Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Pesquisas e Práticas Psicossociais
versão On-line ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.15 no.4 São João del-Rei oct./dez. 2020
Concepções da deficiência em Moçambique: embates entre versões ocidentais e contemporâneas
Conceptions of Disability in Mozambique: Shocks between Western and Contemporary Versions
Concepciones de Discapacidad en Mozambique: Enfrentamientos entre Versiones Occidentales y Contemporáneas
Alexandra Justino Simbine
Universidade Eduardo Mondlane
RESUMO
Moçambique é um país onde a formação da personalidade é marcada pelos aspectos culturais e tradicionais, onde o conceito sobre a deficiência é carregada de crenças tradicionais e a prática profissional de Psicologia encontra embates entre o conhecimento ocidental e local. O presente estudo tem como objectivo discutir a importância do conhecimento das diferentes concepções da deficiência na prática profissional de Psicologia em Moçambique. Para isso, baseou-se na pesquisa bibliográfica para mapear concepções da deficiência no ocidente, narrativas para colher informações sobre concepções da deficiência na sociedade moçambicana e a entrevista para abordar práticas profissionais de Psicologia em Moçambique. Durante esse processo, foi possível verificar que há sempre um perigo quando a história é contada de um lado apenas. Conclui-se que para melhor lidar com aspectos sobre a deficiência é preciso partilhar os conhecimentos ocidentais, assim como os tradicionais moçambicanos, de modo que seja possível ter uma prática profissional mais acessível e acolhedora.
Palavras-chaves: Deficiências. Psicologia. Socioespiritual. Cultura.
ABSTRACT
Mozambique is a country where the formation of a person's personality is confronted by both cultural and traditional aspects, where the concept of disability is fraught with beliefs and professional psychology practices encounters clashes between western and local knowledge. This study aimed at discussing the importance of knowing the different conceptions of disability in the professional psychology practices in Mozambique, and it was based on review of relevant literature map conceptions of disability in the Western, narratives to gather information about the different conceptions of disability in Mozambican society and interviews to address some professional psychology practices in Mozambique. During this process it was learnt that there is always a danger when the told story is only one sided at the risk of getting biased results. And it was concluded that in order to better deal with aspects of disability, it is necessary to share western knowledge as well as Mozambican traditional so that it is possible to have a more accessible and welcoming professional practice in relation to people with disabilities.
Key words: Disabilities. Psychology. Socio-spiritual. Culture.
RESUMEN
Mozambique es un país donde la formación de la personalidad de una persona se enfrenta a aspectos tanto culturales como tradicionales, donde el concepto de discapacidad está plagado de creencias y las prácticas profesionales de la psicología chocan entre los conocimientos occidentales y locales. Este estudio tuvo como objetivo discutir la importancia de conocer las diferentes concepciones de la discapacidad en las prácticas de la psicología profesional en Mozambique, y se basó en la revisión de la literatura relevante sobre las concepciones cartográficas de la discapacidad en Occidente, narrativas para recopilar información sobre las diferentes concepciones de la discapacidad en Sociedad de Mozambique y entrevistas para abordar algunas prácticas de psicología profesional en Mozambique. Durante este proceso se aprendió que siempre existe el peligro cuando la historia contada es solo unilateral con el riesgo de obtener resultados sesgados. Y se concluyó que para abordar mejor los aspectos de la discapacidad, es necesario compartir el conocimiento occidental y el tradicional mozambiqueño para que sea posible tener una práctica profesional más accesible y acogedora en relación con las personas con discapacidad.
Palabras clave: Discapacidades. Psicología. Socio-espiritual. Cultura.
Introdução
Na sociedade moçambicana, quando uma criança nasce com algum tipo de deficiência, esse acontecimento é concebido como um infortúnio, o que, por vezes, circunscreve e dita a vida dessa criança e de sua família. Não obstante, a deficiência da criança poderá ser igualmente interpretada como um castigo que resulta de um pecado cometido por um ancestral ou até dos seus progenitores. Pode ainda ocorrer que a deficiência resulte de uma maldição, uma sanção ritual que é declarada publicamente, sendo que esta, para ser efetiva, terá que ser moralmente justificável. Por isso, o acontecimento de uma maldição ou sua mera ameaça é considerado um valioso elemento na preservação e na reposição da ordem social.
