Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Analytica: Revista de Psicanálise
versão On-line ISSN 2316-5197
Analytica vol.7 no.13 São João del Rei jul./dez. 2018
ARTIGOS
Crueldade e álibi na técnica psicanalítica: uma leitura da carta de Derrida aos psicanalistas
Cruelty and alibi in the psychoanalytical technique. A reading of Derrida's letter to the psychoanalysts
Cruauté et alibi dans la technique psychanalytique. Une lecture de la lettre de Derrida aux psychanalystes
La crueldad y la coartada en la técnica psicoanalítica. Una lecture de la carta de Derrida a los psicoanalistas
Gabriel Inticher Binkowski
Psicanalista. Mestre em Clínica Transcultural. Doutor em Psicologia pela Université Paris 13 Sorbonne Paris Cité. Pesquisador Pós-Doutorando no PPG de Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo (USP). Ligado ao Laboratório de Psicanálise, Sociedade e Política (USP) e à Unité de Recherche em Psychogenèse et Psychopathologie. Membro do Comitê de Redação da Revue L'autre - Cliniques, Cultures et Sociétés
RESUMO
Mais de 15 anos após a conferência de Jacques Derrida durante os Estados Gerais da Psicanálise em Paris, um retorno ao texto deixado pelo filósofo amigo da Psicanálise nos impõe uma leitura da crueldade como um fenômeno político e psíquico elementar da subjetividade. Pensada como uma pulsão, a noção de crueldade proposta por Derrida faz referência às proposições de Artonin Artaud de um "teatro da crueldade", no qual a cena não mais se encontra submissa ao texto ou à vontade de um deus-autor, não sendo apenas uma representação de uma cena escrita. Derrida apela aos psicanalistas por um trabalho sem álibi sobre essa noção de crueldade e suas implicações no que diz respeito aos próprios efeitos da pulsão de morte na Psicanálise. Aí nos deparamos também com um convite a pensar a noção de técnica psicanalítica, que nasce a partir de um trabalho sobre uma cena sempre outra, inconsciente, de outra ordem, uma cena que assinala uma outra economia do desejo. A técnica deve, assim, ser concebida como uma ferramenta sem álibi para que contornemos as resistências que nos impedem precisamente de encarar as consequências da presença da pulsão de morte na vida psíquica.
Palavras-chave: Pulsão de morte. Crueldade. Álibi. Psicanálise. Técnica.
ABSTRACT
More than fifteen years after the conference of Jacques Derrida during the General States of Psychoanalysis in Paris, a return to the text left by the philosopher friend of psychoanalysis imposes a reading of cruelty as an elementary political and psychic phenomenon of subjectivity. Derrida's notion of cruelty, referred to as a drive, refers to Artonin Artaud's propositions of a "theater of cruelty", in which the scene is no longer submissive to the text or to the will of an author-god, to a representation of a written scene. Derrida appeals to psychoanalysts for work without an alibi on this notion of cruelty and its implications for the very effects of the death drive in psychoanalysis. Here we are also invited to think of the notion of psychoanalytic technique. It implies a work on another scene, unconscious, of another order, a scene that marks another economy of desire. The technique must therefore be conceived as a tool without alibi so that we can bypass the resistances that prevent us from precisely considering the implication of the death drive in psychic life.
Keywords: Death drive. Cruelty. Alibi. Psychoanalysis. Technique.
RÉSUMÉ
Plus de quinze après la conférence de Jacques Derrida dans les États Généraux de la Psychanalyse en 2000, un retour au texte laissé par ce philosophe ami de la psychanalyse nous impose une lecture de la cruauté en tant que phénomène politique et psychique élémentaire de la subjectivité. Pensée comme pulsion, la notion de cruauté telle que pensée par Derrida fait référence aux proposition d'Antonin Artaud d'un «théâtre de la cruauté», où la scène théâtrale ne serait plus soumise à la volonté d'un dieu-auteur et n'est plus juste une représentation de la scène écrite. Derrida lance un appel aux psychanalystes pour un travail sans alibi sur la cruauté e ses implications dans les effets de la pulsion de mort sur la psychanalyse elle-même. Nous y retrouvons une invitation pour penser la notion de technique psychanalytique. Celle-ci naît d'un travail sur une scène toujours autre, inconsciente, d'un autre ordre, scène qui signale une autre économie du désir. La technique doit ainsi être conçu comme outil sans alibi pour faire un détour des résistances qui nous empêchent de faire face aux conséquences de la présence de la pulsion de mort dans la vie psychique.
Mots-clés: Pulsion de mort. Cruauté. Alibi. Psychanalyse. Technique.
RESUMEN
Más de quince años después de la conferencia de Jacques Derrida durante los Estados Generales del Psicoanálisis en París, un retorno al texto dada por el psicoanálisis amigo filósofo nos impone una lectura crueldad como un fenómeno político y psicológico básico de la subjetividad. Diseñado como una pulsión, la noción de crueldad propuesta por Derrida se refiere a proposiciones de Artonin Artaud de un "teatro de la crueldad", en el que la escena ya no es sumisa al texto o la voluntad de un dios-autor, no és mas sólo una representación de una escena escrita. Derrida llama psicoanalistas para un trabajo sin coartada en esta noción de crueldad y sus implicaciones con respecto a los propios efectos de la pulsión de muerte en psicoanálisis. Aquí nos encontramos también con una invitación a pensar la noción de la técnica psicoanalítica. Esto nace de una obra en otra escena, inconsciente, de lo contrario, una escena que marca otro economía del deseo. La técnica por lo tanto debe ser concebido como una herramienta de ninguna coartada para contornemos resistencias que nos impiden precisamente para hacer frente a las consecuencias de la pulsión de muerte en la vida psíquica.
Palabras clave: Pulsión de muerte. La crueldad. La coartada. La técnica del psicoanálisis.
Preâmbulo
Foi no ano 2000. Os Estados Gerais da Psicanálise ocorreram de 8 a 11 de julho no grande anfiteatro da Sorbonne, em Paris, no coração de uma cidade marcada por tantas passagens, vedetes e disputas envolvendo um século de história da Psicanálise. Como bem o atestam inúmeras testemunhas e os anais desse evento, mais de 1000 psicanalistas vindos de 34 países deixaram muitas de suas diferenças de lado para discutir sobre o estado e o estar da Psicanálise no contemporâneo. Os temas discutidos provam o quão ampla e impactante fora a presença da Psicanálise no ocidente ao longo de todo o século XX. Uma das intervenções até hoje lembrada foi a do filósofo Jacques Derrida, que se apresentava como um amigo da Psicanálise.
