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Revista Psicologia Organizações e Trabalho

versão On-line ISSN 1984-6657

Rev. Psicol., Organ. Trab. v.7 n.1 Florianópolis jun. 2007

 

ARTIGOS

 

Noções de "trabalho feminino" no chão de fábrica de uma empresa líder no setor de eletrodomésticos

 

Notions of woman work of factory floor in an electric housing apparels plant

 

 

Juliana de CarloI; Yára Lúcia Mazziotti BulgacovII

IUniversidade Federal do Paraná (jujapa77@hotmail.com)
IIDoutora em Educação. UnicenP- Centro Universitário Positivo (ybulgacov@terra.com.br)

 

 


RESUMO

Este trabalho investiga noções de "feminino" nas narrativas de atores organizacionais responsáveis pela atribuição de funções aos trabalhadores de chão de fábrica em empresa líder no setor de eletrodomésticos. Coerente com entendimento da dimensão social e cultural das noções de feminino e masculino, e a partir de revisão bibliográfica no campo das organizações e da psicologia social, constróise referencial teórico de análise. Apesquisa configura-se como estudo de caso de natureza descritivo-qualitativa. Tomando-se como dados empíricos narrativas dos responsáveis pela contratação dos trabalhadores, pode-se afirmar que as noções de gênero atribuídas às trabalhadoras apontam para características tradicionalmente associadas às mulheres, estabelecendo-se um padrão de feminilidade para o sexo feminino nessa fábrica. Percebe-se que o que muda é o valor de funcionalidade dado a esse conjunto de características. Os mesmos traços que historicamente justificaram o lugar das mulheres fora da fábrica, justificam, atualmente, seu lugar dentro da produção. Um lugar, entretanto, que continua a guardar as marcas da discriminação e segregação, no que diz respeito tanto ao tipo de ocupação como às oportunidades e ao status que lhes é conferido.

Palavras-chave: gênero; mulher; chão de fábrica; divisão sexual do trabalho.


ABSTRACT

This work investigates the notions of "feminine" and "masculine" as well as the setting of functions to women and men that surrounds the narratives of organizational actors of electro domestic organization. The viewpoint that the concepts of what is "being man" and "being woman" reflect and reinforce socio historical, cultural and ideological dimensions, that surrounds society. The methodology is set as a case research with a descriptive qualitative nature. The empirical material is based on the narratives of the responsible for lightering women. It was possible to notice the emergence of market changes that asked for significant adaptations in the work organization and the organization's management, which reflected in chances in the justifications for the setting of functions to women along the period. That the gender notions that are related to the female workers shows the traditionally prescribed attributes that would set the feminity standard to women. That the set of female attributes didn't change. Other hand, we noticed that what does change are the justifications to the place that women have to fill in. The attempts to keep women in a smaller number and in lower status/salary positions are being wells succeeded in this company 'shop floor.

Keywords:: gender; women; shop floor; sexual division of labor.


 

 

1. Introdução

Homens e mulheres, como espécie biológica, são definidos em termos de participação cultural; são preparados pela herança cultural e biológica para usar a linguagem e outras ferramentas culturais e para aprender uns com os outros. Cada geração continua a revisar e a adaptar sua herança cultural e biológica em face das circunstâncias em que vive. O fato de ser humano implica possibilidades e limites provenientes de longas histórias de práticas humanas (ROGOFF, 2005).Entendendo gênero como a construção sociocultural do que é "ser mulher" e "ser homem" (STREY, 1998), descrevem-se, neste artigo, resultados de uma pesquisa que investiga as noções de trabalho feminino nas narrativas de responsáveis pela prática de contratação de mulheres no mundo da produção. Procura-se responder até que ponto o discurso organizacional que nega a discriminação e segregação das mulheres se sustenta, ou até que ponto posições de autores como Bradley (1989) se confirmam. Afirma o autor que, apesar de serem cada vez mais celebradas a ascensão das mulheres no mundo do trabalho remunerado e sua participação em quase todos os tipos de atividade, um rápido olhar para dentro das organizações pode mostrar um cenário onde ainda reinam a segregação e a discriminação das pessoas devido ao gênero. No escritório, argumenta, encontramos a secretária e o presidente; na fábrica, o homem que monta e a mulher que embala. Em geral, o homem dá as ordens e a mulher trabalha (BRADLEY, 1989).

Há entendimento de que as noções de gênero servem para atribuir características, direitos e responsabilidades diferentes para homens e mulheres. Billing e Alvesson (1994) apontam que todos os aspectos da cultura organizacional, ou a maioria deles, podem ser vistos como generificados; ou seja, aspectos como práticas, políticas, regras organizacionais, entre outros, refletem e reforçam pressupostos, idéias e expectativas assimétricas em relação ao gênero. Até que ponto pode-se ignorar o fato de que a definição de contratação, ascensão nas carreiras, qualificações, promoções, etc., é extremamente diferente para homens e mulheres?

Nesse contexto, essa pesquisa teve como objetivo analisar as noções de gênero que permeiam as narrativas e as decisões de atores organizacionais envolvidos direta e indiretamente no processo histórico de contração e designação de função das mulheres no chão de fábrica de uma industria do setor de eletrodoméstico.Para tanto, fez-se um levantamento de dados empíricos para a interlocução com o corpo teórico construído. Elegeu-se uma empresa líder do setor de eletrodomésticos, situada na cidade de Curitiba (PR). O corpo teórico explora concepções de gênero presentes na literatura organizacional e na psicologia social do trabalho e das organizações; em seguida, introduz a perspectiva histórica da mulher no mercado de trabalho. Após apresentação da metodologia, segue-se análise e discussão dos resultados, apresentados a partir de três temas, apoiados tanto na literatura quanto nas narrativas. O primeiro caracteriza o processo histórico de entrada de mulheres no chão de fábrica; o segundo, as noções de feminino e masculino; e o terceiro discorre sobre a divisão sexual do trabalho, seguido pelas considerações finais e heurísticas da pesquisa.

 

2. Base teórica

2.1. O conceito de gênero

Muitos autores expõem a apropriação conceitual e cultural sobre distinções fundadas em sexo no mundo do trabalho.Esse tópico apresenta autores representativos. no sentido de esboçar o campo teórico.

