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Epistemo-somática

versão impressa ISSN 1980-2005

Epistemo-somática v.3 n.2 Belo Horizonte dez. 2006

 

ARTIGOS

 

Autoridade e transmissão da "dívida de vida": Uma função fundamental dos pais

 

Authority and transmission of “life debt”: A fundemantal function of parents

 

Autorité et transmission de la ”dette de vie”: Une fonction fondamentale des parents

 

 

Françoise Hurstel*

Unidade de Pesquisa em Psicologia: Subjetividade, Conhecimentos e Laço Social da Université Louis Pasteur – Strasbourg, France

 

 


RESUMO

Ao final de uma evolução da sociedade e da família ocidentais, que fez desaparecer o ”paterfamilias”, a autoridade dos pais viu-se enfraquecida, e transformou-se. Tornou-se democrática. Os pais perderam os pontos de referência tradicionais, e têm, cada vez mais, dificuldades para assumir essa função. Uma das conseqüências desse fato é a dificuldade de transmissão da ”dívida simbólica” (ou ”dívida de vida”), que constitui os filhos como o elo de uma corrente. O resultado consiste em sintomas de confusão dos lugares genealógicos entre pais e filhos e, para estes últimos, uma relativa indiferenciação subjetiva.

Palavras-chave: Funções parentais, Dívida simbólica, Papel familiar, Transmissão entre gerações.


ABSTRACT

At the end of an evolution of western families and societies, with the death of paterfamilias, parents’ authority grows feebler and finds itself in transformation. It has become democratic. Parents have lost traditional reference points and have growing difficulties to claim that function. One of the consequences of this fact is the difficulty in transmitting the “symbolic debt” (or “life debt”) that construes their children as links of a chain. The result consists in symptoms of confusion of genealogic places between parents and children and, for the latter, a relative subjective indifferentiation.

Keywords: Parental functions, Symbolic debt, Familiar paper, Transmission between generations.


RESUMÉ

Au terme d’une évolution de la société et de la famille occidentales, qui a fait disparaître le ”paterfamilias”, l’autorité des parents a été affaiblie et s’est transformée. Elle est devenue démocratique. Les parents ont perdu les repères traditionnels et ont de plus en plus de difficultés à assumer cette fonction. Une des conséquences est la difficulté de transmission de la ”dette symbolique” (ou ”dette de vie”), qui constitue les enfants comme maillon de la chaîne généalogique. Il en résulte des symptômes de confusion des places généalogiques entre parents et enfants et une relative indifférenciation subjective pour les enfants.

Mots-clés: Fonctions parentales, Dette symbolique, Papier familier, Transmission entre les générations.


 

 

Educadores exasperados, pais exaustos, confrontados com o terror da negociação e da justificativa permanente, sem dúvida alguma, jamais as relações com o mundo da infância foram tão complexas e tão difíceis quanto hoje. Por toda a parte denuncia-se a falta de autoridade… Os próprios pais citam essa falta como a principal fonte de suas dificuldades educativas. O que, na realidade, estaria acontecendo? Por que as funções parentais são tão difíceis de assumir (e, na verdade, quais são elas?) E o que é a autoridade? E, sobretudo, em que ela é necessária em toda educação?

Depois de apresentar três casos observados na vida corrente, tentarei responder a essas questões, explorando o que aconteceu com a autoridade, o que ela se tornou hoje e como ela pode ser exercida, a fim de que os pais transmitam a ”dívida simbólica” (Lacan) ou ”dívida de vida” (Bydlovski, Kammerer), que permite a inscrição de cada um que vem ao mundo na Lei do Interdito do incesto, que é também Lei do desejo.