Pensador da desconstrução, Derrida nunca negou o quanto sua obra era dependente do diálogo com a Psicanálise e o quanto ele se alimentou intelectualmente dela ao longo de todo seu percurso. Um dos principais promulgadores desse diálogo foi o psicanalista franco-canadense René Major, amigo de longa data do filósofo e também um dos principais organizadores do histórico evento ocorrido no ano 2000. Não é demasiado lembrar que esse foi o primeiro encontro, depois da morte de Jacques Lacan, em que personalidades tidas como rivais participaram da mesma atividade. Tratava-se, naquele período, de resistir a muitas das tentativas do governo francês de legislar, não apenas sobre o que seria uma profissão de psicanalista, mas também sobre a própria prática que porta o nome de Psicanálise. A bem-dizer, a Psicanálise já antevê que o que incide sobre o nome próprio é potencialmente violento.
Em seu Estados da alma da Psicanálise: o impossível para além da soberana crueldade (2000), em texto que fora publicado posteriormente em diversos países e línguas, o autor de Escritura e a diferença aparece em um tom quase profético: a meio caminho entre escritura oral, carta narrativa e análise filosófica, Derrida convoca os psicanalistas a pensar a Psicanálise nas malhas de suas relações com as instâncias da ordem social e da política. Na semântica derridiana, a noção de crueldade encena um papel fundamental em meio a todo esse questionamento: a revolução potencial que a Psicanálise oferece à humanidade é a própria subversão de certas categorias de pensamento tão determinadas e determinantes na Filosofia moderna (e em tudo o que daí deriva, como a jurisprudência). Uma dessas categorias é a própria noção de "sujeito autônomo". Ora, Derrida nos sinalizava que a Psicanálise guarda em suas entranhas a potência de subverter não apenas as vidas privadas em suas singularidades, os pacientes que se engajam em um trabalho analítico, mas, muito além disso, ela pode também oferecer algo da subversão à ordem social, na medida em que a Psicanálise reconhece a importância do trabalho de destruição inerente à subjetividade, ou seja, da pulsão de morte.
Para Jacques Derrida, a Psicanálise não teria álibi, ela deveria reconhecer suas próprias resistências às descobertas e revoluções potenciais que engendra. Julgamos que isso implica algo de alcance político e ético incomensurável. De fato, são já bem conhecidas as polêmicas envolvendo a participação de psicanalistas sul-americanos em prisões por motivos políticos e sessões de tortura durante as ditaduras militares que assolaram esse continente na segunda metade do século XX. Pior ainda foi o silêncio de algumas das nobres instituições de Psicanálise, como fora o caso no Brasil, onde podemos citar o notório caso envolvendo o médico e psicanalista Amílcar Lobo.
No entanto, o que desejamos retraçar por meio do presente ensaio é que a carta de Derrida do ano 2000, "endereçada aos psicanalistas", como foi bem salientado, nos convidava também a pensar a noção de técnica da própria Psicanálise. Os psicanalistas reunidos para aquele histórico debate lá estavam em acordo para iniciar uma forma inédita de trocas e contribuições, algo interinstitucional e que implicava recolocar em cena perguntas que sempre foram tão dramáticas como centrais em Psicanálise: qual é a formação do analista? Como se paga uma análise? Como deve se desenrolar una sessão? Qual deve ser a compreensão da Psicanálise dos novos meios tecnológicos da era numérica que se iniciava? Como cada instante do contemporâneo permitia um reenquadramento da prática do psicanalista, e assim deste para com o político e o social?
Devemos, assim, partir para uma leitura do que restou do texto de Derrida, no que tangencia precisamente tais questões envolvendo a técnica da Psicanálise. Desenvolvendo tais pontos, poderemos pensar as consequências para a própria Psicanálise do que seria a técnica dessa prática. Ainda, nos depararemos com as consequências de todo um conjunto semântico, conceitual, cultural e institucional que se arquitetou em torno do fazer psicanalítico.
Introduzindo um álibi
A técnica costuma ser evocada, ou invocada, logo que as dificuldades e entraves aparecem. A técnica pode servir de argumento, de defesa, pode servir também como um álibi. A abertura do seminário de Jacques Lacan sobre os escritos técnicos de Freud apontou uma certa homologia entre aquilo que Lacan chamava de "o pensamento de Freud" e a dita "técnica zen" de um mestre budista: em ambos se tem um esforço de pesquisa sobre o sentido, com respostas aparecendo onde uma questão havia sido formulada "anteriormente, em outros termos" (Lacan, 1975, p. 9, tradução nossa).
O mestre zen intervém quando seu discípulo está próximo de encontrar uma resposta para uma pergunta feita outrora, uma pergunta de natureza paradoxal. Em seguida, o mestre então enuncia a seu aprendiz um koan, algo como um enunciado que paralisa devido à sua natureza propriamente dita paradoxal. Como exemplo, podemos citar um koan bem famoso: "qual é o barulho do som do aplauso de apenas uma palma de uma mão?" Quando o discípulo estiver a ponto de se livrar da angústia provocada por um paradoxo desse tipo, o mestre lhe transmite um novo koan, embaralhando qualquer sequência lógica que estava sendo forjada. Trata-se, portanto, de um procedimento técnico: o sentido outrora possível se esvai, demonstrando-se nisso que há uma ligação muito íntima entre o sentido e a própria função do eu.
Para avançar em nossos propósitos, podemos assim perguntar: seria esse tipo de técnica um álibi? Álibi de quem? Talvez não passe de uma provável cena até bem comum na relação entre mestre e aluno, na qual um terceiro, a técnica, vem fazer as vezes de elemento estruturante da própria relação hierárquica que se apresenta. Sobre esse ponto, aliás, Lacan salienta, ainda na mesma lição de seu seminário, que a Psicanálise funciona indo muito além do simples estabelecimento de algo como uma two-bodies' psychology, qual seja, de uma troca psicológica envolvendo dois corpos de pessoas que falam, se comunicam, etc. Para Lacan (p. 23-24), a noção mesma de experiência psicanalítica deve ser formulada a partir de uma relação a três : apesar de avançar comumente por meio de uma invocação do passado e de um trabalho sobre a memória, o essencial estaria numa restituição da função de sujeito presente nesse próprio passado, em seus percalços pela memória e pela própria história de um indivíduo. Tal valia seria a de uma restituição, em que são sentidos os efeitos da alteridade, do terceiro, do Outro em si.