Billing e Alvesson (1994) demonstram como as categorias feminino e masculino são definidas no contexto de uma cultura e não devido a necessidades biológicas, e são criadas a partir de complexa combinação de forças sociais, cognitivas e emocionais. Assim, não são categorias fixas, mas estão constantemente mudando, estando cultural e historicamente na dependência do significado que lhes é dado; assim, trabalhos são divididos entre leves e pesados, ocupados por mulheres e homens, respectivamente. Bradley (1989) desvenda o pressuposto de que habilidades, competências, força e outras qualidades necessárias para o desenvolvimento de trabalhos estão amarradas à masculinidade e à feminilidade; mas as identidades de gênero, como trabalhadores, são construídas na organização, generificadas no local de trabalho e reforçadas em treinamentos e ocasiões sociais. Feminilidade e masculinidade são ligadas, de maneira estereotipada, a certas capacidades, como destreza manual e força física. O gênero torna-se, então, critério discriminatório para a contratação, e não aquilo que os empregados potencialmente podem realizar com suas mãos e cabeças. Scott (1990) é um autor que chama a atenção para o fato de que, na década de 60, as feministas muito se dedicaram ao estudo e ao debate dessa temática. A literatura acadêmico-científica deu início ao uso de termos como sexo e diferenças sexuais, apontando que gênero é maneira de indicar construções sociais, ou seja, a criação social das idéias sobre os papeis, normas e comportamentos adequados aos homens e às mulheres, e esse é um fato bem apontado e desenvolvido por Amâncio( 1996). Diferenciações de gênero não existem em si mesmas, pois são criadas pelas interações dos indivíduos e pela manipulação que eles fazem dos símbolos. Strey (1998) é outra autora que demonstra que esses símbolos foram eminentemente manipulados pelos homens, que acabaram por definir seu próprio papel social e o da mulher. Os papéis são definidos para que os homens detenham o poder, e as mulheres sejam subordinadas a eles, hierarquicamente.

Machado (1992), que, no fim dos anos 80, aponta a primazia dos estudos de gênero sobre os estudos da mulher e dos papéis sexuais, afirma que o conceito de gênero supera o de papel sexual, por sua demarcação mais frontal contra o determinismo biológico, e que o conceito de gênero, por ser relacional, supera a idéia das esferas separadas para um e outro sexo. A distinção na linguagem fazia parte da luta para demonstrar que muitos dos atributos tidos como "naturais" nas mulheres ou nos homens são, na verdade, características socialmente construídas. Sorj (1992)defende a idéia de que o equipamento biológico sexual não dá conta da explicação dos comportamentos diferenciados, masculino e feminino, observados na sociedade. Diferentemente do sexo, o gênero é produto social, aprendido, representado, institucionalizado e transmitido ao longo das gerações. Outro aspecto levantado e reforçado por Louro (2000) é que gênero não significa o mesmo que sexo, uma vez que, enquanto o sexo se refere à identidade biológica de uma pessoa, o gênero está ligado à sua construção social como sujeito masculino ou feminino. Assim, não se trataria mais de focalizar as mulheres como objeto de estudo, mas os processos de formação da feminilidade e da masculinidade, ou os sujeitos femininos e masculinos.

Louro (2000) destaca que não apenas sociedades diferentes têm diferentes concepções de homem e de mulher, mas também, no interior de uma mesma sociedade podem coexistir concepções diversificadas, conforme a classe, a religião, a raça, a idade, etc. Não significa - afirma - que é preciso pensar que o gênero, assim como a classe ou a raça, é mais do que uma identidade aprendida, ou uma aprendizagem de papéis, sendo constituído e instituído pelas múltiplas instâncias e relações sociais, pelas instituições, símbolos, formas de organização social, discursos e doutrinas. Fica claro que diversas instâncias sociais são instituídas pelos gêneros e também os instituem, sendo elas mesmas generificadas. Para Saffioti (1992), gênero é uma certa maneira de organizar normas culturais passadas e futuras, um modo de a pessoa situar-se por meio dessas normas, um estilo ativo de viver o corpo no mundo. È preciso estar atento, continua, ao processo de interpretação da realidade cultural, carregada de sanções, tabus e prescrições. Essa adequação ao padrão social de gênero é comum às pessoas, pois as acompanha desde o nascimento e continua como processo interminável ao longo da vida adulta. Para Lorber (1994), gênero é como uma invenção humana, da mesma forma que linguagem, parentesco, religião e tecnologia, que organizam a vida social humana dentro de padrões culturais. Entende o gênero como instituição social, processo de criação de status distintos, na definição de direitos e responsabilidades. Assim, o gênero é um dos principais blocos constituintes das estruturas sociais, alicerçado nesses status desiguais. Como processo, o gênero cria as diferenças sociais e define "mulher" e "homem".

Há toda uma construção social sobre a questão da divisão sexual no trabalho que precisa ser evidenciada. Sabe-se que o agir adequado ao homem e à mulher - que tem lugar nos papeis desempenhados nas interações diárias - constitui-se e modifica-se conforme necessário. Korvajärv (1998) aponta que, nas interações sociais durante toda a vida, os indivíduos aprendem o que é esperado, vêem o que é esperado, agem e reagem de maneiras esperadas e, simultaneamente, constroem e mantêm a ordem do gênero. Em quase todos os encontros, o ser humano produz gênero, agindo da maneira que aprendeu como apropriada para seu status de gênero, ou resistindo e se rebelando contra essas normas. Diferenças institucionais não são apenas tomadas e mantidas por ambos os gêneros, mas também são questionadas por homens e mulheres que visam a uma ordem diferente. Resistência e rebelião têm alterado as normas de gênero, mas ainda não foram capazes de derrubar seus status.

Há, no dia a dia, todo um processo de construção e reconstrução, significação e ressignificação, que é preciso evidenciar e perceber quando se pretendem mudanças em direção a relações sociais mais equilibradas no que tange ao gênero. As interações diárias generificadas constroem gênero dentro da família, do processo de trabalho, e em outras organizações e instituições que reforçam as expectativas de gênero para os indivíduos. Louro (1995) corrobora essa idéia, ao afirmar que o gênero é mais do que identidade aprendida, é uma categoria imersa nessas instituições sociais, admitindo-se que a justiça, a escola, a igreja, etc. são generificadas, expressando as relações sociais de gênero. Fica claro que os sujeitos não somente se fazem homens ou mulheres num processo continuado, dinâmico - portanto não dado e acabado no momento do nascimento -, mas também se constroem por meio de práticas sociais masculinizantes e feminilizantes, em consonância com as diversas concepções de cada sociedade.

