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Pensando familias

versão impressa ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.22 no.2 Porto Alegre jul./dez. 2018

 

ARTIGOS

 

Violência doméstica e rompimento conjugal: repercussões do litígio na família

 

Domestic violence and conjugal breakup: repercussions of the litigation in the family

 

 

Débora Augusto Franco1, I ; Andrea Seixas Magalhães2, II; Terezinha Féres-Carneiro3, II

I Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), campus Belford Roxo
II Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro / PUC-Rio

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo deste estudo é investigar a violência doméstica associada ao rompimento conjugal. Foram entrevistados 12 sujeitos, 10 homens e duas mulheres, recrutados diretamente em comunidades virtuais do Facebook que atuam como grupos de apoio para pais que lutam na justiça para obter a guarda compartilhada dos filhos. Os participantes relataram dificuldades de manutenção dos laços parentais após o rompimento da relação conjugal, associadas à violência doméstica vivenciada após a decisão de separação conjugal. Dentre os principais tipos de violência relatados, ressalta-se a violência física, a sexual e a psicológica. Conclui-se que a compreensão do fenômeno da violência associada ao rompimento conjugal pode contribuir para a proteção psicológica dos filhos e para a desconstrução de modelos de violência familiar.

Palavras-chave: Família, Conflitos conjugais, Violência de gênero, Violência doméstica.


ABSTRACT

The present article is part of a broader research on the experience of parents who fight for the shared custody of their children. The purpose of this study was to investigate domestic and intrafamilial violence associated to the conjugal breakup. The authors interviewed 12 subjects – 10 men and two women – recruited directly online, from Facebook communities that serve as a support network for parents that dispute in court the shared custody of their children. The participants mentioned difficulties in maintaining parental bonds after the breakup of the conjugal relationship, a process accompanied by an increase of violence between family members. Among the main types of violence mentioned, the authors highlight physical, sexual and psychological violence. The authors conclude that the comprehension of the violence phenomenon associated to the conjugal breakup may contribute not only to the psychological protection of children but also to the deconstruction of models of family violence.

Keywords: Family, Conjugal breakup, Domestic violence, Intrafamilial violence.


 

 

Introdução

A violência presente nas relações afetivo-conjugais e sua repercussão na relação pais-filhos são um fenômeno social reconhecido como um problema de saúde pública. Em diferentes tipos de culturas e classes sociais, a violência doméstica se apresenta de diversas maneiras e, muitas vezes, ocorre entre parceiros íntimos, sendo que, na maioria dos casos, está relacionada a conflitos que emergem em decorrência do rompimento conjugal (Diniz, 2013; Diniz & Alves, 2015).  Assim sendo, a violência doméstica pode ser entendida como qualquer comportamento dentro de um relacionamento íntimo que cause danos físicos, morais, psicológicos, patrimoniais ou sexuais ao parceiro (a) ou ex-parceiro (a), nesse caso quando do fim da relação amorosa (Bandeira, 2014; Diniz, 2013; Falcke, Wagner & Mosmann, 2013).

Para Silva, Coelho e Njaine (2014), a violência presente no fim da relação conjugal estaria associada às relações de poder e à distinção entre as caraterísticas culturais atribuídas a homens e mulheres, especialmente no que tange às peculiaridades biológicas da diferença entre os sexos. Para os autores, o uso do poder masculino sobre as mulheres estaria na base da violência exercida sobre elas, o que se dá por meio de estratégias de domínio e controle da relação conjugal.

Em um texto publicado originalmente em 1949, Beauvoir (2016) discute a diferença entre os sexos e o modo como tal diferença de ordem biológica oferece ao homem o privilégio da força e da razão, o que o coloca há séculos acima das capacidades ditas femininas, sendo as mulheres percebidas como emotivas e frágeis. Para a autora, a diferença entre os sexos também é utilizada para promover comparações lógico-matemáticas entre o masculino e o feminino e dimensionar as capacidades funcionais dos corpos de cada um. Tal diferença não pode ser reduzida aos condicionantes de natureza biológica, mas são esses mesmos condicionantes que fortalecem a cultura patriarcal notadamente presente nas relações afetivas.

Para Bourdieu (2016), os papéis sociais exigidos de homens e mulheres são resultado de um processo de naturalização do social, de transformação daquilo que é do âmbito da cultura em algo que remete à natureza. Para o autor, a divisão entre os sexos se produz a partir do androcentrismo e da dominação masculina, a qual encontra, com os aportes sociais, históricos e culturais, todas as condições para o seu pleno exercício. A primazia concedida aos homens se constitui a partir de estruturas sociais e de atividade produtivas e reprodutivas que tomam por base a divisão sexual e funcionam a partir de matizes de percepções, pensamentos, ações sociais e históricas que são naturalizadas e universalmente partilhadas. A dominação masculina é resultado da violência simbólica que se exerce pelas vias da comunicação, do conhecimento e do sentimento, caracterizando um estilo de vida que faz com que as próprias vítimas não o percebam, já que isso se dá em um nível sutil e invisível. É possível, dessa forma, compreender que a violência doméstica pode ter sido banalizada à medida que o domínio do homem sobre a mulher foi naturalizado nas relações sociais e afetivas, nas percepções que as pessoas constroem sobre a vida e o mundo.

Os estudos sobre gênero podem colaborar para a compreensão desse conceito em uma perspectiva socio-histórica que considere, por exemplo, que o desmonte da cultura de violência deve passar pela intervenção do Estado (Bandeira, 2014). Além disso, torna-se importante compreender a dimensão relacional da violência, concebendo-a como uma forma de expressão e um jogo de forças no qual a mulher pode ser vítima e, paradoxalmente, cúmplice.