Isso parece ser um estranho tipo de álibi: podemos aqui às pressas deslizar para discussões envolvendo noções como a de sentido, seja o sentido dos sintomas, seja o sentido do sonho, seja o de um lapso. A propósito da insistência de Derrida quanto à utilização do termo "álibi", Huber (2002, p. 24, tradução nossa) faz o seguinte comentário: "O álibi justifica, mas não demonstra [...] O álibi vem socorrer o pensamento quando esse percebe que a verdade não se impõe por ela mesma".
Em seu esforço de retomar os escritos técnicos de Freud, o objetivo do psicanalista francês fora o de demonstrar algo de problemático na concepção vigente da Psicanálise dos anos 1950: a redução da relação intersubjetiva à relação objetal. Mais ainda, o que era apontado por Lacan, e aí já compreendendo espectro epistemológico certamente mais amplo, era que toda elaboração teórica (como a das três instâncias do aparelho psíquico) não passa de um modelo circunscrito em uma escansão de sentido limitada. Qual o álibi então da intervenção clínica psicanalítica, da técnica, quando seus componentes são apenas e também um efeito de sentido composto por um determinado jogo teórico?
Desde os primeiros psicanalistas da dita era heroica, na relação à autoridade e ao Outro que se cultivava, notadamente desses psicanalistas para com Freud e com sua obra, pode ser reconhecida a presença de uma relação mestre-discípulo. Inúmeros trabalhos já analisaram e comentaram a complexidade das relações e transferências envolvendo psicanalistas, analisandos, escolas, teorias e eventos e lendas da Psicanálise. Um detalhe dessa longa história, detalhe até um pouco jocoso e folclórico, diz respeito aos sete anéis que Freud mandara forjar para serem usados por ele e seus discípulos. No texto-discurso do ano 2000, Derrida (p. 59-60, tradução nossa) comentava: "Eu renunciei, por economia, a fazer girar esta conferência em circunferência em torno deste anel. Mais apropriadamente, estes anéis, do que aconteceu com eles, se eles teriam se perdido, se tornaram herança ou retornaram para suas caixinhas".
Os ditos anéis estampavam a cabeça de Júpiter e selavam um compromisso que devia permanecer secreto, um pacto que forjara a existência de um comitê de ação que agia nas sombras dentro da própria International Psychoanalytical Association (IPA), fundada em 1910 e presidida em seguida por Carl Gustav Jung. Malgrado seu aspecto infantil e um tanto bufão, o dito comitê secreto teria alcançado seu efeito principal, o de apaziguar Freud, como bem o aponta Lacan, considerando ainda que o comitê fora criado para tentar proteger o próprio futuro da Psicanálise (Lacan, 1956, pp. 473-474). Pode-se gastar muita tinta com isso, entretanto, o que parece fazer mais sentido aqui é que o círculo do anel mostra que a preocupação com a função de mestria, do boss ou do chefão, nas palavras de Lacan, já apareciam logo desde o primeiro exercício de criação de uma sociedade cujas regras de formação e de exercício da Psicanálise seriam formalizadas.
Aventa-se assim que um estranho paradoxo operava por baixo dos panos nesse primeiro passo do movimento psicanalítico rumo a alguma forma de institucionalização: alguma coisa deveria permanecer sob controle, sob o controle. Entretanto, a Psicanálise também deveria ser protegida dos efeitos grupais e visceralmente nefastos das instâncias de controle, e mesmo das personalidades potencialmente controladoras. Seja por identificação filial, espiritual ou simples hierarquia, a presença de um líder, ou de lideranças, sempre passa por uma ligação afetiva intensa.
Há mais de 15 anos Derrida (2000, p. 18) nos relembrava que a situação psicanalítica sofria de uma precariedade e artificialidade históricas. As muitas anedotas dos meios psicanalíticos corroboram tal afirmativa, porém, a precariedade e a artificialidade da Psicanálise quanto à sua própria história dão mostras da força da resistência que tal aparato teórico e seu método clínico enfrentam, e mesmo desde sua invenção. Parece evidente, claro, que também nos referimos às resistências sociais, culturais e científicas da disciplina Psicanálise, muito embora Derrida tenha particularmente insistido em um outro tipo de resistência, que é aquela que surge das entranhas do próprio movimento psicanalítico, no interior da Psicanálise. Ela, a Psicanálise, se dobraria para resistir a si mesma, para se inibir, autoimunitariamente (Derrida, 2000, pp. 16-17).
Num processo dito autoimunitário, o que se pensa logo de cara é num organismo que conduz a si mesmo rumo à própria destruição, autodestruição, aniquilando uma a uma todas as suas células. Uma resistência desmedida, exagerada, capaz de aniquilar sua própria fonte, para que ela serve? Melhor, pode ela ter algum álibi?
Aqui nos voltamos finalmente à questão da técnica na Psicanálise, colocando-a no centro da cena. Ela é convocada às vezes como um álibi, noutras como fiadora, mas frequentemente também como conjunto de regras de autoridade e de autorização. Por vezes, acusa-se mesmo qualquer discussão sobre a técnica em Psicanálise ser algo que reduza ou que iniba a própria condução de uma experiência psicanalítica. Todavia, devemos reconhecer que, seguidamente, nós, psicanalistas e profissionais que exercem uma clínica dela derivada, temos uma relação no mínimo ambígua com a técnica: nos fiamos nela para a ela resistirmos, julgando-a seguidamente como algo completamente excêntrico ao processo mesmo de um tratamento psicanalítico.
O apelo que nos foi lançado por Jacques Derrida foi primeiramente para pensar o caráter sempre problemático de toda iniciativa de institucionalização em Psicanálise. Em seguida, temos de refletir sobre todos os seus mecanismos de formação ou difusão, especialmente na dispersão espetacular de seu lugar e referência na cultura, na diversidade dos modos de ensino e saber aos quais ela é vinculada e onde se articula, em sua legitimação como prática de tratamento e intervenção. O mais delicado continua sendo, sobretudo, a ausência radical de qualquer forma de consenso no que diz respeito a suas regras práticas, seus protocolos de formação, ao que nela pode ser decantado como temática que deriva para um sujeito jurídico, ético ou político (Derrida, 2000, p. 28).