Nas culturas africanas, e em particular moçambicanas, a pessoa está em contato com os poderes espirituais e é por meio da prática dessa espiritualidade que os africanos acessam as suas divindades (conjunto de mitos, ritos e simbolismos), o Deus supremo (dono do ceu) e o sagrado, e encontram nas suas práticas de espiritualidade e rituais uma linguagem que vai além da consciência e da psique humana, eles entram em contato com a energia organísmica do próprio indivíduo, protegendo-o dos seus efeitos autodestrutivos. Essas práticas estabelecem nos indivíduos ou nas comunidades um sentido para a vida, isto é, um resgate a esse ser humano ecológico e ético (Barros, 2011). Essa visão que o africano tem em relação à pessoa que transcende a dimensão biológica, psicológica e social parece-nos mais completa e complexa e requer uma atenção especial da parte dos ocidentais e da Psicologia Contemporânea. Essa concepção de sujeito/subjetividade aparece fortemente na literatura de Chiziane.1
Encontra-se no contexto moçambicano profissionais de Psicologia que fazem acompanhamento a pessoas com deficiência, sendo sua prática é perpassada pela dualidade de conhecimentos ocidental e local (moçambicano). Este estudo focaliza a importância em se mapear as diferentes concepções da deficiência no ocidente, assim como na sociedade moçambicana; seu papel na pratica profissional de Psicologia, trazendo os perigos da história única2 sobre a deficiência, compondo algumas narrativas sobre a concepção desta no ocidente e em África, em particular em Moçambique. Segundo Moraes e Tsallis,3citando Conti (2015),
Seguindo a nigeriana Chimamanda Adichie (2009:107), Conti (2015) nos alerta para os perigos das histórias únicas. É que tais histórias guardam de antemão os lugares nos quais os outros devem se encaixar. São formas de classificar e de categorizar os outros que não lhes oferece nenhuma oportunidade de se reinventarem. As histórias únicas, por serem repetitivas, empobrecem o mundo. Adichie (2009) nos faz ver, com delicadeza e precisão, como somos herdeiros das histórias únicas. Filha de uma família de classe média, Adichie convivia com Fide, oriundo de família pobre. Sua mãe sempre a advertia que Fide era bem pobre, não tinha o que comer. Era tudo que ela conhecia de Fide. Sua pobreza extrema. Era uma história única. Um dia, ao visitar a casa do menino, Adichie fica surpresa de ver um lindo cesto feito por sua família. Eles eram criativos, habilidosos! Isso ela não podia esperar, nem sabia que era possível. É que as histórias únicas apagam mundos, fazem desaparecer possibilidades de vida, de existências. Elas povoam o mundo com repetições do mesmo.
Há anos que os fenômenos psicológicos na África são interpretados com base numa Psicologia Ocidental, ou seja, alicerçados em métodos, técnicas e instrumentos cientificamente estabelecidos no ocidente. Essa psicologia, apesar de subsistir por bastante tempo, encontra na África um terreno cheio de contradições e embates que precisam ser levados em conta.4 Como elucida Boia Efraime, citado por Serra (2014), os psicólogos moçambicanos podem logo vir a descobrir que, como terapeutas, o "remédio" da psicoterapia ocidental pode ter pouco valor em certos contextos, especialmente se eles supõem que são os únicos a que indivíduos e comunidades em crise têm acesso. Segundo Honwana (2002),5 em todos os países africanos existem múltiplas formas de interpretar e intervir nos fenômenos psicológicos. Seguindo com Honwana, buscamos pensar como cada cultura gesta suas próprias relações com o mundo, com a sua existência.
Assim, tomar a Psicologia Ocidental como modelo hegemônico na interpretação de todos os fenômenos psicológicos é um equívoco, é construir um comum na partilha de experiências que, paradoxalmente, não dizem respeito à experiência de ninguém. Cabe sublinhar um outro modo de partilhar as experiências feitas no plano sensível, de forma local, encarnada, levando em conta o modo como cada povo se relaciona, interpreta e evoca seus próprios fenômenos psicológicos.
