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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.64 no.1 Rio de Janeiro abr. 2012

 

ARTIGOS

 

Sintoma psíquico e medicina baseada em evidênciasi

 

Psychic symptom and evidence based medicine

 

Síntoma psíquico y medicina basada en evidencias

 

 

Roberto CalazansI; Rosane Zétola LustozaII

IDocente. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ). São João del Rei. Minas Gerais. Brasil
IIDocente. Departamento de Psicologia e Psicanálise. Universidade Estadual de Londrina (UEL). Londrina. Paraná. Brasil

Endereços para correspondência

 

 


RESUMO

A medicina baseada em evidências é uma nova metodologia que pretende organizar o campo da clínica médica. Ela se baseia no pressuposto de que a clínica da psicopatologia também deveria ser guiada por um ideal de objetividade. O artigo intenta avaliar criticamente a proposta da medicina baseada em evidências, criticando a extensão abusiva desse modelo para o campo das psicoterapias e da psicanálise. Para isso serão examinados os pressupostos desse projeto e discutidas suas limitações, especialmente no que diz respeito à definição do que seria um sintoma psíquico. À luz da psicanálise de Freud e Lacan, argumenta-se que a extrapolação do método da medicina baseada em evidências para outras áreas corre o risco de acentuar a miséria do sujeito, desconhecendo justamente sua implicação no sintoma.

Palavras-chave: sintoma psíquico; medicina baseada em evidências; psicanálise; método clínico.


ABSTRACT

Evidence-based Medicine is a new methodology which intends to organize the clinical medicine. It is based on the assumption that the clinic of psychopathologies also should be guided by an ideal of objectivity. The article intends to critically evaluate the proposal of evidence-based Medicine, condemning the abusive extension of this model to the field of psychotherapies and psychoanalysis. To this end, the assumptions of this project will be examined and then its limitations will be discussed, especially regarding its definition of what would be a psychic symptom. Based on the psychoanalysis of Freud and Lacan, it is argued that the extrapolation of evidence-based Medicine's method to other areas runs the risk of accentuating the misery of the subject, not knowing precisely the subject's implication in the symptom.

Keywords: psychic symptom; evidence-based medicine; psychoanalysis; clinical method.


RESUMEN

La medicina basada en evidencias es una nueva metodología que se propone organizar el campo de la medicina clínica. Se basa en la suposición de que la psicopatología clínica también debe guiarse por un ideal de objetividad. El artículo pretende evaluar, de forma crítica, la propuesta de la medicina basada en la evidencia, criticando la extensión abusiva de este modelo para el campo de las psicoterapias y del psicoanálisis. Para ello, se examinarán las hipótesis de este proyecto y después discutidas sus limitaciones, especialmente con respecto a la definición de lo que sería un síntoma psíquico. A la luz del psicoanálisis de Freud y Lacan, se sostiene que el método de extrapolación de la medicina basada en la evidencia a otras áreas corre el riesgo de acentuar la miseria del sujeto, desconociendo exactamente su implicación en el síntoma.

Palabras-clave: síntoma psíquico; medicina basada en evidencia; psicoanálisis; método clínico.


 

 

Introdução

O campo do sofrimento psíquico pode se beneficiar dos métodos da medicina baseada em evidências? Essa é a questão que norteia nosso artigo.

O pressuposto da medicina baseada em evidências é que uma metodologia com pretensões de cientificidade poderia ajudar a ordenar o campo da clínica do sofrimento psíquico. Ela presume que o campo das psicopatologias não é científico, mas que deveria sê-lo e que deveríamos caminhar sempre nessa direção. Desse modo, nosso artigo se organizará em torno de dois eixos: o primeiro, delimitar o que é a medicina baseada em evidências e sua transposição para o campo do sofrimento psíquico; o segundo, discutir o estatuto do sintoma psíquico, mostrando as limitações da medicina baseada em evidências a partir da análise de um caso. Tal exame crítico será feito à luz dos conceitos da psicanálise, recorrendo-se principalmente a Freud e Lacan.