O fio diretor de meu estudo é o seguinte : se os pais não podem assumir uma posição de autoridade (que não é ser ”autoritário” ou saber dizer ”não”), que é uma posição genealógica, isto é, uma posição que os diferencia da das crianças, posição que está no centro das funções parentais, eles não podem transmitir a ”dívida simbólica” ou ”dívida de vida” a seus filhos, e, assim, constituí-los como ”elo de uma cadeia”. A não transmissão da lei acarreta um corte simbólico e imaginário, incompleto em relação à mãe arcaica e aos sintomas reveladores da confusão genealógica e da não-diferenciação subjetiva…

 

1. ”Dizer ”não”, fazer-se obedecer, frustrar a criança… ainda é possível ?

Relato extraído da vida corrente, no supermercado…

”Uma família - não importa sua composição, contanto que haja uma criança e um adulto - espera a passagem pelo caixa. O querubim, vendo a prateleira de bombons, pede ao adulto, primeiro com tranqüilidade, depois cada vez com mais furor, a guloseima desejada. O adulto, firme em seus princípios (”os bombons fazem mal aos dentes”, ”tem bombom lá em casa”, ”já comprei ontem”, etc…), vai suportando a situação, diante do aumento dos gritos e da cólera da criança. Os olhares, pouco a pouco, convergem para o ponto central de interesse, e os comentários começam a vir à tona nas diversas filas de espera. O mal-estar do adulto se amplifica; ele enrubesce, abaixa o olhar, até o momento final em que surge a fórmula mágica: ”tudo bem, pegue um, mas só um”. Epílogo feliz? Suspiros de satisfação dos que cercam a cena de perto, e dos que estão mais longe, e que notam que os gritos cessaram…” (S. Lesourd, 1998).

Mas não! A frustração não é tolerável; e não é só porque os pais não têm autoridade. A visão da criança que domina aqui é a de uma criança a quem torna-se impossível dizer ”não”. Como vocês notaram, o olhar de reprovação não se dirige à criança, mas ao adulto, considerado como abusadamente frustrante. A menos que a desaprovação da vizinhança social vise ao conforto dos adultos presentes… E, afinal, não estamos nós no seio da mudança introduzida por Maio de 68 “é proibido proibir” ? Quero dizer com isso que a criança se tornou um verdadeiro alvo comercial. Impedi-lo de consumir, que pecado! Escutemos o filósofo Ph. CHOULET falar sobre o assunto: ”A exigência econômica é de tornar o desejo nômade, pronto para passar de um valor a outro. Se todo pai é simplesmente nulo diante do poder erótico e imaginário de Michael Jordan, é porque há perda do real, que se acompanha de uma função de substituição infinita de mercadorias. Um dia é ‘Adidas’, amanhã, é ‘Nike’… Os pais aqui são os assalariados, os agentes, os cúmplices e os reféns do capital. O mercado, pois, contra a família !”

Mas há mais. Aqui vai uma observação banal, que nos faz defrontar com uma dificuldade suplementar: É uma mãe (às vezes, um pai), que chega a uma creche com a criança num braço e os sapatos dela nas mãos. A educadora espera. Ela diz à criança : ”Maxime, você sabe que é preciso calçar os sapatos”. Ele o faz imediatamente. A mãe pergunta : “Como a senhora fez para que ele a obedecesse?” “Eu disse para ele calçá-los… !”

O que acontece é que o lugar da educadora não é o dos pais; ao que parece, há hoje, em todo caso, uma dificldade suplementar e específica para se fazer obedecer, quando se está na posição de pais… Notemos, no entanto, que, contrariamente ao que se acusa nos pais, estes estão preocupados em conservar sua autoridade. O que não é o caso do relato seguinte, que vai nos pôr a par daquilo que constitui o problema fundamental.

