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Arquivos Brasileiros de Psicologia

versão On-line ISSN 1809-5267

Arq. bras. psicol. vol.73 no.2 Rio de Janeiro maio/ago. 2021

https://doi.org/10.36482/1809-5267.ARBP2021v73i2p.6-20 

ARTIGOS

 

Coerência textual na produção de histórias orais e escritas

 

Textual coherence in the production of oral and written stories

 

Coherencia textual en la producción de historias orales y escritas

 

 

Alina Galvão SpinilloI; Raul Aragão MartinsII; Jane CorreaIII

IDocente. Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Recife. Estado de Pernambuco. Brasil. https://orcid.org/0000-0002-6113-4454
IIDocente. Universidade Estadual Paulista (UNESP). São José do Rio Preto. Estado de São Paulo. Brasil. https://orcid.org/0000-0001-6495-731X
IIIDocente. Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Rio de Janeiro. Estado do Rio de Janeiro. Brasil. https://orcid.org/0000-0001-6037-4192

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O estudo examinou o estabelecimento da coerência na produção de histórias na modalidade oral e escrita, por crianças de classe média, cursando o 2o e 5o anos do ensino fundamental. Os estudantes produziram histórias nas duas modalidades que foram classificadas em categorias hierárquicas quanto ao nível de coerência que apresentavam. Houve interação entre escolaridade e modalidade de produção: os textos produzidos pelas crianças do 2º ano apresentavam um mesmo nível de coerência nas duas modalidades, enquanto os textos das crianças do 5º ano eram mais coerentes quando produzidos por escrito do que oralmente. A escolaridade teve efeito positivo tanto na produção oral como escrita. Concluiu-se que a modalidade de produção influencia apenas os escritores mais proficientes que consideram o material escrito passível de revisão, enquanto os escritores iniciantes não percebem esta possibilidade. Implicações educacionais são discutidas a respeito da aprendizagem da escrita de textos.

Palavras-chave: Coerência Textual; Histórias Orais; Histórias Escritas; Crianças.


ABSTRACT

This study examined the establishment of coherence in the production of stories in oral and written modality produced by middle-class children, attending the 2nd and 5th grades of elementary school. The students produced sotires in both modalities that were classified into hierarchical categories according to the level of coherence they presented. There was an interaction between schooling and production modality: the texts produced by 2nd graders presented the same level of coherence in both modalities, while the 5th grade children's texts presented a higher level of coherence when produced in writing than orally. Schooling had a positive effect on both oral and written production. It was concluded that the modality of production influences only the most proficient writers, who consider the written material revisable, while novice writers do not perceive this possibility. Educational implications are discussed regarding learning to write texts.

Keywords: Textual Coherence; Oral Stories; Written Stories; Children.


RESUMEN

El estudio examinó el establecimiento de la coherencia en la producción de cuentos orales y escritos por niños de clase media, alumnos de 2º y 5º año de educación primaria. Los estudiantes produjeron cuentos en las dos modalidades que fueron clasificados en categorías jerárquicas según el nivel de coherencia que presentaron. Hubo interacción entre la escolaridad y el método de producción: los textos producidos por niños de 2° grado tuvieron el mismo nivel de coherencia en ambas modalidades, mientras que los textos de niños de 5° grado fueron más coherentes cuando se produjeron por escrito que oralmente. La escolarización tuvo un efecto positivo tanto en la producción oral como escrita. Se concluyó que la modalidad de producción influye solo en los escritores más competentes que consideran el material escrito sujeto a revisión, mientras que los escritores principiantes no perciben esta posibilidad. Se discuten las implicaciones educativas en cuanto al aprendizaje de la escritura de textos.

Palabras clave: Coherencia Textual; Historias Orales; Cuentos Escritos; Niños.


 

 

Pesquisas no âmbito da linguagem que investigam as relações entre oralidade e escrita se agrupam em torno de três grandes temas: (i) as relações entre linguagem oral e linguagem escrita, tratando da controvérsia conceitual entre uma visão dicotômica e uma visão de continuidade entre essas duas instâncias (Marcuschi & Dionísio, 2005); (ii) o impacto de uma modalidade sobre a outra, em especial da linguagem oral sobre a escrita, particularmente no que se refere ao processo de alfabetização (Kim, Al Otaiba & Wanzek, 2015; Makinen, Loukusa, Nieminen, Leinonen & Kunnari, 2013; Pinto, Tarchi & Bigozzi, 2015; 2016; Tobia & Bonifacci, 2015); e (iii) comparações entre essas duas modalidades, examinando as diferenças e semelhanças entre elas em relação à produção de palavras e sentenças isoladas (Bourdin & Fayol, 1992) e em relação à produção de textos (Tannen, 1982). O presente estudo se insere nesta terceira perspectiva, se dedicando a examinar o efeito da modalidade oral e escrita na produção de histórias por crianças.