A crítica a ser feita não é à medicina baseada em evidências em si, mas à sua aplicação ao campo da psicopatologia. Questionamos a impropriedade do uso de conceitos que, válidos num certo registro, podem não sê-lo em outro. Será enfatizada, portanto, uma dificuldade epistemológica, a da transposição de um instrumental teórico-metodológico, que surge para tratar de um problema específico, para um campo completamente diverso.

 

Medicina baseada em evidências

Sobre a medicina baseada em evidências não há unanimidade. Ora há divergências sobre a data de seu surgimento, década de 1970 (Daher, 2006),80 (Galvão, Sawada, &Rossi, 2002) ou de 90 (Guimarães, 2009), sobre o país, Inglaterra ou Canadá (Daher, 2006), sobre o autor, inglês (Daher, 2006) ou canadense (Guimarães, 2009). Entre os médicos, também há divergência sobre sua novidade e sobre sua validade (Barini, 2001). Assim como há divergência sobre se ela é uma prática médica ou uma prática de ensino de medicina, ou ainda as duas coisas. No entanto, mesmo com essas controvérsias, a medicina baseada em evidências, como diz Daher (2006), é uma tentativa de objetivar, ao modo positivista, a medicina baseando-a principalmente no que é chamado de meta-análise. A meta-análise é um procedimento de pesquisa em que se tenta extrair informações de dados já existentes e publicados em diversos trabalhos através da aplicação de técnicas estatísticas (Barreto Luiz, 2002).

Mesmo com divergências entre diversos autores, três aspectos podem ser considerados comuns a todos: o primeiro, como ficará explícito nas definições, a submissão ao ideal de ciência como normativo do que é válido. Os outros dois aspectos são tributários desse ideal de ciência: considerar a clínica como uma prática não científica e relativa tão somente à opinião/experiência do clínico; e a importância da epidemiologia/estatística para essa prática com vistas a dar cientificidade às informações. As definições partem do pressuposto de que medicina baseada em evidência permite tornar a prática médica mais científica. E, segundo Dib "o elo entra a boa pesquisa científica e a prática clínica" (2007, p.1). A medicina baseada em evidência seria, então, "emprego consciencioso, explícito e judicioso da melhor evidência disponível na tomada de cuidados de saúde de um paciente" (Sacket, Straus, Richardson, Rosenberg, &Haynes, 2000, p.15), tornando a "prática da medicina mais eficaz e eficiente, consequentemente, mais científica, o que resulta em melhores proventos para o paciente, médicos e profissionais de saúde" (Berwanger, Guimarães, & Avezum, 2005, p.120).

As evidências, por sua vez, são "estudos clínicos publicados em diferentes periódicos ou banco de dados eletrônicos sob forma de artigos originais, resumos estruturados de artigos originais, revisões sistemáticas, avaliações de tecnologia de saúde e consensos (guidelines)" (Berwanger, Guimarães, & Avezum, 2006, p.56). Ou como diz Bensenor (2009), o vocábulo evidence pode ser traduzido como evidência no sentido de prova, ou seja, no caso da medicina em evidência, "seria uma medicina fundamentada em estudos que provam e comprovam a utilidade da informação no cuidado ao paciente" (p.65). A medicina baseada em evidências teria surgido de estratégias combinadas dos avanços das áreas da informática e da epidemiologia clínica na busca da melhor evidência possível.

Os autores também estabelecem uma escala de estudos que vai dos que produzem a evidência mais confiável, a partir do tratamento estatístico pela meta-análise, para os que produzem a menos confiável. Seriam elas, segundo Bensenor (2009, p.67) e Dib (2007, p.2):

Nível 1: revisões sistemáticas ou meta-análises Nível 2: ensaios clínicos com mais de mil pacientes Nível 3: ensaios clínicos com menos de mil pacientes

Nível 4: estudos de coorte (sem processo randômico)