Inúmeros são os álibis que alimentam a resistência a pensar nisso tudo que elencamos: frequentemente evoca-se uma suposta extraterritorialidade da causa psicanalítica, sua particular noção de Escola ou a singularidade do que seria uma ética da Psicanálise (Dupont, 2014). No que se refere à técnica, muitos insistem com os argumentos críticos de Lacan para com a ego psychology. É evidente que um excesso de técnica condena a experiência à morte, impondo uma resistência intransponível à espontaneidade e à leveza, que devem ser marcas da prática psicanalítica. No entanto, Derrida (2000, p. 31, tradução nossa) trouxe um elemento fundamental em sua carta deixada aos psicanalistas: "Pois aquilo que se chama psicanálise, o que chama à psicanálise, nos ensinou ao menos uma coisa, é de que devemos desconfiar de toda espontaneidade alegada - a da autonomia e da liberdade suposta".
Entre técnica e dominação: onde se localiza a crueldade?
Em 1953, o filósofo Martin Heidegger publica o ensaio A questão da técnica. Nele encontramos, justificadamente, um questionamento sobre a técnica, seus dispositivos tecnológicos derivados, e as questões que estas colocam à humanidade do século XX. É corrente constatar que a concepção moderna da técnica se mostra por meio de uma certa confusão entre técnica e tecnologia. O filósofo alemão assinala que, em uma definição instrumental da técnica, ela é compreendida como um meio, forma de chegar a algo. Chegar exatamente a quê? De fato, o que pretenderíamos, como espécie que avança tresloucadamente em direção ao domínio e ao controle do nosso ambiente de vida, é sermos mestres da técnica, da dominação.
Techné, em seu uso grego, não se refere a algo material, mas a um saber, um savoir-faire, algo artesanal. Na modernidade, contudo, o termo técnica implica algo que demonstra o domínio de algum aspecto da natureza ou do mundo físico: nesse caso, seria submeter a natureza e sua energia e potência para, assim, poder liberá-las, transformá-las, acumulando forças para reutilizá-las. Uma ilustração potente aqui é a da energia advinda de uma usina hidroelétrica: a água acumulada em uma barragem serve para produzir energia com a força de sua própria queda. Em seguida, a mesma água é liberada e pode seguir seu curso na natureza (Heiddegger, 1953, pp. 14-15).
A reflexão de Martin Heidegger também seguia um curso, mas o da História. Nos anos 1950, pós Segunda Guerra Mundial, o fantasma da aniquilação nuclear estava mais vivo do que nunca. A inquietação que atormentava o filósofo da Floresta Negra era de que a técnica, com a qual esperamos dominar a natureza, poderia justamente escapar ao controle do homem. Em suas reflexões, Heidegger nos questiona: pensamos que a técnica é um meio de mostrarmos nossa capacidade de domar as forças da natureza, porém, e se, de fato, ela for realmente a manifestação última da vontade de potência?
O pensamento de Heidegger nos leva a uma concepção de técnica por vezes pouco comum, uma vez que ela deixa de ser encarada apenas a partir de suas consequências tecnológicas ou da aplicação de saberes. A técnica comporta, assim, todo um bojo metafísico que a acompanha. Contudo, os estrondosos efeitos da tecnologia nos levam a conceber uma visão erroneamente reduzida da técnica, na qual esta carregaria em sua essência seus efeitos, que, propriamente dito, referem-se ao domínio da natureza e das forças naturais. Tal ilusão faz com que emparelhemos técnica e ciências naturais (ou da natureza). O que propõe o autor de Ser e Tempo é que nos mantenhamos distantes dessa equivalência, aliás, tal confusão é por si só o espaço ontológico da modernidade, uma confusão cujo ponto de partida jaz em nossa pretensão de testar e desvendar a natureza e a realidade como dominamos suas forças. Seria esse finalmente o pilar que sustenta um simulacro ao qual poderíamos nos referir como a "essência da técnica".
Nessa redução, a técnica é concebida como uma forma de desvelamento (da natureza, ou por que não, do real) que termina por ser uma ferramenta de seu próprio fechamento. É algo como pensar a comunicação de forma utilitarista, em que a palavra teria por razão de ser a de levar uma mensagem de um indivíduo a outro, deixando de lado todo o universo simbólico implicado no uso de um termo. Ora, esse utilitarismo-funcionalista leva àquilo que Nietzsche chamou de falso sentido de consolação, pois, no caso da técnica, esta é reduzida a ser vista como um efeito circunscrito a um certo espectro do real. Todavia, não se leva em conta que, malgrado nosso cerceamento metafísico do que seria a técnica, ela é de fato muito mais do que uma mera mediação para a dominação das forças da natureza.
Ver na técnica uma mediação, fundamentalmente instrumentalizando-a, é uma forma de álibi. Um álibi é uma justificativa de algum tipo, como na justiça, quando algum suspeito se utiliza de um álibi para provar que não estava em um dado lugar na hora em que um crime foi cometido. Podemos evocá-lo, o álibi, como um dispositivo de argumentação.
No teatro grego, temos um dispositivo técnico que era utilizado para dar uma conclusão, frequentemente de cunho moral, a uma história: era o Deus ex-machina, um aparelho no qual um ator interpretando um deus aparecia suspenso no ar, dando a impressão de flutuar. Uma intervenção não apenas no sentido do roteiro (já que o deus se introduzia intempestivamente na trama, corrigindo o rumo do destino das personagens, seja com algum tipo de punição, seja mesmo até com a morte), mas dando um exemplo de cunho trágico da infalibilidade e da indiferença das forças do cosmos (dos deuses, da natureza) para com a humanidade e suas pequenas epopeias. No plano do efeito dessa aparição sobre a materialidade da cena em si, tínhamos ali a entrada de um outro na história, de um Outro mesmo, o qual, portando as roupas e a fantasia de divindade, aniquila a pretensão e a arrogância dos heróis presentes no palco.