Método
Para a realização deste estudo, recorreu-se à pesquisa bibliográfica, narrativas e entrevista, sendo que a pesquisa bibliográfica possibilitou fazer o mapeamento das diferentes concepções da deficiência no ocidente e na sociedade moçambicana; as narrativas permitiram colher informações sobre as concepções da deficiência em famílias que convivem com pessoas com deficiência, sendo usadas como forma de produção de conhecimentos; e as entrevistas foram dirigidas a profissionais de Psicologia, cujo objectivo foi perceber a importância do conhecimento da concepção da deficiência na sua prática quotidiana. O critério usado para identificar o tipo de entrevistado que precisamos foi a experiência na área de atendimento à pessoa com deficiência.
Modelos da deficiência: entre o Ocidente e Moçambique
As pesquisas no campo dos estudos da deficiência que se empreendem em articulação com autores e autoras brasileiros/as, como Diniz, Medeiros & Squinca, 2007, indicam que há diferentes modelos de deficiência, historicamente construídos que também se encontram presentes em Moçambique. Assim, os modelos biomédico, social e feminista são apresentados como modos de articular a deficiência, cada um deles com perspectivas distintas e efeitos diversos.
A deficiência era entendida, segundo o modelo biomédico, como uma lesão que impõe restrições à participação social de uma pessoa. Assim, era localizada no corpo biológico e encerrada no indivíduo. Esse conceito, para além de ter sido ampliado, foi deslocado, passando a compreender não apenas o corpo com lesão, mas também a estrutura social que oprime as pessoas com deficiência. O primeiro desafio foi o de desconstruir e desafiar a hegemonia biomédica dominante, aproximando os estudos sobre deficiência de outros saberes já consolidados, como os estudos culturais e feministas. Um dos resultados disso foi que se abriu um debate sobre como descrever a deficiência em termos políticos, e não mais apenas de diagnóstico.
Do ponto de vista histórico, não se trata de afirmar que tais modelos da deficiência se superam, mas, antes, que se entrelaçam no contemporâneo, nas práticas cotidianas, no Brasil e em Moçambique. Apoiando-se em Senna (2013), há pouca ou nenhuma referência feita aos percursos da deficiência em Moçambique, assim, os modelos biomédico, social e feminista são apresentados como modos de articular a deficiência, cada um dos quais com perspectivas distintas e efeitos diversos
Para o modelo biomédico da deficiência, cuja história, segundo Martins (2006) remonta ao continente europeu, a deficiência é articulada em torno do discurso médico e é afirmada como falta, deficit ou lesão. Trata-se, conforme Martins (2006), de concepção moderna de deficiência, que no ocidente corresponde à laicização da deficiência em prol de sua apropriação pelo discurso científico. Já a perspectiva social da deficiência data do século XX e remonta a movimentos sociais de pessoas com deficiência, também no continente europeu, em especial nos países de língua inglesa. A deficiência é então articulada não como falta, ou como um deficit que marca um corpo individual, ou seja, é afirmada como uma forma de opressão social numa sociedade que marginaliza e exclui a diversidade corporal. Trata-se, nesse domínio, de considerar outra gramática para a deficiência: não mais uma questão individual, mas sim um problema coletivo, social e político.
O que parece relevante sublinhar é que as diferenças corporais - sejam elas qualificadas como deficiência ou não - são expressões da diversidade humana, entretanto, a existência de corpos com diferenças marcantes sempre despertou a curiosidade, o espanto ou a indiferença das pessoas em diferentes sociedades (Foucault, 2001).
No entanto, o que esses discursos sugerem é que o corpo reduzido apenas às diferenças é fundamental às narrativas pelas quais as pessoas com corpos sem diferenças marcantes fazem sentido de si mesmas. É como se a narrativa sobre os corpos com diferenças, que resulta na classificação dos corpos em normais e excepcionais, surgisse quando as pessoas com corpos sem as diferenças buscassem uma identificação do seu corpo normal a partir do reconhecimento do corpo com patologias.
Para Erving Goffman (1988), os próprios ambientes sociais estabelecem parâmetros e valores sobre a expectativa do normal e do patológico e, consequentemente, quais tipos de pessoas têm maior possibilidade de serem consideradas membros normais de cada um desses ambientes. Esse processo classificatório se dá no jogo quotidiano das relações sociais e pela construção da expectativa de identidade social condizente com um ambiente, ou seja, quando uma pessoa com características diferentes daquelas que se esperava encontrar em determinado ambiente é apresentada ou é vista fazendo parte dele, essa pessoa é considerada estranha.