Nível 5: estudos de caso-controle

Nível 6: série de casos

Nível 7: opiniões de especialistas

Ainda, segundo a literatura (Guimarães, 2009; Galvão et al., 2002; Dib, 2007; Lopes, 2000), a medicina teria algumas etapas a serem seguidas. Mas aí também há controvérsia em relação às etapas: se seriam quatro, cinco ou seis; embora a controvérsia entre as etapas numeradas abaixo como cinco e seis estejam integradas nos artigos que apontam apenas quatro etapas (Dib, 2007; Galvão, et al. 2002) . As etapas seriam:

1. identificar os problemas relevantes do paciente {somente Lopes (2000) considerou essa etapa};

2. converter necessidade de informação em pergunta estruturada;

3. buscar a melhor evidência para responder a essa pergunta;

4. avaliar a evidência quanto à validade, importância e aplicabilidade;

5. integrar avaliação crítica com competência clínica;

6. avaliar efetividade (traduzir o efeito real em um sistema operacional) e eficiência (relação custo/benefício) em executar os passos anteriores.

Na sequência do surgimento e estruturação da medicina baseada em evidências, temos a transposição de tais questões para o campo do sofrimento psíquico. Em 1995, a Associação Americana de Psicologia criou uma força-tarefa para estabelecer critérios para definir o que seria uma psicoterapia baseada em evidências. Postularam que a psicoterapia baseada em evidências não deve ter nenhuma orientação teórica, mas se sustentar em evidências objetivas e cientificamente comprovadas. Deste modo, para que uma psicoterapia possa ser considerada baseada em evidências (científica, efetiva e eficiente no tratamento), ela deve atender a dois dos três critérios abaixo, segundo Pheula e Isolan (2007):

1. dois experimentos realizados por investigadores diferentes demonstrando eficácia positiva quando comparada a um placebo psicológico ou tratamento alternativo;

2. ter no mínimo nove pacientes submetidos ao tratamento e com a certeza de que as mudanças venham da intervenção;

3. tratamentos conduzidos com os manuais e as características da amostra claramente especificada.

Tal movimento foi promovido não só no campo da psicologia, pela Associação Americana de Psicologia, mas também no campo da psiquiatria. Uma parte dos psiquiatras abraçou essa causa em função de seu receio quanto à proliferação de práticas sem amparo em evidências científicas de boa qualidade (intervenções não efetivas ou subutilização de intervenções efetivas) e da necessidade de instrumentos padronizados e válidos para avaliar os procedimentos de intervenção. Isto, para que psiquiatria fosse uma prática mais homogênea e baseada em evidências científicas (poderíamos supor, sem a interferência das diversas abordagens) e não na decisão individual do clínico. Podemos verificar aqui uma preocupação que acompanha desde sempre a psiquiatria: dar provas de sua validade científica e, assim, poder se integrar sem grandes questionamentos à medicina como uma especialidade como as outras (Foucault, 2006; Amaral, 2004). A evidência deve ser sistemática, reprodutível e, assim, cientificamente orientada. "A decisão tomada com base na experiência individual do psiquiatra, fatores como preferências e convicções pessoais (tais como orientação teórica) podem sobrepujar o conhecimento de estudos teóricos sobre o tema" (Lima, Soares, & Bacaltchuck, 2000, p.144).

Desse modo, podemos considerar que tanto a medicina baseada em evidências, quanto a psicoterapia e a psiquiatria baseadas em evidências têm, por solo comum, a busca da objetividade e do respaldo científico para suas ações. Esse respaldo é buscado, preferencialmente, na análise estatística de dados já coletados por diversos estudos. Não questionaremos os impactos e a importância dessa prática para a medicina, mas temos algumas reservas em relação à sua extensão para a psicologia e para a psiquiatria. Ilustremos essa posição com base em um caso que, na psiquiatria, é abordado tomando como parâmetro a medicina baseada em evidências.