Relato de uma diretora de escola pré-primária da região parisiense:

Três anos! Essa ciança é instável, agressiva com os colegas, que ela trata às vezes de forma impulsiva, com violência. Vi os pais dizerem, num primeiro momento, ”que ele é cheio de vida, que uma criança deve se mexer” . Ora, em casa, ele faz o que quer. Num segundo momento, o pai diz à professora que em casa eles não podem mais sair. E ainda, eu vi o filho com os pais. Estava vestido como um pequeno adulto macho, cabeça raspada à moda Barthez. A mãe o chama de ”meu homenzinho”. Em casa, ele diz, “Eu quero isso, vocês têm que comprar, faça isso, faça aquilo”. E os pais obedecem. Mantêm sempre o mesmo discurso: ”Ele só tem três anos!”. Depois das férias, foram a uma consulta no hospital Robert Debré. Atualmente o menino toma RITALINA. Penso que com pais mais firmes, ele não teria necessidade disso (HOOGSTOEL,2003).

Esse relato contém todos os elementos necessários a uma reflexão sobre a autoridade dos pais: dificuldade em dizer ”não” a uma criança, a impor-lhe limites; em resumo, a frustrá-la, como vimos; mas, sobretudo, imposibilidade de manter o lugar genealógico dos pais, diferenciado do lugar da criança. À pergunta ”quem manda?”, a resposta é aqui ”a criança”. Seu lugar genealógico é idêntico ao dos adultos. Poder-se-ia até adiantar que há uma inversão dos lugares genealógicos. A criança está ”no centro da família” e não ”na periferia”, como lembra Françoise Dolto em suas entrevistas com a juíza A. RUFFO, em 1999. O laço com a mãe é o de um ”homenzinho”, isto é, marcado por um gozo que exclui o pai de sua função de terceiro edipiano. A criança, enfim, é ”fetichizada”, verdadeiro lugar de projeção do narcisismo dos pais (”His majesty the baby”, já escrevia Freud, em seu texto ”Para introduzir o narcisismo”, em 1915), talvez em razão de sua raridade?

Naturalmente esse caso é extremo (como acentua a diretora na sua palestra), mas indica bem as tendências nas quais embarcam pais e filhos. Há uma dificuldade real para os pais desse relato em assumir uma posição de autoridade e, provavelmente, uma problemática da introdução intergeracional. Perguntei-me que pais tinham tido esses pais, e o que lhes fora transmitido da lei do interdito do incesto por seus próprios pais…

Todos os pais sentem hoje dificuldade em manter uma posição de autoridade. Mas, contrariamente aos pais dessa história, como pude me dar conta por ocasião das consultas, os pais são conscientes de sua falta de autoridade. Sofrem com isso, dão-se conta de que o menino não é feliz, e está pedindo ajuda. Eles se sentem responsáveis, e não podem ser considerados culpados. Estão envolvidos num vasto movimento de mutação da autoridade, que os ultrapassa, e vai além da área educativa. O que foi que se passou?

 

2. ”Nossa herança não é precedida de nenhum testamento” (René CHAR, 1946) ou a desorientação dos pais.

Em 1956, Hanna ARENDT, filósofa do pensamento político, escreveu um artigo intitulado ”o que é a autoridade?”. Para evitar qualquer mal-entendido, teria sido mais sensato perguntar ”o que era a autoridade?”. Porque é, no meu ponto de vista, o fato de a autoridade ter desaparecido do mundo moderno que nos incita e nos obriga a levantar essa questão. E H. Arendt conclui: “Essa crise, já expressa desde o início do século, é de origem e de natureza política. Historicamente, podemos dizer que o desaparecimento da autoridade é simplesmente a fase final, embora decisiva, de uma evolução que durante séculos vinha minando principalmente as bases da religião e da tradição.”

s sociólogos da família analisaram bem as novas injunções da parentalidade e os paradoxos nos quais estão envolvidos atualmente os pais. Se o pai se tornou o ponto frágil do edifício familial e o paradigma dessa desordem (HURSTEL, 1996), está longe de ser o único a ser questionado. Vejo três obstáculos antropológicos que atualmente desorientam e desestabilizam os pais:

- como pensar a igualdade de cidadania das crianças e dos pais com a necessária diferença de gerações ?
- como pensar a questão da transmissão, que supõe essa diferença de posição entre crianças e pais, dentro do quadro antropológico de uma mudança de status das crianças, consideradas como ”pessoas”, cuja palavra deve ser respeitada, quando uma crise global da autoridade impele os pais à interdição de ”frustrar” ?
- como, enfim, pensar o lugar da criança como saída do desejo conjugal, não ”no centro da família, mas na periferia”, quando há desarticulação do conjugal e do parental com o descasamento (THERY, 1988).