O dispositivo do teatro tem em sua centralidade técnica uma repetição encenada de uma cena de um roteiro. No caso do Deus ex-machina, trata-se de um artifício tanto tecnológico (uma aparelhagem permitindo que um ator fosse suspenso no ar e ganhasse uma entrada triunfal no palco) quanto técnico, precisamente por provocar um efeito de reviramento na trama. Com esse dispositivo, o roteiro ganhava um álibi com uma intervenção no sentido possível nos rumos de uma história, de uma tragédia, expondo aos espectadores que a repetição cuja encenação a qual eles assistiam estava exposta a um roteiro com um sentido (uma direção) que seria corrigido e selado pela presença divina, intervindo na conclusão da história vivida pelas personagens.
No plano da composição cênica, o roteiro era, assim, desprovido daquilo que Antonin Artaud chamou de crueldade, visto que a chegada do Deus ex-machina acabava com a encenação por dar um sentido definido, moral, à história que se queria contar. Era o fim da repetição que constituía o teatro. Para definirmos o que entendemos aqui por crueldade, devemos seguir uma linha de investigação na qual exploraremos a semântica desse termo, para Artaud, por meio de uma leitura também proposta por Derrida. Na verdade, esse percurso, longe de ser um mero recurso cênico, nos parece necessário para compreender o uso que o próprio Derrida faz da expressão crueldade em seu Estados da alma da Psicanálise: o impossível para além da soberana crueldade (2000), pois essa expressão se refere necessariamente à questão da técnica em Psicanálise no contemporâneo.
O teatro da crueldade e a resistência autoimunitária da técnica
Um ensaio de Jacques Derrida, "O teatro da crueldade e o fechamento da representação", que aparece na obra A escritura e a diferença (1967), lança luzes sobre esse conceito, essa palavra, mesmo até uma provocação, que é o apelo à expressão crueldade. Precisamos recorrer a ela numa tentativa de estender nossa compreensão daquilo que Derrida sinaliza quando faz o uso dessa palavra, uma vez que desde as primeiras páginas de seu endereçamento aos psicanalistas no ano 2000 a presença da noção de crueldade se impõe como uma presença viva.
A Psicanálise está, para Derrida (2000, p. 10), associada de forma inerente ao mal, ao gozo do mal radical. Porém, sublinhando a significação latina de cruor, crudus, crudelitas, o sangue vertido, o crime de sangue, o desejo de fazer sofrer por fazer sofrer, etc., o filósofo francês nos recorda que a Psicanálise trabalha sumamente com a crueldade psíquica. A crueldade é inerente à pulsão de poder, a qual, escreve Derrida (2000, p. 14), é um além de um para-além do princípio do prazer, da pulsão de morte, da pulsão de poder soberano. A crueldade é ainda uma essência afirmativa, de afirmação da vida, do sangue e da vontade.
Seria sobre esse aspecto da realidade psíquica que a Psicanálise deveria empreender seu caminho investigativo, caso sigamos o convite derridiano. Mais, ela não teria álibi para se concentrar em qualquer outro aspecto da realidade psíquica que não fosse o da crueldade. Repitamos a insistência de Derrida em sua carta aos psicanalistas: a Psicanálise, para que ela seja realmente digna de portar o nome de Psicanálise, deve se orientar na direção de compreender os sentidos e caminhos da crueldade psíquica, sem qualquer outro álibi que a faça olhar em outra direção, sem álibi teológico algum.
O que seria um álibi teológico? É aqui que, claramente, a análise proposta por Derrida do teatro da crueldade de Artaud vem em nosso socorro.
No teatro da crueldade, Deus está ausente de cena, pois esta deve ser um espaço não-teológico. Como insiste Derrida (1967, p. 347, tradução nossa), "O Ocidente não trabalhou para outra coisa senão para o apagamento da cena. Pois uma cena que ilustra um discurso não é mais uma cena". O teatro ocidental, por sua vez, é o teatro do texto, do autor, dos atores e dos espectadores, esses últimos sendo aqueles que "gozam", que usufruem dos dramas encenados para viverem a dita "catarse" interna. Para Artaud, isso, o processo catártico, constituiria o ápice da cena teológica: o espaço da vida, afetivo, é dominado pela palavra, pela vontade de palavra, desígnio maior do universo do logos e do sentido.
Um teatro da crueldade, posto em prática, demarcaria um espaço livre da dominação do texto e de um dito "deus-autor", abolindo a diferença entre os estratos de poder dos participantes de um ato teatral - autor-escritor, diretor de cena, atores e espectadores. No teatro da crueldade, como pensado por Artaud, a cena não é mais "representada", ela não é reduzida a ser uma mera reapresentação do texto escrito, uma pura representação cênica de um texto que seria o verdadeiro e único dono do sentido.
O espaço cênico do teatro da crueldade propõe que os participantes se sirvam da palavra, em vez de servir a ela, num jogo de submissão. A palavra passa a ser manipulada como se fosse um objeto-hieróglifo, um objeto que se superpõe à coisa. Essa postura ética com a palavra é diametralmente oposta a uma concepção técnica oriunda da modernidade, na qual as palavras são consideradas como meio para desvendar a natureza das coisas. Nisso, num plano poético, o teatro da crueldade recusa ser um teatro de mimeses, no qual a cena é pura repetição de um texto escrito. Em seu aspecto técnico, o teatro da crueldade é um teatro de extremo rigor, espaço de sonho, de um sonho necessário e cruel, oposto à desordem empírica do trabalho de sonho espontâneo (Derrida, 1967, p. 353). Em suma, ele seria um teatro de uma consciência lúcida extrema, recusando, por conseguinte, um lugar ao psicanalista ou a um outro tipo de intérprete pronto a reduzir o que se passa em cena a alguma coisa de outra natureza, tal como um conflito, uma atualização arcaica ou algum jogo de significantes de outra ordem.
Temos então uma ideia fascinante que se apresenta a nós: a de um teatro no qual, em vez de se provocar uma regressão do espectador a uma cena tida como inconsciente e primitiva, todos os participantes vivam uma experiência, algo praticamente místico, que seja algo da manifestação da potência da vida ela mesma. Era nisso que apostava Artaud, um teatro afirmativo da vida e não da onipotência do texto. Seria isso, então, um teatro da crueldade, de crueldade, de potência da vida e do sangue e não mais da tinta sobre o papel.