 

Psiquiatria baseada em evidências: um caso

Lima et.al. (2000) apresentam um caso em que, segundo eles, foram utilizados os procedimentos da medicina baseada em evidências na psiquiatria. Um paciente se queixa de desânimo e tristeza, de estar de mal com a vida, como o próprio diz. Já fez alguns tratamentos psicoterápicos sem sucesso e procurou um psiquiatra para saber se seu problema é adequado para ser tratado com medicação antidepressiva. A fim de responder à demanda, o psiquiatra efetua uma revisão sistemática da literatura científica sobre o uso de antidepressivos. A revisão demonstra que antidepressivos são eficazes para depressão menor, distimia, depressão neurótica, caracterológica, ansiosa, etc. O raciocínio dos autores será então o seguinte: se um remédio é eficaz em uma série de transtornos muito diferentes entre si, esses transtornos não são tão distintos como parece à primeira vista. Devem ter algo em comum. Isso seria um sinal de que as distinções diagnósticas carecem de validade terapêutica Ou seja, a primeira conclusão extraída dessa revisão sistemática é uma perspectiva de reordenamento no campo do diagnóstico, submetendo a classificação diagnóstica ao critério de resposta da doença ao medicamento.

A segunda conclusão diz respeito à terapêutica psicofarmacológica. O número necessário para tratar (NNT) com antidepressivos seria 4, isto é: pode-se esperar a melhora de um em cada quatro pacientes com esse quadro. Desse modo, segundo o autor, pode-se responder a questão do paciente com uma afirmativa: a medicação é eficaz para o tratamento. E, em seguida, o psiquiatra extrai a terceira conclusão: a de que a busca de evidência possibilitou definir qual terapêutica é mais eficaz e eficiente, em contraposição às práticas não baseadas em evidência, que trariam mais danos que benefícios no tratamento do sofrimento psíquico: "lobotomia, coma insulínico, psicanálise, tratamento de altas doses de neurolépticos, uso de enfermagem psiquiátrica na comunidade e vários aspectos da política de saúde pública" (Lima et.al., 2000, p.143). Ou seja, teríamos aqui um reordenamento, não somente dos processos diagnósticos e do uso dos medicamentos, mas também do campo da assistência ao sofrimento psíquico, em função da medicina baseada em evidências. No entanto, alguns questionamentos podem ser colocados em relação a essas conclusões, tais como veremos a seguir a partir da psicanálise lacaniana.

 

A psicanálise e a psiquiatria baseada em evidências

Dentre as práticas incluídas como não baseadas em evidências, Lima et al. (2000) situam a psicanálise. Será justamente à psicanálise que recorreremos para interrogar a validade da transposição do modelo da medicina baseada em evidências para o campo do sofrimento psíquico. Podemos seguir dois caminhos: o primeiro seria se perguntar se há alguma revisão sistemática ou meta-análise levando em consideração a clínica psicanalítica. Afinal, do mesmo modo que, para se considerar uma prática baseada em evidências, temos que fazer uma meta-análise, pois para considerá-la não evidente é importante também a realização de um estudo. Dentro dessa perspectiva temos a pesquisa de Leichsenring e Rabung publicada no Journal of the American Medicai Association, em 2008. Nessa pesquisa os autores fazem uma meta-análise do que eles chamam de Psicoterapias Dinâmicas de Longo Prazo (Leichsenring e Rabung, 2008), ou seja, a psicanálise. E chegam a resultados interessantes, tais como:

1. o uso de psicanálise isoladamente tem resultados mais significativos do que o uso de psicoterapia com psicotrópicos;

2. é mais significativo em relação a resultados gerais do que as psicoterapias de curto prazo;

3. seus resultados independem da idade, do sexo, dos subgrupos de pacientes, da experiência do tratamento e do uso dos manuais;

4. mais de 300 outros estudos seriam necessários para transformar esses resultados de significativos em não significativos.

No entanto, apesar desse caminho ser interessante por questionar a conclusão da seção anterior, levando em consideração os próprios métodos da medicina baseada em evidências, seguiremos o segundo caminho: pode-se avaliar, dento da problemática do sofrimento psíquico, um trabalho clínico com métodos que não surgiram dentro desse campo de trabalho? Afinal, seguir o caminho anterior seria, de certo modo, concordar que na clínica temos que seguir os métodos de avaliação e de indicação terapêutica amparados em análises estatísticas. Acreditamos que uma indicação e uma avaliação devam ser consoantes com o problema que se coloca: se o problema é clínico, é por meio da clínica que iremos traçar diagnóstico, prognóstico e direção de tratamento.