Segundo Diniz, Medeiros e Squinca (2007), em resposta à hegemonia biomédica sobre o tema, os estudos sobre deficiência surgiram como uma especialidade das humanidades em saúde, cujo compromisso teórico era demonstrar que a experiência da desigualdade pela deficiência resultava mais de estruturas sociais poucos sensíveis à diversidade que de um corpo com lesões. O modelo social da deficiência - principal marco teórico dos estudos sobre deficiência - subverteu a lógica da causalidade proposta pela International Classification of Impairments, Disabilities and Handicaps (ICIDH):6 não eram as lesões a principal causa das desvantagens, mas sim a opressão social aos deficientes.
A demanda do modelo social da deficiência era por descrever as lesões como uma variável neutra da diversidade corporal humana, entendendo o corpo como um conceito representativo da biologia humana. O sistema proposto pela ICIDH, por outro lado, classificava a diversidade corporal como consequência de doenças ou anormalidades, além de considerar que as desvantagens eram causadas pela incapacidade do indivíduo com lesões de se adaptar à vida social. Para o modelo social, a ICIDH retirava a força política do conceito de deficiência, pois o fundamentava em termos estritamente biológicos: era a natureza que determinava a desvantagem, e não os sistemas sociais ou econômicos (Diniz, Medeiros & Squinca, 2007).
Em suma, encontra-se no movimento feminista as consequências principais da deficiência para este estudo, ainda que sem descartar os avanços do modelo social, pois traz aspetos ligados ao cuidado em relação à pessoa com deficiência, também colocando em cena questões ligadas à família/acompanhantes, tendo em conta a sua localização. Destarte, traz à cena questões antes invisibilizadas por uma militância protagonizada por homens: as perspectivas das mães e mulheres que cuidam de pessoas com deficiência, além das contribuições conceituais feministas (que rediscutem a questão da autonomia presente no modelo social da deficiência, por exemplo).
O modelo social da deficiência traz uma perspectiva que a afirma como uma falha do ambiente em acolher e habilitar esses corpos. Dessa forma, afirmam que, diante de um ambiente corretamente arranjado, a pessoa com deficiência poderia ser absolutamente autônoma e eficiente. A maior crítica feminista se dá, principalmente, sobre estas duas categorias: a da autonomia e a da eficiência, afirmando que esse modelo de pessoa com deficiência não dá conta da multiplicidade de histórias que compõem o ser deficiente. Assim sendo, demonstram que uma militância que se faça apenas pelo geral, pelo homogêneo, negligencia uma infinidade de casos. Ou seja, sua abordagem permite refletir que é preciso entender as questões locais que agem sobre a deficiência e das pessoas que cuidam/acompanham as pessoas com deficiência em Moçambique. Assim, com o auxílio do movimento feminista, emergiram questões culturais e tradicionais sobre a deficiência, pois, nele destaca-se o fator cuidado localizado, que parece ser fundamental para o estudo, uma vez que permite abordar questões a respeito da importância da família/acompanhantes7 no cenário da deficiência a partir do lugar.
Tendo mapeado esses modelos da deficiência e o movimento feminista, é de se notar a ausência de menções às concepções africanas da deficiência. Não é pretensão neste texto desqualificar a ciência ocidental, tampouco considerá-la desnecessária, mas sim fazê-la compor com os saberes localizados e ou práticas de cuidados que dão origem a distintos modos de subjetivar a deficiência, tais como se fazem presentes em Moçambique.
É importante desmitificar o conceito hegemônico da deficiência, que a circunscreve ao deficit e à falta, seja de um órgão, seja de uma função sensorial - um membro, um movimento - na aposta de tornar essa discussão mais distribuída. Por certo, a concepção biomédica8 da deficiência, bem como outras concepções, como aquela que advém do modelo social da deficiência, comparece no cenário moçambicano, no qual também importam as questões relativas à acessibilidade. O movimento de tornar a deficiência uma questão política e social, incluindo nesse campo um nós, isto é, uma coletividade, faz-se presente também em Moçambique. Nesse domínio, pode-se pensar que não cabe a pretensa humanista afirmar que todos somos iguais, cabendo um esforço em marcarmos aquilo que singulariza nossos modos de ser e estar no mundo.