Observa-se que a construção do gênero, como de todas as outras instituições, nunca está concluída, mas está sendo constantemente reconstruída em formas que nem sempre são as mesmas (Johansson ,1998). A construção de gênero é paradoxal e ambígua, tanto do ponto de vista prático quanto do ponto de vista teórico. Diferenças de gênero ao mesmo tempo são mantidas e estão em constante mudança. De um lado, todos sabem o que significa ser homem e ser mulher; por outro lado, não se sabe exatamente o que é gênero, pois ele representa coisas diferentes para pessoas diferentes. Nem se sabe o quesignificará ser homem ou mulher no futuro.

Rasmussen (2001) afirma que o gênero deve ser entendido como elemento integrante dos processos, produzido e construído na vida organizacional por meio de divisões generificadas de trabalho, comportamentos, imagens, interações, interpretações e construções. Apoiados na visão pós-estruturalista, Coleman e Rippin (2000) definem gênero como processo social difuso e complexo, representado em toda a extensão das políticas, práticas e comportamentos organizacionais. Processos organizacionais são construídos pelo gênero e constroem o gênero como diferenciação e desigualdade, em que o homem e o que é considerado masculino são mais valorizados do que a mulher e o que é visto como feminino.

2.2. Perspectiva histórica da participação da mulher no mercado de trabalho

Estudos apresentados por Bradley (1989) permitem perceber que as indústrias inglesas atuantes no final do século XIX mostraram, desde sua formação, trabalhos desenhados de maneira que fossem adequados às mulheres que vinham de fora da produção. A alocação de trabalhos para homens e mulheres espelhava os estereótipos do "trabalho de homem" e "de mulher" que haviam sido construídos nas indústrias mais antigas. Fábricas se tornaram ambientes estranhos e segregados, homens e mulheres trabalhavam em espaços diferentes, executando tarefas diferentes. As conclusões apontam que, apesar das variações ocupacionais, regionais e nacionais, em todos elas foi detectada a divisão sexual do trabalho nas sociedades pré-industriais, geralmente ligada ao sistema de trabalho doméstico. Isso persistiu com a entrada do período industrial. Estudos mostraram que o impacto do capitalismo foi de aumentar a segregação e destruir ou marginalizar as habilidades tradicionais das mulheres, aproveitar a visão social de trabalho feminino barato e quebrar o controle dos trabalhadores masculinos. Mesmo sendo o capitalismo dinâmico, com a constante entrada de novas tecnologias, novos padrões de segregação e tipificação por sexo são introduzidos, alinhando-se às ideologias de masculinidade e feminilidade contemporâneas.

No início do século XX, esse padrão de segregação já estava bastante arraigado, como mostrou um levantamento do governo inglês em 1906. Pesquisadores apontaram que, nas manufaturas, havia poucas evidências de homens e mulheres que executavam os mesmos trabalhos. Mesmo quando isso ocorria, havia diferenças em termos de qualidade e quantidade. Concluíram que mulheres realizavam trabalhos considerados inferiores, geralmente recusados pelos homens, e recebiam menos.

No Brasil, Pena (1981) aponta que o reconhecimento da cidadania feminina constituiu sempre um processo mais longo que o da masculina. O direito das mulheres ao voto somente foi concedido após 1930. Na família, a submissão feminina diante do elemento masculino esteve consolidada no Código Civil desde 1916. E seu caminho ao trabalho coletivo foi sempre obstruído, fosse por sua dependência familiar, fosse pelas várias peças legais que restringiam seu acesso ao mercado de trabalho. As liberdades burguesas não a atingiam, e o Estado lhe foi sempre autoritário. A mulher brasileira, desde o Império, esteve subjugada, na sociedade, por meio da legalidade de sua submissão à família, e seu acesso ao mundo público se deu por meio do marido. Afirma que a experiência da industrialização, no período entre 1850 e 1950, constituiu um momento extremamente fértil, tanto para a reflexão teórica sobre o trabalho feminino, quanto para o exame de sua dinâmica concreta. O período foi marcado por três movimentos principais do trabalho da mulher nas fábricas: sua incorporação maciça, seguida de seu redirecionamento para atividades ligadas à casa, importantes para a reprodução familiar; sua utilização nos ramos industriais produtores de bens de consumo não duráveis, isto é, nos ramos que perderiam dinamismo com a nova rationale do desenvolvimento após 1950; e sua concentração nas atividades classificadas como desqualificadas e mais mal remuneradas na hierarquia fabril.

Ao analisar as indústrias do período de 1920 a 1950, a autora afirma que, nos setores onde as mulheres são encontradas, elas concentram-se em certos tipos de tarefa, em certas seções, e não em outras. Pode-se afirmar que o sexo constituía um atributo quase definitivo para o preenchimento de certas ocupações no interior do sistema fabril. Mulheres eram excluídas do treinamento industrial, concentrando-se quase exclusivamente no desempenho de tarefas de rotina e consideradas não qualificadas (no sentido de que prescindiam de treinamento) pela gerência administrativa.

Assim, os dirigentes das fábricas alocavam as mulheres em tarefas predominantemente leves, menos rápidas e talvez mais monótonas que as dos homens, pois as mulheres teriam grande capacidade para trabalhos de minúcias e de detalhes, utilizando a delicadeza emotiva que seria exclusivamente sua. Neves (2000) reforça essa concepção, ao afirmar que, mesmo diante da crescente participação da mulher no mercado de trabalho, pode-se detectar, nas diferentes análises, a segmentação por gênero no mercado de trabalho, com a concentração feminina em determinados guetos ocupacionais e em postos de trabalho mais instáveis e de pior remuneração.

Adiante, na história brasileira, Neves (2000) utiliza dados das pesquisas de Bruschini e Lombardi (1998), que demonstram crescimento da participação feminina no mercado de trabalho, desde a década de 70, chamando a atenção para a diversificação e a intensificação dessa participação, sobretudo no espaço urbano. De acordo com as autoras, não só a busca da complementação salarial, em face da deterioração dos salários reais dos trabalhadores, mas também expectativas de maior consumo redefiniram o conceito de necessidade econômica, levando tanto as mulheres pobres como as de classe média a ingressar no mercado de trabalho.