Retomemos agora o caso trazido por Lima et.al. (2000). Note-se que naquele caso o apelo à estatística fez com que o psiquiatra do caso em questão deixasse de lado o método clínico e a consideração da singularidade do caso, para oferecer uma resposta à demanda amparando-se na estatística.

Qual o problema desse tipo de encaminhamento? Converter a estatística em fiadora de uma ação clínica é um erro epistemológico, pois, como todos sabem, a estatística pode estimar a percentagem de ocorrência de um fato na população, mas não é capaz de prever com exatidão se um caso, aqui e agora, será um dos incluídos naquela percentagem. Ora, não será justamente essa irredutível imprevisibilidade o que caracteriza a situação clínica? Por mais testado que tenha sido um medicamento, por exemplo, é sempre necessário para o médico trabalhar com a especificidade e complexidade do caso. Isto é o que nos revela a possibilidade, sempre presente, de um efeito colateral idiossincrático; ou de um ajuste do tratamento às necessidades do doente, em função de suas crenças, nível de instrução, comorbidades, etc. Não se trata de recusar a utilidade da estatística e da epidemiologia, mas de questionar seu papel como supostas garantias de uma boa práxis clínica.

O contraponto com a pesquisa que afirma que a psicanálise seria uma prática eficaz, por sua vez, demonstra que a questão estatística pode ser utilizada para um ou outro lado da moeda, deixando ver que, curiosamente, a evidência não é tão evidente assim. Se as pesquisas tanto podem amparar um resultado favorável à psicanálise, como o resultado contrário, isso para nós é indício de que a solução do problema não será dada fazendo apelo a fatos, mas se atrelará ao campo da discussão e da argumentação.

Outra suposição com a qual a abordagem da medicina baseada em evidências trabalha é a de que a clínica implica uma opinião ou uma decisão isolada do médico, o que a colocaria sempre no risco de cair num subjetivismo sem regras. No nosso entendimento, essa maneira de desqualificar a clínica deve ser examinada com cuidado. Todos ligados a problemas clínicos sabem que, sim, há um singular na clínica. Mas ele não está somente do lado do clínico, mas também do lado do caso com qual o clínico se defronta. É da tensão entre a singularidade do caso e a generalidade da teoria que a clínica avança. A clínica deixa aberta a porta para a experiência ou para que o saber do médico se apague diante do leito do paciente, como diria Corvirsart (citado por Foucault, 2004, p.). Justamente porque existe uma irredutível singularidade do caso; justamente porque é necessária uma abertura ao que a experiência com o caso ensina: o diagnóstico não deve ser feito de forma mecânica e protocolar. A metodologia da medicina baseada em evidências não conseguirá eliminar esse risco inerente ao diagnóstico. Como afirma Ansermet (2003):

Centrada no paciente, a clínica, seja ela médica ou psicanalítica, baseia-se inicialmente sobre a experiência da singularidade como tal. Nesse sentido, uma e outra devem priorizar o único. A partir do um, a clínica deve aceder ao múltiplo, para em seguida reencontrar o um. Porém, o sujeito é, por definição, uma exceção ao universal: ele resiste propriamente a ser universalizável. Eis uma contradição essencial que é própria à clínica. Ao tentar articular o um e o múltiplo, o método clínico tem como ideal submeter de maneira constante à experiência do singular o saber produzido por ele (p. 7).

Considerando que essa é uma característica da clínica médica, podemos dizer que na clínica do sofrimento psíquico encontramos uma dificuldade adicional: não existe em psiquiatria um marcador biológico confiável capaz de sinalizar a doença em jogo. Não se consegue ligar o sofrimento psíquico a um sinal biológico capaz de decidir de forma certa ou provável qual doença acometeu o sujeito. Por exemplo, a presença de certos anticorpos no sangue sinaliza que o paciente está com hepatite.