Infelizes desses pais acusados! Falta pouco para se demitirem, porque não têm autoridade sobre os filhos e sobretudo sobre os adolescentes, incendiários de carros e autores de toda sorte de incivilidades! Verdadeiros bodes expiatórios de uma problemática que nos toca a todos, e que afeta todos os setores da vida política, econômica, social e familial: porém, os pais saberiam mais que os dirigentes, os educadores ou os professores… sobre o que é a autoridade? Mas o que é de fato a autoridade?

 

3. ”Honrarás pai e mãe…” (Êxodo 20-32) ou o que é a autoridade?

A autoridade não é nem poder, nem persuasão.

“Auctor” bem próximo de “authenticus”, nos latinos, é aquele que tomava a iniciativa de um ato e, mais precisamente, em direito privado, aquele que transmitia um direito do qual ele era o fiador. Quer a palavra “Aucthoritas” seja tomada no sentido jurídico, quer no seu sentido amplo de “dignidade”, ela significa, primeiramente, a qualidade em virtude da qual um magistrado, um escritor, uma testemunha, um padre é digno de crédito (CHENU,1976).

Que é crédito? Trata-se daquele que procura um reconhecimento oficial, um lugar ocupado. Ele vê a palavra deste, suas opiniões atuais com respeito, isto é, ele dá importância à autoridade dessa palavra.

Desta forma, o que a autoridade implica não é o conteúdo. E o que conta primeiramente não é o enunciado. A autoridade procede do lugar do enunciador, do lugar de onde ele fala. “Isso é dito porque isso deve ser dito, é o que deve ser ouvido”, “dito no lugar adequato” (LEGENDRE, 1993). Essa deveria ser a definição da autoridade dos pais. Qual é, então, o lugar que lhes confere ”autoridade”, qual é esse lugar de onde todo pai fala ?

O lugar que confere autoridade aos pais é o lugar genealógico; e o único lugar de onde os pais podem se fazer ouvir é esse lugar particular, o de ”passante”, no sentido de que o que conta são menos as pessoas do que as funções: lugar que é um ”ofício”, um ”cargo”, uma ”obrigação”, e que eles assumem porque foram ”filhos”. ”O pai é o que está encarregado de instituir o limite em relação a cada criança”, segundo Legendre. Os pais aparecem, assim, como os mediadores de uma transmissão da qual eles foram, enquanto filhos, os beneficiários. Eles transmitem o que receberam de seus próprios pais, e que lhes permitiu, por sua vez, assumir a função de pais.

Disso tudo, tiro três ensinamentos:

- Não se torna pai automaticamente. Para poder assumir esse cargo, é preciso ter recebido de seus próprios pais ”um sentido” que chamarei de ”filiação”, sentido que se transmite de pai a filho.
- A função do pai põe em jogo três gerações; o sentido da filiação se transmite de pais a filhos, que se tornam, por sua vez, pais, e o transmitem a seus próprios filhos.
- Ser pai cria, então, uma dívida. E é em nome dessa dívida, a ser reembolsada, que se faz a transmissão. Mas não se reembolsa essa dívida a seus pais. Ela é obrigatória em relação a seus próprios filhos, já que o eixo é vetorizado: é isso que significa ”honrar seus pais”, transmitir a dívida de geração a geração. A autoridade dos pais está ligada à sua capacidade de ocupar e de assumir seu lugar genealógico. Ela consiste em palavras e atos proferidos e realizados a partir deste lugar. Mas o que transmitimos a nossos filhos ?