Transformações na década de 70, crescente urbanização, a entrada acelerada de indústrias multinacionais na época do chamado "milagre brasileiro" e o próprio crescimento do parque industrial exigiram demanda maior de mão-de-obra feminina em vários setores, principalmente no têxtil, no metal-mecânico e no eletrônico, cujas tarefas exigiam destreza, minúcia e algumas habilidades, características consideradas adaptadas à mão-de-obra não qualificada (NEVES, 1995, apud STEIN, 2000).

Bruschini e Lombardi (1998), em 1990, demonstram que o número de trabalhadoras brasileiras atingiu a cifra de mais de 22,9 milhões, 18 milhões das quais concentradas na zona urbana, revelando constante ampliação do número das mulheres no conjunto da força de trabalho brasileira. Chamam a atenção para intensidade e constância do crescimento da força de trabalho feminina no Brasil nos últimos anos: "Com um acréscimo de cerca de 12 milhões e ampliação da ordem de 63%, as mulheres desempenharam papel muito mais relevante do que os homens no crescimento da população economicamente ativa, nos dez anos examinados, de 1985 a 1995" (BRUSCHINI, 1994, apud NEVES, 2000, p.173).

Para Montagner (2000), a acelerada transformação da situação da mulher na sociedade brasileira decorre, em grande parte, de sua crescente contribuição financeira na manutenção do núcleo familiar, em especial nas famílias mais pobres. Demonstra a crescente homogeneidade das taxas de participação das mulheres nas diferentes situações familiares estudadas, indicando a importância da contribuição feminina na determinação da renda familiar.

 

3. O campo de pesquisa: a empresa "alfa"

A empresa "Alfa" iniciou atividades no Brasil em 1926 e, até 1995, não contava com a atuação de mulheres no chão de fábrica. Havia mulheres que trabalhavam na área de manufatura, mas não em postos diretamente ligados às linhas de montagem. Mulheres que participavam do setor de manufatura desempenhavam serviços de apoio, como limpeza e manutenção do ambiente. Não trabalhavam na realização dos produtos fabricados pela empresa. O processo de contratação de mulheres para o trabalho nas linhas de montagem teve início por iniciativa conjunta dos supervisores da manufatura e do departamento de recursos humanos. Em 1996, a empresa consolidou planos de posicionamento na América Latina, com a aquisição do controle acionário da segunda maior indústria de produtos da linha branca no Brasil, situada na cidade de Curitiba (PR). A partir de 1999, inicia um processo de reestruturação, em que buscou a atualização dos seus produtos, com base em extensas pesquisas de mercado, e promoveu profundas mudanças nas formas de gestão de suas linhas de produção. Uma dessas mudanças foi o início da contratação de mulheres para trabalharem nas linhas de montagem do chão de fábrica da empresa, tema do presente trabalho.

Essa entrada em massa de mulheres na manufatura remete-se à época em que a antiga empresa familiar foi adquirida por uma multinacional de origem européia. Nessa fase, visava-se à atualização dos produtos, tanto em termos visuais quanto tecnológicos. Iniciou-se, a seguir, um processo de reestruturação, em que a empresa buscou a atualização dos seus produtos, com base em extensas pesquisas de mercado, e promoveu três profundas mudanças nas formas de gestão de suas linhas de produção: implantação do sistema de rodízio de atividades (estações de trabalho); exigência de escolaridade mínima de 2.º grau para o cargo de operador de manufatura; e contratação de mulheres para trabalharem nas linhas de montagem do chão de fábrica da empresa.

Após cinco anos do início das contratações, o setor de manufatura conta com 121 mulheres dentre seus 2.913 funcionários. Nenhuma delas ocupa cargos de supervisão ou gerência. Dentre os níveis operacionais, distribuídos de I a VI, a grande maioria das mulheres é operadora de nível I ou II; sete são operadoras de manufatura III; quatro são operadoras de manufatura IV; e três são operadoras de manufatura V.

Foram entrevistados todos os supervisores do turno da manhã, representativos dos cargos operacionais sob análise, excluindo-se o do turno noturno e o do setor de almoxarifado, que respondiam, respectivamente pelas linhas de montagem e áreas técnicas. No total, foram entrevistados a Coordenadora do Departamento de Recursos Humanos e sete supervisores do turno diurno, que respondiam pelas linhas de montagem e áreas técnicas, a saber:

Supervisor 1 de linha de montagem de pintura e funilaria;

Supervisor 2 de linha de montagem de freezers verticais e horizontais;

Supervisor 3 de linha de montagem de refrigeradores de 1 porta da fabrica 1;

Supervisor 4 de linha de montagem de refrigeradores de 2 portas;

Ssupervisor 5 de linha de montagem de refrigeradores de 1 porta da fábrica 2;

Supervisor 6 de área de manutenção;

Supervisor 7 da área de componentes/injeção de plásticos de termoformagem.

Sinteticamente, os cargos analisados foram:

Operador de montagem e funilaria (responsável pela identificação, conexão, colagem, pintura, montagem e supervisão das peças e pelo controle de qualidade);

operador de freezer I (responsável pela identificação, montagem, colagem, pintura e controle de qualidade do refrigerador);

operador de refrigerador de 1 porta (responsável pela identificação, montagem, colagem, pintura e controle de qualidade do refrigerador);

operador de refrigerador de 2 portas (responsável pela identificação, montagem, colagem, pintura e controle de qualidade do refrigerador de duas portas);

Operador de manutenção (responsável pelo controle de peças no estoque garantindo a reposição para os operadores da fábrica);

operador da termoformagem (responsável pela aquisição, inspeção e distribuição dos componentes de injeção de plástico).

 

4. Metodologia

Segundo Yin (2001), o estudo de caso é escolhido quando o pesquisador examina acontecimentos contemporâneos e não se podem manipularcomportamentos relevantes. A presente pesquisa caracteriza-se como estudo de caso, com unidade de análise individual e nível de análise, organizacional. Os procedimentos empregados foram predominantemente de natureza descritivo-qualitativa. A metodologia foi qualitativa, pois a principal preocupação do estudo está ligada à compreensão da teia das relações sociais e culturais que se estabelecem no interior da organização (GODOY, 1995). Essa abordagem, segundo Richardson (1989), justifica-se por ser uma forma adequada de entender a natureza de um fenômeno social, sendo caracterizada por não empregar instrumental estatístico como base do processo de análise de um problema. Como as noções de gênero não são normalmente expressasabertamente pelos indivíduos nas organizações, a metodologia qualitativa mostra-se necessária, por oferecer maior nível de profundidade e a compreensão das particularidades do comportamento dos indivíduos.