Já na psiquiatria seria abusivo ou imprudente dizer que, por exemplo, o baixo nível de serotonina no cérebro é sinal de depressão. Isso porque, em psiquiatria, nenhum dos sinais aos quais se chegou têm caráter de estabilidade, especificidade e objetividade, como se espera de um bom marcador (Amaral, 2004, p. 74). Pois os marcadores só são adequados quando "podem ser encontrados sempre e apenas nos pacientes acometidos pela doença" (Amaral, 2004, p. 74). Para Amaral, "não há sinal biológico que seja específico de determinado transtorno mental, o que impossibilita o diagnóstico por exames complementares" (p. 75). A consequência disso é que a psiquiatria só está em condição de elaborar diagnósticos sindrômicos, entendendo por síndrome um conjunto de sinais e sintomas observáveis.

Quando pensamos na fundação da clínica, que surgiu com o método anátomopatológico de Xavier Bichat (Foucault, 2004), entendemos que o nível sindrômico é o mais superficial de observação, já que se atém à descrição, ao pode ser observado ou relatado (semiologia). No entanto, há ainda dois níveis além desse: a busca de uma referência anatômica, chamada hoje de marcador biológico e o estabelecimento da etiologia, consequentemente, daquilo que explica determinada doença.

O problema é que o nível sindrômico é o mais frágil em termos de objetividade, pois uma mesma síndrome pode ter causas distintas e várias síndromes podem ter a mesma causa. Ao mesmo tempo, somente podemos afirmar que existe a doença como uma categoria conceitual bem definida quando existe um conhecimento preciso sobre qual seria sua causa. Assim, paradoxalmente o campo da chamada doença mental carece justamente da delimitação do que seria essa doença! Conclui-se que, em psiquiatria, é impossível um julgamento diagnóstico que se situe num plano estritamente objetivo.E aqui, mais do que nunca, devemos definir que há a necessidade de um ato de julgamento, como sublinha Miller (2006) a propósito do diagnóstico. É um ato necessário, justamente, pela tensão entre o singular e o geral. Contudo, não se trata de um juízo como opinião particular do clínico. Miller lembra Kant, para quem o conhecimento de uma regra não basta para saber se ela se aplica ao caso; do conceito ao caso há um intervalo, ao qual o ato de julgar deve responder. Entre o caso e a regra, há sempre uma hiância. No caso que usamos como exemplo, vimos que houve uma sutura dessa hiância. Pois, com base simplesmente na estatística, o psiquiatra pretendeu uma resposta e recomendou a medicação sem consideração do caso, a partir da suposição de que o paciente poderia estar na faixa dos 25% a serem beneficiados com a medicação.

Isso quer dizer que há também, ao lado da singularidade do caso, uma irredutível singularidade do analista ou daquele que conduz o tratamento. Como a medicina baseada em evidências pretende apagar a subjetividade do clínico no julgamento que faz, acreditamos que a transposição desse método para a psicanálise teria um efeito pernicioso, o de anular a responsabilidade do analista na condução do caso.

A responsabilidade do analista está ligada ao reconhecimento do seu poder e das origens desse poder. Aqui sublinhamos um ponto importante, o fato de a psicanálise ser a única clínica que admite ser a transferência uma condição presente em qualquer tratamento, inclusive na medicina. A originalidade de Freud consistiu justamente em não negar que o analista encontrará lugar nas séries psíquicas do paciente e será tomado como elemento na compulsão à repetição:

Logo percebemos que a transferência é, ela própria, apenas um fragmento da repetição e que a repetição é uma transferência de um passado esquecido, não apenas para o médico, mas também para todos os outros aspectos da situação atual. Devemos estar preparados, portanto, para descobrir que o paciente se submete a uma compulsão à repetição, que agora substitui o impulso a recordar, não apenas em sua atitude pessoal para com o médico, mas também em cada diferente atividade ou relacionamento que podem ocupar sua vida na ocasião. (Freud, 1914/1996a, p.166).