4. Transmitir a ”dívida de vida”,

ou De que é feita essa dívida, que a Bíblia designa assim: os pais beberam o suco de uva verde e os dentes dos filhos sofreram ”desgastes”?

Chamada de ”dívida simbólica” por J. LACAN (1995), ”dívida de vida” por M. BYDLOVSKI (1997) e P. KAMMERER (2000), ela implica que, dando-se a uma criança a vida bilológica, os que a deram se engajaram a lhe oferecer solicitude e limitações e proibições suficientes para que ela se humanize. A dívida de vida se abre ao que os psicanalistas chamam de ”segundo nascimento”. Primeiro nascimento: biológico, a criança é uma massa de carne e pulsões desorganizadas. Segundo nascimento: a criança é inscrita como sujeito no mundo simbólico humano da linguagem e da cultura. De um nascimento a outro: a imposição de uma lei, o interdito do incesto.

A transmissão dos pais se faz então em dois pólos: o do amor, que quer o bem-estar da criança, e o dos interditos, que a introduz no sentido do dever. Mas transmitir essas duas leis não é suficiente. Antes disso, é à ”lei do desejo” (JULIEN,2000), vertente positiva da proibição do incesto, que os pais introduzem a criança. É esta última que constitui o centro da dívida de vida.

Não desenvolverei aqui os registros do bem-estar e do interdito. Esses dois registros têm a ver antes de tudo com as funções educativas e com uma posição cidadã dos pais (HURSTEL, 2001). Só a dívida simbólica tem relação com a transmissão genealógica.

Quando se diz que a criança é uma ”pessoa”, ”um sujeito completo”, isso significa que ela é um ser em devir, isto é, um ser que tem direito à palavra, tem direito de desabrochar. De certa maneira, ele é para ele mesmo seu próprio fim. É essa ”pessoa” que tem direito ao bem-estar e aos interditos. Mas ela é também um recém-vindo ao mundo que existia antes dela, e que continuará a existir depois dele. Ela é elo de uma cadeia transgeracional, lugar da transmissão. É essa transmissão que lhe permitirá ”deixar pai e mãe”, e levar seu desejo para outro lugar, fora da família. Aquém do registro do bem-estar, que faz ”crianças-reis”, e do registro superegóico do dever, que, às vezes, faz crianças-vítimas (ELIACHEFF, 1997), é a lei do desejo que funda o recém-vindo na sua radicalidade de ”elo de uma cadeia”.

A lei do desejo é a transmissão, em uma de suas vertentes, de um interdito fundamental, primeiramente editado pelas sociedades: o interdito do incesto. Só a sociedade impede cada família de se fechar sobre si mesma, e de se constituir como um mundo fechado pela via do incesto. O que se transmite, e se constitui como a dívida de vida, se apresenta primeiramente de forma negativa: é a transmissão do que rege as sociedades humanas, organiza os parentescos, e insititui um limite entre o interdito e o autorizado. Mas se a sociedade edita essa lei, essa transmissão, só a família pode realizá-la, a antropologia não pode senão enunciá-la (JULIEN, 2000). Essa lei contém uma vertente positiva: ela se abre ao desejo. O interdito que permite ”deixar pai e mãe”, se abre a um desejo fora da família, fora de sua prórpia casa ou da casa do semelhante. É um desejo que funda a conjugalidade, e funda em seguida a parentalidade. Esta última encontra seu sentido no desejo de um homem por uma mulher, de uma mulher por um homem, que deixaram a família de origem para fundar uma outra. É nessa conjunção do desejo entre um homem e uma mulher, e o de pôr no mundo um filho, que se implanta, em cada um de nós, a questão lancinante de nossa origem. A procura da origem não é demanda de um saber objetivo, ela é demanda do que significou para esses outros, que são os pais, o fato de nos ter feito nascer. Ouvir, dizer uma palavra sobre o desejo que presidiu nosso nascimento. Ouvir uma palavra sobre quem nos legou a vida. É essa existência vital que pude ouvir em certas consultas de pais adotivos... esses pais que vieram a uma consulta porque o filho adolescente tinha se tornado ”como que um louco”. No entanto, eles tinham dito tudo sobre o país de origem do rapaz, sobre a mãe de origem, da qual tinham guardado cuidadosamente as pegadas e até a foto. Eles tinham, porém, respondido a todas as questões que lhes foram feitas, salvo uma… que o adolescente nunca lhes havia feito : ”por que vocês me adotaram ?”