Falcke, Oliveira, Zagonel, Rosa, Wolff & Bentancur (2009) destacam que há uma pequena porcentagem, entre 3% e 5 %, de homens que relatam terem sofrido algum tipo de violência por parte de suas parceiras. Para as autoras, a escassez de estudos e pesquisas sobre a violência infringida aos homens se deve ao fato de que a exigência cultural de força e domínio, que pesa sobre os homens, contribui para o silenciamento das situações de violência que vivenciam e não denunciam. Esse constrangimento social os impede não apenas de relatar, mas também de pedir ajuda. Destaca-se, ainda, o predomínio de pesquisas que versam sobre a violência doméstica infringida às mulheres, o que pode ajudar na manutenção da lógica dualista que limita a compreensão da violência doméstica à dicotomia homem agressor e mulher vítima. Para Marasca, Razera, Pereira & Falcke (2017), a violência física cometida e sofrida pelos homens está relacionada às significativas experiências de violência na família de origem, sendo isso um dos fatores que contribui amplamente para a perpetuação da violência em seus relacionamentos afetivos durante a vida adulta. Para a ampliação da compreensão do fenômeno da violência nas relações afetivas é indispensável uma abordagem que favoreça a investigação dos múltiplos fatores que a compõem, considerando o viés relacional, processual, sistêmico, contextual, social e cultural que caracterizam a violência doméstica, sem negar a realidade histórica de subordinação feminina ao homem e as características de dominação masculina, compreendendo que a dinâmica conjugal é permeada por vivências ambíguas que provocam sofrimento em homens e mulheres.

Para alguns autores (Bandeira, 2014; Saffioti, 1994; 2004), a discussão das questões que envolvem a violência contra a mulher, sua análise e qualificação ocorreram à medida que houve o fortalecimento do movimento feminista. Para isso, foi necessária a desconstrução da ideia de que a violência contra a mulher está ligada à natureza biológica dos sexos, masculino e feminino, e à relação natural entre homens e mulheres em nossa cultura.

A noção de gênero, por sua vez, é da ordem da cultura e difere do conceito de sexo, o qual corresponde às características físicas/biológicas denominadas masculinas e femininas (Beauvoir, 1949/2016; Diniz, 2013, 2017). Para Beauvoir (1949/2016), a noção de gênero no imaginário social está associada à ideia de feminino como fragilidade ou submissão, o que ainda hoje serve para justificar preconceitos. Por outro lado, a ideia de masculino, ao longo dos séculos, esteve associada à racionalização, domínio e força.

A violência doméstica está vinculada ao espaço onde ocorrem os atos violentos – o ambiente do lar – podendo ser perpetrada tanto por membros da família como por vizinhos, amigos e outras pessoas que frequentam a residência. Já a violência intrafamiliar está atrelada ao tipo de relacionamento existente entre os envolvidos, sendo definida pelo vínculo de parentesco entre vítimas e agressores. Por outro lado, o termo violência de gênero engloba a dimensão simbólica da violência e o modo como a cultura pode ou não oferecer subsídios para comportamentos violentos, naturalizando desde ações sutis de violência até a justificativa para o assassinato de mulheres por companheiros ou ex-companheiros como, em muitos casos, algo que se dá em nome do amor (Bandeira, 2014; Diniz, 2013; Lei Maria da Penha, 2006; Silva, Coelho & Njaine, 2014).

De acordo com a Lei Maria da Penha (2006), existem cinco tipos de violência contra a mulher, que seriam: violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. A violência física é caracterizada por qualquer conduta que prejudique a integridade ou saúde corporal da mulher. A violência psicológica envolve o dano emocional que venha a prejudicar ou perturbar o pleno desenvolvimento da mulher ou que vise a degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, geralmente por meio de ameaças, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição, insulto, chantagem, ridicularização, exploração e cerceamento do direito de ir e vir. A violência sexual está relacionada à conduta que cause constrangimento à mulher ao presenciar, manter ou participar de relação sexual não consentida (por intimidação, coação ou uso da força). Também caracteriza esse tipo de violência qualquer tipo de ameaça que possa levá-la a comercializar ou a utilizar a própria sexualidade. Além disso, pode ser entendido como violência sexual o impedimento do uso de métodos contraceptivos ou a coação a contrair matrimônio e/ou engravidar, realizar aborto ou a se prostituir. Pode ser também considerado como violência sexual limitar ou anular o exercício dos direitos sexuais ou reprodutivos. Há também a violência patrimonial, quando o agressor retém, subtrai, destrói parcial ou totalmente os objetos pessoais da mulher, seus instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos. E, ainda, há a violência moral, referida a qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria (Lei Maria da Penha, 2006).

