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Trivium - Estudos Interdisciplinares

versão On-line ISSN 2176-4891

Trivium vol.3 no.2 Rio de Janeiro jul./dez. 2011

 

ARTES

 

Berggasse 19 - um poeta na casa de Freud

 

 

João José de Melo Franco

Poeta, editor, cineasta e publicitário, autor de O Mar de Ulisses, 2006 e Diários de amor perdido, 2007 (poesia); Carmina Burana e Pranto por Ignacio Sánchez Mejias, de Garcia Lorca, 2009 (tradução)e Pequeno Dicionário Poético e outros termos literários, 2010

 

 

Berggasse seria, em português, rua do Promontório, ou, o seu contrário, rua do Baixio. Depende, é claro, do ponto de vista de que a olhamos, se do plano onde se situa a Igreja dos Votos (VotivKirche), um baixio, ou se do ponto de vista de quem está diante do número 19 da Berggasse, um promontório, a Viena alta, as torres dos antigos edifícios, como uma Acrópole ateniense, diante da qual deixamos visível nossa pequena estatura: Berggasse 19, a casa onde viveu e trabalhou, por 47 anos, Sigmund Freud, o Pai da Psicanálise.

 

 

Para um poeta que percorreu alguns campus universitários e dedicou parte de seu tempo a perscrutar a própria alma, às vezes por esforço próprio, outras, com a ajuda de psicanalistas, o nome de Freud assombra, mesmo para quem bebeu bem mais em Carl Gustav Jung do que na obra do grande neurologista de Viena. Seja como for, estamos ali, onde hoje se ergue, acima do passeio, um enorme letreiro com o nome daquele que notabilizou o endereço, escrito em branco sobre vermelho, de baixo para cima: FREUD. E, assim, assombrados, nos lançamos porta adentro e subimos o primeiro lance de escadas até chegar às portas dos apartamentos 3 e 4, hoje transformados no Sigmund Freud Museum.

Se lembrarmos que Freud abandonou o pequeno edifício da Berggasse 19, em 1938, já sob ameaça nazista, na Áustria anexada à Alemanha, teremos de nos esforçar para divisar algo que nos remeta ao tempo em que ele ali vivia, uma vez que o local foi restaurado somente em 1985, quase 50 anos após seu exílio em Londres, onde viria a falecer em 1939. E, apesar das recepcionistas pouco amistosas, da mal-arrumada lojinha de souvenirs freudianos, aos poucos, o piso de tábuas corridas, as janelas com delicados ornamentos, o ambiente se transforma, e tomamos consciência de que estamos na casa do homem que, contra tudo e todos, mudou para sempre o modo como nos percebemos seres humanos e, que, finalmente, tirou do calabouço da História, e da Ciência, a palavra "loucura", lançando sobre ela as primeiras luzes do entendimento da alma humana.

Hoje, no Sigmund Freud Museum, pouco encontramos do que foi aquela casa nos tempos de seu ilustre morador: um chapéu, uma boina, um guarda-chuva, a maleta do médico, um baú, parte de seu consultório e gabinete, uma cristaleira com pequena parte de sua famosa coleção de estátuas e objetos antigos; tudo doado ao museu por sua filha Ana Freud, ou, como ele a chamava, "minha Ana Antígona". No mais, primeiras edições de seus escritos, documentos e fotos, muitas fotos. A elas nos agarramos, com o olhar atento e terno. E, olhando-as assim, por trás das imagens do Pai da Psicanálise, vemos surgir o outro pai, com sua esposa, com seus filhos e filhas, com seus netos, com seus amigos, e vemos transparecer nesses rostos os caminhos em que a mente do grande homem trafegou, a pequena e a grande família, a família pessoal e a outra, a da raça humana. Evidentemente, não podemos, ali, ver Édipo e seu pai, Sófocles, mas o poeta assim mesmo os vê, libertos de suas trágicas existências, como almas por trás do rosto, inquisidor e pleno, desse homem, que, ao que tudo indica, lutava, permanentemente, em busca de paz e lucidez: por si só, uma busca a que só gigantes, como ele, podem ousar.

 

 

 

 

Mas, é pelo olhar do poeta, em busca de alguma similitude, de algum olhar efusivo, de algum gesto de estranheza, de algum porvir que tenha escapado ao olhar do viajante, que nos colocamos diante do homem e da luta por se manter são, no tempo. E, por um instante, penso ver em seu rosto traços das inúmeras cirurgias a que se submeteu, tentando controlar um câncer facial, que até o fim da vida o atormentou... Pensamos ouvir sua voz, algum gemido de dor, o silêncio das amarguras, a inquietude do homem diante do insondável, a ânsia da descoberta, a mente atirada sobre a alma, o esforço heroico entre o sonho e a cura... como as ruínas de uma Acrópole dos desejos humanos... remontada até o estertor da insuficiência... E é aí que percebemos, então, quão poucos homens podem, construindo sobre si mesmos, construir para todos. Percebemos quanto nos foi dado e o quanto nos modificamos, em pouco mais de um século, desde a publicação de Estudos sobre a histeria. E é assim, que ali, dá-nos também uma estranha compulsão para o riso. Não o riso do escárnio e da indiferença, mas o riso do encontro e da aquiescência do que é, verdadeiramente, humano, e sentimos vontade de abrir as janelas de nossa alma diante de tamanha ousadia e liberdade de espírito... E o fazemos, em silêncio, em reverência, em agradecimento.

De mãos dadas com minha companheira, dessa e de outras viagens, com a alma pacificada e semelhada, voltamos ao passeio da Berggasse 19, e seguimos, mais livres e confiantes, rumo à VotivKirche, onde ir depositar votos por aqueles que amamos.