Por que os pais que, além disso, tinham uma criança biológica, por que tinham eles ido buscá-lo num país longínquo? Nem uma palavra sobre o desejo que tinha presidido a adoção, nem uma palavra, pois, sobre o que lhe havia permitido ter pais, viver e crescer; esse desejo estava ligado a um grave segredo de família, como foi dito por ocasião de uma das consultas… Logo, tudo isso era absurdo para ele, e, na adolescência, esse tempo de passagem, de derrocada dos pontos de referência e de exploração daquilo que faz viver…, ele morria por causa disso.

É nisso que parentalidade e conjugalidade estão ligadas e não desligadas. E é porque conjugalidade e parentalidade obedecem hoje a lógicas diferentes e opostas, a da indissolubilidade (a filiação) e a da livre escolha (a conjugalidade), porque há uma disjunção entre elas, que, às vezes, problemáticas intransponíveis descortinam-se para os pais; isso afeta sua posição de autoridade, e aumenta-lhes o sentimento de incerteza.

 

5. Como se transmite a dívida de vida?

Transmitir a dívida de vida é transmitir aos filhos as leis que regulam o parentesco e o lugar de cada um. É permitir-lhes responder às questões fundamentais da vida: quem sou eu?, de onde venho, o que é ser um rapaz, uma moça, o que é ser pequeno, depois crescer, para onde vou? O que M.C e E. ORTIGUES (1987) chamam de ”a doação familial” ilustra concretamente essa transmissão do desejo, que é também, para cada filho, a possibilidade de crescer. É uma ”quota” de traços organizados, de referências identificatórias, em função das quais se organizam não somente os laços de um ”pertencer” comum, mas também as posições pessoais de cada um. É o que permite ou não a uma criança diferençar-se, segundo as duas diferenças abscissa e coordenada de toda identidade, a diferença dos sexos e a das gerações. É o que FREUD chamava de ”complexo de Édipo”, e J. LACAN de ”mito individual do neurótico”.

F. DOLTO (1984) analisa as modalidades concretas dessa transmissão da vida, quando estuda ”na imagem inconsciente do corpo” os três interditos fundamentais, constitutivos do interdito do incesto, a partir dos quais uma criança se constrói em ligação com seus pais, e que se relacionam às zonas erógenas do corpo e às pulsões (orais, anais e genitais). Interdito do ”canibalismo”: deixar o corpo-a-corpo voluptuoso com a mãe, não devorá-la; interdito do ”assassinato”: não se destruir, não destruir o outro; e interdito do incesto: renúncia a um gozo ligado à mãe como objeto libidinal. Esses três interditos, que pontuam o devir da criança em sua relação com os outros e com ele mesmo, produzem limitações (”castrações simbolígenas”), que lhe permitem abrir-se a modos específicos e criativos de ser desejante. O interdito do canibalismo se abre para a palavra e para a linguagem; o do assassinato e da destruição se abre para um espaço lúdico e industrioso na relação com os outros; o do incesto se abre para o campo da cultura e para a assunção de objetos libidinosos ”fora da família”.

Pierre KAMMERER (2000) resume com uma bela fórmula o que é a função dos pais e a dívida de vida que eles transmitem: ”O que os pais ensinam aos filhos é a desejar segundo as leis humanas”.