A picada que Derrida nos convida a transformar em estrada passa, como ele o faz em vários momentos de seu endereçamento aos psicanalistas, por lembrar que o evento Estados Gerais da Psicanálise é uma referência direta ao histórico Estados Gerais ocorridos na França em 1789. Esse encontro, de caráter um tanto quanto teatral, traduziu-se por uma convocação pelo poder real francês na qual três diferentes ordens (nobreza, clero e terceiro-estado, o composto por cerca de 96% da população) deveriam discutir e votar (cada ordem portando o mesmo peso de voto) questões relativas às dificuldades políticas e financeiras da França no reinado de Luís XVI.
Ora, tratou-se de uma mera cena orquestrada pelas elites políticas ou foi um verdadeiro espaço de gozo coletivo? Em seu discurso, Derrida coloca inúmeras vezes a mesma questão: o rei já estava condenado a perder sua cabeça? Teria o soberano assinado um apelo, uma convocação, para que toda a crueldade da cena pública fosse dirigida a ele próprio? Pouco importa a resposta que dermos, pois, qualquer resposta não será nada mais do que a mera afirmação de um álibi teológico, mesmo teleológico. Era a cena pura que importava, e não qualquer sistema ou fantasias de álibis que possamos vir a criar para justificá-la.
Sobre os Estados Gerais, o que está em jogo é a cena e a crueldade, evitemos quaisquer álibis. Quanto a um Estados Gerais da Psicanálise, Derrida chama a atenção para a necessidade de entender de onde partiu a convocação, descobrir quem formaria o Terceiro Estado da Psicanálise, quais seriam as queixas da Psicanálise mundial... "Nem mais sabemos quem se queixa com quem. Tudo não passa de álibis" (Derrida, 2000, p. 7, tradução nossa). Permanecer sob a defesa de um álibi não é nada mais do que um exemplo de movimento autoimunitário, de submissão a um verdadeiro parasitismo voluntário.
O filósofo da desconstrução nos alertou que a Psicanálise nada disse sobre as questões sobre as quais dela se espera as respostas mais necessárias, respostas que não aceitam álibis. São questionamentos e proposições em formas de resposta, que não apenas tangenciam, mas que penetram os axiomas da ética, do jurídico e do político. Aqui Derrida mostrou-se extremamente esperançoso em relação à importância que a Psicanálise poderia ter para a humanidade, na qual ela poderia participar de uma mutação revolucionária no que diz respeito ao "sujeito do sujeito e do sujeito cidadão, quer dizer, quanto às relações entre democracia, a cidadania e à não-cidadania, àquilo que diz do Estado o mais-além do Estado" (Derrida, 2000, p. 22, tradução nossa).
O que jogamos como hipótese aqui é que Derrida teve cuidado ao não colocar os Estados Gerais da Psicanálise do ano 2000 como o teatro que acolheria a velha questão da instituição da Psicanálise. Ser hospitaleiro com tal dilema seria um estratagema que levaria esse encontro inédito de psicanalistas a se ver refém de toda uma maquinaria de questões que evitam, justamente, que se pense em pormenores à instituição da Psicanálise. Dois textos de Freud nisso podem intervir para pensar o endereçamento proposto por Derrida no ano 2000: Novos caminhos da terapia psicanalítica (1919) e Análise finita e infinita (1937).
No primeiro, que faz parte do conjunto dos ditos escritos técnicos de Freud (conforme o clássico volume publicado na França), encontramos a famosa analogia na qual a Psicanálise - e seu "ouro puro da análise livre" - talvez precisasse vir a ser misturada e fundida ao "cobre da sugestão direta" para que ela pudesse trilhar um verdadeiro caminho de expansão no mundo moderno. Para além da aposta freudiana, uma homenagem velada a Sandor Férenczi parece pairar aí: Freud aponta que uma atitude ativa por parte do psicanalista é necessária para a própria evolução das possibilidades terapêuticas da Psicanálise. Essa era uma posição sustentada com força por Ferenczi até o fim de seus dias e escritos mais derradeiros. Mais ainda, o autor do Diário Clínico postulava que elementos técnicos orientadores da prática analítica, tais como abstinência e neutralidade, haviam sido mal interpretados: para Ferenezi, o trabalho clínico psicanalítico é uma composição que se orienta a um fim, o qual passa por um esforço de síntese de todo o material trazido pelo paciente em associação livre.
Em Análise finita e infinita (1937, pp. 134-135), Freud escreveria que há um risco quando o psicanalista orienta a sua escuta apenas pelo imperativo de analisar, analisar e analisar. Na verdade, cabe ao psicanalista retomar com seu paciente a atividade psíquica mais essencial, a de composição de sínteses. Um setting analítico no qual apenas o corte e o recorte fazem parte da técnica analítica lembra muito mais a prática do médico legista do que o de um clínico que lida com um ente vivo e que é responsável por uma reorientação existencial daquele sujeito vivo a quem ele escuta. Guardar-se de qualquer esforço de síntese por conta de uma suposta defesa de uma técnica psicanalítica dita pura não seria nada mais do ser feito refém dos efeitos da pulsão de morte por receio de dirigir-se a ela frontalmente.
O texto de 1937 acaba sendo um verdadeiro diálogo póstumo com Ferenczi, falecido em 1933, pouco depois de uma brutal ruptura por parte de Freud (Bokanowski, 2000). Trata-se nesse trabalho não somente de debruçar-se sobre o alongamento e as dificuldades que as curas analíticas vinham mostrando, mas de avaliar nisso tudo os efeitos do masoquismo inerente ao próprio eu. Para Freud, aliás, os efeitos do masoquismo são inegavelmente uma indicação da presença de algo como uma pulsão de agressão ou de destruição, de algo que revelaria a presença da morte como constituinte da vida em si (como bem descrito no quarto capítulo de Análise finita e infinita).
Talvez algo autoimunitário da própria vida represente o desafio mais importante para o futuro da Psicanálise, particularmente da prática analítica como conjunto técnico. Diante desse questionamento, Freud acabou tendo que confrontar as polêmicas contribuições de Ferenczi e também de outros, como Otto Rank, os quais não cessaram de apontar os pontos cegos da teoria e da técnica psicanalítica, muito além daquilo alcançado pelo pensamento em linha reta que vinha sendo proposto pela via institucionalizada da Psicanálise pela International Psychoanalysis Association (IPA). A propósito de temas polêmicos, como o fim de uma análise e do que seria necessário para que um analisando se tornasse analista, um dos fenômenos apontados por esses autores mais marginais era o da reação terapêutica negativa, particularmente daquilo que permanece vivo depois que um tratamento psicanalítico foi finalizado. Ora, a instituição psicanalítica é um lugar onde diversos analisandos e ex-analisandos se relacionam num esforço de formação e de manutenção e continuidade da prática da Psicanálise. O que se pode, assim, pensar de toda a resistência residual que permanece viva após uma análise?