Dessa feita, compreende-se que o perigo da história única, neste estudo, reside justamente no fato de que deixa de lado as outras histórias que podem rechear mais as concepções dos conceitos, visto que os modelos definidos para a tentativa de dar uma explicação sobre a deficiência espelham-se apenas em médico e social. Realmente, eles trazem explicações plausíveis, mas colocam de lado as questões culturais e tradicionais de cada sociedade, principalmente da africana (Moçambique).
Interpretações culturais da deficiência na sociedade moçambicana
As interpretações tradicionais9 sobre crianças que nascem com deficiências são citadas como sendo as que perpetuam a discriminação e o estigma, sendo que é necessário que haja um deslocamento por parte de toda a comunidade, incluindo a família dessas crianças e as próprias crianças, para que ambos se desloquem e produzam juntos um outro modo de se relacionar com isso que as concerne, é preciso que haja um movimento de transformação subjetiva recíproca.
As famílias têm frequentemente o hábito de ir consultar um curandeiro,10 logo nos primeiros dias, depois do surgimento da deficiência (do nascimento, de um acidente), para tentar atenuá-la ou fazê-la desaparecer por meio de um ritual de "purificação" e/ou de um remédio especialmente preparado por esse profissional. Diante de tal situação que se descortina - a presença duma figura que é considerada até como alguém que está capacitado para a resolução de questões que afligem essa sociedade, curandeiros e ou praticantes da medicina tradicional,11 surge a inquietação sobre o lugar e o papel que o psicólogo assume nessa sociedade.
Despret (2011), psicóloga e filósofa belga, convoca a pensar sobre a interagência, a dar estatuto de agência aos mortos, a interrogar os vivos, a testemunhar como são as crenças e hábitos da sociedade moçambicana. A cultura moçambicana remete a essas interagências entre o mundo espiritual e o cotidiano, nas quais os mortos realmente têm um papel fundamental na constituição familiar, na sua maneira de viver e de se relacionar. Os mortos comunicam algo aos vivos, que executam determinada ação. Em vários momentos, os vivos agem de acordo com o que eles acreditam ser a verdade, e uma de suas crenças está na importância que se atribui aos mortos, ou seja, aos seus antepassados. Na sociedade moçambicana, os mortos têm capacidade de agir. Falamos dos mortos, pois, colocando-os na posição dos não humanos (Latour, 2012). Eles nos fazem pensar e fazer. A personalidade do povo moçambicano é composta fortemente pelo poder da ação que os mortos representam na sua cultura e consequentemente na prática cotidiana.
Acredita-se na cultura moçambicana que, com a morte, uma parte da pessoa deixa de existir para sempre, finaliza a realidade humana e sua plenitude. É possível entender que com "o fim de existir como vivente" o homem fica em espírito. O sujeito morto transforma-se em outro ser, existe de um modo diferente, é outra coisa sem semelhança neste mundo. Por essa razão, escolhemos designar os mortos como os não humanos, em articulação com o texto de Latour.
As pessoas em Moçambique continuam tendo uma ligação muito forte com seus antepassados e fazem dessa conexão uma prática cotidiana. Aqui também é interessante pensar na ideia de ator-rede (Latour, 2012), a partir da qual as coisas/pessoas são redes, são feitas de articulações. No caso de Moçambique, pode-se avaliar que a rede que forma um sujeito, essa dita rede de articulações, é composta pelos mortos, os não humanos, além de outros muitos elementos. Frequentemente membros de uma família se comunicam com seus mortos e os têm como parte integrante de sua família. Dependendo do nível de hierarquia, essa pessoa já morta pode até ter um poder de tomar decisões no seio da família. Por exemplo: em algumas regiões de Moçambique, é comum o hábito de comunicar aos seus antepassados qualquer evento que se pensa em fazer numa determinada família, como casamento, nascimento de uma criança, com a intenção de pedir proteção e/ou até bênçãos. Por vezes, essa informação é feita com base num ritual em que há comunicação com o morto, realizada pelo ancião da família ou por outra entidade, que pode ser religiosa ou médico tradicional.