A violência presente na relação conjugal é um fenômeno multideterminado e extremamente complexo (Bandeira, 2014; Diniz, 2017; Gomes, Erdmann, Stulp, Diniz, Correia, & Andrade, 2014; Saffioti, 2004). Por esse motivo, torna-se importante ampliar a compreensão sobre a violência nas relações afetivas, já que uma ampla gama de fatores contribui para a ocorrência desse fenômeno, tais como a desigualdade de gênero, a banalização de manifestações agressivas no âmbito da vida privada dentre outros relacionados ao contexto social e interacional do casal e das famílias. Destaca-se que, no Brasil, existem algumas ferramentas de enfrentamento da violência doméstica, especialmente a partir da criação de políticas públicas como a Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (DEAM), as Casas-Abrigo criadas na década de 1990, a Lei Maria da Penha, de 2006, os Centros de Referência (CRAS E CREAS), a atuação da Defensoria Pública e a Lei do Feminicídio, de 2015. No entanto, destaca-se a dificuldade do alcance dessas políticas públicas no que tange à prevenção e à redução dos casos de violência doméstica, o que sinaliza a lentidão do processo de transformação social. De acordo com os dados do IPEA (2015), em 2015, no Brasil, 4.621 mulheres foram mortas, o que corresponde a uma taxa de 4,5 mortes para cada 100 mil mulheres, tendo o estado do Maranhão registrado a maior alta no índice de assassinatos de mulheres, de 124,4% entre 2005 e 2015. Por outro lado, o estado de São Paulo registrou uma diminuição no índice de mortes de mulheres no mesmo período, de 34,1%. Destaca-se, ainda, que apenas 7,9% dos municípios têm delegacias especializadas para atender mulheres vítimas de violência doméstica. Ainda de acordo com os dados do IPEA (2015), os homicídios cometidos contra mulheres que ocorreram dentro das residências, quando confrontados com aqueles que acometeram os homens, indicam que as estratégias de enfrentamento da violência doméstica têm promovido efeitos no Brasil, já que, no âmbito nacional, houve uma redução no número de assassinatos de mulheres em residências, de 7,9% entre 2005 e 2015. Os homens, diferentemente, obtiveram uma taxa ampliada em 17, 9% no mesmo período. Destaca-se, ainda, que os números catalogados pelo IPEA não identificam a motivação para os homicídios, tanto de homens quanto de mulheres, o que dificulta a compreensão do fenômeno da violência que afeta ambas as categorias de gênero. Diante do exposto, este estudo tem por objetivo investigar a violência doméstica e intrafamiliar associadas ao rompimento conjugal.

 

Método

Este estudo é parte de uma pesquisa mais ampla sobre a vivência de pais que lutam pela guarda compartilhada da qual participaram 12 sujeitos, 10 homens e duas mulheres, que romperam o laço conjugal há no mínimo um ano e, no máximo, 10 anos, e que fazem parte de comunidades virtuais que abordam os temas da guarda compartilhada e da alienação parental na rede social conhecida como Facebook.

 

 

Durante a etapa de recrutamento de participantes, enviamos mensagens para 30 integrantes (15 homens e 15 mulheres) de comunidades virtuais que atuam como uma espécie de grupo de apoio para pais que lutam na justiça para obter a guarda compartilhada dos filhos, bem como para pais e mães que declaram ter sofrido ou estar sofrendo alienação parental. O critério de seleção dos participantes da pesquisa foi uma maior dinâmica interacional nas páginas do Facebook,o que foidefinido pelo padrão de interatividade específico dessa rede social, ou seja, comentários, curtidas e compartilhamentos. O convite para participar da pesquisa foi feito individualmente aos sujeitos, por meio de mensagens instantâneas – Messenger. Informamos sobre os objetivos da pesquisa e sobre o procedimento de entrevista online. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição (Protocolo número 2016-24) na qual foi desenvolvido. Todos os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e os nomes aqui apresentados são fictícios.

Como instrumento de investigação, utilizou-se uma entrevista online com roteiro semiestruturado, composto por eixos temáticos referentes a questões relativas à parentalidade e à guarda compartilhada. O texto dos entrevistados, registrado por meio do Messenger, foi submetido ao método de análise de conteúdo na sua vertente categorial temática (Bardin, 2011).

A partir das narrativas emergiram sete categorias de análise: Conflitos relativos ao litígio conjugal; Conflitos conjugais que afetam o cotidiano familiar e o relacionamento pais e filhos; Violência doméstica associada ao rompimento da relação conjugal; Prioridade da guarda materna; Guarda compartilhada como alternativa para a convivência familiar; Alienação Parental; Criminalização da alienação parental. Para alcançar os objetivos deste trabalho, foi discutida a categoria violência doméstica associada ao rompimento da relação conjugal, subdividida em três subcategorias: justificativas para a violência conjugal: ameaça, vingança e traição; violência sexual associada ao rompimento conjugal; e presença dos filhos em situações de violência associada ao rompimento conjugal. As demais categorias foram discutidas em outros trabalhos.

 

Resultados e discussão

Violência doméstica associada ao rompimento da relação conjugal

A violência está presente nas relações humanas de diversas formas e, especialmente, quando se apresenta na relação conjugal e/ou familiar, pode expressar-se de diversas maneiras e causar danos a todas as pessoas envolvidas. Destaca-se que a violência na relação conjugal nem sempre é percebida de forma consciente pelos envolvidos e, muitas vezes, por se dar de forma sutil, não é reconhecida pelos componentes da família como uma forma de violência. Outras vezes, a violência pode ser nítida e, com isso, tornar-se agente principal de sofrimento para o casal e os filhos. Os participantes desta pesquisa narraram situações de violência associadas ao rompimento da relação conjugal, notadamente no período inicial de tomada de decisão pela separação e nos anos subsequentes. Narraram histórias de violência física, psicológica, sexual, moral e patrimonial.

Destaca-se que as narrativas de violência entrelaçadas ao contexto de rompimento conjugal estão presentes nas falas tanto de homens quanto de mulheres. As mulheres relataram vivência de violência física, psicológica e sexual que teriam sofrido. Os homens relataram histórias de violência que teriam sofrido e/ou empreendido. Eles relataram ter sofrido violência física, psicológica e patrimonial por parte de suas ex-parceiras. Há também relatos de violência física, psicológica, moral, patrimonial e sexual que teriam empreendido sobre suas ex-companheiras. Todas as narrativas, no entanto, envolvem situações de litígio com o fim da relação conjugal, sendo que 11 sujeitos relatam disputa pela guarda dos filhos logo após o rompimento da referida relação.