Foi a observação não participante uma das formas de coleta de dados. Segundo Richardson (1989), o observador atua apenas como espectador atento do grupo observado, sem tomar parte das atividades por ele desenvolvidas. Essa observação direta deveu-se à importância da análise das condições de produção das narrativas privilegiadas na pesquisa, ou seja, na busca das condições de alteração da organização do trabalho. Por meio dessas observações diretas no local de trabalho, peculiaridades do processo de produção puderam ser analisadas, tais como organização, fluxo, rotinas, etc., e se pôde verificar o tipo de atividade que as mulheres realizavam no local pesquisado.

A outra ferramenta de coleta na pesquisa foi a entrevista semi-estruturada, na qual o entrevistador, durante a observação, estabelecia um relacionamento com o entrevistado, para que ele pudesse se sentir seguro e à vontade para expressar opiniões, crenças e atitudes. As entrevistas buscaram apreender o que motiva e justifica a contratação das mulheres e a sua restrição em certas atividades na fábrica. Caracterizaram-se como uma conversa iniciada a partir do tema "processo de entrada das mulheres no chão de fábrica da empresa em 1999", e seguiram livremente o roteiro previamente elaborado. O roteiro de entrevista foi balizador da conversa entre pesquisador e entrevistado.

Entendendo organização como uma rede de significações tecidas no contexto social, político, cultural e histórico da sociedade, tomamos como base para a interpretação dos dados o referencial teórico construído. Buscou-se responder até que ponto as narrativas dos atores organizacionais refletiam padrões culturais estabelecidos social, histórica e politicamente, conforme apontavam os autores selecionados, ou até que ponto fugiam a essa interpretação. Procurou-se identificar contradições entre a narrativa e a prática, pressupondo, tal como construído teoricamente, que, na maioria das vezes, expressões de gênero são veladas, sendo nosso intuito dar-lhes visibilidade.

Entrevistas foram realizadas em torno do objetivo de analisar a contratação e a designação de atividades para as mulheres, no nível operacional da empresa estudada. Determinou-se que a população seria composta de todos os supervisores da área de manufatura. Diante da população de supervisores, definiu-se que a amostra seria do tipo não probabilística, por conveniência, definida de forma intencional, ou seja, o próprio pesquisador selecionaria os elementos a que tem acesso, de acordo com a disponibilidade do entrevistado e da sua acessibilidade. Foram entrevistados a coordenadora do departamento de recursos humanos e todos os supervisores do turno da manhã, excluindo-se o supervisor do setor de almoxarifado, por não participar diretamente do processo de produção dentro da fábrica.

 

5. Análise e discussão dos dados

A partir da análise das narrativas, pôde-se perceber a presença de três grandes temas ligados à questão de gênero: processo histórico de entrada de mulheres no chão da fábrica, noções de feminino e masculino, e divisão sexual do trabalho. Os temas são apresentados separadamente, apoiados pela literatura e dados empíricos levantados, elucidados por trechos das narrativa dos respondentes.

5.1. O processo histórico de entrada de mulheres nochão de fábrica

É importante reafirmar que o chão de fábrica da empresa estudada não contava com a atuação das mulheres até meados de 1995. Havia mulheres que trabalhavam na área de manufatura, mas não em postos diretamente ligados às linhas de montagem. Mulheres que participavam do setor de manufatura, realizando serviços de apoio, como limpeza e manutenção do ambiente. Não trabalhavam na realização dos produtos fabricados pela empresa. O processo de contratação de mulheres para o trabalho nas linhas de montagem teve início por iniciativa conjunta dos supervisores da manufatura e do departamento de recursos humanos.

As mulheres mostraram-se como estrangeiras em local feito por homens e para homens. A entrada desse corpo tão diferente provocou a necessidade de adaptações físicas, para que o próprio ambiente se ajustasse à condição considerada especial de mulher. Belle (apud CHANLAT, 1994) verificou, em sua pesquisa em organizações francesas, que tudo se passa como se as mulheres entrassem em organizações estruturadas, em princípio, em um modo de idealização masculinizado. Sendo assim, os entrevistados apontam que várias foram as adequações físicas realizadas ao serem mesclados trabalhadores de ambos os sexos. Foram feitas adaptações de layout, como a construção de vestiários e banheiros femininos, tendo sido providenciados uniformes diferenciados para os funcionários.

A entrada em massa de mulheres na manufatura remete-se à época em que a antiga empresa familiar foi adquirida por uma multinacional de origem européia. Nessa fase, visava-se à atualização dos produtos, tanto em termos visuais quanto tecnológicos. Iniciou-se, a seguir, um processo de reestruturação, em que a empresa buscou a atualização dos seus produtos, com base em extensas pesquisas de mercado, e promoveu três profundas mudanças nas formas de gestão de suas linhas de produção: implantação do sistema de rodízio de atividades (estações de trabalho); exigência de escolaridade mínima de 2.º grau para o cargo de operador de manufatura; e contratação de mulheres para trabalharem nas linhas de montagem do chão de fábrica da empresa.

Alega-se, anteriormente a essa transformação, que as linhas de produção demandavam muita força muscular e braçal dos operadores de manufatura, pois os processos de produção não contavam com certos equipamentos modernos e tecnologicamente avançados, os quais foram sendo introduzidos na nova gestão.

Não houve apenas mudanças estruturais na fábrica da empresa, mas também mudanças na forma de gestão. A cultura que era vigente na empresa também é invocada por alguns entrevistados, na tentativa de mostrar alguns temores relacionados à presença de mulheres no ambiente fabril. Esse fato comprova o caráter de construção social do conceito de gênero apontado por Strey (1998): dependendo da cultura (valores, crenças, rituais, etc.) que permeia uma sociedade, a visão de "ser homem" e de "ser mulher" será peculiarmente definida e propagada.