Um aspecto em particular foi tomado para análise das histórias produzidas nas duas modalidades: a coerência textual. Considerada um dos princípios da textualidade pela Linguística Textual, a coerência é responsável pela continuidade de sentidos e pela articulação sequencial das proposições em um texto.

Muitas pesquisas examinam a coerência textual em contextos de interação face a face em que se analisa como a coerência é estabelecida pelos interlocutores em situações de conversação (Wilkes-Gibbs, 1995). Outras analisam o estabelecimento da coerência na configuração final do texto produzido (Bennett-Castor, 1983; Shapiro & Hudson, 1991; Pessoa, Correa & Spinillo 2010; Pinheiro & Becker, 2014; Spinillo & Martins, 1997), sendo este enfoque adotado nesta investigação. A coerência textual tem sido examinada na produção de histórias (Ackerman, 1986; Pessoa et al., 2010; Spinillo & Martins, 1997), de textos expositivos (Beck & McKeown, 1989) e em relatos de eventos passados (Trabasso, Suh & Payton, 1995).

Spinillo e Martins (1997), por exemplo, investigaram o papel da idade e da escolaridade na produção de histórias orais em crianças de 6-7 anos que cursavam a educação infantil e anos iniciais do ensino fundamental. O efeito desses fatores foi examinado controlando-se a escolaridade e variando-se as idades ou controlando-se a idade e variando-se a escolaridade. Isto permitiu comparar as produções de crianças de mesma idade, porém frequentando anos escolares distintos. A análise das histórias foi realizada a partir de indicadores relativos à coerência textual, baseados em princípios de constituição de histórias, a saber: (i) manutenção do tópico principal tratado no texto, ao redor do qual os eventos se articulam; (ii) manutenção dos personagens principais ao longo de toda a narração; (iii) articulação entre os eventos narrados; e (iv) relação entre os eventos presentes no desenvolvimento da história e seu desfecho. Esses indicadores permitiram a formulação de níveis hierárquicos quanto ao estabelecimento da coerência na produção de histórias. Os dados mostraram que a capacidade de produzir histórias coerentes se desenvolve, tendo a escolaridade papel importante nesta progressão, sobretudo a alfabetização, uma vez que crianças alfabetizadas produziam histórias mais coerentes do que aquelas de mesma idade, porém ainda não alfabetizadas.

Resultado semelhante foi encontrado por Pessoa et al. (2010) em relação ao estabelecimento da coerência textual ao analisarem histórias escritas por crianças do 2º e 3º ano do ensino fundamental em duas situações: escrita livre e reprodução de um conto infantil. A escolaridade e as condições de produção influenciaram o estabelecimento da coerência textual, sendo que o efeito do contexto de produção sobre a escrita de história não foi o mesmo para todos os participantes. Entre as crianças do 2º ano, as histórias classificadas em níveis mais sofisticados de coerência eram aquelas escritas na situação de reprodução, enquanto as histórias escritas pelas crianças do 3º ano atingiam esses níveis em ambas as situações.

Ao que parece, idade/escolaridade e condições de produção influenciam a produção de histórias por crianças. Contudo, há pesquisas que investigam outra faceta da produção textual: a modalidade de produção. O interesse em comparar a produção oral e escrita de textos tem levado pesquisadores a examinar as relações entre modalidade de produção e tipo de texto, em particular, textos narrativos e argumentativos.

Hidi e Hildyard (1983) investigaram a qualidade de textos narrativos e argumentativos produzidos oralmente e por escrito por crianças do 3º e do 5º ano do ensino fundamental. Os participantes foram apresentados a uma breve introdução de uma narrativa e de um texto de opinião, sendo solicitados a completar esses textos tanto oralmente como por escrito. Diversos aspectos foram tomados para comparação entre as produções nas duas modalidades e em cada tipo de texto: os aspectos semânticos, o estabelecimento de relações coesivas, a estrutura textual e o tamanho do texto (número de palavras). Diferenças expressivas foram observadas entre as narrativas e o texto de opinião no que tange às medidas de qualidade textual e estrutural, sendo as narrativas mais elaboradas do que os textos de opinião. Contudo, essas diferenças não apareciam quando se comparava as produções em função da modalidade isoladamente, uma vez que as produções escritas eram muito semelhantes às orais tanto em relação ao texto narrativo como em relação ao de opinião no que tange aos aspectos considerados nas comparações. Os dados mostraram que as produções variavam de acordo com o esquema próprio de cada tipo de texto, concluindo-se que a estrutura define mais a qualidade do texto do que a modalidade de produção.