“Nos separamos três vezes e voltamos. O casamento foi na igreja e no cartório. Eu não queria a separação, mas da última vez o motivo da separação foram as agressões. Então achei melhor sair de casa”(João). [sic]

O que motivou a separação foram muitas brigas, com agressão física, ele me batia e aí chegamos a conclusão de que não era possível continuarmos juntos ou iríamos acabar matando um ao outro” (Eduarda). [sic]

De acordo com Falcke, Wagner e Mosmann (2013), a presença de conflitos nos relacionamentos amorosos corresponde a uma dinâmica funcional que caracteriza os relacionamentos humanos, o que significa afirmar que a conflitualidade é inerente ao processo de interação social. No entanto, quando há um padrão competitivo de dominação e subordinação, a rotina do casal pode ser afetada de forma negativa. O padrão de violência, característico das estratégias ineficazes de resolução de conflito, é destrutivo e quase sempre baseado na manipulação, na ameaça e na coerção, incluindo agressão física, sexual e/ou psicológica. Diferentemente, o padrão eficaz de resolução de conflito está associado à empatia, à escuta e à busca de acordos, assim como à disponibilidade para ceder e ao bom humor. Para as autoras, é comum que um casal estabeleça um padrão de interação e resolução de conflito que permita a coexistência de padrões positivos e negativos.

Por outro lado, destaca-se que um padrão destrutivo e de violência pode levar o casal a situações extremadas, características desse fenômeno social, cuja prática se intensifica cada vez mais em nossa cultura. O rompimento do ciclo de violência, por sua vez, deve incluir ações de suporte social, superando o âmbito da vida privada e promovendo práticas e políticas públicas de saúde mental, para que a experiência de violência vivida pelos sujeitos não constitua um padrão de interação repetitivo e dominante (Rosa, Haack & Falcke, 2015).

Justificativas para a violência conjugal: ameaça, vingança e traição

As narrativas de violência entrelaçadas ao contexto de rompimento conjugal estão amplamente marcadas por uma tendência à simplificação e à essencialização da experiência. Diniz (2017) destaca que há uma crença em torno das situações de violência de que esta ocorre apenas fora do espaço doméstico e, com isso, considera-se a casa um lugar seguro. Outra ideia frequente é a de que todo autor de um ato violento é um ser essencialmente cruel, um criminoso ou delinquente e, portanto, diferente daquele com quem a pessoa compartilha a casa e a vida. Além disso, com a simplificação da experiência de violência, há uma tendência à culpabilização da mulher, vista como facilitadora e coadjuvante na construção da situação de violência. Todo esse processo de invisibilização da violência se sustenta por meio de fatores culturais, mas também familiares, relacionais e subjetivos que enredam as histórias de vida dos que litigam nos tribunais (Bandeira, 2014; Diniz, 2013). A violência psicológica, por exemplo, que pode produzir dano emocional e diminuição da autoestima (Brasil, 2006), foi relatada pelas mulheres entrevistadas. Aqui, destaca-se a dificuldade em perceber a situação de violência sofrida.

“Ele me dizia que eu não era capaz de cuidar sozinha das crianças, que ninguém mais iria querer ficar comigo e que só ele me amava” (Eduarda). [sic]

Demorei a ter coragem de sair desse casamento, me sentia incapaz de seguir sozinha, mesmo sabendo que era eu quem sustentava a casa, o dinheiro dele era muito pouco. Custei para perceber que eu era capaz de viver sem ele. Casei muito nova e acho que isso contribuiu para uma dependência psicológica. As ameaças dele eram sutis, mas ele sempre me dizia que eu não era capaz de seguir sem ele (Patrícia). [sic]

A violência psicológica se traduz como um processo silencioso, que floresce sem ser percebido ou identificado por vítimas e agressores. É uma forma de violência sutil que pode aparecer como algo comum aos relacionamentos afetivos. A violência psicológica pode ser o início de um ciclo de violência (Walker,1999) que, por sua vez, é motivado pela desigualdade que marca o universo familiar, a partir do protótipo de relações familiares hierarquizadas e assimétricas, o que atinge amplamente as mulheres e as crianças, sendo decorrida de ações complexas que são produzidas em contextos e espaços relacionais, interpessoais e históricos não uniformes (Bandeira, 2014).

Bourdieu (2016) destaca que o padrão patriarcal produz o assujeitamento de mulheres às necessidades dos homens e das famílias, considerando que o exercício da autoridade masculina se estabelece a partir da dominação do homem sobre a mulher, dominação esta que se faz extensiva aos filhos e ao contexto familiar como um todo (Bourdieu, 2016; Diniz, 2013; 2017).

Na narrativa dos entrevistados, o comportamento violento aparece como algo pertencente à esfera da relação conjugal, ou seja, como algo comum ao plano das relações afetivas. Segundo Diniz (2013, 2017), há um processo de subestimação da gravidade da violência sofrida ou perpetrada, que resulta em minimização da responsabilidade dos autores do ato. Em função de alguns mitos, tal como a violência causada por fatores externos como a exemplo do estresse, do alcoolismo e do desemprego, a violência é naturalizada. A violência psicológica, por meio de ameaças, emerge como um comportamento comum e não questionado.

“Ela me ameaçou na frente deles – os filhos – de me matar a acabar com a minha vida” (Eduardo). [sic]

O meu medo é pedir a guarda compartilhada e ela se mudar para longe. Ela já me ameaçou com isso” (Felipe). [sic]

O momento da separação foi assim, eu acabei indo levar umas coisas para ela e aí ela estava tomando um banho e eu acabei percebendo que não estava tão bem a situação, tava tudo meio estranho e aí eu fiquei um pouco nervoso e falei: “olha, é o seguinte, eu vou voltar aqui e não vou pedir nada pra você e tudo o que eu fizer eu vou fazer pedindo para a justiça. Pedindo judicialmente o que eu tenho que pedir referente a minha filha. E como eu estava um pouco nervoso eu falei: se precisar eu venho para arrebentar a porta. Falei para ela. E saí. Ela estava enrolada na toalha e eu saí, fui embora (Júlio). [sic]

Chama a atenção o fato de que, nas narrativas destacadas, os entrevistados não dão lugar à experiência de violência como algo que deveria ser questionado. Eles narram fatos, sentimentos e experiências que estariam ligados ao processo de interrupção da relação conjugal. A violência que perpassa a relação privilegia um discurso racional que tende a negar, minimizar e justificar os comportamentos violentos (Diniz, 2017). A subestimação da violência foi observada, especialmente, no relato dos sujeitos do sexo masculino, independentemente de terem sofrido ou empreendido atos de violência. Importante destacar que entre as mulheres entrevistadas não há relatos de violência perpetrada, apenas sofrida.