Se a autoridade parental é igualmente partilhada pelos dois pais no plano do direito e das responsabilidades sociais e familiais, as funções de mãe e as de pai devem ser diferençadas em relação às transmissões da dívida de vida. Pois, se as duas funções introduzem à lei e ao desejo, à humanização e à socialização, é sob modos dissimétricos que elas operam. E, nesse caso, a dissimetria não é contingente, ela é necessária. Para que haja corte, imposição da lei e abertura ao desejo, uma função chamada ”de terceiros” é indispensável, respondendo a uma relação inicial sem limitação. É o que se chama de ”função paterna”. Mas, hoje, nos avatares das transformações familiais e dos novos status parentais, essa função não é mais obrigatoriamente exercida pelo pai. O que a psicanálise nomeia de ”função da mãe” é essa relação inicial, caracterizada por uma fusão com o outro. Esse(s) primeiro(s) humano(s) que se responsabiliza(m) por essa criança, responde(m) às suas necessidades e a seus apelos, fazendo-se todo para ela… mas somente por algum tempo. É o que D. WINNICOTT denomina de ”loucura materna”; depois, de ”mãe suficientemente boa”. A função materna como a função paterna podem estar desconectadas hoje do biológico (na adoção, por exemplo), ou pelas formas de família (monoparental recomposta ou homoparental), mas em toda família pode transmitir-se a dívida parental. O importante para o devir de uma criança é que lhe sejam transmitidos, sob os dois modos específicos descritos acima (modo da função materna e modo da função paterna), os interditos fundamentais e a lei do desejo, a fim de que a criança possa humanizar-se, subjetivar-se e socializar-se.

 

Conclusão

Essa tarefa, impossível de ser enfrentada pelos pais, sozinhos, no mundo contemporâneo, tornou-se uma realidade. Eles próprios pedem para sair dessa solidão que enfrentam com os filhos. Por isso mesmo, todos os substitutos e suplentes das funções parentais, e particularmente da função de ”terceiro”, tão difícil de ser assumida pelos pais, são bem-vindos: especialistas de famílias, educadores, professores, ”mediadores” e, por que não, irmãos mais velhos, esses substitutos, ao mesmo tempo familiais e institucionalizados, de status ainda ambíguo (VISIER e ZOIA, 2001). Mas com uma condição imprescindível: que eles não se substituam aos pais ou, o que é ainda pior, que eles não os desvalorizem através de palavras ou condutas. Que eles respeitem, pois, a origem e a filiação dos filhos, dos adolescentes de que têm a responsabilidade. E mantenham-se em seu lugar, que não é o lugar genealógico. Lembrem-se que, seja qual for a falta que um pai tenha cometido aos olhos da sociedade, é com esse pai que a criança se constrói, e que todo desprezo em relação a um pai ou a uma mãe é desprezado pela própria criança. Os filhos querem que seus pais sejam respeitados pelo ”terceiro” social, mesmo que eles nem sempre os respeitem. Isso significa claramente que só aos pais (sejam eles os pais legais ou não, biológicos ou não, mas sempre adotivos) cabe essa autoridade, que inscreve cada criança, no começo da vida, na dívida.

 

 

Referências

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CHENU, M. D. La théologie au 12ème siècle. Paris: Vrin, 1976.        [ Links ]

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ORTIGUES, MC. et E. Comment se décide une psychothérapie d’enfants ?. Paris: Denoël, 1987.        [ Links ]

VISIER, I. et ZOIA, G. ”Les grands frères des banlieues. L’invention d’une autorité”. In: Enfance et psy. Paris: Erès, 2001.        [ Links ]

 

 

Tradução: Consuelo Fortes Santiago
Revisão: Maria Dolores Lustosa Cabral

Recebido em: 04/12/2006
Aprovado em: 15/12/2006

 

 

*Professora na Université Louis Pasteur • Psicanalista • Membro da Unidade de Pesquisa em Psicologia: Subjetividade, Conhecimentos e Laço Social (UPR/SCLS – EA 3071) Université Louis Pasteur – Strasbourg, France • Endereço eletrônico: f.hurstel@free.fr

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