Houve um período em que se achava melhor não ter mulheres no chão de fábrica. A cultura da época não combinava muito bem a ausência da mulher, principalmente de licenças maternidade excessivas e tal... (Supervisor 05)

Pode-se inferir que a idéia principal era de que essas mudanças na organização do trabalho e a presença de equipamentos que facilitavam as operações nas linhas de montagem proporcionaram ambiente adequado à presença de mulheres. Mais importante é constatação de que, diante das características diferentes que os produtos passavam a ter, verificou-se, para algumas atividades e processos, a necessidade de trabalho mais delicado e menos braçal, ou seja, perfeito para ser desenvolvido por mãos femininas.

...com a entrada das mulheres, tentaria deixar um pouco mais detalhado o processo. Que elas tinham um pouco mais de sensibilidade ou a gente imaginava que elas tinham um pouco mais de sensibilidade para esse tipo de trabalho. Para algumas atividades mais detalhistas, para uma limpeza melhor do produto, um acabamento melhor do produto. (Supervisor 03)

Nessa nova fase, dentro do setor de manufatura da empresa, nota-se a historicidade e a temporalidade do conceito de gênero, descritas por Machado (1992), isto é, a constituição simbólica do gênero se faz em contexto social determinado no tempo e no espaço. As mulheres, até então vistas como ineptas, despreparadas e fisicamente incapazes de desenvolver atividades em uma linha de montagem, passam a ser vistas como mão-de-obra diferenciada e necessária aos novos padrões de produção.

Começamos primeiro numa linha, depois foi expandindo para outra. Foram vistos os pontos que davam certo, porque quando você começa com o processo de contratação tem muito acerto, mas também tem muito erro. Para algumas funções específicas dentro da área de manufatura, as características da mulher acabam sendo muito mais adequadas. Por isso que a gente começou a contratar mulheres nesse período. (Coordenadora de RH)

5.2. O gênero e as noções de feminino e masculino no âmbito social e no trabalho

Na empresa analisada, para aquele que contrata, as mulheres trariam algumas características peculiares a seu gênero para a manufatura, as quais poderiam ser bastante utilizadas em alguns pontos da linha de produção. As mulheres teriam propensão natural a ser mais detalhistas, minuciosas, pacientes, e essencialmente delicadas. Os homens não desempenhariam as mesmas funções de maneira adequada, devido às características intrinsecamente masculinas.

Na parte de limpeza e montagem, você conseguerepetibilidade muito mais com mulher e você consegue mais qualidade. Homem não valoriza muito o que faz. Amulher valoriza aquilo que faz, o resultado do trabalho. Essa é a diferença básica, e a mulher é muito mais criteriosa. (Supervisor 06)

A maioria dos supervisores apontou que, muitas vezes, as vantagens em contar com mulheres no chão de fábrica estão atreladas à sua capacidade de tornar o ambiente mais agradável, pelos seus tratos femininos, até mesmo como forma de disciplinar os homens e forçá-los a serem mais dedicados e organizados, a exemplo do que as mães geralmente fazem com os filhos em casa. Embora esse papel destoe do âmbito profissional, serve habilmente às necessidades da empresa de manter os funcionários "na linha".

É óbvio que sempre traz um benefício [contratar mulheres]. Acho que melhora o convívio até entre as pessoas, melhora o ambiente, com mais respeito, com uma convivência melhor. (Supervisor 05)

Um dos supervisores deixa claro que as mulheres devem ser selecionadas de acordo com um padrão que se toma como adequado aos moldes da fábrica. Exige-se, mesmo, um tipo físico feminino que possa passar despercebido no ambiente fabril. Nesse sentido, não apenas as qualificações profissionais contam no momento da contratação, evidenciando uma gama de outros quesitos, que seriam analisados e poderiam barrar a entrada de mulheres aptas ao trabalho na empresa.

...mas se você pega uma pessoa na faixa dos 30, casada, com filho, estável, ela dá mais resultado que um homem. Então tem um perfil ideal para fábrica. Bem entrevistadas, seria uma mão-de-obra muito boa, segura, tranqüila. Não colocaria meninas de corpinho lindo, bonitinhas, roupa justinha, montando peças. Isso incomodaria, prejudicaria. (Supervisor 06)

Wallace (1999) aponta que critérios se respaldam nas noções estereotipadas de feminilidade, revelando-se discriminatórios para as mulheres que não exibam as características requeridas. Bradley (1989) aponta que a idéia-chave é a do "ambiente de trabalho generificado" e da "cultura do trabalho". Ambos preservam visões convencionais de adequação de comportamento masculino e feminino dentro e fora do trabalho, perpetuando o ponto de vista de que o homem é agressivo e predador, e a mulher é sedutora e flertadora.

Segundo as narrativas, o envolvimento com colegas de trabalho seria provocado pelas mulheres, algumas porque são demasiadamente extrovertidas, outras por serem provocadoras, e outras ainda por não resistirem aos apelos da ala masculina. De uma forma ou de outra, é apontado como dever das mulheres um posicionamento firme em relação aos homens no ambiente de trabalho. Amanutenção dessa postura em nada condiz com o ambiente descontraído, agradável e cordial descrito por todos os entrevistados, em que homens e mulheres se mesclariam naturalmente e partilhariam de todos os ambientes da fábrica sem maiores constrangimentos.

Tem o envolvimento. Porque os homens ficam dando em cima delas. Então tem as que são mais vulneráveis. Daí acaba dando uma bagunça na linha. Tem as que são sérias. Que andam melhor do que homem. (Supervisor03)

...porque às vezes as mulheres se envolvem... com o pessoal da produção, aí tem aquelas que está namorando um, daqui a pouco está namorando outro, enfim, isso cria conflito nas linhas. (Coordenadora de RH)

Metade dos supervisores apontou que, hoje, até mesmo questõesnormalmente tratadas como exclusivamente femininas e prejudiciais ao bom desenvolvimento da carreira profissional das mulheres não constituem impedimentos para a contratação delas, na opinião da maioria dos entrevistados. Eles argumentam que a cultura da empresa e o nível de escolaridade dos funcionários não mais condizem com atitudes desfavoráveis em relação às mulheres.

Contudo, observou-se que a gravidez ainda é sinônimo de alguns transtornos na linha de produção. Dentre os diversos problemas apontados, dois foram mais citados e são aqui destacados. Segundo entrevistados, durante a gestação, as mulheres necessitam ser poupadas, o que gera a necessidade de relocações dentro das linhas de produção, havendo ainda a incapacidade da mulher de participar de todas as atividades seguindo um rodízio normal. Aausência da mulher durante a licença-maternidade mostra-se como fonte ainda maior de transtornos, pelo que se depreende das narrativas. O trecho de entrevista apresentado a seguir indica que são inevitáveis as substituições, as quais, segundo se afirmou, alterariam a rotina da linha de produção e a dinâmica dos operadores.