Segundo Falcke, Wagner e Mosmann (2013), o vínculo conjugal destrutivo pode ser uma estratégia encontrada pelo casal para a resolução de conflitos. O casal repete tal estratégia insistentemente e custa a perceber que se trata de uma tática ineficaz e produtora de um número maior de problemas. Para as autoras, a intensa e complexa convivência em um relacionamento conjugal aciona constantemente o confronto e, com isso, a dificuldade de alinhamento entre as demandas individuais e aquelas que pertencem à esfera da vida conjugal. Dessa forma, emergem inúmeras expectativas e demandas que são disparadoras de conflitos, caracterizando a relação violenta como um padrão de interação, o que leva muitos casais a tolerar uma série de atos violentos que não seriam aceitos, por exemplo, por pessoas não pertencentes ao círculo familiar.

Destacam-se narrativas sobre o sentimento de vingança acentuadamente presente no fim da relação conjugal.

“Eu queria que ela pagasse por tudo o que me fez” (Ernani). [sic]

“Minha ex tentou me prejudicar financeiramente, ela queria a casa só para ela e tentou armar para que eu fosse preso. Isso a partir de uma briga com o meu cunhado” (Renato). [sic]

“Ela saiu impune em termos de justiça. Ela teria que ser punida” (Matheus). [sic]

Levy e Gomes (2011) ressaltam que a ruptura de uma relação conjugal demanda um trabalho psíquico de luto que envolve uma espécie de travessia pelo processo de perda a qual está associada a sentimentos profundos de tristeza e dor. Os ex-parceiros podem encontrar dificuldades de superar o ressentimento decorrente do término de uma relação amorosa e, com isso, tomar para si essa dimensão de perda que é vivenciada como uma perda de si mesmo. Para Levy (2011), a relação entre os membros do ex-casal se mantém por meio do desejo de vingança e litígio e, com isso, emerge a incapacidade de elaborar a ferida narcísica decorrente do fim da relação, o que dificulta que cada parceiro assuma sua parte de responsabilidade na história que vinha sendo construída em conjunto. Surge um tipo de dor que é vivida por meio da culpabilização do ex-parceiro. Nessa situação, cada membro da relação assume posições extremadas e, assim, permanecem presos a uma lógica binária na qual só existe o bom e o mau, o inocente e o culpado, a vítima e o algoz. Muitas vezes, esses sentimentos remetem ao desejo de vingança associado à vivência de traição. As narrativas de fim da relação conjugal tendo como motivo a traição da parceira aparecem no discurso de nove entrevistados. A traição é considerada como motivador e justificativa de um possível ato de violência.

“Quando eu soube da traição fiquei transtornado. Louco. Ela havia me traído. Pensei o que qualquer pessoa pensaria: matá-la” (Júlio). [sic]

“A separação aconteceu por infidelidade da parte da minha ex. Traição. Eu senti um vazio total. Você se sente o nada. Quis acabar com a vida dela. Mas também queria acabar com a minha vida” (Ernani). [sic]

“Quando eu soube da traição eu tive vontade de matá-la” (Eduardo). [sic]

“Quando cheguei em casa ele estava na minha cama com outra mulher. Nós já estávamos separados, não judicialmente. Mas ele não tinha esse direito. A casa era minha e dos meus filhos. Me senti traída” (Patrícia). [sic]

De acordo com Viegas e Moreira (2013), a infidelidade é uma das experiências mais complexas na relação conjugal, sendo uma das razões mais apontadas para a procura de terapia de casal e para a dissolução do vínculo conjugal. Para os autores, os significados atribuídos à experiência da traição são particularmente importantes para o modo como o casal irá administrar a relação a partir da tomada de consciência dos fatos, o que pode ou não levar os parceiros à tomada de decisão pela separação conjugal. Costa e Cenci (2014) destacam que a infidelidade está entre os principais problemas enfrentados pelos casais na atualidade, sendo que a percepção da infidelidade está relacionada aos significados não somente particulares, mas também sociais, que são atribuídos ao comportamento infiel, tal como a capacidade de provocar sofrimento, especialmente à pessoa traída.

Sousa, Santos e Almeida (2009) afirmam que a infidelidade pode provocar as mais variadas reações entre os parceiros que a vivenciam e destacam a diferença cultural entre a infidelidade masculina e feminina. Ressaltam que, no caso das mulheres, a discriminação sofrida e o julgamento social exacerbam o sentimento de culpa em relação à traição. Para os autores, o significado da infidelidade para mulheres que já foram infiéis na relação conjugal está atrelado à insatisfação dessas com seus relacionamentos. O envolvimento, geralmente de caráter afetivo-sexual, estaria relacionado ao fato de encontrarem em outros parceiros os atributos que não eram percebidos em seus relacionamentos.

A traição da mulher é socialmente representada como sendo um ato de intencionalidade e que, por isso, poderia ser controlado. Entendida como um ato deliberado, a traição da mulher é socialmente condenada. Por outro lado, a traição masculina estaria relacionada à uma incapacidade de controle da volição, do desejo sexual, já que o homem seria orientado por uma inabilidade de conter-se diante do desejo sexual ou de resistir ao investimento de uma mulher. Assim sendo, a habilidade sexual masculina seria orientada pela necessidade de manter vínculos sexuais simultâneos e de obter o maior número possível de parceiras sexuais (Salem, 2004). Traição e violência doméstica estariam amplamente relacionadas e nitidamente ligadas ao modo como as representações sociais de gênero diferenciam a sexualidade feminina e masculina, com um duplo padrão de moralidade e normas. Recairia sobre as mulheres o peso social e cultural da traição, com a culpa e a responsabilidade pelo fim do casamento. As mulheres aceitam mais facilmente a traição dos parceiros, um dado característico da representação social da sexualidade masculina e feminina (Costa & Cenci, 2014).