Em suma, trata-se de um simples resto (um dejeto) ou de um verdadeiro processo autoimunitário presente como uma tripa ligando a análise do analista à do analisando, algo que interroga a existência de uma continuidade psíquica e de síntese entre o psiquismo do analista e de seu paciente? O que há de autoimunitário nesse processo? Se deixarmos de nos centrar apenas em todas as cenas teológicas presentes na relação transferencial (atualização edípica, etc.) e suas vicissitudes (tornar-se analista como um tipo de identificação, fenômenos relativos ao ideal de eu), com o que nos depararíamos? O que seria um equivalente a um teatro da crueldade dessa relação e da transmissão da técnica psicanalítica que se dá nesse laço?
A técnica e seu duplo: a crueldade
O ensaio de Artaud O teatro e seu duplo (1954) apresenta uma proposição ética e técnica para o teatro. Artaud, que se tomava por grande inimigo dessa arte, lança mão da noção de crueldade anunciando-a como uma "necessidade, rigor e engajamento". Em vez de um teatro do texto, da representação e da reprodução da cena do texto, ele promulgava um teatro da presença, da apresentação e da unidade entre texto e palavra dita. Um teatro assim poderia ser o do encontro com a dimensão do sagrado, por meio do transe, e não mais um teatro tratado como um simples meio em vistas da catarse. Um teatro da crueldade não teme o encontro com a dimensão do sagrado, e também não a reduz a uma presença de divindades na cena, divindades que revelariam a moral no fim da trama.
A propósito das inovações técnicas de Ferenczi, Colette Soler (1985) argumentou que esse psicanalista demonstrou uma preocupação elementar com os pontos cegos do trabalho psicanalítico, aqueles que resistem aos efeitos da interpretação. Se num primeiro tempo um trabalho analítico provoca no paciente algum alívio por conta das associações mnêmicas, um segundo tempo carrega indelevelmente a marca da resistência, "onde o amor transferencial e as solicitações que ele suscita servem de álibi para recusar a seguir a regra da associação-livre" (Soler, p. 36, tradução e grifo nossos), como quando um analisando interrompe sua fala com o argumento de que sabe o que seu analista pensaria daquilo, recusando-se assim a dizê-lo. Para Soler, Ferenczi estabeleceu que a técnica psicanalítica não poderia se ver reduzida a fazer aquilo que tão pouco tempo depois acabou se tornando o principal artifício técnico de muitas escolas de Psicanálise: a análise de resistências.
Uma resistência se ultrapassa ou se contorna, segundo a óptica de Ferenczi. Na verdade, tudo o que diz respeito à resistência, às paralisações do trabalho analítico, à continuidade dos sintomas, etc., são facetas do gozo, algo que poderíamos definir ferenczianamente como um tipo de onanismo próprio às construções cênicas edípicas. O desdobramento técnico no qual insiste Ferenczi visa operar, no manejo da transferência, pela subtração desse gozo, provocando uma resposta da parte do fantasma fundamental, no lugar de interpretar as resistências que não são nada mais do que índice das próprias construções fantasmáticas derivadas. De fato, os silêncios, os actings, a interpretação que não provoca efeito algum, dentre outros fenômenos, são conjunções da presença do analista na cena fantasmática do paciente. Não se trata, porém, da figura do analista em toda sua potência ou impotência imaginárias, e sim de fantasmas que são constitutivos da vida psíquica do próprio analista.
A presença da figura do analista sempre foi um tema presente na teoria psicanalítica. Talvez a obra na qual mais tenhamos encontrado descrições cênicas da relação entre paciente e terapeuta tenha sido Estudos sobre a histeria, que Freud escreveu em parceria com Joseph Breuer. Na Observação I, de Anna O., nos deparamos com a menção à técnica não para indicar as famosas sessões de hipnose que aconteciam a cada fim de tarde, mas para descrever o método que fora nomeado pela própria paciente, "ela encontrou o nome de técnica de clouds (nuvens)" (1895/2002, p. 46, em inglês no texto, tradução nossa), como no exercício de associação que fazemos com a forma das nuvens que passam pelo céu. Mais longe, no mesmo artigo, onde encontramos uma síntese teórica da situação clínica, vemos enfim aparecer o nome "técnica analítica", indicando os seguintes passos da terapêutica: concentração (colocar a paciente deitada de costas), pressão (localizar as lacunas no material verbal do paciente) e insistência (pressionar o paciente para que ele se foque nos traços mnêmicos que o terapeuta deseja investigar).
Nesses exemplos tirados de um texto tão seminal do edifício técnico e teórico analítico, nos deparamos com uma tentativa inicial de chamar a atenção para a necessidade de uma reflexão sobre a técnica daquilo que iria se transformar na prática que hoje porta o nome de Psicanálise. Se o vimos em Freud com Breuer, também em Freud com Fliess, Ferenczi, Rank, Tausk e outros analistas de outras eras, tais como Anna Freud, Maurice Bouvet, Lacan, Ralph Greenson, Winnicott, Bion, André Green, Edward Glover, para citar apenas alguns, é porque o tema da técnica não deixa de provocar polêmica e de merecer atenção. Por que, então, no apelo de Derrida para que os psicanalistas retomem a direção da psicanálise naquilo ao qual ela deveria se dirigir para encarar o desafio que a define - olhar de frente parra a crueldade psíquica e seus derivados - parece passar em branco a questão da técnica da psicanálise?
O que pretendo assinalar aqui é que Derrida indica a questão da técnica como uma questão essencial da direção de uma Psicanálise que poderia ainda causar revoluções políticas. É interessante notar que o texto de Derrida, muito lido e citado, acaba sendo seguidamente compreendido pelos mesmos argumentos, no caso, a do analista e de seu lugar como cidadão. O que proponho é que mencionar sempre a mesma leitura é uma forma bastante cômoda de ignorar a intervenção de Derrida dirigida a psicanalistas e suas instituições, uma intervenção que visava atingir o lugar da Psicanálise na própria cultura e no seio das políticas de subjetividade da modernidade e do tempo contemporâneo.