Prosseguindo com a narração do ritual, quando este é feito por alguém da família, no caso o ancião, reúne-se a família e organiza-se uma pequena cerimônia, ou também com as pessoas visadas (curandeiro ou uma entidade religiosa), no caso de nascimento de uma criança com ou sem deficiência. Já quando é feito pela entidade religiosa, o ritual específico obedecerá a cada religião, dependendo se compactuarem com essa crença.
Segundo Altuna (2014), no pensamento bantu, a morte, apesar de destruição e desordem, aparece como um momento necessário da vida, que brota no nascimento e culmina no estado de antepassado. Entre ser vivo e ser antepassado, dá-se uma continuidade ontológica. O autor defende ainda a ideia de que a participação vital transforma a vida num ciclo que, em teoria, nunca pode terminar. O antepassado, além de perdurar, prolonga-se na sua descendência.
Acredita-se na permanência de um princípio vital que perpetua a personalidade de cada sujeito e origina uma nova maneira de ser e de existir. Fica-se sempre ligado aos dois mundos porque esse princípio existencial assegura a participação vital, o "eu" permanece participante.
Em Moçambique, os mortos são os verdadeiros chefes, guardiões dos costumes; velam pela conduta dos seus descendentes, a quem recompensam ou castigam segundo observam ou não os ritos e costumes. A fidelidade às tradições, o respeito pelos anciãos e pelos mortos, o cumprimento das cerimônias estão permanentemente sob seu controle, regulamentam as relações entre os membros do grupo e todos reconhecem suas regras.
É justamente esse conjunto de relações entre vivos e mortos que se conecta com a chegada de uma criança com deficiência em uma família moçambicana. Os itinerários da deficiência, isto é, os modos como esse fato será vivido e experimentado pelas famílias é, não raras vezes, enredado nessas relações socioespirituais.
Perspectiva da prática profissional de Psicologia em Moçambique
Tal como a Psicologia Ocidental, a perspectiva africana/moçambicana deve abordar a aquisição da linguagem, da cultura, saúde mental, o comportamento humano, o conhecimento, a atitude de se relacionar com o outro. A centralidade da comunidade, o respeito pela tradição, alto nível de espiritualidade e envolvimento ético, harmonia com a natureza, natureza social da identidade individual, a veneração dos ancestrais e a unidade do ser são valores que devem ser considerados integrados nas anamneses psicológicas, nos psicodiagnósticos e na avaliação e intervenção psicológicas (Barros, 2011).
Por vários anos de colonização, o povo moçambicano se encontrou em muitas tensões sobre a legitimidade de suas raízes, crenças e valores. O colonizador, como a entidade que tinha como missão a civilização desse povo considerado indígena, ultrapassado, por várias vezes tentou acabar com as construções subjetivas do colonizado, provocando, dessa forma, uma desorganização e desconstrução dos valores étnicos destes. Mas com a independência do país (1975), o povo tenta se recompor e se reorganizar culturalmente. E nessa reorganização as pessoas voltam a se relacionar fortemente com seus antepassados. Suas crenças voltam a aflorar e tomam uma dimensão cotidiana.
No entanto, esse sentido não está pronto, ele é sempre local. Em cada situação, constroem-se os sentidos das coisas e, portanto, há também a produção de um "pequeno mundo" naquele encontro. É como quando Chimamanda Adichie (2009) nos fala dos livros europeus, dos personagens brancos que comem maçã, que são referências muito distantes do seu cotidiano.
Em nenhum momento pretendemos neste estudo desqualificar a ciência ocidental, tampouco considerá-la desnecessária, mas sim fazê-la compor com os saberes localizados e/ou práticas de cuidados que dão origem à subjetividade do sujeito em Moçambique.
Assim sendo, o trabalho do psicólogo aparece em um mesmo sentido, pois o profissional precisa se conectar com o mundo do paciente que está ali em sofrimento, na sua frente, escutar essa amplitude de conectar mundos. O encontro terapêutico é um encontro entre esses mundos, e se as duas partes se permitirem viver isso saem transformadas desse encontro. Dessa feita, entende-se que para melhor lidar com aspectos sobre a deficiência é preciso compartilhar os conhecimentos ocidentais, assim como os tradicionais moçambicanos, de modo que seja possível ter uma prática profissional mais acessível e acolhedora em relação a pessoas com deficiência.