De acordo com Badinter (2011), a sexualidade da mulher, na relação conjugal, do ponto de vista de uma construção social, é sempre retomada por meio do viés da maternidade e, portanto, dos deveres em relação ao bebê e à criança pequena, os quais se revelam coercitivos e promovem a manutenção da dominação masculina. Qualquer comportamento da mulher que a desvie de sua “condição” de cuidadora do lar, do marido e dos filhos é entendido como atitude desqualificadora de sua “natureza”. É nessa medida que o discurso de feminicídio, nos casos que envolvem a traição feminina, é naturalizado, contribuindo profundamente para a objetificação da mulher e para os atos de violência contra ela. O feminicídio foi especialmente tipificado como crime no Brasil, em 2015, com a promulgação da Lei nº 13.104/2015 que alterou o Código Penal. Esta Lei o classificou como crime hediondo e uma circunstância qualificadora do crime de homicídio. É uma tentativa do poder público de inibir ainda mais a violência doméstica.

Violência sexual associada ao rompimento conjugal

A violência sexual no casamento é, ainda, protegida por uma invisibilidade e vista como natural no contexto da relação conjugal, o que faz com que muitos homens e mulheres não compreendam o viés abusivo que caracteriza tais situações (Berger, Barbosa, Soares & Bezerra, 2014). Sendo assim, afasta-se a ideia do crime que deve ser penalizado social e juridicamente e deixa-se, de certa forma, esvair-se a possibilidade de nomeá-lo e/ou tratá-lo como estupro, como violência sexual.

Na narrativa das mulheres entrevistadas, encontramos relatos de violência sexual que teriam sofrido. Os homens não relatam terem sofrido esse tipo de violência. Patrícia relata que quando a separação conjugal estava em processo, mas eles ainda viviam sob o mesmo teto, ela teria vivido uma situação de violência sexual da qual só se deu conta muito tempo após o ocorrido. A situação, na época, aconteceu após uma discussão sobre o divórcio.

Eu já vinha dizendo a ele que não estava bom o relacionamento, que queria separar, falei isso por alguns meses. Ele saiu de casa primeiro, depois que voltou. Ele fez algumas tentativas verbais para que eu mudasse de opinião, mas, como percebeu que não teria sucesso, começou a juntar seus pertences pessoais e saiu, mas antes disso, ele me tocou e, eu fiquei parada, sem reação e ele fez uso do meu corpo, posso dizer que me violentou, mas eu nada fiz para impedir, isso era de madrugada. Ao amanhecer ele saiu e mais tarde me fez uma ligação dizendo que ia ficar na casa da mãe dele. Foi difícil escrever isso. Me senti até envergonhada, acredita? Homem nunca mais faz isso comigo (Patrícia). [sic]

Quando você percebe que é o fim da relação, dá um desespero, uma angústia. É um sentimento arrebatador. Eu tentei de tudo. Chegava a forçar uma relação sexual com ela, até ela ceder.  Não sei o que eu queria com aquilo, já estava tudo acabado, mas eu insistia. Achava que daquele jeito poderíamos salvar alguma coisa. Só que não havia o que salvar e em momentos de desespero nós piorávamos tudo (Otávio). [sic]

Para Vigarello (1998), houve mudanças quanto aos limites da tolerância da violência sexual marital desde o século XVI. Para o autor, trata-se de um longo percurso que lentamente permitiu questionar o lado irreparável dessa forma de violência que, ao atingir o corpo, alcança dimensões de ordem psíquica, causando um dano inimaginável. A emergência de uma nova visão da mulher como sujeito e a visibilidade da violência sexual nas relações afetivas contribuem para desconstruir a lógica de que os maridos teriam um direito inescrutável sobre os corpos de suas esposas. As mulheres, muitas vezes, acreditam cumprir uma obrigação ao ceder, ainda que contra a sua vontade e mesmo diante de um assédio que as violenta.

Historicamente, a recusa ao marido na cama aparece como uma tentativa de abdicar do papel de objeto sexual (Foucault, 1985). O ato sexual sem consentimento não possuía a conotação de violência no campo social, especialmente na relação conjugal, o que dificultava a compreensão da situação violenta e da expressão dessa vivência por parte das mulheres. O silêncio, a vergonha e a naturalização são os comportamentos que costumam acompanhar tais experiências, o que pôde ser observado na narrativa das entrevistadas, que se calam diante da experiência violenta perpetrada pelo ex-parceiro. Observa-se que os conflitos presentes na relação afetivo-conjugal contribuem amplamente para a objetificação da mulher.

Na época da separação ele forçava relação sexual quando eu não queria. Se eu não cedesse as coisas pioravam entre nós. Ele ficava semanas sem falar comigo, de cara feia e agressivo. Sempre foi possessivo. Às vezes penso que ele só quis a guarda para me punir(Eduarda).[sic]

Bandeira (2014) destaca que, antes da Lei de Execução Penal, de 1984, a violação sexual no Brasil era considerada crime somente quando praticada por estranhos ao contrato matrimonial, sendo a relação sexual considerada um dever conjugal. Havia, portanto, apoio jurídico e legislativo para comportamentos de objetificação da mulher na relação conjugal, na medida em que ela era considerada propriedade do marido (Saffioti,1994; 2004). Uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) foi criada em 1992 para avaliar os condicionantes que marcavam as situações de violência contra a mulher e, a partir do resultado dessa investigação, concluiu-se que a não-disponibilidade cotidiana da mulher para a satisfação dos desejos por sexo e poder do companheiro constituiu, naquela época, causa proeminente da violência doméstica.