Saber que o princípio de seu poder deriva da transferência dá ao analista uma responsabilidade maior ainda. O analista tem a responsabilidade de não responder à demanda de amor do paciente confundindo-se como um dos protótipos inconscientes; é seu dever saber que somente "o não preenchimento com uma satisfação substitutiva - a via própria do sintoma - possibilita um encaminhamento das forças pulsionantes ao trabalho e à mudança" (Vidal, 2002, p. 156). Admitir que a psicanálise é uma clínica sob transferência é assumir que o analista não é separável de sua intervenção, que ele só fará o paciente avançar na formulação do saber inconsciente se ele mesmo puder ter ido longe no trabalho de levantamento do recalcado.

Retomando, então, a questão do método clínico, podemos nos perguntar: como considerar a etiologia no campo do sofrimento psíquico? Deve-se buscá-la no registro da evidência? Ora, está claro que há práticas que podem se beneficiar com a pesquisa de evidências. É óbvio, por exemplo, que para a medicina, quando se consegue encontrar um agente infeccioso ou disfunção bioquímica que causam certa doença, temos um avanço. No entanto, sabe-se que a psiquiatria não consegue o mesmo resultado que as outras especialidades da medicina, confessando sua modéstia na afirmação da causa das psicopatologias. A recusa da busca da etiologia nos manuais estatísticos recomendados pela OMS e pela APA é amparada precisamente na dificuldade de encontrar uma causa biológica. Não é paradoxal que os psiquiatras, apesar de em seus manuais evitarem a busca da causa, acabarem depositando justo aí suas maiores esperanças?

Lembrando a lição de Lacan (1964/1985) no Seminário XI, vemos que a etiologia é sempre do que claudica. Para Freud, o que claudica é sempre a relação sexual; em termos freudianos, a sexualidade infantil é situada causa dos problemas com os quais o sujeito se defronta. Ignorar essa dimensão etiológica no caso do sofrimento psíquico leva a um desconhecimento do que é um sintoma. Um sintoma é uma queixa. É a partir dele que se coloca a questão da causa.

No caso de um sintoma psíquico, o sintoma faz com que emerja o sujeito como uma dúvida sobre si. É uma insuficiência sobre o que herdou da família, seja em termos biológicos, seja em termos culturais. Insatisfação em relação ao discurso que o antecedeu, aos significantes que o identificaram e o guiaram até aquele momento. Freud nomeou essa insatisfação de desejo e chamou sua expressão, ou presença, de... sintoma! O sintoma é uma reposta velada à angústia. Angústia que se constitui em torno da castração, em torno da questão da sexualidade e da ausência de significante que permita estabelecer a relação sexual. É aí que Freud encontra a sexualidade e seu caráter infantil para o sujeito. Um sintoma implica sempre a posição do sujeito, a sua própria avaliação sobre si e sobre o outro.

Podemos mesmo dizer que a psicanálise não busca necessariamente o tipo clínico, mesmo que o tenha encontrado no que Lacan chama de operadores da formação de sintomas: recalque, desmentido e forclusão, mas o singular do sujeito. Ou seja, foi articulando o singular do sintoma com a etiologia sexual que Freud conseguiu encontrar, não um marcador biológico, mas marcadores subjetivos. E foi assim que Freud fundou a clínica psicanalítica, sem necessidade de uma aparelhagem estatística e sem recorrer à biologia. Uma clínica que se constitui como saber transmissível.

Desse modo, podemos afirmar em relação à psiquiatria e à psicoterapia baseada em evidências o mesmo que Klotz (2006) em relação às terapias cognitivocomportamentais: elas não lidam com sintomas. Do sintoma, eles nada querem saber. A medicina baseada em evidências acredita que é possível suprimir a participação do sujeito em seu sintoma, evitando perguntar-lhe sobre a parte que lhe cabe na desordem da qual se queixa. Ela busca a causa na realidade externa, dispensando o sujeito de saber sobre o si mesmo. Sendo assim, acentua a miséria do sujeito ao favorecer seu desconhecimento de si. Desconhecimento do eterno descompasso experimentado pelo sujeito humano. Primeiro, um descompasso entre o seu prazer e aquilo que ele deseja, uma vez que o desejo o obriga a abandonar sua zona de conforto em nome de outra coisa e a experimentar muitas vezes desprazer. Segundo, descompasso entre o desejo e o gozo, já que o gozo almejado jamais será idêntico ao obtido: ou se goza de menos, ou demais, mas nunca na medida certa. Quando se goza demais como forma de evitar o desejo o que advém é o tédio (Cabas, 2009). Quando se goza menos do que se sonhou, o que há é decepção. Na verdade, temos aí duas formas diferentes de dizer que o sujeito jamais consegue aplacar essa cisão, não encontrando, portanto uma forma de harmonizar essas diferentes dimensões de sua vida: o prazer, o desejo e o gozo.