Considerações finais
Durante o estudo, ficou muito marcado o lugar que se dá às crenças, aos fenômenos socioespirituais em Moçambique. Por vezes, percebemos que os mortos ainda continuam a ditar a vida dos vivos, e isso está marcado para cada moçambicano. Cada um tem sua forma de lidar com essa realidade, mas ela está lá e se faz sempre presente na vida da pessoa. As crenças interferem também nos conceitos que se dão às coisas/acontecimentos, por exemplo, a concepção da deficiência, que é marcada por muitas angústias pelas pessoas com deficiência, assim como pela família. As angústias muitas vezes são provocadas pelo fato de sempre tentar se responsabilizar os pais ou até mesmo a família, no geral, por esse acontecimento, pois, vimos durante este estudo que em África praticamente nada acontece ao acaso. Então essa concepção produz a ideia de que há sempre um culpado quando algo que se considera fora do normal sucede, nesse caso, a própria deficiência.
Entre as duas perspectivas da Psicologia (Ocidental e africana), está evidente que a Psicologia Ocidental, com seus métodos, técnicas e instrumentos, é incapaz de interpretar, avaliar e intervir eficazmente nos fenômenos psicológicos africanos, visto que a realidade africana é completamente diferente e distante do contexto ocidental. O homem africano é essencialmente coletivista, espiritual e religioso, não sendo necessariamente no ato de frequentar uma igreja ou um dogma religioso, eles o são no sentido de honrar o que representa uma preocupação da humanidade.
Esse pensamento não ignora a tamanha importância da Psicologia Ocidental, mas implica não tomá-la como a única perspectiva possível de interpretar de forma válida os fenômenos psicológicos, particularmente quando se trata de fenômenos psicológicos africanos. Sugere-se que se tenha em conta a cultura do indivíduo em qualquer processo de avaliação e intervenção psicológica, pois é com base nas crenças e na tradição que este interpreta o mundo. Assim sendo, todas as práticas de Psicologia Ocidental, quando usadas em culturas africanas, devem ser contextualizadas, no sentido de adequá-las à realidade do povo africano e, nesse caso concreto, à do povo moçambicano.
O papel do psicólogo em Moçambique passa por essas tensões porque o psicólogo deve atuar nessa sociedade que coloca como elemento fundamental a concepção socioespiritual sobre a deficiência e outros tipos de transtornos, e não apenas na concepção globalizada pelo Ocidente, seja pela Biomedicina como única solução para a cura, seja pelo modelo social como única forma de intervenção.
Destarte, não se pretende escolher ou determinar que concepções de deficiência são mais válidas, nem escolher conhecimentos ocidentais, globais, como melhores, nem os conhecimentos locais moçambicanos como únicos, mas sim criar uma fusão entre eles - o que sairia como um conhecimento "Glocal", que seria a junção de global e local - e compartilhar esses conhecimentos, de modo que possa permitir ter um campo de intervenção psicológica mais acessível.
Referências
Adichie, C. (2009). O perigo de uma única história. Recuperado de http://www.ted.com/talks/lang/por_br/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story.html.
Altuna, Pe. R. R. A (2014). Cultura tradiccional bantu (2a ed.). Prior Velho: Paulinas. [ Links ]
Barros, S. da L. (2011). O olhar de uma abordagem afrocêntrica: foco no funcionamento da psiquê africana. Revista África e Africanidades, 13, ISSN 1983-2354. Recuperado de www.africaeafricanidades.com. [ Links ]
Chiziane, P. (2006). O sétimo juramento (4a ed.). Moçambique: Ndjira Editora. [ Links ]
Conti, J. (2015). Margens entre pesquisar e acompanhar: o que fazemos existir com as histórias que contamos?. Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro. [ Links ]
Deficiência. (2013) Viver sem Limite - Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com / Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/PR) / Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Pessoa com Deficiência (SNPD) - Viver Sem Limite - Plano Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência : SDH-PR/SNPD.
Despret, V. (2011). Acabando com o luto, pensando com os mortos. Fractal: Revista de Psicologia, 23(1), 73-82. [ Links ]
Diniz, D. et al. (2007). Reflexões sobre a versão em português da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde. Cad. Saúde Pública, 23(10), 2507-2510. [ Links ]
Foucault, M. (1987). Vigiar e punir: nascimento da prisão (R. Ramalhete, Trad.). Petrópolis: Vozes. [ Links ]
Goffman. E. (1988). Estigma: notas da manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: LTC. [ Links ]
Honwana, A. M. (2002). Espíritos vivos, tradições modernas: possessão de espíritos e reintegração social Pós-guerra no sul de Moçambique. Maputo: Promédia. [ Links ]
Latour, B. (2012). Reagregando o social: uma introdução à Teoria Ator-Rede (G. C. C. de Souza, Trad.). Salvador: Edufaba. [ Links ]
Martins, B. S. (2006). E se eu fosse cego?: narrativas silenciadas da deficiência. Porto: Edições Afrontamento. [ Links ]
Martins, B. S. (2013). A cegueira sentido sul: no espírito do lugar. Coimbra: Edições Almedina A. S. [ Links ]
Moraes, M., Tsallis, A. (2016). Contar histórias, povoar o mundo: a escrita académica e o feminino na ciência. Rev. Polis e Psique, 6(1), 39-50. [ Links ]
Serra, C. (2014). O que é saúde mental?. Lisboa: Escolar Editora. [ Links ]
Thompson & Thompson. (2002). Genética médica (6a ed.). Rio de Janeiro: Editora Guanabara Koogan. [ Links ]
Recebido em: 24/9/2018
Aprovado em: 29/9/2020
1 Chiziane, P. (2006). O sétimo juramento (4a ed.). Moçambique: Ndjira Editora..
2 Chimamanda Adichie (2009) fala numa palestra do TED sobre o perigo das histórias únicas.
3 Morais, M., & Tsallis, A. (2016). Contar histórias, povoar o mundo: a escrita académica e o feminino na ciência. Polis e Psique, 6(1), 39-50.
4 Em África, o sujeito é formado por aspecto não apenas biopsicossocial, mas também fenômeno cultural (espiritual).
5 Honwana, A. M. (2002). Espíritos vivos, tradições modernas: possessão de espíritos e reintegração social pós-guerra no sul de Moçambique. Maputo: Promédia.
6 A publicação da International Classification of Functioning, Disability and Health (ICF ou CIF, em português) pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 2001, é considerada um marco no debate sobre deficiência. O documento é uma revisão da International Classification of Impairments, Disabilities and Handicaps (ICIDH), primeira tentativa da OMS de organizar uma linguagem universal sobre lesões e deficiências, publicada em 1980. Entre as várias modificações propostas pela CIF, uma das mais desafiantes foi o novo significado do termo "deficiência", que de uma categoria estritamente biomédica na ICIDH assumiu um caráter também sociológico e político na CIF.
7 Neste trabalho iremos usar a expressão família/acompanhantes para marcar o grupo de pessoas que convivem e cuidam das pessoas com deficiência.
8 Ver Diniz, D. et al. (2007).
9 Interpretações tradicionais refere-se à atribuição do significado aos acontecimentos com base nas crenças culturais (com maior destaque a espiritualidade). A evocação dos fenômenos espirituais é tida como um fator primordial nas vivências da sociedade moçambicana.
10 Curandeiro é a palavra usada para denominar a pessoa que trabalha com a medicina tradicional. Em outras culturas, aplica-se essa designação a pessoas que usurpam o lugar dos médicos e exercem a Medicina sem título nem habilitações. Podem parecer charlatães que, espertos e com sua pseudociência, se aproveitam da credulidade de pessoas incultas. Essa definição não se coaduna nem pode ser aplicada aos especialistas em magia, pois o curandeiro africano é um profissional acreditado. Como único conhecedor da Medicina, a comunidade não só o estima como o considera imprescindível. Portanto, é mais lógico chama-lo de "médico", uma vez que domina a Medicina tradicional e, oficialmente, está autorizado a exercê-la. Não é charlatão, nem nenhum impostor. Embora os seus diagnósticos e terapêutica nos pareçam suspeitos, temos de admitir que não podem ser de outra forma numa sociedade em que a doença tem uma causalidade mística e só magicamente pode se curar (Altuna 2014, pp. 560-561).
11 Tradição médica tipicamente "local", usada desde antes da introdução da biomedicina pela colonização ocidental, constituída por um repertório de praticas terapêutico distribuído e modeladas pela diversidade cultural do país.