Segundo Bandeira (2014), o modo como a violência intrafamiliar foi tratada pela Justiça e pelo Poder Legislativo ao longo dos anos, no Brasil, reforçou a objetificação da mulher, uma vez que, até o início dos anos 2000, a violência doméstica e/ou intrafamiliar era tratada como crime de menor potencial ofensivo e, com isso, os casos eram direcionados ao Juizado Especial Criminal (JECRIM), órgão da Justiça Ordinária com competência para julgar crimes considerados de menor potencial ofensivo (Lei nº 9.099, 1995). O objetivo da criação dos JECRIMs foi a promoção da simplicidade, informalidade, economia processual, celeridade e a busca pela conciliação entre os envolvidos. Dessa forma, a violência doméstica foi tratada pelo poder público como um problema de ordem particular e inteligível, quando cabia ao judiciário a busca por conciliação. Essa organização judiciária foi modificada apenas com a Lei Maria da Penha (2006).

Para Coimbra (2002), a violência doméstica é de ordem estrutural e institucional. O silêncio que cerca a vida dos sujeitos que sofrem esse tipo de violência demarca a dimensão de uma autoridade estatal que acaba por nutrir e incentivar a violência, uma vez que não estabelece estratégias eficazes e de apoio aos envolvidos nessa situação. Para Pedrosa, Diniz e Moura (2016), as mulheres em situação de violência costumam ter receio e vergonha de pedir ajuda, o que pode contribuir também para a dificuldade de acesso às políticas públicas já implantadas no Brasil.

A presença dos filhos em situações de violência associadas ao rompimento conjugal

A violência presente na relação conjugal pode afetar profundamente o desenvolvimento social e psicológico dos filhos e a relação parento-filial. A incidência de violência doméstica afeta o desenvolvimento de todos os sujeitos envolvidos, ou seja, de todo o sistema familiar, já que experiências de abuso, exploração e violência na infância contribuem amplamente para o desajustamento psicológico na vida adulta. As consequências da violência doméstica atingem a saúde física e emocional das famílias, especialmente o bem-estar dos filhos, seja imediatamente ou em longo prazo. Os entrevistados relataram situações de violência doméstica nas relações afetivo-conjugais que envolvem, comumente, a presença dos filhos.

“Ele vinha pra cima de mim na frente das crianças. Essas lembranças me doem até hoje. Minhas filhas não precisavam ter passado por isso” (Eduarda). [sic]

Ela é muito branca e vinha me agredir, como eu tentava segurá-la pois ela gostava de arranhar meu rosto, ela esperava que ficasse marcas ou que eu revidasse a agressão, sempre gritando para que eu a agredisse e para que ela chamasse a polícia e eu fosse preso. Muitas vezes isso acontecia quando ela estava com a menina no colo (João). [sic]

Ela havia me traído e pior, deixara a minha filha ver. Perguntei para minha filha o que tinha acontecido e o que ela tinha visto. Ela me xingou, não quis falar sobre o assunto. Até hoje ela se nega a falar sobre isso(Miguel).[sic]

Para Goulart e Wagner (2013), a perspectiva de crianças e adolescentes sobre os conflitos conjugais dos pais assemelha-se em muitos aspectos. Segundo os autores, os filhos consideram conflitos conjugais as discussões e brigas entre os pais que podem ter desdobramentos como a agressão física, a separação, a oposição entre os componentes do casal, os desentendimentos quanto às finanças da família, as desavenças (para não repetir tantas vezes conflito) sobre a educação dos filhos e as dificuldades de ajuste sobre a divisão das tarefas domésticas. Os filhos constroem uma percepção acerca das estratégias de resolução de conflitos vivenciada pelos pais e reconhecem a dificuldade dos mesmos em administrar isso. Os conflitos conjugais podem despertar sentimentos negativos nos filhos, como tristeza, culpa, medo, isolamento e autodestruição. Ainda segundo as autoras (autores ou autoras?), crianças e adolescentes têm uma visão ampla e sofisticada sobre os conflitos conjugais, sendo capazes de descrever as brigas de acordo com diferentes categorias, tais como a temática, a frequência, a expressão e a resolução.

Wallerstein, Lewis e Blakeslee (2002) ressaltam que as cicatrizes da agressão permanecem vivas na memória dos filhos que testemunharam atos de violência entre os pais, mesmo quando tais atos acontecem em um período em que a criança é muito jovem. As imagens dos episódios de violência não se apagam mesmo décadas após o divórcio. Ver os pais agredindo um ao outro produz nos filhos uma influência duradoura que provoca sofrimento e danos à sua saúde mental. Contudo, ressalta-se também a capacidade dos filhos de superar as situações de violência ao longo do seu processo de desenvolvimento.

Oito dentre os 12 entrevistados, todos do sexo masculino, relataram situações de violência que envolvia, além da presença de pais e filhos, a presença de padrastos, figura importante no novo cenário familiar pós-divórcio. Importante destacar que apenas as mulheres relataram um novo relacionamento conjugal, o que incluiu a figura do padrasto na cena familiar. Os 10 participantes da pesquisa do sexo masculino relataram não ter dado início a um novo relacionamento amoroso. Em nenhuma das entrevistas, portanto, encontramos a figura da madrasta. Observa-se que, mesmo com a tomada de decisão pela separação, uma convivência de disputas e conflitos é mantida e, não raro, passa a enredar os novos parceiros das mães que, frequentemente, passam a ocupar um lugar socioafetivo na vida das crianças. Com isso, os padrastos também participam ativamente de situações de conflito, litígio e disputa.

Fui levar minhas filhas na casa delas após termos ido ao culto de comemoração do dia dos pais, chegando na porta do domicílio das crianças fui recepcionado pelo padrasto que, sem causa aparente começou a me ameaçar de morte, esquartejamento. Tentei gravar com o celular, levei soco no rosto, chute, tudo isso na frente das minhas filhas (Otávio). [sic]

No começo eu tinha acesso a casa. Depois ela foi cortando. Até que eu descobri que ela tinha me traído... Foi quando falei com ela que tinha descoberto. Neste momento ela começou a dificultar a minha visitação e colocou o namorado para entregar as crianças...e o mesmo me ameaçava na frente dos meus filhos (Renato). [sic]

Ponciano e Féres-Carneiro (2017) destacam que, de acordo com as histórias de união e/ou separação dos pais, o relacionamento pais-filhos adquire diferentes trajetórias que, comumente, confirmam a predominância da mãe na vida dos filhos. O pai, por sua vez, possui participação ativa e diversificada no cotidiano dos filhos, mas, muitas vezes, sua presença é dependente da situação conjugal com a mãe. Observa-se que a mãe é capaz de influenciar e orientar a relação dos filhos com o pai, especialmente após a separação conjugal.

Em uma família recasada, há a expansão da parentalidade na vida das crianças e adolescentes que vivenciaram o divórcio dos pais (Magalhães, Féres-Carneiro, Henriques & Travassos-Rodriguez, 2013). A demarcação do território parental dos padrastos está amplamente associada às figuras parentais que têm a prerrogativa de influenciar a qualidade do vínculo estabelecido entre os filhos e o novo parceiro amoroso. Pais e mães recasados encontram, muitas vezes, dificuldades em mediar a relação entre os filhos e o novo cônjuge (Soares, 2015). A incerteza do papel parental do padrasto e a forma como a mãe das crianças o insere na dinâmica familiar podem gerar conflitos no cotidiano de famílias recasadas e, com isso, contribuir para a relação litigante entre pais, mães e padrastos que passam a disputar o lugar de autoridade em tudo que se refere aos filhos.

 

Considerações finais

A violência doméstica no rompimento da relação conjugal é constantemente menosprezada por aqueles que a vivenciam, uma vez que a consideram um lugar comum. Com a naturalização da violência na relação conjugal, perde-se o viés de conflitualidade que assinala as expressões de abusos não reconhecidos pelos próprios sujeitos que, em um nível sutil, a tornam invisível para si mesmos.

Destaca-se que a violência contra a mulher é um dos pilares do patriarcado. De um lado, há uma tendência à manutenção da mulher no lugar de fragilidade, sensibilidade e emotividade e, de outro, há a confirmação do lugar conferido ao homem, atribuindo-o força, indolência e razão. Ambos são efeitos de um processo de naturalização do social. Essa estrutura afeta o imaginário social e funciona a partir de matizes de percepções, pensamentos, ações sociais e históricas que são universalmente compartilhadas.

O rompimento do ciclo de violência na família deve incluir estratégias de apoio e suporte social para que seja possível construir um processo de cuidado a fim de promover a saúde mental dos envolvidos e, nomeadamente, para que a experiência de violência vivida pelos sujeitos não constitua, no futuro, um modelo de identificação para os filhos. Para isso, é importante discutir o fenômeno da violência de gênero, por exemplo nas escolas, elaborando, dessa forma, práticas preventivas e de intervenção precoce, antes que a violência persista e venha marcar a relação do casamento, causando impacto na relação pais e filhos. Por conseguinte, devem ser instituídas redes que promovam a resiliência, um fator preponderante para o rompimento do padrão de violência. Para isso, é fundamental a criação de espaços públicos de discussão sobre a temática, a fim de favorecer o manejo das conflitualidades inerentes à vida familiar e conjugal, de forma aberta. É importante que os sujeitos envolvidos em situação de violência tenham acesso à informação e conscientização sobre as características da violência doméstica.

A reflexão sobre o comportamento violento nas relações afetivas deve compor o processo de formação e educação de crianças e jovens que possam, ao ajuizarem acerca do significado da violência, apropriar-se de outras estratégias de resolução de conflito de cunho positivo e potencializador da vida. Ressalta-se, também, a importância da criação de serviços públicos especializados no atendimento às questões relativas à violência de gênero, como a criação de leis específicas que possam emergir no cenário das políticas estatais como uma forma de enfrentamento transversal das reflexões sobre gênero e família.

A discussão desenvolvida neste estudo fornece subsídios teóricos para a atuação do psicólogo no atendimento às famílias em situação de litígio e violência. Para além disso, o trabalho do psicólogo com famílias em situação de violência doméstica é marcado por um processo que envolve constantes desafios e, para enfrentá-los, é preciso resgatar a autoimagem dos sujeitos envolvidos, uma vez que a relação violenta pode provocar sentimento de impotência, medo, incapacidade e insegurança. Nesse sentido, é fundamental uma escuta sensível às demandas, com o objetivo de facilitar a expressão das emoções e experiências vivenciadas em contexto de violência doméstica. Destaca-se, ainda, a necessidade de ampliação do debate sobre o tema em futuras pesquisas e da busca de interlocução com diversas áreas de conhecimento, ampliando a compreensão do fenômeno da violência doméstica associada ao rompimento conjugal.

 

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Endereço para correspondência
Débora Augusto Franco
E-mail: deboraugusto@yahoo.com.br

Enviado em: 11/07/2017
1ª revisão em: 17/07/2018
Aceito em: 18/09/2018

 

 

1 Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro / PUC- Rio; Professora do quadro permanente, na área de Psicologia, do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), campus Belford Roxo.
2 Professora Associada do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro / PUC-Rio.
3 Professora Titular do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro PUC-Rio.

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