Pellegrini, Galda e Rubin (1984) analisaram as produções orais e escritas de textos narrativos e argumentativos de crianças do 1º, 3º e 5º ano do ensino fundamental. Os textos foram analisados quanto aos recursos coesivos estabelecidos, quanto à articulação temática das cláusulas e quanto à clareza. Verificou-se um efeito isolado da escolaridade, da modalidade e do tipo de texto, bem como interação entre modalidade e escolaridade, e entre modalidade e tipo de texto. Com o avanço da escolaridade, os textos eram, em geral, mais organizados, sobretudo quanto às relações causais estabelecidas, especialmente entre as crianças do 3º ano. Os dados também mostraram que as produções escritas eram mais explícitas e claras do que as produções orais.

Tomados de forma conjunta, os resultados desses dois estudos apontam para a multiplicidade de fatores (e suas interações) que estão imbricados na produção textual. A modalidade de produção surge como um destes fatores, assim como a organização e estrutura do texto que está sendo produzido.

Bourdin e Fayol (2002) investigaram o efeito da modalidade na produção de textos por adultos, testando a hipótese de que na modalidade oral os textos seriam de melhor qualidade do que aqueles produzidos na modalidade escrita que demanda um esforço maior por parte do produtor. Contudo, o efeito da modalidade estaria condicionado à organização do conteúdo tratado no texto a ser produzido, mesmo entre adultos com alto nível de escolaridade. Em vista disso, os participantes eram solicitados a produzir narrativas oralmente e por escrito que incluíssem determinadas palavras cujo grau de relação temática entre elas variava: em uma dada condição experimental, as palavras estavam semanticamente relacionadas, enquanto em outra condição as palavras não apresentavam este grau de aproximação. Foi identificada interação entre modalidade e grau de relação temática entre as palavras, de modo que as produções escritas eram mais elementares que as orais apenas quando versavam sobre palavras pouco relacionadas. Os autores interpretaram este resultado como sendo devido ao fato de que organizar as ideias na escrita, quando estão pouco relacionadas, tem um custo maior do que na modalidade oral. As diferenças entre modalidades não foram expressivas quando as palavras estavam relacionadas. Portanto, mesmo em adultos, a produção escrita tem um custo maior do que a produção oral, o qual é evidenciado quando as relações semânticas não são claras, como no caso dos pares de palavras com baixo grau de relação temática.

Outras pesquisas investigam, ainda, as habilidades narrativas orais e escritas de participantes com perfis atípicos, como é o caso de crianças com síndrome de Down (SD) ou com dificuldades específicas (DE) de linguagem.

Bird, Cleave, White e Helmkay (2008) examinaram as habilidades narrativas orais e escritas de crianças com SD, comparando-as com crianças com desenvolvimento típico (DT) que apresentavam um mesmo nível de leitura que as com SD. Todos os participantes eram solicitados a produzir narrativas em três condições: modalidade oral, modalidade escrita à mão e modalidade escrita por meio de um processador de palavras. Nas três condições era apresentada uma sequência de gravuras que continha apenas um único episódio. As narrativas nas três condições foram analisadas a partir de diversos aspectos, dentre eles o tamanho do texto, a complexidade linguística e a estrutura narrativa. Considerando o foco do presente estudo, os dados da pesquisa desses autores são discutidos apenas em relação à modalidade oral e escrita à mão. Em ambos os grupos, as narrativas orais eram mais longas e mais complexas que as escritas. A principal diferença entre os grupos foi quanto ao fato de as narrativas dos portadores de SD serem mais longas do que aquelas produzidas pelas crianças com DT. A conclusão foi que as crianças com SD demonstravam muitas habilidades narrativas, tanto orais como escritas, comparáveis às habilidades de crianças com desenvolvimento típico, quando controlados os níveis de leitura.

Fey, Catts, Proctor-Williams, Tomblin e Zhang (2004) compararam narrativas orais e escritas de crianças que apresentavam desenvolvimento típico da linguagem (DT), crianças com DE e com dificuldade não específicas (DNE). Os participantes eram alunos do 2º e 4º ano do ensino fundamental. Os principais resultados mostraram que: (i) em ambas as modalidades, as produções das crianças com DT continham uma maior variedade de palavras, uma maior complexidade gramatical, menos erros; sendo, de modo geral, mais elaboradas do que as narrativas das crianças com DE e DNE em ambos os anos escolares; (ii) as histórias das crianças com DE eram melhores do que aquelas produzidas pelas crianças com DNE; (iii) crianças com dificuldades (tanto DE como DNE), nos dois anos escolares, produziam histórias orais melhores do que por meio da escrita, apesar de que os ganhos do 2º para o 4º ano serem mais expressivos quando na modalidade escrita. A conclusão foi que a produção de histórias, seja na modalidade oral ou escrita, tem papel importante na avaliação de crianças com desenvolvimento atípico da linguagem.

Procurando integrar os resultados obtidos nos estudos acima discutidos, nota-se que comparações são feitas entre as modalidades, considerando diversos fatores simultaneamente, como: os tipos de texto, a escolaridade e o perfil linguístico do participante. Verifica-se, ainda, que diversos parâmetros são adotados nas comparações entre as produções nas duas modalidades, tais como a extensão do texto, sua estrutura e organização, o uso de recursos coesivos, a complexidade gramatical e o vocabulário empregado. Sem dúvida, essas pesquisas fornecem um conjunto de informações amplo e relevante acerca do efeito da modalidade sobre a produção de textos. Com o intuito de contribuir com este campo de investigação, o presente estudo examina o efeito da modalidade na produção de histórias em crianças, analisando, especificamente, a coerência textual. A modalidade de produção teria um efeito sobre o nível de coerência da história produzida? As histórias escritas seriam mais coerentes que as oralmente produzidas? A mesma criança apresentaria níveis de coerência distintos quando produzindo narrativas orais e escritas? Ou o fato de ser o mesmo produtor garantiria que o nível de coerência dos textos produzidos seria o mesmo nas duas modalidades? O domínio da escrita, aqui definido em função da escolaridade, seria fator que influenciaria o nível de coerência do texto independentemente da modalidade de produção? A hipótese é que a modalidade teria um efeito sobre a produção de histórias, sendo esperado que as histórias escritas apresentem níveis de coerência mais elaborados que as oralmente produzidas, sendo isso observado tanto entre as crianças do 2º ano como do 5º ano. Esta previsão se apoia no fato de que a escrita permitiria a revisão do texto (tanto no momento da textualização como no momento da edição) e isso melhoraria o nível de coerência da história, o que não aconteceria com a produção oral, que não é passível de revisão.

 

Método

Participantes

A composição da amostra ocorreu da seguinte maneira: inicialmente 316 crianças de classe média, alunas do 2º e do 5º ano de escolas particulares, participaram voluntariamente do estudo. A participação das crianças foi autorizada pelos pais/responsáveis, após esclarecimentos sobre a pesquisa, que assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido de acordo com os termos do Comitê de Ética em Pesquisa (Processo: CAAE-0149.0.172.000-11).

Considerando os controles referentes à ordem de apresentação de cada modalidade de produção (oral e escrita) e à escolha do tema pelo participante (três temas foram apresentados como descrito a seguir), procedeu-se a um balanceamento da amostra inicial, de modo a obter-se um mesmo número de crianças quanto a essas variáveis em cada grupo de participantes. Assim, a amostra foi reduzida para 168 crianças alunas de escolas particulares da cidade do Recife localizadas em bairros de classe média. Os participantes foram igualmente divididos em dois grupos: um grupo formado por alunos do 2º ano do ensino fundamental (média de idade: 7 anos e 6 meses) e outro por alunos do 5º ano do ensino fundamental (média de idade: 10 anos e 7 meses).

Procedimento

Cada participante foi solicitado a produzir uma história oralmente e por escrito em duas sessões. Em cada grupo, metade dos participantes produzia a história oralmente na primeira sessão e por escrito na segunda sessão, enquanto a outra metade realizava suas produções na ordem inversa. A produção escrita, embora individual, foi obtida em sala de aula de forma coletiva, sendo disponibilizados lápis, borracha, apontador e folha de papel pautado em que constava o tema da história que havia sido escolhido pela criança. A produção oral foi obtida individualmente, sendo registrada em áudio e posteriormente transcrita.

A opção pela produção de histórias decorreu do fato de este texto ser familiar às crianças desde cedo e, também, porque foi usado no estudo de Spinillo e Martins (1997), cujo sistema de análise foi adotado nesta investigação.

As produções oral e escrita de cada participante versavam sobre um mesmo tema o qual havia sido escolhido por ele na 1ª sessão, quando três temas foram apresentados: "Os alienígenas que vieram do espaço", "A criança que aprendeu a voar" e "A grande aventura". A escolha do tema garantiu a motivação na elaboração das histórias e a manutenção do mesmo tema nas duas situações de produção garantiu uma maior aproximação entre elas.

 

Resultados

Inicialmente analisou-se o corpus de histórias produzidas e, em seguida, foi realizada uma análise individual de cada participante, considerando seu desempenho nas duas modalidades de produção.

Análise das histórias: os níveis de coerência

As 336 histórias produzidas (168 orais e 168 escritas) foram classificadas em um dentre quatro níveis de coerência, adotando-se o sistema de análise originalmente proposto por Spinillo e Martins (1997) e adotado em pesquisa subsequente (Pessoa et al., 2010). Esse sistema se baseia em indicadores específicos da coerência, a saber: manutenção do tópico ao longo da narração, manutenção do personagem principal, conexões entre os eventos presentes na cadeia narrativa e relações entre o desfecho e os eventos narrados na história. A integração desses indicadores permitiu elaborar níveis relativos à coerência textual que são descritos e exemplificados a seguir:

Nível I: O personagem principal pode ser indefinido ou pode ser mantido ao longo da narração ou desaparecer e retornar ao final da narrativa, ou ser substituído por outro. Há mudança de tópico ao longo da narração sem que se retorne ao mesmo no final. Não se observa um evento principal definido, nem tampouco um desfecho. São histórias que se caracterizam por mudanças de tópicos e de eventos que se sucedem de forma desconectada, o que dificulta a compreensibilidade do texto, o qual termina abruptamente.

Nível II: Como no nível anterior, pode haver uma indefinição e problemas de manutenção do personagem ao longo da narração. Entretanto, observa-se a tendência em manter um tema central ao longo de todo o texto que, mesmo quando se altera, é retomado ao final da história. Não se observa um evento principal definido, mas, sim, vários eventos com pouca relação entre eles. O desfecho pode não estar presente, ou quando existe, não apresenta uma associação com os eventos mencionados anteriormente, o que causa uma quebra na cadeia narrativa, dificultando a compreensão do texto, o que também é provocado pela mudança de tópico. O que mais diferencia este nível do anterior é o fato de haver uma tendência em manter o tópico ao longo da história e haver certa relação entre os eventos e o desfecho, embora sem uma relação precisa com o desenvolvimento da história.

Nível III: Existe um personagem principal que pode ser mantido ao longo da narração ou desaparecer, retornando no final da história. Um mesmo tema central é mantido ao longo de toda a narração. Verificam-se vários eventos sem que possa ser definido o principal, mas conectados entre si, ou um evento bem definido ao longo de toda a narração. Há um desfecho que não apresenta uma relação clara com o evento principal. O que caracteriza essas produções e as diferencia daquelas classificadas no nível anterior é o fato de que o tópico e o evento são mantidos ao longo de toda a narração. O desfecho não está em estreita relação com os eventos anteriormente narrados, provocando uma lacuna e pouca articulação da cadeia narrativa.

Nível IV: O personagem principal é bem definido, sendo mantido ao longo de toda a história, o mesmo ocorrendo com o evento principal e com o tópico tratado no texto. O desfecho está presente e mantém relação estreita com o evento principal. São histórias que apresentam uma cadeia narrativa conectada e centrada em um tópico bem definido sobre o qual versam os eventos e atuam os personagens. A isto é acrescido o fato de que o desfecho envolve a trama da história e seus personagens. O que mais diferencia este nível dos demais é a elaboração de um desfecho em estreita conexão com os eventos narrados no desenvolvimento da história.

A classificação das produções foi feita por dois juízes independentes cujo percentual de concordância entre eles foi de 92,8%. Os casos de discordância foram analisados por um terceiro juiz, cuja classificação sempre concordava com um dos dois juízes anteriores, prevalecendo, assim, o julgamento da maioria. A Tabela 1 apresenta a distribuição dos níveis de coerência das histórias em cada grupo de participantes.

Por se tratar de um sistema hierárquico em que os níveis de coerência variam de mais elementares a níveis mais elaborados, foram atribuídos escores de 1 a 4 para cada um deles, de modo que histórias classificadas no Nível I recebiam 1 ponto, histórias no Nível II recebiam 2 pontos, histórias no Nível III recebiam 3 pontos e histórias no Nível IV recebiam 4 pontos.

Os dados foram submetidos a uma Análise de Variância (MANOVA) que não identificou um efeito da modalidade de produção (p = .75) sobre o nível de coerência das histórias, nem tampouco um efeito de ordem (oral-escrita e escrita-oral) quer isoladamente (p = .15), quer em interação com o ano escolar (p = .21) ou com a modalidade de produção (p = .26).

No entanto, o ano escolar mostrou ter um efeito expressivo sobre as produções (F(1,52) = 28,82; p < .01), uma vez que as crianças do 5º ano produziam histórias mais coerentes do que as crianças do 2º ano.

O teste revelou, ainda, interação significativa entre escolaridade e modalidade de produção (F(1,54) = 8,10; p < .01). Isso ocorreu porque as histórias produzidas por escrito pelas crianças do 5º ano foram classificadas em níveis mais elaborados do que quando produzidas oralmente. As histórias das crianças do 2º ano, por outro lado, não variaram significativamente em função da modalidade de produção, obtendo classificações mais elementares do que as produzidas pelas crianças do 5º ano nas duas modalidades.

A razão para esta interação pode estar relacionada ao papel da revisão na escrita de textos. Na escrita, como afirmado pelos estudiosos da revisão textual (Fitzgerald, 1987; Allal & Chanquoy, 2004) o produtor tem a oportunidade de revisar seu texto tanto no momento da textualização (enquanto o texto ainda está em elaboração) como também no momento da edição (texto em sua versão final). Com isso, muitos aspectos do texto são melhorados por meio de ações de revisão como acréscimos, retiradas, substituições e deslocamentos (Menegassi, 2001). Este processo, no entanto, não ocorre na produção oral de um texto.

Com o objetivo de examinar as relações entre revisão textual e nível de coerência na produção escrita, foi feito um levantamento das histórias em que estavam presentes sinais de revisão. Os sinais de revisão considerados foram apagamentos e rasuras que indicassem ações de retirada, substituição e acréscimos de elementos ao nível de palavras e frases. Assim, foram computadas quantas histórias produzidas na modalidade escrita apresentavam pelo menos uma alteração, o que indicaria ter sido realizada uma revisão do texto por parte do escritor.

Em apenas 63 das 168 histórias escritas foram identificados sinais de revisão. Dentre as histórias com marcas de revisão, 17 (27%) haviam sido escritas pelas crianças do 2º ano e 46 (73%) pelas do 5º ano. Esses percentuais indicam que as crianças do 5º ano fazem mais alterações espontâneas em seus textos do que as do 2º ano.

Com o objetivo de examinar as relações entre revisão do texto escrito e o nível de coerência em que a história foi classificada, elaborou-se a Tabela 2, cujos resultados são discutidos em termos de tendências, já que a ocorrência da revisão textual na escrita dos participantes não foi considerada previamente como fator no planejamento da investigação.

Nota-se que muitos dos textos escritos pelas crianças do 2º ano em que aparecem marcas de revisão foram classificados nos níveis de coerência mais elaborados (Níveis III e IV), enquanto entre as crianças do 5º ano, todas as histórias com marcas de revisão foram classificadas nesses níveis.

Considerando conjuntamente os dois grupos de participantes (Tabela 3), verifica-se que a quase totalidade das histórias que tiveram algum tipo de revisão por parte do escritor foi classificada em níveis elaborados de coerência (97%). Por outro lado, a maioria das histórias que não tiveram marcas de revisão foi classificada em níveis mais elementares de coerência (60%).

Esses dados indicam que a revisão textual parece contribuir para a escrita de histórias mais coerentes, e que as crianças do 5º ano revisam espontaneamente seus textos de forma mais frequente que as do 2º ano. Desta forma, se explica porque a modalidade de produção interage com a escolaridade, pois enquanto as crianças do 2º ano não percebem a necessidade de revisar seus textos escritos, as crianças do 5º ano percebem isso e se beneficiam da revisão, alterando seus textos e assim produzindo histórias mais coerentes.

Análise individual de cada participante em ambas as modalidades de produção

Como realizado em estudo anterior (Pessoa et al., 2010), as crianças foram agrupadas em função dos níveis de coerência em que suas histórias foram classificadas nas duas modalidades, a saber:

Grupo 1: crianças cujas histórias apresentavam um nível de coerência mais elaborado na modalidade oral (Nível III e Nível IV) do que na modalidade escrita (Nível I e Nível II).

Grupo 2: crianças cujas histórias apresentavam um nível de coerência mais elaborado na modalidade escrita (Nível III e Nível IV) do que na modalidade oral (Nível I e Nível II).

Grupo 3: crianças cujas histórias apresentavam níveis elementares de coerência em ambas as modalidades (Nível I e Nível II).

Grupo 4: crianças cujas histórias apresentavam níveis elaborados de coerência em ambas as modalidades (Nível III e Nível IV).

Como mostra a Tabela 4, o padrão de resultados observado entre as crianças do 2º ano difere daquele observado entre as do 5º ano.

O Qui-Quadrado para amostras únicas foi aplicado a cada ano escolar separadamente, revelando que tanto no 2º ano como no 5º ano a diferença na frequência dos quatro grupos foi significativa (2º ano: X2 = 20,36, p < .01; e 5º ano: X2 = 21,74, p < .01). Isso ocorreu porque 57% das crianças do 2º ano se concentravam no Grupo 3 (níveis elementares de coerência em ambas as modalidades) e apenas uma delas foi classificada no Grupo 2 (nível de coerência mais elaborado na modalidade escrita que na oral). No 5º ano, por outro lado, o padrão de resultados era diferente, pois a maioria das crianças se concentrava no Grupo 4 (67%) e apenas uma foi classificada no Grupo 1 (nível de coerência mais elaborado na modalidade oral do que na escrita).

 

Discussão

A presente investigação examinou o estabelecimento da coerência em histórias elaboradas por crianças. As questões principais que nortearam a pesquisa foi se a modalidade de produção de textos (oral e escrita) teria um efeito sobre o nível de coerência da história produzida e qual seria o papel da escolaridade no desempenho das crianças. Nossa hipótese foi a de que a modalidade de produção teria um efeito sobre a produção de histórias. Seria esperado que as histórias escritas apresentassem níveis de coerência mais elaborados que as oralmente produzidas, uma vez que a escrita permitiria a revisão do texto (tanto no momento da textualização como no momento da edição), o que resultaria em histórias mais elaboradas em termos do nível de coerência.

Nossa hipótese foi parcialmente confirmada pelas evidências empíricas. O nível de coerência das histórias variou em função da escolaridade, ou seja, do domínio que o produtor tem acerca da escrita, e não da modalidade de produção isoladamente. A modalidade só passou a ter efeito quando em interação com a escolaridade, mostrando que a produção escrita é mais coerente que a oral, apenas, para as crianças do 5º ano que apresentam um maior domínio da escrita. Para as do 2º ano, a modalidade não teve influência alguma. Na realidade, explica-se isso porque as mais novas não revisavam seus textos, fazendo a produção escrita de uma única vez, sem revisitar seus textos, o que foi percebido pela ausência de marcas de alteração (rasuras). Ao que parece, essas crianças tratavam o texto escrito como o oral: uma vez produzido o texto não pode ser alterado, não percebendo a diferença entre as duas situações. Assim, essas crianças não se beneficiavam do fato da escrita permitir uma atividade recursiva sobre o texto, ou seja, da possibilidade de realizar uma revisão sobre ele.

As crianças mais velhas e em anos escolares mais avançados que melhor dominam a escrita percebem esta diferença entre produção na modalidade oral e produção na modalidade escrita, de maneira que o texto final produzido é beneficiado pela revisão que realiza sobre o que escreveu ou sobre o que está escrevendo. Como a coleta de dados na situação de produção escrita ocorreu de maneira coletiva, não foi possível saber se as marcas de revisão foram feitas durante a textualização ou durante a edição final do texto. Contudo, não era este o foco do presente estudo. Na realidade, o ponto de interesse nesta investigação é que a revisão parece ter um impacto positivo sobre a qualidade do texto no que tange ao estabelecimento da coerência.

Em relação ao nível de coerência alcançado nas narrativas, segundo o ano escolar cursado pelas crianças, observou-se que, enquanto no 5o ano a maioria das histórias alcançava níveis mais elaborados em relação à presença de elementos da estrutura narrativa, no 2o ano, as histórias que obtiveram níveis mais elementares de coerência, quer porque não chegavam a apresentar uma situação-problema, quer porque não apresentavam um desfecho para a trama.

O desfecho da história é um diferenciador entre os níveis menos e mais elaborados da construção da narrativa (Ferreira & Correa, 2008; Spinillo & Martins, 1997). As crianças, particularmente as mais novas, tendem a adotar marcadores linguísticos presentes em contos infantis, tais como "Foram felizes para sempre" e "Fim", como elementos de finalização de suas histórias, dando por concluída o término da trama pela simples presença de tais marcadores. Quando investigados os elementos da estrutura da narrativa que crianças, entre 5 e 9 anos, tomavam como referência para reconhecerem um texto como uma história, foi observado que elas tendiam a aceitar, como histórias, textos incompletos, ou sem nexo, desde que estes incluíssem a presença de marcadores linguísticos típicos dos contos infantis (Albuquerque & Spinillo, 1997; Rego, 1996).

Para crianças cujas histórias alcançam níveis mais elaborados de coerência é a forma como constroem o desfecho que surge como o principal diferenciador do nível de coerência alcançado em suas narrativas. Nestes níveis, as produções menos elaboradas apresentam um final abrupto, sem que este estabeleça estreita conexão com o desenvolvimento da narrativa.

Por fim, podemos concluir que a mesma criança apresentaria níveis de coerência distintos quando produzindo narrativas orais e escritas, dependendo de sua escolaridade. O domínio da escrita, definido em função do ano escolar, seria o fator que influenciaria o nível de coerência das histórias produzidas nas modalidades oral ou escrita.

 

Implicações educacionais

Nos primeiros anos de escolaridade, o enfoque do ensino da escrita situa-se, sobretudo, no aprendizado do sistema de escrita alfabético. Uma vez dominadas as habilidades fundamentais relacionadas à escrita, a instrução passa a incidir sobre o texto escrito, voltando-se, assim, para o desenvolvimento de competências mais sofisticadas como o planejamento e a revisão. Em outras palavras, a ênfase volta-se para as habilidades necessárias à produção de textos cada vez mais complexos. Neste sentido, conforme assinala Silva (2013), os processos de revisão no nível da ortografia, coesão e coerência com ajuda sistemática do adulto (revisão colaborativa com as crianças, feedback explícito sobre os erros e lacunas do texto), produzem efeito positivo na qualidade das composições escritas por crianças. Desta maneira, a revisão, sob orientação apropriada, pode ser um instrumento de melhoria da qualidade dos textos tanto em termos da coesão como da coerência textual.

Outro aspecto a ser explorado do ponto de vista psicopedagógico seria o desenvolvimento da habilidade da criança em refletir sobre os elementos da estrutura narrativa (Fayol, 1985; Ferreira & Spinillo, 2003; Spinillo & Melo, 2018).

O estudo de intervenção realizado por Ferreira e Correa (2008) mostra que, uma vez informadas sobre a estrutura de narrativa de histórias e levadas a refletir sobre a organização do texto, um número expressivo de crianças passou a produzir histórias em níveis mais elaborados de coerência, com desfecho integrado ao desenvolvimento da trama narrativa. A intervenção proposta permitiu que as crianças revisassem suas ideias intuitivas acerca das características de uma história, ressignificando seus conhecimentos acerca do que seja este gênero textual. Na mesma direção apontam os dados obtidos por Spinillo e Melo (2018) quanto ao impacto positivo de uma intervenção voltada para levar a criança a tomar consciência da estrutura prototípica de histórias sobre a escrita de textos coesos e elaborados. Neste sentido, um contexto de aprendizado que contemple instruções explícitas e sistemáticas acerca da estrutura narrativa e que permita à criança refletir sobre tal organização parece ser uma forma eficaz de auxiliá-la a produzir histórias coesas e coerentes.

Outro ponto relevante, derivado dos dados desta investigação, diz respeito à importância de práticas escolares que estimulem desde cedo a revisão como instância constitutiva da escrita, uma ação recursiva com vistas a produzir alterações que gerem a melhoria do texto, seja em sua edição final seja ainda durante a sua elaboração. Os dados obtidos nesta investigação sugerem que, ao revisarem seus textos escritos, as crianças foram capazes de tornar suas histórias mais articuladas e coerentes.

 

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Endereço para correspondência:
Alina Galvão Spinillo
alinaspinillo@hotmail.com

Raul Aragão Martins
raul.martins@unesp.br

Jane Correa
jncrrea@gmail.com

Submetido em: 10/04/2018
Aceito em: 03/08/2019

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