desenvolvimento infantil. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1999.        [ Links ]

MANNONI, Maud. A criança atrasada e a mãe. Portugal: Moraes Editores, 1981.        [ Links ]

MANNONI, Maud. De um impossível a outro. Rio de Janeiro: Zahar, 1986.        [ Links ]

MANNONI, Maud. Um saber que no se sabe: la experiência analítica. Buenos Aires: Gedisa, 1986.        [ Links ]

SANTANA, Flávia et al. Considerações acerca da debilidade. In: Revista de psiquiatria. Psicanálise com crianças e adolescentes. Rio de Janeiro: EPB, v.I, n.1, 1995.        [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Vereadora Alba Lombardi, 45 - Centro
36300-000 São João del-Rei- MG Cel: +55-32-9195-4751
aleestudos@yahoo.com.br

Recebido em 22/11/2004

 

 

*Psicóloga clínica, psicanalista, professora da Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC e mestranda em Educação e Sociedade na mesma instituição.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons