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Pesquisas e Práticas Psicossociais
versão On-line ISSN 1809-8908
Pesqui. prát. psicossociais vol.15 no.4 São João del-Rei oct./dez. 2020
Subjetividade e espaço: um olhar pela Teoria Ator-Rede
Subjectivity and Space: an Actor Network-Theory Perspective
Subjetividad y espacio: una visión por la Teoría del Actor-Red
Leonardo Perdigão LeiteI; Pedro Jorge Lo Duca VasconcellosII
IDoutor e mestre em Psicologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGPS/Uerj). Graduado em Museologia e Pedagogia
IIDoutor e mestre em Memória Social pelo Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (PPGMS/Unirio). Graduado em Museologia e História
RESUMO
O presente trabalho é uma reflexão teórica sobre uma maneira não moderna de conceituar a subjetividade. Por esse viés, os humanos não são os únicos responsáveis pela construção de sua subjetividade, mas também os ambientes e os elementos não humanos. Para isso, são utilizados como referenciais teóricos Bruno Latour, David Lapoujade, Gabriel Tarde e John Law. Desenvolvemos, ainda, a noção de uma ciência barroca, que lida com certas questões epistemológicas de maneira diferente do que uma ciência tradicional, além de se exigir outra postura ético-política dos pesquisadores. A noção de subjetividade, a partir desse percurso epistemológico-metodológico, deve ser apreendida como linhas ou campos de interesse e afetação interagindo num lugar e momento que não se reduzem a sujeitos individuais egocêntricos.
Palavras-chave: Teoria Ator-Rede. Subjetividade. Espaço. Barroco.
ABSTRACT
This study is a critical thinking about a non modern way to conceptualize subjectivity. In this perspective humans are not the only responsibles for the construction of their own subjectivity but also the environment and non human elements. For that, we use theorical references such as Bruno Latour, David Lapoujade, Gabriel Tarde and John Law. We develop the notion of a baroque science, that deals with certains epistemological questions different from the traditional way of science. In addition we support a new politic and ethic posture for the researchers. The notion of subjectivity, from this epistemological and methodological perspective is understood as fields and lines of interest e affections that interact in a determined time and place that are not reduced to individual egocentric subjects.
Keywords: Actor Network-Theory. Subjectivity. Space. Baroque.
RESUMEN
El presente trabajo es una reflexión teórica sobre una manera no moderna de conceptualizar la subjetividad. Por ese enfoque, los humanos no son los únicos responsables de la construcción de su subjetividad, sino también los ambientes y los elementos no humanos. Para ello, se utilizan como referenciales teóricos Bruno Latour, David Lapoujade, Gabriel Tarde y John Law. Desarrollamos aún, la noción de una ciencia barroca, que se ocupa de ciertas cuestiones epistemológicas de manera diferente que una ciencia tradicional, la postura ético-política de los investigadores. La noción de subjetividad, a partir de ese recorrido epistemológico-metodológico, debe ser aprehendida como líneas o campos de interés y afectación interactuando en un lugar y momento que no se reducen a sujetos individuales egocéntricos.
Palabras clave: Teoría del Actor-Red. Subjetividad. Espacio. Barroco.
Introdução
O presente texto trata de outro modo de ver a subjetividade, não aquela que vem da interioridade do sujeito, que sozinho produz sua visão de mundo e, de certo modo, sua personalidade, sem depender de fatores externos ou de outros indivíduos. Exploraremos, então, as relações entre espaço e subjetividade e de como os elementos não humanos, aqueles negligenciados pela constituição moderna, também são produtores e ajudam a moldar a subjetividade dos humanos por meio de redes de conexão e relação (Latour, 1994).
Os primeiros pragmatistas, sobretudo na figura de William James, assumiram uma postura não metafísica, no sentido de querer evitar uma característica recorrente no pensamento metafísico que fora iniciada em Platão: a dualidade. Tanto nas dicotomias entre o mundo ideal e real, entre a matéria e o espírito, entre o corpo e a alma, entre história e natureza, quanto entre liberdade e necessidade, os primeiros pensadores do pragmatismo buscaram uma noção que se colocasse entre esses dois polos, problematizando as dualidades das teorias tradicionais da história do Ocidente formando um novo horizonte: a experiência. Nesse sentido, os pragmatistas apontam que se devem investigar os procedimentos humanos ordinários, abrindo mão de uma definição abstrata, metafísica, para explicar as noções.
A segunda onda do pragmatismo e empirismo, pós-virada linguística, mais radical, trabalha com a ideia de indeterminação, redefinindo a noção de sociedade, também afetando a noção de indivíduo. Inspirados por Leibniz, Tarde e James, essa perspectiva pensa nos pequenos caminhos, trajetos, nas coisas menores, não sendo necessário trabalhar o grande, as partes a partir de uma totalidade que submete as singularidades. Latour (2008a; 2016) entende que o sujeito não é exatamente aquilo que pensa ser, mas um conjunto de afetações que o faz fazer em situações diversas. Então, o indivíduo não pensa sozinho, de modo isolado e alheio ao ambiente em que está inserido num processo de interações e fusões, mas conforme os múltiplos pontos de vista que são distribuídos. Nesse sentido, não seria o sujeito que tem pontos de vista, mas são os espaços que produzem os pontos de vista, realizando um cruzamento destes - resultando naquilo que Serres entende por mestiçagens, misturas.
A pesquisa barroca
Enquanto a Sociologia Clássica, herdeira do pensamento e do método de Émile Durkheim, que foca fundamentalmente no sujeito racional - o homem como o grande eixo sobre o qual o mundo gira - e numa construção de conceitos abstratos que tomam as partes pelo todo, numa perspectiva de exterioridade, a renovada Sociologia de Latour (2008a) e outros pensadores, vinda da retomada dos ideais de Gabriel Tarde, promove um olhar mais detido para os não humanos, outrora vistos como simples objetos. Nigel Thrift (2008, p. 3), nesse tocante, afirma que
para Tarde, o fato social/psicológico elementar - é interessante que ele não faz nenhuma distinção real entre os termos sociologia e psicologia - era a relação de modificação ou de comunicação (tal como afeto, obediência, simpatia ou educação, e não o sujeito que estava lá para ser modificado).
Tarde (1898/2011), assim, produz uma Sociologia pautada nos fluxos e raios imitativos e em processos de individuação e socialização, e inspirará Latour (2009) a manejar essa noção na sua construção da Teoria do Ator-Rede (TAR). Nesse sentindo, os trajetos e os múltiplos caminhos possíveis são mais importantes do que o projeto (universal). Outra inspiração genealógica considerável desse tipo de empreendimento epistemológico e metodológico está ancorada, sobretudo, no pragmatismo de William James, que se pauta na restituição das condições de uma experiência real. Conforme aponta Pelbart (2016, p. 348),
O pragmatismo consiste, à primeira vista, em uma luta contra a ideia de Verdade em favor de verdades no singular, ou melhor, das coisas tomadas na sua pluralidade. Daí o espírito empirista que lhe é coextensivo, mais próximo dos fatos do que dos princípios, das partes do que do conjunto - em suma, dos fatos brutos. É uma filosofia do particular, dos fragmentos, do mosaico. Por conseguinte, há uma recusa das palavras genéricas que não alcançam as qualidades das sensações, e o apelo a uma psicologia da intensidade, até mesmo a uma física do espírito, a fim de apreender a pluralidade do mundo […]. O mundo é povoado de coisas particulares, formigante de diferenças - é um mundo do detalhe e da superabundância.
O mundo seria um conjunto de visões e modos de existir, de sentir. Desse modo, ao contrário do racionalismo com sua prática de explicar as partes pelo todo, o empirismo permitiria captar o todo pelas partes fornecidas por nossas experiências. Portanto, a natureza se apresenta de maneira multifacetada a partir do fazer e suas criações de vários mundos. Nesse sentido, a pluralidade dos modos de existência singulares - humanos e não humanos - do pensamento barroco em Latour, Law, Mol, Van de Port, entre outros tributários desses pensadores supracitados, aparece como inspiração para explorar as Ciências Sociais, enquanto o romântico estaria associado ao durkheimiano e seus movimentos reducionistas.
É preciso salientar que esse modo barroco de conhecimento e pesquisa não se refere a um retorno ao movimento histórico e artístico da Contra Reforma, mas a possibilidade de se pensar, entre outros, a escrita acadêmica. Van de Port (2016, p. 165) destaca que essa retomada de ideais barrocos pode desarrumar os métodos, já consagrados e duros, da escrita acadêmica, para o autor: "O que eu considero que o barroco seja - um impulso estético ao invés de um período histórico e estilístico delimitado; uma intuição sobre a falta de representação ao invés de um modelo representacional alternativo; uma sensibilidade ao invés de uma arte".
O autor segue sua análise salientando que, enquanto acadêmicos, temos o hábito de sonhar com mundos coerentes, bem-sinalizados, que fazem jus a nossas representações, muitas vezes ignorando o sentimento de se sentir perdido durante as pesquisas e encontrando problemas de como passar esse sentimento de confusão em nossos textos. Em uma análise dos modos mais tradicionais de pesquisa, Van de Port considera que a visão racionalista cartesiana contribui com a ideia de que os "objetos" de nossos estudos - sejam eles humanos ou não humanos - podem estar perdidos, mas nós, pesquisadores, atores esclarecidos, jamais. Em suas palavras,
sujeitando o mundo a nossa ordenada estética de linhas retas, categorias claras, narrativas coerentes, métodos transparentes, esquemas puros, e vocabulários aprendidos, nós provemos ao leitor o sentimento de estarmos no controle. As pessoas que estudamos podem estar perdidas. Nós não. (Van de Port, 2016, p. 167).
Já Law (2016) considera que as práticas barrocas de pesquisa nos ajudariam a pensar novos modos de conhecer que considerassem uma performatividade radical do mundo e que diminuíssem as tentativas de se controlar todas as esferas da realidade. Assim, o autor desenvolve sete pontos, com os quais as Ciências Sociais têm dificuldade de trabalhar, sendo eles:
1. A paixão. Como os sentimentos conversam com o modo de conhecer das Ciências Sociais? Apesar de considerar que estes afetam nossas escolhas, normalmente o amor ou o ódio são escondidos ou negados. 2. Os corpos. A ideia de que os corpos podem ser parte constituinte dos métodos é uma dificuldade para os modelos tradicionais das Ciências Sociais. 3. A heterogeneidade material. As reflexões acadêmicas sobre a heterogeneidade material são pálidas e racionalizadas. Os usos de outras formas de materiais comunicativos, quando usados, são limitados. 4. O excesso. Sendo consideradas ciências austeras e moderadas, o excesso não é permitido de forma alguma. 5. A especificidade. Mormente, os modos acadêmicos são generalistas e universalistas, em vez de específicos, o conhecimento produzido em um lugar do globo pode ser transferido sem problemas para outros contextos. 6. A falta de forma. As Ciências Sociais, tradicionalmente, procuram por estruturas escondidas atrás da aparente desordem das coisas. Assim, os acadêmicos procuram por formas e regularidades e deixam de lado aquilo que não se enquadra nessas fórmulas. 7. A performatividade. Apesar de ser mais fácil dizer que há performances e encenações no social, ainda há resistência à ideia de que essas práticas ajudam a criar realidades alternativas. (Law, 2016, pp. 19-21).
O modo barroco de conhecer se prestaria, assim, a repensar a relação desses sete elementos nos métodos de pesquisa das Ciências Sociais, permitindo outras formas de produção textual, acadêmica e entendimentos das relações do mundo, não pautadas em uma estabilidade e ordem transcendente, mas nas relações entre sujeitos, objetos e meio. E por que o barroco?
Uma resposta é que o barroco abre espaço e propicia muitas formas de outridade, como as listadas acima. O barroco conhecia as coisas diferentemente. Ele conhecia sobre muitas coisas diferentes. Era extravagante e excessivo, sabia materialmente em várias formas heterogêneas, e conseguia apreender quais eram as outras formas que não podiam ser capturadas em redes cognitivas ou simbólicas. Também era performativo e não partia apenas de um único ponto. Grande parte da divisão do Ocidente entre racionalismo e irracionalismo pode ser colocada de lado se considerarmos o barroco como uma fonte, um recurso de criação de modos de conhecer diferentes, com técnicas e métodos alternativos. (Law, 2016, p. 23).
E quais as relações desse modo barroco de pesquisar e ver o mundo com a subjetividade? O indivíduo não é mais pensado como o centro do universo, detentor de todos os saberes e intérprete do mundo, mas como um dos elementos que constitui suas diversas realidades. Assim, Law destaca três elementos barrocos que podem se relacionar com as subjetividades. A alteridade - ou outridade -, as emoções, e a incorporação (embodiment). Esses elementos mobilizam subjetividades particulares que não são geradas por uma mente separada do corpo, mas de estímulos, efeitos e participação dos corpos na vida social. Assevera o autor que "este é um mundo onde a divisão corpo-mente não funciona. Cogito, ergo sum? De maneira alguma: não há lugares de consciência removidos da carne. Essa é uma terceira questão, ser um corpo e conhecer vão juntos" (Law, 2016, p. 29). Apesar de descentrado, o sujeito ou indivíduo não se apresenta como um autômato que realiza as diversas ações que o ambiente impõe sobre ele, já que há uma troca, uma negociação, uma atividade performática e encenada que depende dos diversos atores ou actantes.
Voltando-nos para as emoções, podemos apontar para as análises de Despret (2004) e sua contribuição para esse debate, ao desenvolver a ideia de que a emoção é um fenômeno sociocultural e não de uma interioridade ou inconsciente individual. Para a autora, as pessoas aprendem a ter emoções, são constituídas por elas, pois estas se encontram circulando no espaço social e nos afetam. Essa percepção é uma crítica à lógica tradicional de um pensamento ocidental, indo de Platão a Freud, que entende a emoção como uma categoria oposta ao cognitivo, fazendo do sujeito racional o controlador das emoções, aquele que a sublima. Os trabalhos associados a essa perspectiva barroca são heterogêneos, portanto, essa perspectiva empreende uma radical crítica às construções dicotômicas - tais como natureza/cultura, racional/emocional, macro/micro, subjetivo/objetivo, sociedade/indivíduo - que a Teoria Ator-Rede tenta dissolver.
A TAR como uma Sociologia das associações e encenações
A TAR seria, então, uma abordagem dos eventos científicos como compostos em rede, em que o coletivo incessantemente se compõe e recompõe a partir de relações entre humanos e não humanos, por meio de um princípio de simetria amplo, considerando de forma distribuída vencedores e vencidos, modernos e não modernos, atores humanos e não humanos. Os sujeitos são mais autônomos quanto mais vinculados e mais conectados, ao contrário da visão estanque do sujeito racional - o solipsismo reducionista do penso, logo existo - e de uma falsa ideia de autonomia da ciência e da técnica (Latour, 2016).
Outro deslocamento presente na Sociologia das Associações está na abordagem metodológica. Enquanto um método de investigação e, acima de tudo, descrição das associações, a TAR trata de seguir os vínculos estabelecidos entre elementos, de modo a não tomar cada um de modo separado em sua incomensurabilidade, na contramão das teorias fortes das Ciências Sociais. Conforme intui Latour (2008a, p. 206), "a TAR em primeiro lugar é um raciocínio negativo. Não diz nada positivo sobre qualquer coisa ou assunto".
A tradição moderna ocidental adota a hermenêutica, na interpretação de textos e imagens, como fonte primordial de obtenção do conhecimento e método legítimo de seu fazer científico. Para repensarmos a noção de subjetividade, as obras de Tarde são retomadas, principalmente no que tange às noções de crença, desejo, raios e fluxos imitativos. O autor considera que há processos de socialização e processos de individualização, e não indivíduos e sociedade dados a priori, mas construção e estabilização por meio de processos de imitação, oposição e adaptação (Tarde, 1898/2011). Na mudança de paradigma empreendida pelos autores tributários de Tarde, o espaço aparece como um conjunto de seres animados em constante processo de interação e fusão com seus ambientes - o território desempenha um papel de suma importância.
Bruno Latour e outros teóricos, por sua vez, mudam a perspectiva na descrição dos atores pesquisados, distanciando-se das sociologias interpretativas. Para esses autores, deve-se esgotar um actante por meio, justamente, de sua descrição. Latour entende que as boas investigações sempre produzem descrições novas, sendo feitas por intermédio de um trabalho empírico objetivo. Nesse sentido, o princípio da TAR estaria no fato de que "os próprios atores fazem tudo, inclusive seus quadros de referência, suas teorias, seus contextos, sua metafísica, até suas ontologias" (Latour, 2008a, p. 212).
No decorrer desse processo descritivo, encontraríamos as respostas e os achados que procurávamos inicialmente, ou não, mas apostas erradas também fazem parte da ciência. Podemos pensar com Mol et al. (2011) ao demonstrar que algo aparentemente banal, como cozinhar, apresenta caminhos de grande complexidade, com suas encenações, experiências, rituais. O espaço social deve ser percebido com um espaço de encenações.
Os objetos, assim, devem ser encarados como possuidores de "poderes especiais" e não mais como meros acessórios, numa visão funcionalista. De acordo com esse modelo ontológico e metodológico, Latour argumenta que é possível rastrear e descrever um fazer possível, com seus vínculos, redes, conexões, seguindo uma série de atores em sua dimensão concreta, empírica, refutando teorizações abstratas que lidam com uma realidade em escala macro - argumento central de Paris, cidade invisível, retomado no artigo de mesmo nome de 2009. Sob esse prisma, "a agência se liberta da intencionalidade, uma entidade torna-se um actante quando faz uma diferença perceptível" (Latour, 2008a, p. 58). É por meio das práticas culturais fragmentadas, da sua tecitura, que é possível explicar o social. A teoria, dessa forma, é uma reflexão da prática.
Patchwork
A partir da ideia de que o material e o social se misturam e que diversos elementos constituem esse mundo social, Law e Mol (1995) desenvolvem a ideia de patchwork, que surge da assunção de que existe uma multiplicidade de materialidades que se performam em diversas maneiras e que algumas delas se encaixam, se ajustam (fit) entre si. Assim, a sociedade não é entendida como tendo uma estrutura prévia, mas sim um tecido que é costurado por meio das diversas práticas e performances dos atores. Law e Urry (2005) desenvolvem a ideia de que a Sociologia é uma ciência que participa, molda e cria realidades. Para os autores os métodos sociológicos são performativos, ou seja, "eles têm efeitos; eles fazem diferença; eles encenam (enact) realidades; e podem ajudar a vir a ser aquilo que descobriram" (Law & Urry, 2005, pp. 392-393).
A lógica do patchwork proposta por Law e Mol (1995) é uma das três metáforas exploradas, no que tange às relações entre a socialidade e a materialidade. As outras duas são a semiótica, que sugere que a Sociologia e a "materiologia" se dão conjuntamente, e que os materiais são efeitos relacionais; e a outra é a estratégia, que seria uma questão de distinção material, tanto reflexiva quanto recursiva. Pressupõe-se que a lógica do patchwork foque nas mudanças sociais, em vez de ser utilizada para entender as estabilidades sociais. Embora as três façam parte de modelos de análise válidos e com peculiaridades, aprofundaremos aqui a ideia de patchwork e de como podemos apreender novos modos de conceituar e (re)pensar a subjetividade e os espaços cotidianos. A ideia de patchwork é apresentada pelos autores como a metáfora número três e a última - mas não menos importante - no texto. Ela é apresentada depois de uma série de questionamentos que giram em torno da descentralidade dos materiais e de que existiriam múltiplas formas desses materiais se performarem.
Os primeiros questionamentos feitos versam sobre como as diferentes materialidades se ajustam e se relacionam entre si. Uma primeira resposta, pautada na lógica da estratégia, diria que algumas vezes as materialidades se encaixam, se ajustam, mas essa lógica as reduz a um único tipo de estória. E o que acontece se levantarmos mais questões sobre essa única narrativa? Os autores passam a pensar, então, em materialidades e espaços, em arranjos locais, narrativas descentralizadas, ausência de estratégias e nas dificuldades de se juntar essas materialidades. Desse modo, "a resposta, ou o que nós sugerimos, nos leva para a lógica - múltipla - do patchwork, no qual nos movemos de um lugar ao outro, procurando por conexões locais, sem a expectativa de um padrão como um todo" (Law & Mol, 1995, p. 288).
A partir dessa visão da multiplicidade, da importância material e das conexões locais, podemos pensar uma subjetividade que não seja centralizada na interioridade do sujeito, e sim em suas conexões e articulações. É preciso salientar que não é qualquer material e situação que dão certo e que as estabilidades e estruturas não são prévias às ações, mas decorrentes delas. Desse modo, evidencia-se que
esta é a opção do patchwork. Conexões parciais e variadas entre os locais, situações e histórias. É imaginar que materiais e o social - e as histórias também - são como pedaços de tecido que foram costurados juntos. É imaginar que existem muitas maneiras de costurar. É imaginar que existem muitos tipos de fios e linhas. É estar atento as especificidades de costurar e tecer. É estar atento aos laços locais. E é lembrar que os pedaços de tecido podem ser transformados em uma grande variedade de patchwork, por força de costuras locais. É só uma questão de fazê-las. (Law & Mol, 1995, p. 290).
Em uma linha de raciocínio similar, ao apresentar o pensamento de William James, Lapoujade (2017) desenvolve as relações entre linhas e pedaços, reforçando que é necessário liberar os materiais da dependência dos sujeitos, já que essa hierarquia faz com que se interrompa o movimento das relações e se aprisione o conhecimento em um modelo de verdade preexistente. Essas relações não são prévias à experiência, mas se dão ao mesmo tempo, conjuntamente. Contra um absolutismo hegeliano, o autor se interroga: "Porém, essa descrição do dado já está por demais construída: como não ver que as relações são percebidas ao mesmo tempo que os termos que elas interligam?" (Lapoujade, 2017, p. 64). O patchwork, então, coloca em questão as estruturas e as estabilidades. Law e Mol (1995, p. 275) argumentam que
a ideia do patchwork depende da sensibilidade para a diferença, aqui e agora. Ou melhor, depende na sensibilidade para a possibilidade de que as relações entre o social e o material não se somam simplesmente, ou que andem juntas como um todo... Todas as entidades são locais. E tudo o que pensamos ser estabilidades são - instáveis. O que pensamos que tinha direção certa - treme e se agita.
Dessa forma, entram em cena novos elementos a serem considerados, sendo eles o local em que os eventos acontecem e a relação material-social, que vai ser costurada, tecida, e, em determinadas situações, dar certo ou não. Não há uma soma e nem sempre essa relação gera frutos. Essas ideias têm uma série de relações, a nosso ver, com a noção desenvolvida por Latour (2008b) de articulação e das possibilidades de se ter um corpo. Seguindo sua proposição, "ter um corpo é aprender a ser afectado, ou seja, efectuado, movido, posto em movimento por outras entidades, humanas ou não humanas" (Latour, 2008b, p. 39).
Outro ponto de destaque é a experiência que temos em cada evento. É por meio dela que percebemos como as relações que atravessam os conjuntos de multiplicidade se dão, podendo se apresentar de forma disjuntiva ou conjuntiva. A partir disso, Lapoujade introduz a ideia de continuum, uma espécie de fluxo contínuo, na obra de James, distinguida em três: a consciência, o espaço e o tempo.
Os fluxos de consciência são tidos como absolutamente separados, uma espécie de mônada leibziana. Isso se dá porque a experiência só pode ser alcançada por aquele que a experimenta diretamente. Há um fundo inalienável e irredutivelmente privado que os outros não podem ter acesso, assim: "a consciência é um fluxo, mas cada pulsação que a atravessa, cada campo que passa está fechado em si mesmo, sem janelas, sem o menor conhecimento do que são os outros sentimentos e do que eles significam" (James, citado por Lapoujade, 2017, p. 67).
James ainda considera que as relações de continuidade e descontinuidade são obtidas por meio dos fios conjuntivos ou disjuntivos, não há realidade onde não se possa encontrar os dois tipos de relação, e é por isso que o autor considera que o mundo "é um e não é um ao mesmo tempo, já que as relações são ora conjuntivas, ora disjuntivas, de acordo com os choques recebidos e as séries percorridas" (Lapoujade, 2017, p. 67). É deste mundo que é "um e não é um ao mesmo tempo" que serve para o desenvolvimento da noção de pluriverso, que não deve ser apreendida nem como unidade absoluta (universo) e nem como uma multiplicidade absoluta (multiverso).
Esse mundo surge, para James, como um vasto patchwork, onde pedaços, pontas sem borda, sem limites, sem unidade final se liga a outros, sendo prolongáveis e construíveis indefinidamente. O autor fala, dessa forma, em uma filosofia de mosaicos. A essa ideia de patchwork, Lapoujade soma outro conceito importante em James, o de network ou rede. Para o autor,
linha e pedaço, network e patchwork, são os dois grandes eixos de construção do mundo. O mundo é percorrido por um novelo de linhas entrelaçadas de tal maneira que elas não deixam escapar nenhuma parte individual do universo, mas sem com isso fechar o universo sobre si mesmo. Ele é constituído de vastas redes, ora condutoras, ora não condutoras, que se recobrem parcialmente, se prolongam em todos os sentidos, como se fossem meios de transporte. As unidades são incessantemente desunidas por processos disjuntivos que seguem os pontos de crescimento ou de bifurcação do universo. É por isso que elas nunca podem ser globais ou totalizantes. O universo é um sistema de relançamento perpétuo: as linhas conjuntivas integram certos processos disjuntivos, não sem recriar outras disjunções que eles escapam, e assim por diante, de modo ilimitado, como se as conjunções estivessem perseguindo as disjunções. O mundo surge, então, sob uma forma essencialmente descontínua, apesar de ser sustentado por continuidades. De fato, a cada nova situação o conjunto das relações é redistribuído sem que haja um modo de totalizá-las ou unificá-las. (Lapoujade, 2017, p. 72).
Já o tempo não é entendido por James como uma realidade descontínua, formado por pequenos instantes, mas sim um fluxo contínuo que mistura passado, presente e futuro. Assim, o presente não é entendido como uma unidade temporal separada, mas um "bloco relativo de duração", aquilo que o autor entende por specious present (Lapoujade, 2017, p. 65). Depois dos resumos do âmbito da consciência e tempo, iremos nos deter de modo mais específico na relação entre subjetividade e espaço.
Subjetividade e espaço
A ideia do espaço apresentada, aqui, vai ao encontro daquilo que entendemos sobre o papel deste na subjetividade. O espaço é o responsável por assegurar a continuidade entre os fluxos de consciência individuais, que seriam radicalmente separados sem a possibilidade dada pelo meio. Este, porém, é um movimento duplo, o espaço é o que conecta, mas também desconecta aquilo que une as consciências e as separa. Compartilhamos, localmente, o mesmo espaço e este pode ser mediado por objetos comuns ou díspares.
Entre o outro e eu existe comunidade de espaço, e não simples justaposição, pois nossos espaços se copenetram através dos objetos que servem de pontos de interseção ou permitem coberturas parciais. Nesse sentido, o espaço se constrói através de conexões. A distância é construída, unindo borda a borda, pedaço a pedaço, como numa operação de remendo. Não procedemos mais por associação de átomos, mas por junção ou encadeamento. Ele age no meu espaço, eu ajo no espaço dele. Não mais do que a consciência ou o tempo, o espaço também não poderia ser definido como uma forma geral que, em seguida, uma sensibilidade empírica viria preencher; pelo contrário, ele se apresenta como uma multiplicidade contínua de múltiplas junções. (Lapoujade, 2017, pp. 66-67).
Podemos estabelecer relações com a ideia da subjetividade espacial de Thrift (2008), que acredita que em algumas situações somos levados a fazer certas coisas e tomar certas ações que não pensávamos, que não vieram de uma entidade subjetivadora interior ou um inconsciente dominador. Os territórios devem ser levados em consideração nesse processo de subjetivação, assim como os objetos - não entendidos como meras coisas passivas a serviço dos desejos dos atores - e os sujeitos.
A noção de subjetividade, a partir desse percurso epistemológico-metodológico, deve ser apreendida como linhas ou campos de interesse e afetação interagindo num lugar e momento. Essas linhas e campos não são sujeitos individuais egocêntricos. Os atores existem, eles estão lá, mas não trabalham individualmente, e sim em concerto, numa dissolução do eu numa dimensão alocêntrica, num espaço que aparece como o "entre", uma formação menos rígida das fronteiras do que pretendia o modelo clássico das distinções taxonômicas. Essa ideia se coaduna com aquilo que Latour denominou plasma, ao apontar para a observação do espaço social não em sua totalidade, como num zoom, mas pela multiplicidade de conexões entre as diferentes percepções, "sem torná-las comensuráveis rápido demais, meça a invisibilidade constitutiva/fundante de todos" (Latour, 2009, p. 6).
Ademais, a noção de plasma diz respeito àquilo que não é social, uma área confusa, de caos, de misturas e combinações, a qual os cientistas sociais sempre evitam encarar. O social, nesse sentido, não é uma cercania na qual os humanos crescem e vivem, mas uma pequena gama de conexões e associações que podem ser quebradas, desarrumadas pelo pulular de actantes infinitesimais (Latour, 2002).
A subjetividade, dessa forma, não deve ser encarada pelo modelo clássico do homem racional econômico, distanciando-se da visão de que as pessoas são representadas como "ilhas discretas de consciência e agência" (Thrift, 2008, p. 8). A subjetividade, destronando o sujeito autossuficiente, surge como o resultado de uma experiência coletiva, uma multiplicidade de sensibilidades que criam mundos diversos, seus "lugares de existência" onde há uma relação de afetação entre pessoas que se dissipam em outras, num processo constante em que capturam e são capturadas por coisas, instaurando assim uma arte da existência.
Tarde considera que o espaço tem vital importância nos processos de imitação, oposição e adaptação. É nele que os diversos fluxos e raios imitativos se encontram, se somam, se repelem.
O espaço é constituído de modo a comportar uma infinidade de pares de direções opostas entre si, e nossa consciência é constituída de modo a comportar uma infinidade de afirmações opostas a negações, uma infinidade de desejos opostos a repulsões (tendo precisamente o mesmo objeto). (Tarde, 1890/2011, p. 59).
O que o autor chama de leis de repetição, oposição e adaptação são relações entre a tendência das espécies, ideias, desejos e crenças de se propagar e multiplicar. A repetição seria a propagação de crenças e desejos que se tornam hábitos. A oposição seria a concorrência desses fluxos e a seleção de alguns em detrimentos de outros. A adaptação seria a produção de variações individuais, da criação de novas ideias a partir de duas similares ou opostas.
No que tange à teoria sociológica, Tarde considera que a grande ilusão dos sociólogos foi de aprisionar os fatos sociais em fórmulas de desenvolvimento específicas que se repetiriam em massa com variações insignificantes. O autor identifica essa tendência na Filosofia de Hegel e suas séries de tríades e nos evolucionistas sociais e a eles responde: "Era necessário reconhecer que essas pretensas regras estão repletas de exceções, e que a evolução - linguística, jurídica, religiosa, política, econômica, artística, moral - não é uma rota única, mas uma rede de caminhos na qual abundam as encruzilhadas" (Tarde, 1890/2011, p. 30).
Tarde propõe assim uma Psicologia inter-cerebral, ou seja, de como se estabelecem as relações conscientes entre os indivíduos. Esse contato, esse encontro entre os sujeitos é sempre imprevisível, não se pode antecipar seus desdobramentos e suas consequências, se assim houver.
Essa relação de um sujeito com um objeto que também é um sujeito não é uma percepção que em nada se assemelha à coisa percebida, mas antes a sensação de uma coisa senciente, a volição de uma coisa volitiva, a crença em uma coisa crente, em resumo, em uma pessoa, na qual a pessoa que percebe se reflete e que ela não poderia negar sem negar a si mesma. Essa consciência de uma consciência é o inconcussum quid que Descartes procurava e que o eu individual não pôde lhe fornecer. (Tarde, 1890/2011, p. 32).
Os elementos que são trocados, imitados, opostos, adaptados e criados pelos sujeitos passam pelas noções de crença e desejo, recorrente nos trabalhos de Tarde. Para ele,
A energia de tendência psíquica, de avidez mental, que eu chamo de desejo, tal como a energia de entusiasmo intelectual, de adesão e constrição mental, que eu chamo de crença, é uma corrente homogênea e contínua que, sob a variável coloração das tintas de afetividade próprias a cada espírito, circula idêntica, ora dividida, fragmentada, ora concentrada, e que se comunica sem alteração de uma pessoa a outra, bem como de uma percepção a outra no interior de uma mesma pessoa. (Tarde, 1890/2011, p. 33).
Mas como essas correntes e fluxos de crença e desejo formam um todo social? Haverá uma harmonia preestabelecida? Uma estrutura determinante que restringe a ação? A resposta de Tarde é que não, talvez em poucos casos possa ser que sim. Para ele, a ação da sugestão-imitação é o que rege as crenças e os desejos. O surgimento de uma ideia, de um elemento da moda, da própria subjetividade é propagado pela repetição-imitação. Aqui o indivíduo é importante, pois é ele que começa, que cria uma ideia ou um novo hábito, imitado por outros ou deixado de lado. Os fluxos passam pelo indivíduo que cria e recria a partir deles. Não é uma ação do âmago do sujeito, mas também não é meramente ambiental, é uma combinação de fluxos de crença e desejo que leva, a partir de outras ideias e hábitos, à criação de novas. Ainda surge outra questão: a de que esses elementos não são sociais por natureza. "E ainda é fácil mostrar que nossas inovações são, em sua maior parte, combinações de exemplos anteriores, e que elas permanecem estranhas à vida social enquanto não forem imitadas" (Tarde, 1890/2011, p. 35).
O mundo social seria perpassado por aquilo que o autor chama de raios imitativos e de irradiações imitativas, que podem competir entre si ou se aliar, fazendo com que haja processos de hesitação ou invenção. Os raios imitativos são as ações propagadas por um indivíduo e imitadas por outros. Já as irradiações seriam uma soma desses raios de mesmo gênero. Há sempre interferência e cruzamento entre esses raios e irradiações. Latour (2002; 2010) desenvolve as relações do pensamento de Tarde com a TAR e considera que, apesar dos diferentes termos e conceitos, ambos falam sobre as mesmas coisas. "Agência mais a influência e a imitação, é exatamente o que tem sido chamado, apesar das palavras diferentes, um ator-rede" (Latour, 2002, p. 12).
Latour (2010) compara a crença às ações de estabilização e a ideia de desejo às ações de expansão das coisas. Somadas à noção de possessão, a crença e o desejo são responsáveis por relações de interpenetração e competição entre os diversos fluxos imitativos.
Quantas entidades uma enteléquia pode alcançar? Este é o desejo. Quantas podem ser estabilizadas, ordenadas, fixadas ou postas no lugar? Esta é a crença. Nenhuma providência, qualquer que seja, pode produzir qualquer harmonia sobre ou acima da interação do desejo e da crença em cada mônada, soltas pelo mundo. (Latour 2010, p. 156).
Um exemplo disso está colocado por Tarde (1901/2005) em A opinião e as massas. Ao caracterizar as multidões como forças extremamente voláteis que vão rapidamente de um estado de excitação a um estado depressivo, Tarde salienta a força agregadora de dois tipos de multidão. O primeiro tipo é descrito como multidões de amor que se desdobram em multidões de festas, de alegria que se juntam "espontaneamente, embriagada apenas pelo prazer de se reunir por se reunir" (Tarde, 1901/2005, p. 43). Assim, mantém as tradições, os hábitos e a construção de paz social, de união entre os sujeitos com as festas populares, quermesses ou reuniões, em que o "desejo de se ver, de se pôr em contato, de simpatizar, essa paz, essa união são produtos não menos preciosos do que todos os frutos da terra, do que todos os artigos da indústria" (Tarde, 1901/2005, p. 43). O segundo tipo é o das multidões de luto que compartilham uma dor comum, uma opressão, o funeral de uma figura pública ou conhecida. Essas são, para o autor, um energético estimulante para a vida social, já que faz os sujeitos sentirem juntos, tanto as alegrias quanto as tristezas e a formar grupos coesos de desejo e vontades, que podem durar apenas o momento do lamento ou celebração ou mais.
Podemos salientar o aspecto agregador dessas manifestações, que muitas vezes podem sair de controle, e também apontá-las como elementos produtores de subjetividades e emoções. Retira-se a ideia do indivíduo como o possuidor esclarecido de toda interpretação do mundo e passa-se a pensar que, muitas vezes, somos levados a fazer coisas que não vêm de nossa interioridade, mas de uma negociação, de uma troca de diversos elementos e meio.
Considerações finais
A partir do exposto, tentamos traçar uma forma alternativa de se entender e desenvolver as subjetividades e suas relações com os agrupamentos sociais, que não são dados a priori nem constituem um todo maior que as partes. Ademais, é preciso reconhecer que as coisas e os espaços são também agentes em muitas situações, retirando, assim, a ideia de que a subjetividade só se dá entre os seres humanos e sua interioridade.
Maffesoli (2016) considera que essas ideias partem da dispersão e imposição dos ideais modernos europeus para outros povos, como os orientais e sul-americanos, que sempre construíram teorias de como as coisas deveriam ser, como os povos deveriam se comportar, como se deveria pensar - descolando as teorias da realidade - e não da descrição daquilo que ocorre na prática, ou como preferimos na experiência. Dessa forma, não se procura as coisas fora do mundo, numa entidade transcendente ou em um paraíso prometido - seja ele celeste, seja terreno -, mas nas coisas, nos fluxos, nas relações. (Lapoujade, 2017; Tarde, 2011; Maffesoli, 2016).
A partir dessas abordagens, podemos retomar outras formas e modos de ser e pensar que foram considerados retrógados ou obscuros pelos filósofos das luzes. Pelbart (2016) mostra que há uma ambiguidade nos modos de existência, que se refere ora a uma maneira de viver dos humanos, ora aos modos de existir de seres inumanos. Nas palavras do autor,
Se tal ambiguidade é inevitável é porque não há como separá-los: as maneiras de viver dos humanos são indissociáveis dos planos de existência com os quais convivem (e ambos podem ser chamados de modos de existência), assim como a vida é inseparável da forma-de-vida e uma vida é inseparável de suas variações. É possível que o capitalismo, ou o biopoder, ou o eurocentrismo, ou nossa ontologia caduca apostem precisamente numa cisão entre eles, interferindo assim na possibilidade mesma de outras maneiras de viver, assim como investem na maquinação, monitoramento e rentabilização de certos planos de existência. (Pelbart, 2016, pp. 414-415, grifos do autor).
Podemos inferir, a partir disso, que os modos de existência aos quais estamos "habituados" são apenas a ponta do iceberg de um universo de possibilidades, as quais, por preconceitos criados por uma racionalidade moderna - um modo de existência como tantos outros -, negamos ou relegamos outras formas de socialidade, racionalidade, interação, conhecimento, saberes e afins.
Retornamos à posição já explicitada que a constituição moderna trata de forma assimétrica os sujeitos e os objetos. Pela perspectiva aqui apresentada, há entre esses elementos uma simetria, ou seja, nem sempre os humanos são atores ou actantes e muitas vezes os objetos, ou melhor, os não humanos, são os actantes, aqueles que produzem agências que geram em nós um fazer que não provém da interioridade ou do inconsciente humano.
Referências
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Recebido em: 22/6/2018
Aceito em: 31/3/2020