Inibe um pouco o crescimento feminino na fábrica, é o fato de que elas têm tempo de licença-maternidade muito longo. Não que isso seja errado, pois primeiro é um direito, e segundo é humanamente necessário. Mas quebra um esquema dentro do processo produtivo. Gera certo desconforto no processo produtivo que tem necessidade da presença 100% do tempo. (Supervisor 04)

Os fatos comprovam que, muitas vezes, essas alegações são infundadas, pois se reconhece que muitas das operadoras que passaram por gravidez dentro da empresa mostraram-se assíduas no trabalho e totalmente dispostas a cumprir seus deveres após seu período de licença-maternidade.

Hoje estou com duas funcionárias que estão grávidas. As saídas que elas dão são só para exames. Se tirar o fato dos exames de rotina que caem no horário de trabalho, que daí não tem jeito, o restante é normal. (Supervisor 05)

Demonstra Bradley (1989) que são as atitudes sociais sobre o "lugar da mulher", em vez das realidades do local de trabalho, que agem como empecilho à sua participação econômica. Para a autora, "homens e mulheres recorrem ao erro de aceitarem antigas definições de papéis para os gêneros em casa e no trabalho" (BRADLEY, 1989, p.49).

5.3. Gênero e divisão sexual do trabalho

Bradley (1989) denuncia que, apesar das leis criadas leis que punem a discriminação no trabalho, ainda prevalecem segregação e generificação do trabalho assalariado, ou seja, homens e mulheres são alocados em diferentes tipos de trabalho, e as ocupações são prescritas segundo o sexo de seu ocupante. A maior diferença entre homens e mulheres, no mundo do trabalho, é o serviço que executam, ou seja, dentro da maioria das ocupações, eles são empregados em diferentes níveis e com diferentes tarefas. Essa constatação foi evidenciada na empresa pesquisada, onde existem mulheres em posições específicas, desempenhando atividades muito bem demarcadas:

Nas outras áreas daí na linha assim... colocação de prateleiras, parte de limpeza, acabamento, embalagem... sem problema nenhum. (Supervisor 07)

Todos entrevistados alegam a existência de atividades não realizáveis pelas mulheres em geral, citando sempre, como maior motivo, sua menor força física. Esse é pressuposto básico ao tratarem da questão feminina na fábrica.

Então, quando tem atividades mais pesadas, ele [supervisor] não vai colocar sexo feminino (...) tem algumas atividades que precisam mais de força física, e daí para a mulher já é um pouco mais complicado. (Coordenadora de RH)

Rodrigues (1992) observou que a delicadeza e a menor força física da mulher são usadas como justificativas para seu posicionamento em certas atividades. Stein (2000) percebeu que, no trabalho de montagem do setor eletroeletrônico, a argumentação das chefias, na tentativa de justificar as limitações das tarefas designadas às mulheres, recai sempre sobre a questão da menor força física das mulheres. Às mulheres relegam-se as atividades mais simples e leves, em postos de trabalho menos qualificados, geralmente nas bancadas e linhas de montagem.

Pela observação direta do processo produtivo na empresa analisada, pôde-se notar que atualmente as mulheres também desempenham funções que em nada podem ser consideradas leves e delicadas. Algumas carregam peso (laterais de freezers, feitas de chapa de aço, por exemplo), fazem solda em algumas linhas de montagem e empurram carrinhos carregados de chapas de aço.

[no início estavam centralizadas em acabamento] E só que acabaram, além disso, indo para atividades mais brutas também. De montagem, de trabalhos mais pesados, para também dar uma equalizada em relação aos homens. Não ficar só na parte boa do processo.(Supervisor 03)

Analisando falas das mulheres na sua pesquisa em indústria do setor eletroeletrônico, Stein (2000) também percebeu que, quando necessário, elas realizam tarefas consideradas pesadas e insalubres.

Além do fato de as mulheres estarem sempre provando que são capazes de desempenhar atividades até então não direcionadas a elas nessa fábrica, os trechos de narrativas apresentados abaixo mostram que a quase totalidade dos postos de trabalho na linha de montagem não requer força física.

Porque não existe nenhuma carga física, nenhum trabalho que estresse o corpo físico hoje, não existe nenhum trabalho na fábrica. Todos eles são trabalhos que levantar um peso em posição confortável, movimentos sempre... aqueles sobre rodas. É bem facilitado o trabalho. (Supervisor 06)

Nas outras montagens, eu diria que em torno de uns 98% das montagens tanto o homem quanto as mulheres podem fazer. (Supervisor 02)

Bradley (1989) aponta que diferenças sexuais são invocadas para se justificar o que são diferenças de gênero no status social. A suposta força física superior do homem racionaliza a divisão do trabalho, mesmo quando o maquinário faz todo o trabalho físico. Essa força superior também é socialmente construída, e penetra na estratificação por gênero no trabalho e na sociedade em geral.

A questão de formação técnica adequada é também invocada na tentativa de justificar o reduzido número de mulheres na manufatura. Seria difícil encontrar, no mercado de trabalho, mulheres com formação técnica ou com experiência de trabalho em ambiente fabril. Esse pressuposto mostra-se tão forte que, em certos casos, nem mesmo é cogitada a busca por mulheres qualificadas.

Agora, o fato de ter menos mulheres que homens é até uma questão de mercado, de ter mais homens disponíveis do que mulheres. Não é nem mais uma questão, agora, de preferência ou não. (Supervisor 05)

Claro que tem algumas atividades mais específicas. Por exemplo, na manutenção nós não temos nenhuma mulher. É um serviço que exige qualificação técnica. Elas dificilmente fazem elétrica, mecânica, essas coisas. Então tem áreas que as mulheres não trabalham. (Coordenadora de RH)

Efeito disso é a completa exclusão de mulheres da área mais ambicionada pelos funcionários da fábrica da empresa. É a área que exige maior nível de escolaridade e preparação técnica específica, que oferece salários muito maiores que os das linhas de montagem. Sendo assim, Bradley (1989) indica que

o gênero é uma característica social usada pelos empregadores para criar mercados de trabalho segregados. Segundo a autora, o que acontece é que o status do gênero masculino é uma vantagem para os homens como trabalhadores, porque deles é esperado que ganhem mais dinheiro após se casarem e, quando são pais, os empregadores tendem a vê-los como melhores trabalhadores que as mulheres. Mulheres trabalhadoras são percebidas como talhadas apenas para salários suplementares, tanto as solteiras quanto as casadas, porque não são consideradas trabalhadoras legítimas, mas, primeiramente, esposas e mães. Esse fato se consolida como eterna desvantagem das mulheres no mercado de trabalho: os padrões estruturados de oportunidades e de acesso em muito cancelam a maioria dos gostos dos empregadores ou das motivações, ambições, desejos pessoais e necessidades materiais dos trabalhadores individualmente.

 

6. Considerações finais

Noções discriminatórias de gênero são tão sutis no mundo do trabalho e fora dele, que a maioria das pessoas se surpreenderia se lhes fosse dito que algumas de suas atitudes discriminam as mulheres. A não consciência desse fato vem da naturalidade com que diferenças de gênero, socialmente construídas, são encaradas, o que não contribui para a mudança do status quo.

No cenário brasileiro, os números mostram que as mulheres estão mudando os conceitos sobre o que podem e o que não podem fazer, dentro e, principalmente, fora dos lares. A população economicamente ativa de mulheres passou de 35,5%, em 1990, para 40,7% em 1998. Enquanto isso, a população economicamente ativa masculina tem diminuído, passando de 64,5%, em 1990, para 59,3% em 1998 (BRUSCHINI,1998). Porém ainda estamos engatinhando em termos de igualdade, uma vez que os salários das mulheres continuam menores, e o tipo de trabalho que a maioria desenvolve é precário.

A proposta inicial deste estudo é dar visibilidade às noções de gênero na organização do trabalho, evidenciando sua dimensão de construção social. Diante da análise dos dados, pode-se afirmar que as noções de gênero, relacionadas às trabalhadoras, apontam características tradicionalmente atribuídas às mulheres, com o que se estabeleceria o padrão de feminilidade para o sexo feminino. As mesmas características socialmente construídas e atribuídas historicamente às mulheres são reforçadas e reproduzidas pelas narrativas dos atores organizacionais entrevistados. Suas narrativas reforçam os atributos femininos encontrados na literatura e apontados como pertencentes à natureza das mulheres.

As narrativas em relação ao processo de entrada de mulheres no chão de fábrica indicaram que avanços tecnológicos nos processos de produção introduziram atividades mais leves nas linhas de montagem da empresa, e os produtos mais modernos trouxeram componentes mais delicados e pequenos na sua fabricação. Assim, as características tradicionalmente associadas às mulheres passaram a ser evidenciadas e vistas como necessárias dentro da fábrica, justificando sua presença. Tais características, que correspondem ao padrão de feminilidade, eram anteriormente tomadas para justificar que as mulheres deveriam ficar no "seu lugar": no lar, cuidando dos filhos, do marido e da casa.

Indo ao encontro do que pesquisas recentes e dados históricos apontam, as narrativas dos entrevistados sugeriram que as mulheres são essencialmente delicadas, minuciosas, detalhistas, pacientes, caprichosas e altamente comprometidas com o trabalho. Essas características foram enaltecidas e direcionadas para o desempenho de atividades mais detalhistas, dado que proporcionariam melhor acabamento ao produto.

Contudo, os atributos tradicionalmente femininos geram contrapontos negativos, pois se considera que as mulheres se cansam muito facilmente, são fracas, lentas e frágeis. Além disso, as mulheres teriam tendência a não seguir carreiras técnicas ou buscar diplomas em cursos de engenharia, pois essas áreas são tradicionalmente vistas como masculinas. Essas são as duas principais justificativas dos contratantes, ao serem indagados sobre o reduzido número de operadoras na fábrica.

Constatou-se, porém, que as mulheres não desempenham apenas tarefas leves e simples, pois existem aquelas que carregam peso durante todo o expediente de trabalho, e outras que alcançaram os melhores índices no trabalho de solda. Os homens, por sua vez, também não desempenham somente trabalhos "sujos" e pesados, como seria de se esperar. Da mesma forma, pode-se afirmar que as narrativas em relação à referida falta de qualificação técnica das mulheres não são pautadas em realidades concretas do mercado de trabalho. Verificou-se que, ao surgir a necessidade de captação de funcionários com cursos técnicos ou formação superior específicos, as mulheres não chegam a ser cogitadas para tal vaga. Parte-se do pressuposto de que seria muito mais difícil para a mulher preencher tais requisitos do que um homem, pois eles são raros no mercado.

A dimensão de construção social das noções de gênero é evidenciada por essas contradições encontradas nas narrativas dos atores organizacionais sobre o tipo de trabalho realizado pelas mulheres, e entre essas narrativas e a realidade da fábrica. Sorj (1992) nos alerta para o caráter de "verdade absoluta" do que deveria ser visto como um produto social aprendido, representado, institucionalizado e transmitido ao longo das gerações.

Observou-se que a atribuição de características femininas não se alterou nesse tempo histórico, ou seja, essas ainda são as características tradicionalmente entendidas como padrões de feminilidade. Por outro lado, percebeu-se que o que mudou foram as justificativas sobre o lugar que as mulheres devem ocupar. Mulheres entraram em território masculino, porém, afirma Amâncio (2002), com uma pressão normativa de se conformarem à especificidade do modo de ser feminino e ao modo de ser dominante masculino, especificidade que serve de controle social para mudança que poderia resultar do acesso das mulheres a esses contextos.

Sendo o gênero um princípio de organização social que estrutura as relações de poder entre os sexos (NOGUEIRA, 2001), os dados empíricos confirmaram que as tentativas de se manter mulheres em menor número e em posições de menor status e remuneração têm sido bem-sucedidas. É notório que a retórica da igualdade tenta, inocuamente, encobrir um grande fosso de noções de gênero discriminatórias em relação às mulheres, o qual serve habilmente para a manutenção do status quo de uma fábrica masculina! Evidências indicaram que ainda há um longo caminho para ser percorrido até o dia em que se considere o cargo e não o sexo da pessoa que vai ocupá-lo.

 

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