A perspectiva psicanalítica considera o sintoma como um esforço de negar a divisão subjetiva. Para nós, essa é a única maneira adequada de colocar o problema do sofrimento psíquico; enquanto isso for ignorado, não se poderá encontrar uma verdadeira solução para esse sofrimento. Isto porque uma questão mal formulada tem grandes chances de se tornar uma questão insolúvel. Para nós, a medicina baseada em evidências quando aplicada ao sofrimento psíquico desconsidera absolutamente o sentido do problema com o qual lida, o que a leva a uma solução imaginária do mesmo.

Ao se valer da metodologia da medicina baseada em evidências, a psiquiatria corre o risco de retomar o lugar em que se encontrava no século XIX: mimetizando, de maneira imaginária, procedimentos da medicina para tentar ter a aprovação por um discurso científico. Como diz Foucault (2006), esse mimetismo se dá em três frentes: a primeira, por meio de uma imitação dos procedimentos; em segundo lugar; por busca de um corpo imaginário na ausência de um corpo biológico; e a conquista, com isso, de um poder médico sobre o Outro. Entretanto, o mimetismo não pode ser considerado um procedimento científico. Além disso, é importante situar o campo de problemas no qual se está e lembrar que é a partir do sentido do problema que é possível extrair consequências reais. Sendo assim, terminamos nossa exposição sobre a questão do sintoma com uma passagem na qual Freud (1905/1996b), real discípulo da clínica, traça um percurso de pesquisa que vai dos sintomas à busca etiológica. Percurso que permite que ele se afaste dos recursos fáceis da similaridade com a medicina e fundar uma clínica real do sofrimento psíquico:

Psyche é uma palavra grega e se concebe, na tradução alemã, como alma. Tratamento psíquico significa, portanto, tratamento anímico. Assim, poder-se-ia pensar que o significado subjacente é: tratamento dos fenômenos patológicos da vida anímica. Mas não é este o sentido dessas palavras. "Tratamento psíquico'' quer dizer, antes, tratamento que parte da alma, tratamento - seja de perturbações anímicas ou físicas - por meios que atuam, em primeiro lugar e de maneira direta, sobre o que é anímico no ser humano. Um desses meios é, sobretudo a palavra, e as palavras são também a ferramenta essencial do tratamento anímico. O leigo por certo achara difícil compreender que as perturbações patológicas do corpo e da alma possam ser eliminadas através de "meras" palavras. Achará que lhe estão pedindo para acreditar em bruxarias. E não estará tão errado assim: as palavras de nossa fala cotidiana não passam de magia mais atenuada. Mas será preciso tomarmos um caminho indireto para tornar compreensível o modo como a ciência é empregada para restituir às palavras pelo menos parte de seu antigo poder mágico (p.231).

A clínica das psicopatologias deve buscar acessar a causa pela via da palavra e não pela de um suposto fato objetivo. Deste modo, é um equívoco a transposição de uma prática metodológica que surge em um campo específico de problemas, a medicina, para o campo do sofrimento psíquico.

 

Referências

Amaral, A. (2004). A psiquiatria no divã. Rio de Janeiro: Relume Dumará         [ Links ].

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Endereços para correspondência:
Roberto Calazans
roberto.calazans@gmail.com

Rosane Zétola Lustoza
rosanelustoza@yahoo.com.br

Submetido em: 12/03/2012
Revisto em: 29/05/2012
Aceito em: 30/05/2012

 

 

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