A Psicanálise, para merecer portar o nome Psicanálise, deve sempre ter uma leitura diferente. Quando dos 15 anos do texto de Derrida, em 2015, participamos de alguns eventos ocorridos na França que celebravam e retomavam a leitura de Derrida, foi flagrante a repetição de argumentos e olhares sobre o texto, e isso em diferentes espaços e associações psicanalíticas. Nenhuma diferença era proposta, quase como se o que tínhamos eram espaços de sono dogmático, melhor, de hipnose dogmática. Aqui, devemos ir com Derrida (2000, p. 72, tradução nossa) para "cultivar [.] uma transação diferencial, uma economia do desvio e da diferença, a estratégia, podemos mesmo falar em método, do caminho indireto: uma via indireta, sempre indireta, de combater a pulsão de morte". Contudo, não sejamos inocentes, a crueldade não tem contrários, ela está lá - isso aliás já era um velho tema nietzschiano.
A vida humana, a vida psíquica, seja a vida singular, suja a coletiva, é extremamente marcada pela presença do cru, da crueldade, daquilo que se apresenta. Todo trabalho envolvendo a subjetividade não deve ter qualquer álibi para deixar de levar em consideração essa crueldade, em toda sua imanência. O transcendental é apenas uma desculpa. Nosso material de trabalho, como psicanalistas, intervindo diretamente sobre a subjetividade, é precisamente o que é imanente. Contudo, precisamos para isso da cena, do teatro, pois o encontro com a subjetividade pura é o encontro com a loucura. A técnica, quando não a tomamos por sua concepção moderna e redutora, pode ser um duplo da própria crueldade, reproduzindo-a para, pelo desvio, chegar a encará-la em seu viés, sem mais álibis.
O apelo de Derrida aos psicanalistas, à comunidade analítica, era, em linhas mais diretas e cruas, o de levar em conta a própria razão psicanalítica, nas diferentes instâncias desta. Não é por acaso que no trabalho Resistências da Psicanálise (1996) Derrida já havia sido extremamente claro e agudo: não há regras gerais, não se pode formalizar a técnica analítica como análise das resistências e contrarresistências sem contabilizar as contrarresistências do analista, da instituição e da comunidade psicanalítica.
Se a base da técnica e da razão metodológica psicanalítica era de ser um tratamento dirigido aos arquivos-traços mnêmicos em seus desdobramentos afetivos e psicopatológicos, toda forma de arquivo já contém em si um tipo de técnica de registro e arquivamento. Derrida assinalou esta questão: se a Psicanálise trabalha com os traços e arquivos ou, sumamente, com a história, por que de suas resistências a tratar dos próprios arquivos do movimento psicanalítico, ou mesmo da história de seus conceitos? Mais ainda, muito já se discutiu e se desqualificou quanto a quaisquer tentativas de registro ou gravação (como a gravação em áudio de sessões), ou outras formas de arquivo, pois essas seriam em si alienantes (Derrida, 1996, p. 77).
Percebamos, entretanto, um detalhe gravado na história: 15 anos depois dos Estados Gerais que desencadearam a Revolução de 1789, a França viu o surgimento de Napoleão, com o imperador se coroando em 1804 e sendo exatamente o oposto daquilo que defendiam os revolucionários. O fim do Absolutismo acabou gerando grandes déspotas, talvez até o maior deles.
Quinze anos depois dos Estados Gerais da Psicanálise, o que poderia ser esperado, qual reviramento histórico em suas práticas e conceitos, mesmo em suas instituições? Teríamos coragem de fazer um teatro da crueldade da própria cena psicanalítica? Assim, a hipótese derradeira que semeamos é que a técnica psicanalítica pode ser a cena em sua pureza, em toda sua crueldade. Para não mais resistirmos, para que não mais enunciemos álibis, poderíamos tomar a própria transferência não mais como uma atualização, por exemplo, mas como uma guerra, em todos os seus conflitos e resistências. Seria cruel, mas, para nos utilizar de Derrida, uma guerra justa.
Mais, ainda, teríamos batalhas justas ao não mais considerar a Psicanálise pelo viés de uma ordem estabelecida, com suas instituições, escolas e redes institucionais. Na Psicanálise, a crueldade, passa a minima por um trabalho de encontro de um tipo de efeito e de cenas que se forjam quando se abre a Caixa de Pandora do inconsciente. Sem isso, todo o resto não passa de álibi.
Referências
Artaud, A. (1964). Le théâtre et son double. Paris: Gallimard. [ Links ]
Bokanowski, T. (2000). Ferenczi et l'origine du transfert négatif. Revue Française de Psychanalyse, 64, 565-580. [ Links ]
Derrida, J. (1967). Le théâtre de la cruauté et la clôture de la représentation. In J. Derrida L'écriture et la différence (pp. 341-368). Paris: Seuil. [ Links ]
Derrida, J. (1996). Résistances de la Psychanalyse. Paris: Galilée. [ Links ]
Derrida, J. (2000). États d'âme de la Psychanalyse. Adresse aux États Généraux de la Psychanalyse. Paris: Galilée. [ Links ]
Dupont, S. (2014). L'autodestruction du mouvement psychanalytique. Paris: Gallimard. [ Links ]
Freud, S., & Breuer, J. (1895/2002). Études sur l'hystérie. Paris: PUF. [ Links ]
Freud, S. (1919/1953). Les voies nouvelles de la thérapeutique psychanalytique. In S. Freud La technique psychanalytique (pp. 131-141). Paris: PUF. [ Links ]
Freud, S. (1937/1994). Analyse avec fin et analyse sans fin. Paris: Bayard. [ Links ]
Heidegger, M. (1958). La question de la technique. In M. Heidegger Essais et conférences (pp. 9-48). Paris: Gallimard. [ Links ]
Huber, G. (2002). Anatomie de la séparation. Réponses à Jacques Derrida. Bruxelas: De Boeck Université [ Links ].
Lacan, J. (1975). Le Séminaire de Jacques Lacan: Les écrits Techniques de Freud: 1953-1954. Paris: Seuil. [ Links ]
Lacan, J. (1966). Situation de la Psychanalyse et formation du psychanalyste en 1956. In J. Lacan Écrits (pp. 459-491). Paris: Seuil. [ Links ]
Soler, C. (1985). L'acté manqué de Ferenczi. Ornicar?, 35, 81-90. [ Links ]